Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Maria Isolina Pinto Gonçalves, melhor identificada nos autos, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (3.ª Secção), de 28 de Setembro de 2006, «considerando o n.º 2 do artigo 1682.º e o n.º 2 do artigo 1696.º do Código Civil inconstitucionais, quando permitam a penhora em salário do executado e se prove em embargos de terceiro movidos pelo cônjuge, casado em comunhão de adquiridos, que este sempre trabalhou, exercendo profissão remunerada, destinando o produto do seu trabalho a despesas da vida familiar e a aquisição de bens que constituem o recheio da habitação em que reside com o executado, por violação dos artigos 2.º, 62.º, 36.º, n.os 1 e 3, e dos princípios neles consignados, da Constituição da República Portuguesa», nos termos da resposta ao despacho/convite de aperfeiçoamento do requerimento de recurso proferido no tribunal a quo.
Pode ler-se no acórdão recorrido:
Restringe-se o âmbito do recurso à parte da sentença que julgou da improcedência dos embargos, isto é, relativamente à requerida penhora pela exequente, em 16 de Março de 2004 (fl. 140), do direito de crédito, correspondente a um terço do vencimento que o executado Eduardo Rufino aufere como trabalhador por conta da empresa Expresso - Carga. Ora, não vem posta em causa a matéria de facto tida a quo por demonstrada nos autos.
E, com suficiência, por demonstrada neles estar, também se lhe adita - ut artigo 712.º, n.º 1, primeira parte, do CPC - sendo que, aqui em precedência, ela foi também elencada o seguinte:
A nomeação à penhora do requerido direito a que se restringe o recurso (um terço do vencimento do cônjuge executado) foi ordenada na execução, por despacho de 29 de Março de 2004 (fl. 141), até perfazer o montante de (euro) 8705,70, como a notificação do legal representante da entidade patronal (artigo 856º, ibidem) - a fl. 142; sendo certo, porém, que ulteriormente, por decisão de 24 de Fevereiro de 2006 (a fl. 150), se determinou que a execução permanecesse suspensa - ut artigo 359.º, n.º 2, ibidem - quanto à efectivação de tal diligência relativa ao direito da exequente sub judice.
Perante tal quadro circunstancial fáctico «provado» cabe ajuizar da conformidade com a lei da decisão da 1.ª instância ora impugnada.
Então, hic et nunc, questão é tão-só a de saber se é, ou não, admissível a penhora de um terço do salário do executado (marido da embargante), pese embora ele, uma vez recebido por este, seu titular, se (poder, caso o não gastasse ou onerasse, por ser de sua administração pessoal) integrar no património comum do casal.
Na falta de convenção antenupcial, como no caso, o casamento da embargante com o executado considera-se celebrado sob o regime de bens de comunhão de adquiridos - artigo 1717.º, CC.
Nele, então, faz parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges - artigo 1724.º, alínea a), ibidem; embora seja administrado pelo respectivo cônjuge seu titular - artigo 1678.º, n.º 2, alínea a), ibidem.
O casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges - artigo 1671.º, n.º 1; sendo que cada um dos cônjuges pode exercer qualquer profissão ou actividade sem consentimento do outro - artigo 1677.º-D.
Repete-se, não obstante o mais dito, que cada um dos cônjuges tem a administração dos proventos que receba pelo seu trabalho; tendo legitimidade para os alienar ou onerar, por acto entre vivos - artigo 1682.º, n.º 2 - sem embargo de o poder de administração e até de livre disposição conferidos ao titular dos proventos de trabalho não apagarem a natureza de bens comuns que tenham ex lege; e, sendo caso disso, eles estarão sujeitos, por conseguinte, à compensação fixada no n.º 4 deste último normativo e devem ser partilhados na altura em que cessem as relações patrimoniais entre os cônjuges (assim, A. Varela, Família, 1987, 363, nota 2).
Não se poderá esquecer, porém, que, no caso, demonstrado ficou que a dívida exequenda respeita a parte do valor do preço de equipamentos que a embargada/exequente forneceu ao cônjuge (executado) da embargante, os quais se destinaram a ser instalados num estabelecimento comercial, explorado pelo casal, constituído por aquele e pela embargante.
Articulado este facto, e demonstrado, pela parte embargada/exequente, não o poderá nem deverá o aplicador do Direito olvidar [...] (artigos 659.º, n.º 2, e 664º, CPC).
Daí, porém, expressamente se retirou a recorrente/embargante nas suas alegações do recurso (seguramente, por dele as suas consequências jurídicas lhe não serem favoráveis).
Situemo-nos, então, no âmbito do recurso. - O meio processual onde ajuizamos de embargos de terceiro é o meio específico de reacção contra a penhora por parte do cônjuge do executado, aqui terceiro - artigo 352.º, CPC.
Aceite a natureza comum do bem indicado à penhora: um terço do vencimento do cônjuge executado, não pode o cônjuge deste embargar «dado que este bem, ainda que comum, responde ao mesmo tempo que os bens próprios» - artigo 1696.º, n.º 2, alínea b), primeira parte, CC (cf. J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, à luz do Código revisto, 2.ª ed., 1997, p. 238).
Bem se diz, então, que, pese embora o produto do trabalho do cônjuge seja um bem integrado na comunhão do casal, neste regime de bens, verdade é também que ex lege o mesmo responde a par dos bens próprios do cônjuge devedor e nos mesmos moldes em que tais bens respondem pelas dívidas da sua exclusiva responsabilidade.
