Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 277/2007, de 20 de Junho

Partilhar:

Sumário

Julga inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo, consagrados nos n.os 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 912.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, segundo a qual só se considera validamente exercido o direito de remição, por um descendente do executado, no acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, se for acompanhado do depósito da totalidade do preço oferecido na proposta aceite

Texto do documento

Acórdão 277/2007

Processo 113/07

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório. - Nos autos de execução pendentes no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, em que são exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Vila Franca de Xira e executados João Jerónimo e outros, no acto de abertura das propostas relativas à venda de prédio misto, propriedade de João Jerónimo e de Maria da Conceição Ferros, realizado em 21 de Setembro de 2005, após ter sido aceite, por despacho judicial, por ser a de valor mais elevado e superior ao valor anunciado para a venda, a proposta apresentada por Eduardo Florindo, Materiais de Construção, Transportes e Máquinas, Lda., no valor de Euro 481 350, foi perguntado às filhas do executado João Jerónimo, presentes ao acto, se pretendiam exercer o direito de remição, ao que Maria de Lurdes Patrício Jerónimo respondeu afirmativamente, "declarando contudo que não tem condições para efectuar o depósito da totalidade de imediato, vindo preparada com um cheque visado no valor de Euro 51 840,00" (correspondente a 20% do valor base da venda - Euro 259 200), na sequência do que foi proferido o seguinte despacho:

"Uma vez que nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 912.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março (aplicável a estes autos, uma vez que os mesmos deram entrada em juízo no dia 28 de Outubro de 2002), 'o preço há-de ser depositado no momento da remição', considera-se, e face ao que foi declarado por Maria de Lurdes Patrício Jerónimo, não validamente exercido o direito de remição."

A remidora interpôs recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, nas respectivas alegações, para além do mais, suscitado a questão da inconstitucionalidade, por violação do artigo 67.º, n.os 1 e 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (CRP), da redacção do artigo 912.º do Código de Processo Civil (CPC) anterior ao Decreto-Lei 38/2003. Essas alegações terminam com a formulação das seguintes conclusões:

"1 - De acordo com o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, incumbe ao Estado proteger a família, promovendo a independência social e económica dos agregados familiares.

2 - No âmbito desta obrigação, está instituído o regime legal de remição de bens familiares nas vendas judiciais dos mesmos.

3 - O artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na versão anterior à redacção introduzida pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, obrigava o remidor a depositar o preço no acto da remição.

4 - Esta obrigação não era exigida de nenhum dos concorrentes à compra do bem, ficando assim o remidor em situação de tal inferioridade que muitas vezes se tornava impossível o exercício dessa remição.

5 - Foi o que aconteceu no presente caso, em que a praça, através da abertura das propostas em carta fechada, marcada para as 14 horas, impossibilitou à remidora a hipótese de conseguir obter um cheque visado do valor do preço num banco e o depositar na Caixa Geral de Depósitos.

6 - Além disso, a dificuldade da remidora, no presente caso, aumentava ainda pela surpresa que foi a apresentação de um preço, que venceu a praça, muito superior ao valor da avaliação do bem, que constava nos autos.

7 - Por tudo isto, considera-se que a redacção do artigo 912.º, n.º 2, do CPC, anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, ofende o citado artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, já que tira, por um lado, as oportunidades que, de outro, se pretendem dar aos elementos da família.

8 - E na medida em que esse artigo 912.º deveria ter sido considerado inconstitucional pela M.ma Juíza, esta deveria considerar a nova redacção dos artigos 912.º e 913.º do CPC dada pelo Decreto-Lei 38/2003 a aplicada ao caso.

9 - Esta nova redacção do CPC, que, no regime da remição, concede ao remidor os mesmos direitos quanto ao depósito do preço que concede aos demais concorrentes à praça é que deveria ter sido aplicada ao caso pela M.ma Juíza, pelo regime definido pelo artigo 13.º do Código Civil (leis interpretativas).

10 - Conforme se verifica pela acta respectiva, a ora recorrente apresentou-se na praça com um cheque visado no valor de 20% do valor base do bem como exigido pelo artigo 897.º do CPC (redacção actual), aplicável pelo artigo 913.º, n.º 2 (actual redacção).

11 - A M.ma Juíza deveria ter aceitado o depósito do cheque dos 20% e dar à remidora o prazo de 15 dias para fazer o depósito do restante do preço, como ordenam os normativos referidos na conclusão anterior.

12 - Não aceitando a remição oferecida nas condições citadas, a M.ma Juíza violou nomeadamente o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.