Assim é que, por isso, certo é e bem se dirá, não obstante tais bens serem bens comuns, não seguem o regime geral da responsabilidade pelas dívidas desses bens, mas excepcionalmente o regime da responsabilidade dos bens próprios.
Nestes parâmetros fáctico-legais, para além do mais que ora não vem equacionado e por isso não tem de ser ajuizado, os credores do cônjuge executado têm o direito de fazer penhorar os bens próprios do cônjuge devedor e, tal qual, o salário deste, sem que o cônjuge do executado, dele não titular, possa opor que de tal produto de trabalho, por virtude do regime de bens, também comunga.
A protecção do património colectivo de afectação especial do casal não pode servir para furtar o cônjuge devedor remisso às suas responsabilidades para com terceiros.
Bem se ajuizou e decidiu, como no caso dos autos, que a credora/exequente podia penhorar parte (um terço) do produto do trabalho do devedor executado, que é um bem comum móvel, mas de que este podia dispor por si só e, consequentemente, podendo ser objecto da execução imediata (por aplicação do princípio de que podem ser executados todos os bens que podem ser alienados), sem requerer a citação da sua mulher, por não ser permitido a esta embargar de terceiro, no tocante à penhora requerida de um terço do salário do cônjuge executado (Acórdão da Relação de Lisboa de l4 de Maio de 1975, in BMJ, 248, 460; de 14 de Fevereiro de1978, CJ, III, 1.º,100; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 1984, in BMJ, 340, 343).
Estando sob apreciação prévia ao fim e ao cabo a validade da decisão que ordenou a penhora de um terço do vencimento do executado marido, e nada obstando à sua legalidade, esta decisão terá de ser mantida; o que implicará, apodicticamente, a improcedência destes embargos, no que a tal bem respeita.
Bem se decidiu a quo pela sua improcedência e consequente prosseguimento da execução quanto ao mesmo, por ser ele susceptível de penhora pela exequente, ao abrigo dos normativos legais citados, conjugados entre si, e hermenêutica deles feita no caso.
Assim, estando aqui precludido o direito de embargar, quanto ao bem penhorado, nos termos em que foi exercido.
Não vemos, por isso, portanto, que qualquer das normas invocadas e consideradas, nomeadamente os normativos dos artigos 1682.º, n.º 2, e 1696.º, n.º1, CC, enfermem ou padeçam de qualquer inconstitucionalidade ou afrontem os artigos 2.º, 36.º, n.os 1 e 3, e 62.º, n.º 2, CRP.
Atento o regime de bens ora em causa, o da comunhão de adquiridos, diremos, em síntese e em geral, que são «grosso modo» próprios os bens indicados nos artigos 1722.º, CC, os sub-rogados no lugar desses (artigo 1723.º) e os adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios (artigo 1728.º); ao passo que são comuns os bens a que se refere o artigo 1724.º
E são dívidas comuns as indicadas nos artigos 1691.º, 1693.º, n.º 2, e 1694.º, n.º 1; e próprias as que constam dos artigos 1692.º, 1693.º, n.º 1, e 1694.º, n.º 2.
Ora:
Pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal e só na sua falta ou insuficiência é que respondem, solidariamente (ou conjuntamente, se o regime for o da separação de bens), os bens próprios de qualquer dos cônjuges (artigo 1695.º);
Pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do devedor (e, com eles, os bens comuns a que se refere o artigo 1696.º, n.º 2) e só na sua falta ou insuficiência é que responde a meação dele nos bens comuns (artigo 1696.º, n.º 1; e adiante-se, que entre estes se inclui o salário do cônjuge não executado, ut Acórdão da Relação do Porto de 25 de Maio de 2006, Gonçalo Silvano, in processo 2864.3.2006, in http://www.dgsi.pt/jtrp).
Neste quadro legal ordinário, a paridade e simetria de ambos os cônjuges do casal está vincada, sem supremacia de um em relação ao outro, em pé de igualdade, se lhes aplicando o respectivo regime legal e sem prejuízo do apuramento ulterior de contas entre os cônjuges (artigo 1697.º, n.os 1 e 2, CC).
Consagrada está aqui a ideia de que cada um dos cônjuges deve ser compensado de tudo quanto tenha sido pago à custa dos seus bens, além do que rigorosamente lhe cumpria subscrever no plano das relações internas; como ainda, deste modo, em certa medida, a ocorrência à necessidade de defesa do interesse dos credores respectivos dos cônjuges.
Não temos, pelo exposto, por minimamente beliscados, no statu quo factual dos autos e direito aplicado - artigos 1682.º, n.º 2, e 1696.º, n.º 2, CC: permissibilidade e efectivação de penhora em um terço do vencimento do executado marido, casado com a recorrente/embargante no regime de comunhão de adquiridos, que sempre trabalhou remuneradamente e destinando o dinheiro assim obtido às despesas familiares e aquisição de bens do recheio da casa de morada com o executado - os princípios fundamentais consagrados nos artigos 2.º, 36.º, n.os 1 e 3, e 62.º, CRP.
A eventual consideração de que os vencimentos se destinam a ocorrer de forma imediata às necessidades do lar justifica só a impenhorabilidade parcial reconhecida por lei [artigo 824.º, n.º 1, alínea a), CPC]; justifica tal finalidade como suficiente, mas já não autoriza outro obstáculo quanto à parte que a própria lei não furta à execução.
A recorrente suscitou tempestivamente a questão, no âmbito das alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto.
2 - Nas suas alegações de recurso, concluiu a recorrente do seguinte modo:
Neste sentido se entendendo, no caso concreto, a inconstitucionalidade das normas constantes do n.º 2 do artigo 1682.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º do Código Civil, pela interpretação segundo a qual o produto do trabalho do executado, casado em comunhão de adquiridos, pode pelo mesmo ser alienado ou onerado, ou responder por dívida em execução apenas movida contra si, quando a tal se oponha o cônjuge, movendo embargos de terceiro e se prove que a embargante ao longo da sua vida sempre trabalhou, exercendo profissão remunerada, destinando o produto do seu trabalho a fazer face às despesas da vida familiar e à aquisição dos bens que constituem o recheio da habitação onde reside com o executado e onde têm o seu centro de vida doméstica, familiar e social, por violação dos artigos 2.º, 36.º, n.º 3, e 62º, e dos princípios neles consagrados, da Constituição da República Portuguesa.
Por parte da recorrida não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
Após redistribuição, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
3 - A questão de constitucionalidade. - No presente recurso de constitucionalidade estão em juízo duas normas do Código Civil: a contida no n.º 2 do artigo 1682.º e a contida na alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º
Dispõe o n.º 2 do artigo 1682º:
«Cada um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar, por acto entre vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do n.º 1 do artigo 1678.º e das alíneas a) e f) do n.º 2 do mesmo artigo, ressalvado o disposto nos números seguintes.»
Por seu turno, determina a alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º, quanto à identificação dos «Bens que respondem pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges»:
«2 - Respondem, todavia, ao mesmo tempo que os bens próprios do cônjuge devedor:
b) O produto do trabalho e os direitos de autor do cônjuge devedor;» [Itálico nosso.]
Alega a recorrente que estes dois preceitos são inconstitucionais na medida em que podem ser lidos de acordo com a seguinte «interpretação» ou «dimensão normativa»:
Primeiro, na medida em que ambos incidem sobre os proventos ou o produto do trabalho de cada um dos cônjuges. Com efeito, de acordo com o n.º 2 do artigo 1682.º - que remete para as alíneas a) a f) do artigo 1678.º - , cada um dos cônjuges pode alienar ou onerar, sem o consentimento do outro, os proventos que receba do seu trabalho;
E de acordo com a alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º tais proventos respondem, ao mesmo tempo que os bens próprios do cônjuge devedor, pelas dívidas que sejam da sua exclusiva responsabilidade.
É a partir deste ponto - e só a partir dele - que se delimita a questão da constitucionalidade. A recorrente sustenta que é inconstitucional o regime fixado no n.º 2 do artigo 1682.º, na medida em que confere a cada um dos cônjuges o poder de alienar, sem o consentimento do outro, os proventos que receba do seu trabalho; e que é inconstitucional o regime contido na alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º, na medida em que prevê que tais proventos respondam - ao mesmo tempo que os bens próprios do devedor - pelas dívidas que sejam da exclusiva responsabilidade de um só cônjuge.
Sendo este o «ponto» a partir do qual se coloca, ao Tribunal, a questão de constitucionalidade - ou, dizendo de outro modo, o «ponto» a partir do qual se identifica a «dimensão normativa» dos preceitos cuja constitucionalidade se discute - nem tudo fica por aqui. Alega ainda a recorrente que as referidas normas do Código Civil serão inconstitucionais (na medida acima indicada) sempre que se perfizerem mais dois requisitos essenciais:
i)Sempre que, por força do regime matrimonial vigente, for bem comum do casal o produto do trabalho de cada um dos cônjuges (como sucede no caso dos autos);
ii) Sempre que se prove (como sucede no caso dos autos) que o cônjuge não devedor «toda a sua vida trabalhou, exercendo profissão remunerada, destinando o produto do seu trabalho a fazer face às despesas da vida familiar e à aquisição de bens que constituem o recheio da habitação onde [residem os cônjuges] e onde têm o seu centro de vida doméstica, familiar e social.
Como as normas constitucionais cuja violação, in casu, se invoca são as constantes dos artigos 2.º, 62.º e 36.º, n.º 3, da CRP, a questão de constitucionalidade que o recurso coloca ao Tribunal pode ser finalmente equacionada do seguinte modo:
É constitucionalmente tolerável - face aos princípios do Estado de direito, da garantia da propriedade privada e da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges - que o salário de um dos cônjuges possa ser por ele livremente alienado e possa responder pelas dívidas da sua exclusiva responsabilidade (ao mesmo tempo que os seus bens próprios), sendo o referido salário bem comum do casal e tendo o outro cônjuge (o cônjuge não devedor) sempre contribuído para os encargos da vida familiar?
A resposta a esta questão só pode vir a ser encontrada se se precisar com mais rigor o sentido das normas impugnadas.
Importa analisar mais demoradamente os regimes fixados no n.º 2 do artigo 1682.º e no n.º 2, alínea b), do artigo 1696.º do Código Civil: qual o sistema de regulação em que os mesmos regimes se inserem; qual o possível sentido, ou razão de ser, das soluções normativas neles contidas.
4 - As normas sob juízo. - Tanto o artigo 1682º - que tem por epígrafe «Alienação ou oneração de imóveis» - quanto o artigo 1696º - cuja epígrafe é «Bens que respondem pela dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges» - se inserem no capítulo ix do título ii do livro iv do Código Civil, respeitante aos efeitos do casamento.
É bem sabido que foram os efeitos do casamento das matérias reguladas pela lei civil que mais transformações sofreram em virtude da entrada em vigor da Constituição.
O facto é notório quanto aos chamados efeitos pessoais do casamento, que tiveram de ser objecto de nova regulação ordinária por imposição do disposto, sobretudo, nos artigos 13.º e 36.º da CRP; mas não é menos verdadeiro quanto aos seus ditos efeitos patrimoniais - no âmbito dos quais se inserem, evidentemente, as normas em juízo - , dada a difícil dissociação, neste domínio, entre aquilo que releva da esfera do «pessoal» e aquilo que releva da esfera do «patrimonial».
O capítulo ix, que inclui os artigos 1682.º e 1696.º, não distingue aliás entre efeitos pessoais e efeitos patrimoniais: limita-se a consagrar os efeitos do casamento. Assim, tiveram a mesma origem histórica as duas normas cuja constitucionalidade agora se discute. Foi a reforma do Código Civil introduzida pelo Decreto-Lei 496/77 - e introduzida pois em cumprimento da Constituição - que originou a redacção actual dos dois preceitos, mantida desde então sem alterações (só veio a ser modificado entretanto, e por uma vez, o n.º 1 do artigo 1696.º, o que para o presente caso é irrelevante).
A procura da razão de ser dos regimes contidos no n.º 2 do artigo 1682.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º - regimes esses que, recorde-se, a recorrente entende serem incompatíveis com a Constituição, por permitirem a alienação (por parte de um só cônjuge) e a execução (por dívidas da responsabilidade de um só cônjuge) de um bem comum do casal - não pode, portanto, ser desligada desta sua origem histórica. O facto é desde logo bem visível no que diz respeito ao regime fixado no n.º 2 do artigo 1682.º
O disposto no n.º 2 do artigo 1682.º deixa-se resumir da seguinte forma: pode alienar (ou onerar) quem pode administrar (assim mesmo Leonor Beleza, «Os efeitos do casamento», em Reforma do Código Civil, Lisboa, Ordem dos Advogados, 1982, p. 123).
No que aos bens móveis diz respeito (e, evidentemente, os bens móveis comuns, que são só aqueles que agora nos interessam), o legislador adoptou a regra segundo a qual cada cônjuge deve ter o poder de alienar (ou onerar) livremente e, portanto, sem o consentimento do outro o bem móvel comum de que tenha - só ele - a administração.
Como, nos termos da alínea a) do artigo 1678.º - para a qual remete o n.º 2 do artigo 1682.º - se contam, precisamente, entre os bens móveis administrados por um só cônjuge os proventos do trabalho de cada um, a razão de ser do regime contido no n.º 2 do artigo 1682.º depende afinal da razão de ser do regime geral da administração dos bens do casal, consagrado no artigo 1678.º
Se soubermos por que motivo decidiu o legislador confiar os proventos do trabalho à administração «livre», e singular, do cônjuge que os recebe, saberemos também por que motivo decidiu o legislador permitir que aqueles mesmos proventos - ainda que constituindo bem comum do casal - possam ser livremente alienados pelo cônjuge que os aufere.
Ora, e quanto a este ponto, tem sido bem clara a doutrina.
Para dar cumprimento ao princípio da igualdade entre os cônjuges, consagrado no artigo 36.º, n.º 3, da CRP, o legislador de 1977 adoptou, em matéria de administração de bens do casal, o princípio geral da administração conjunta, também chamada de administração de mão comum: é o que decorre do n.º 3 do artigo 1678.º, segundo o qual os «actos de administração [não ordinária] só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges.». Entende-se, normalmente, que não seria este o único regime compatível com o princípio constitucional da igualdade, podendo o legislador ter escolhido outros (neste sentido, Leonor Beleza, ob. cit., p. 122, e Francisco Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. i, Coimbra, Coimbra Editora, 3.ª ed., 2003, p. 409). Mas a verdade é que, ao eleger um sistema normativo assente no princípio geral da distribuição igualitária dos poderes de administração, o legislador fez, neste domínio, uma aplicação inequivocamente leal da Constituição. Tanto mais que atribuiu a esse mesmo «sistema» - e o ponto merece bem ser sublinhado - natureza imperativa (artigo 1699.º, n.º 1, alínea b), por ter eventualmente receado que «deixando esta matéria à liberdade dos nubentes, muitos seriam tentados a seguir a tradição que confiava ao marido os poderes de administrar os bens do casal, frustrando deste modo o princípio igualitário que a reforma estava a introduzir no direito civil, na sequência dos princípios constitucionais de 1976» (assim mesmo, Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., p. 408).
Um regime como este, assente no princípio da administração conjunta dos bens comuns do casal, pode no entanto vir a revelar-se limitador das necessidades quotidianas do tráfego jurídico. Exigências óbvias de flexibilidade impõem, por isso, que sejam previstas excepções à regra geral de administração de mão comum. O legislador da reforma de 1977 fê-lo no n.º 2 do artigo 1678.º; e do âmbito da administração conjunta excluiu desde logo «os proventos que [cada cônjuge] receba pelo seu trabalho» (artigo 1678.º, n.º 2, alínea a).
A razão por que o fez é clara. Se as exigências decorrentes da celeridade e flexibilidade do tráfego exigem que nem tudo seja administrado conjuntamente, à «cabeça» daqueles bens que podem e devem ser destacados para o âmbito permitido da administração disjunta vem naturalmente o produto do trabalho de cada um dos cônjuges, dada a proximidade aqui existente entre o «bem» em causa e a pessoa que o traz para a economia comum do casal (entre outros: Leonor Beleza, ob. cit., p. 123). A razão de ser do regime previsto no n.º 2 do artigo 1682.º está, portanto, aqui: como o regime de alienação e oneração de bens móveis aí fixado se construiu em torno do princípio segundo o qual pode alienar quem pode administrar, o legislador entendeu que, tendo já confiado os «proventos do trabalho de cada um» à administração singular do cônjuge que os aufere, deveria também conferir a esse mesmo cônjuge a legitimidade para decidir, só, sobre a sua alienação ou oneração. O fundamento que justifica esta opção legislativa é idêntico àquele que explica a solução contida na alínea a) do n.º 2 do artigo 1678.º A ligação especial existente entre o «bem» - que pode ser, como no caso dos autos, um bem comum - e o cônjuge que o «adquiriu» confere razão de ser ao regime previsto no n.º 2 do artigo 1682.º
Em princípio, o que pode ser alienado pode ser executado. Quer isto dizer que todos os fundamentos que até agora analisámos (e que se prendem, como vimos, com decisões essenciais tomadas pelo legislador em matéria de administração dos bens do casal) são em certa medida extensíveis ao regime estabelecido na alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º do CC - regime esse que, no caso dos autos, se considera também ser inconstitucional. O raciocínio a estabelecer é simples. Se os «proventos do trabalho de cada um» podem ser sempre administrados apenas pelo cônjuge que os aufere; se, por isso, podem também ser por ele (livremente) alienados, então, pelas dívidas que sejam da sua exclusiva responsabilidade, devem tais «proventos» poder responder ao mesmo tempo que «respondem» por elas os bens próprios do cônjuge devedor. O fundamento da regra é ainda o mesmo: a especial ligação existente entre o «bem» em causa e aquele cônjuge que o aufere - o cônjuge que administra (artigo 1678.º), que aliena (artigo 1682.º) e que deve (artigo 1696.º).
É claro que semelhante fundamento só em parte explica o regime previsto no n.º 2, alínea a), do artigo 1969.º
A razão de ser da norma nele contida decorre ainda de um outro - e decisivo - motivo, naturalmente ausente do quadro explicativo das normas que até agora analisámos. Aqui, o legislador quis especialmente assegurar o cumprimento das expectativas dos credores que tenham confiado na solvabilidade do (cônjuge) devedor, tendo em conta porventura os rendimentos provenientes do seu trabalho. (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., pp. 466-467). E é por esse motivo - para assegurar, afinal, o cumprimento dos direitos dos credores - que a lei «sacrifica», neste aspecto, o património comum do casal: mesmo que, por força do regime matrimonial vigente, os «proventos do trabalho de cada um» constituam um bem comum, o Código permite que tal bem responda pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de apenas um dos cônjuges, ao mesmo tempo que os bens próprios do devedor. Fá-lo em nome de uma coerência sistémica (decorrente de decisões legislativas já tomadas em sede de administração de bens); e fá-lo em nome da protecção dos direitos e expectativas dos credores.
Poucos anos após a entrada em vigor deste «sistema» - cujo sentido e razão de ser procurámos identificar - escreveu-se:
«É claro que há neste sistema sempre um risco, que é a desprotecção excessiva dos interesses do outro cônjuge. Mas entre os riscos desta desprotecção, e a facilitação do tráfego jurídico, o legislador optou por esta quanto aos tais bens que com um cônjuge mantêm ligações particularmente intensas.» (Leonor Beleza, ob. cit., p. 123.)
Vem agora a recorrente alegar a inconstitucionalidade desta opção do legislador - que comporta, de facto, um «risco» - invocando antes do mais a violação do artigo 2.º da Constituição.
Vejamos, pois.
5 - Do princípio do Estado de direito. - No artigo 2.º da CRP consagra-se essencialmente o princípio do Estado de direito. Trata-se, como bem se sabe, de um princípio compósito e de conteúdo por isso especialmente vasto. Não especifica a recorrente qual a dimensão do princípio que, no caso, considera ter sido violada. No entanto, e dadas as especificidades dos autos, é de crer que essa dimensão seja aquela mesma que inspirou a jurisprudência do Tribunal que reconheceu a existência de um direito fundamental ao mínimo de sobrevivência condigna.
Com efeito, nos casos dos Acórdãos n.os 232/91, 349/91, 62/2002 e 509/2002 (inter alia), o Tribunal disse que a ordem constitucional portuguesa reconhecia a existência de um direito (não escrito) a um mínimo de sobrevivência, entendido quer na sua vertente negativa - enquanto direito a não se ser privado do mínimo necessário a uma vida digna - quer na sua vertente positiva - enquanto direito à prestação da comunidade estadual destinada a assegurar o mínimo necessário à sobrevivência (quanto a esta última vertente, Acórdão 509/2002).
Em todos estes casos, e em última análise, estribou-se a fundamentação do Tribunal no princípio do Estado de direito. Na verdade, o que então se disse foi que o direito ao mínimo de sobrevivência se deduzia do princípio da dignidade da pessoa humana; e que embora este último princípio tivesse inscrição textual no artigo 1.º da CRP, a sua sedes materiae se encontraria afinal no artigo 2.º, na medida em que a «dignidade humana» se deveria considerar como sendo parte integrante da dimensão material do princípio do Estado de direito.
É por isso de crer que, invocando agora a recorrente a violação (por parte das normas do Código Civil que atrás analisámos) do artigo 2.º da Constituição, o fará com fundamento numa possível extensão de toda esta jurisprudência ao caso a julgar no presente recurso, de modo a que também nele se conclua pela regra da impenhorabilidade total do rendimento auferido a título de salário - por imposição de tal direito ao mínimo de sobrevivência decorrente do princípio consagrado no artigo 2.º da CRP.
Mas se assim é - e não se vê por que outro motivo seriam aqui invocadas as exigências decorrentes do princípio do Estado de direito - desde logo se diga que nenhuma razão assiste, quanto a este ponto, à recorrente.
Com efeito, toda a corrente jurisprudencial a que acima nos referimos partiu de um pressuposto essencial: o de que só estaria em causa o direito a não se ser privado do mínimo necessário à sobrevivência naquelas - e só naquelas - situações em que o montante do rendimento auferido não fosse superior ao do salário mínimo ou ao do rendimento mínimo garantido, consoante os casos.
Nada nos autos permite concluir que se repita, in casu, a mesma fattispecie. Assim sendo, não tem razão a recorrente, quando nele invoca a violação do princípio do Estado de direito.
6 - Da garantia constitucional da propriedade privada. - Afirma em seguida a recorrente que, na «dimensão interpretativa» acima identificada (e tal qual aplicada pela sentença recorrida), as normas contidas no n.º 2 do artigo 1682.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º do Código Civil lesam a garantia constitucional da propriedade privada, consagrada desde logo no n.º 1 do artigo 62.º da CRP («A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida e por morte, nos termos da Constituição.»).
A afirmação só tem sentido se se considerar que, não obstante o lugar que lhe é atribuído pelo discurso constitucional, o «direito à propriedade» é - pelo menos em certa medida - um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, ou seja, um direito fundamental de defesa.
Com efeito, o artigo 62.º insere-se no título iii da parte ii da Constituição, que é relativo aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais. Mais precisamente, a CRP apresenta a «garantia da propriedade» como sendo um dos direitos (e deveres) económicos, enunciado no capítulo i daquele título iii.
Ora - e como bem se sabe - tem sempre dito a jurisprudência e a doutrina que um direito dotado de tal natureza (ou seja, com a estrutura típica dos chamados, por antonomásia, «direitos sociais» ou «direitos a prestações») não pode em princípio ser lesado por acção do próprio legislador. (A admissibilidade de uma tal «lesão» - por acção, que não por «omissão» legislativa - será quando muito pensável nos casos de existência dos chamados «direitos derivados a prestações» e sempre que estiver também em causa a lesão de outros princípios constitucionais, como o princípio da igualdade e o princípio da protecção da confiança: da questão, que é vasta, não cuidaremos agora.)
As razões por que tal sucede são simples. Tratando-se um direito social de um direito a acções e prestações estaduais, cujo conteúdo não pode ser determinado ao «nível» das opções constitucionais, a sua concretização depende precisamente da acção do legislador ordinário, que constitui afinal o próprio direito (entre muitos outros: Acórdãos n.os 508/99, 131/92 e 151/92 e José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, Coimbra, 3.ª ed., 2004, pp. 385 e segs.).
Assim, se se considerar que a «garantia da propriedade» é, como indica o seu lugar sistemático, um «direito a prestações», não faz sentido invocar, como se invoca no caso dos autos, a sua lesão por acção do legislador. Já não assim, evidentemente, se se entender que - não obstante a sua inserção no discurso constitucional - o direito contido no artigo 62.º é, pelo menos em certa parte, um direito de defesa, ou seja, um direito de estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias.
O Tribunal Constitucional tem sufragado, por diversas vezes, semelhante entendimento.
Com efeito, no Acórdão 187/2001 - que faz, neste domínio, uma síntese expressiva de toda a orientação jurisprudencial anterior - , o Tribunal disse que, sendo afinal a «propriedade» um pressuposto da autonomia das pessoas, algum «núcleo» dela teria que ser entendido como «direito, liberdade e garantia»; e que, dentro deste «núcleo», se contaria seguramente quer o direito a não se ser privado da mesma propriedade (através da consagração constitucional do instituto da expropriação, no n.º 2 do artigo 62.º), quer, em certa medida, o direito à «apropriação» de bens e à sua transmissão por vida ou por morte, cuja sedes materiae se encontraria, precisamente, no n.º 1 do artigo 62.º
Esta orientação, sufragada pelo Tribunal, coincide aliás com aquela que é seguida por outras ordens constitucionais, próximas da nossa quanto a escolhas fundamentais de valores.
A Constituição alemã, por exemplo (que não conhece aliás os chamados «direitos sociais»), consagra a garantia da propriedade no artigo 14.º, logo a seguir aos direitos de inviolabilidade de domicílio (artigo 13.º) e à liberdade de escolha da profissão (artigo 12.º), que são, evidentemente, típicos «direitos de defesa».
Por seu turno, a Constituição espanhola, que também não inclui no seu elenco «direitos sociais» - pois que contém antes, no capítulo iii, princípios informadores da política social e económica - reconhece o «direito à propriedade privada e à herança» no artigo 33.º, incluído no capítulo relativo aos «direitos e liberdades». Finalmente, a Constituição italiana consagra o direito no artigo 42.º, inserto na parte i, reservada à consagração dos «direitos e deveres dos cidadãos».
Contudo - e é este o ponto que deve agora ser sublinhado - em todas estas ordens jurídicas se diz que, sendo embora o direito de propriedade em certa medida análogo aos clássicos «direitos de defesa», não pode deixar de se ter em conta a «especialidade» da sua «natureza» - e, mais precisamente, a «especialidade» da sua relação com a lei ordinária - por contraposição com os demais direitos e «liberdades» clássicos.
Este dito, que é comum na jurisprudência e doutrina estrangeiras (v., por exemplo, Stelio Mangiameli, La Proprietà Privata nella Costituzione, Milano, Giuffré Editore, 1986, e Fernando Rey Martinez, La Propiedad Privada en la Constitución Espanõla, Centro de Estúdios Constitucionales, Madrid, 1994) é aliás repetido pelo Tribunal no Acórdão 187/2001. Aí se afirma, com efeito (e em consonância com toda a jurisprudência anterior) que «[e]stá tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da concepção clássica do direito de propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et abutendi - ou, na formulação impressiva do Código Civil francês (artigo 544.º), enquanto direito de usar e dispor das coisas de «la manière la plus absolu». Por isso - diz-se ainda no Acórdão atrás citado - a garantia contida no n.º 1 do artigo 62.º da CRP deve ser entendida, antes do mais, como garantia de instituto endereçada ao legislador ordinário. Este deve conformar legislativamente a propriedade privada; e deve fazê-lo, não em função de uma qualquer teleologia, mas tendo em conta a finalidade que ela prossegue nos termos da Constituição.
Significa isto que, enquanto os demais direitos de defesa - ditos clássicos - se encontram sob reserva de Constituição, sendo por isso resistentes à lei, a propriedade, mesmo na sua vertente «clássica» ou «defensiva», é garantida constitucionalmente sob uma especial reserva de lei. O legislador ordinário está especialmente vinculado a conformar o conteúdo deste direito; e a conformação legislativa deve ser feita tendo em conta todo o «sistema de valores» constitucionais. Isso mesmo se depreende do n.º 1 do artigo 62.º da CRP: «[a] todos é garantido o direito à propriedade privada [...] nos termos da Constituição».
Como se depreende o mesmo do artigo 14.º da Constituição alemã - «A propriedade e o direito à herança são garantidos. O seu conteúdo e limites são estabelecidos pela lei [...] o seu uso deve ao mesmo tempo servir o bem da comunidade» - ; do artigo 33.º da Constituição espanhola - «É reconhecido o direito à propriedade privada [...] a função social deste direito limita o seu conteúdo, em conformidade com a lei» - , e do artigo 42.º da Constituição italiana - «A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina os seus limites [...] com o fim de assegurar a sua função social».
Ao alegar que o n.º 2 do artigo 1682.º e a alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º da Código Civil violam, na «dimensão» interpretativa atrás identificada, a garantia constitucional da propriedade, a recorrente está portanto a afirmar que, nos que aos regimes de administração de bens do casal e de responsabilidade por dívidas de um dos cônjuges diz respeito, o legislador da reforma de 1977 não conformou, como devia, o direito reconhecido no artigo 62.º da Constituição. Dito por outras palavras: o que a recorrente alega é que a ordem de conformação (da propriedade privada) que é endereçada ao legislador ordinário nos termos do n.º 1 do artigo 62.º da CRP não foi, quanto aos regimes em discussão, devidamente cumprida, por se não ter tido neles em conta todos os «valores» e «bens» constitucionalmente tutelados e merecedores, no caso, de protecção. Ou, como diz a Constituição, por não ter sido «feita» - a conformação legislativa - «nos seus próprios termos».
Não se vê, porém, como sustentar semelhante entendimento.
Por um lado - e vimo-lo atrás - o n.º 2 do artigo 1682.º do Código Civil contém um regime cujo fundamento último se encontra, justamente, na necessidade de conciliar dois «valores» que integram inquestionavelmente o «sistema» normativo da Constituição: a facilitação do tráfego jurídico, de uma parte - sem a qual, note-se, não pode ser «garantida» a propriedade - , e a igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, decorrente do n.º 3 do artigo 36.º da CRP.
Por seu turno - e também o vimos - o regime contido no n.º 2, alínea b), do artigo 1696.º serve o propósito de conjugar aquele mesmo princípio constitucional igualitário (que, como se concluiu, fundamenta o regime de administração dos bens do casal), com o necessário cumprimento das expectativas e direitos dos credores quanto a dívidas assumidas por um dos cônjuges - sem o qual, repita-se, também não poderia por ser assegurada qualquer garantia (constitucional) da propriedade.
Assim sendo, não tem razão a recorrente, quando alega, in casu, a violação do direito consagrado no artigo 62.º da Constituição.
7 - Da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges. - Sustenta finalmente a recorrente que o n.º 2 do artigo 1682.º e a alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º do Código Civil lesam - quando «lidos» de acordo com a «dimensão interpretativa» atrás identificada - o princípio constitucional de igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, consagrado no n.º 3 do artigo 36.º da Constituição.
Já vimos, porém, que foi precisamente este o princípio constitucional que determinou a reforma do Código de 1977, introduzida pelo Decreto-Lei 496/77; que data dessa altura a formulação das duas normas impugnadas; que, quando lida no contexto da regulação em que se insere, tal formulação aparece como sendo uma consequência das escolhas feitas pelo legislador da reforma em matéria de administração dos bens do casal; que tais escolhas se traduziram na adopção de um regime de administração comum, assente portanto no princípio da distribuição igualitária (entre os dois cônjuges) dos poderes de administração; e que, por isso, se não poderia deixar de ver em tal regime uma aplicação leal da Constituição.
É esta última conclusão que a recorrente vem agora contestar.
Ao dizer que não é constitucionalmente tolerável - face, justamente, ao princípio da igualdade de direitos e deveres consagrado no n.º 3 do artigo 36.º da CRP - que o salário de um dos cônjuges possa ser por ele livremente alienado e possa responder pelas dívidas da sua exclusiva responsabilidade ao mesmo tempo que os seus bens próprios [sempre que o salário for bem comum do casal e sempre que se prove que o cônjuge não devedor cumpriu o seu dever de contribuir para os encargos da vida familiar], está a recorrente a dizer que a reforma de 77 não fez afinal uma concretização correcta da Constituição, pois que outra e mais intensa deveria ter sido a protecção a dar, nestes casos, ao cônjuge não devedor.
Vejamos então.
O princípio contido no n.º 3 do artigo 36.º da CRP é uma especificação do princípio contido no n.º 2 do artigo 13.º Garantir que, no seio da família, se não estabeleçam elos de subordinação e de dependência (juridicamente tutelados) de um cônjuge em relação a outro, é uma forma especial de garantir - no plano mais recôndito da vida familiar - a não discriminação em função do sexo. E, como discriminar significa «estabelecer diferenças entre as pessoas com fundamento, não num juízo, mas num pré-juízo sobre aquilo que as distingue e sobre aquilo que forma a sua identidade» (assim mesmo, Lawrence H. Tribe, American Constitutional Law, 2.ª ed., Mineola, New York, The Foundation Press, 1988, p. 1480), a proibição da discriminação em função do sexo - quando aplicada aos efeitos do casamento - contém em si mesma, desde logo, uma injunção positiva: o cônjuge-marido e o cônjuge-mulher devem ter (não podem deixar de ter), face à lei, a mesma dignidade.
Foi exactamente assim que a reforma do Código Civil interpretou, e concretizou, a proibição de discriminação contida no n.º 3 do artigo 36.º O princípio da igual dignidade dos cônjuges é, com efeito, o princípio que dá coerência e unidade de sentido a todo o sistema de alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 496/77 no que diz respeito à regulação dos efeitos do casamento. Tal é especialmente visível no regime de administração de bens, onde se optou pela distribuição igualitária dos poderes de administração (desistindo-se, por isso, de «eleger» o cônjuge administrador, fosse ele marido ou mulher); mas tal é também visível em muitos outros domínios. Pense-se, por exemplo, no próprio uso linguístico do termo «cônjuge», adoptado pelo Código em substituição permanente do uso dos termos «marido» ou «mulher»; e pense-se ainda no facto de terem desaparecido do Código todas as formas de pré-determinação das funções no seio da família. A forma como está regulado o dever de contribuir para os encargos da vida familiar - que, diz o artigo 1676.º, «incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um» - é aliás particularmente expressiva desta opção do legislador, de não predeterminar ele próprio quaisquer distribuição de tarefas no interior da família.
Reconhecer a mesma dignidade a ambos os cônjuges significa, no entanto, reconhecer também que nenhum deles precisa (por ser «marido» ou «mulher») de uma especial e sistemática protecção em relação ao outro, tanto no domínio pessoal quanto no domínio patrimonial.
É certo que, no domínio patrimonial, o Código não deixou de considerar certos casos em que se configurava necessária a protecção. Veja-se, por exemplo, o regime previsto no n.º 3 do artigo 1676.º, relativo ao direito de exigir do outro a contribuição devida para os encargos da vida familiar; ou o regime previsto no n.º 1 do artigo 1681.º, relativo à responsabilidade (de um dos cônjuges) por actos de administração praticados em prejuízo do casal; ou o regime contido no n.º 2 do artigo 1682.º, relativo à especial protecção da casa da morada de família.
Em todos estes casos, porém, a protecção é concedida, indiferenciadamente, a qualquer dos cônjuges, em nome do interesse comum do casal. A ideia segundo a qual um dos cônjuges precisaria sempre de especial protecção contra o outro (por ser naturalmente enfraquecida a sua condição, fosse ela a de cônjuge-marido ou de cônjuge-mulher) está logicamente ausente do Código. Nem de outro modo poderia ser: é, que no seu cerne, tal ideia - de necessidade de sistemática e especial protecção de um em relação ao outro - seria sempre contrária ao princípio da igual dignidade dos cônjuges.
Decorrendo este princípio da proibição de discriminação contida no n.º 3 do artigo 36.º da Constituição, não se vê como é que, justamente em nome dessa mesma proibição de discriminação, se vem agora sustentar - como sustenta a recorrente - que é deficitária - e inconstitucionalmente deficitária - a lei civil, ao não «proteger» especialmente, perante o previsto no n.º 2 do artigo 1682.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 1696.º do Código, o cônjuge que «toda a sua vida trabalhou, exercendo profissão remunerada, destinando o produto do seu trabalho a fazer face às despesas da vida familiar e à aquisição de bens que constituem o recheio da habitação onde [residem os cônjuges] e onde têm o seu centro de vida doméstica, familiar e social.»
Não está dentro das capacidades do direito, seja ele constitucional ou legal, a transformação substancial das relações no interior da família.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixadas em 25 unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2007. - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins - Gil Galvão.