13 - A recorrente pediu que fosse dado ao recurso efeito suspensivo, uma vez que o prédio vendido é casa de morada de família e a entidade que venceu a praça é uma sociedade de materiais de construção, transportes e máquinas, que pode causar graves prejuízos à habitação se entrar na posse do prédio.

14 - O agravado não se pronunciou sobre esta alegação e pedido da recorrente, pelo que, nos termos do artigo 740.º, n.º 2, alínea d), e n.º 3, do CPC, deveria a M.ma Juíza ter atribuído o efeito suspensivo ao recurso e não efeito devolutivo, como ficou determinado.

15 - Deve assim revogar-se o douto despacho da M.ma Juíza do Tribunal de Vila Franca de Xira, de não aceitação da remição, por ter violado o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição e dar-se como válido o exercício do direito de remição do bem vendido nos autos pela recorrente, ordenando-se que esta deposite o preço nos termos do artigo 897.º do CPC (redacção actual) e deve revogar-se também o douto despacho que atribuiu ao presente recurso efeito devolutivo, por ter violado o artigo 740.º, n.º 2, alínea d), e n.º 3, do CPC, devendo dar-se ao recurso o efeito suspensivo."

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Outubro de 2006, negou provimento a esse recurso, com a seguinte fundamentação:

"Quanto ao exercício do direito de remição exercido pela recorrente:

A recorrente, Sr.ª Maria de Lurdes Patrício Jerónimo, com o objectivo de exercer o direito de remição, quanto ao imóvel em venda nos autos, apresentou, no termo da abertura das propostas, um cheque visado no montante de 20% do valor base do bem e informou simultaneamente o Tribunal que não possuía condições para efectuar o depósito imediato da totalidade do preço.

A sua pretensão foi indeferida, por o tribunal a quo não considerar válido o direito de remição exercido pela agravante, visto não ter a requerente cumprido o estipulado no artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, que dispunha que o preço tinha de ser depositado no momento da remição.

Não se suscita dúvida de que ao caso sob recurso se aplica a lei na redacção antiga, uma vez que a presente acção deu entrada em juízo em 28 de Outubro de 2002 e, nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 38/2003, as alterações ao Código de Processo Civil só se aplicam relativamente aos processos instaurados a partir do dia 15 de Setembro de 2003.

De resto, nem a agravante parece colocar em causa este entendimento.

O que a agravante considera é que a redacção do artigo 912.º, n.º 2, do CPC, anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, ofende o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República, já que, em seu entender, tira, por um lado, as oportunidades que, de outro, se pretendem dar aos elementos da família e, deste modo, esse artigo deveria ter sido considerado inconstitucional e deveria considerar-se a nova redacção do artigo 912.º do CPC a aplicada ao caso, uma vez que esta nova redacção concede ao remidor os mesmos direitos quanto ao depósito do preço que concede aos demais concorrentes à praça.

Assim, diz a recorrente, a M.ma Juíza deveria ter aceitado o depósito do cheque dos 20% e dar à remidora o prazo de 15 dias para fazer o depósito do restante do preço, como ordenam os normativos referidos, e, não aceitando a remição oferecida nas condições citadas, a M.ma Juíza violou nomeadamente o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.

Ora, o preceito constitucional citado diz apenas que incumbe, designadamente, ao Estado, para protecção da família, 'promover a independência social e económica dos agregados familiares'.

Como se vê, trata-se de uma norma de natureza meramente programática dirigida ao Estado, erigindo em dever constitucional o de o mesmo Estado impulsionar a independência, social e económica, da família, obviamente mediante a criação de condições e incentivos que conduzam à realização de tal desiderato.

Contendo a norma tal cariz, não se vislumbra que o artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, ofenda a mesma norma e, por isso, se possa falar em relação ao mesmo de inconstitucionalidade.

É certo que a nova versão do citado artigo 912.º, n.º 2, do CPC, poderá constituir um aperfeiçoamento da lei, tornando-a mais justa e equitativa em relação à versão anterior, mas isso não é bastante para que não deva continuar a aplicar-se a lei antiga relativamente aos processos instaurados antes de 15 de Setembro de 2003.

Não está em causa no caso vertente o exercício do direito à remição, pois que à agravante estava facultado exercê-lo, exercício que apenas foi indeferido por não dispor aquela de meios necessários para preencher os pressupostos da remição, exigidos pelo artigo 912.º, n.º 2, do CPC, [na redacção anterior ao] Decreto-Lei 38/2003.

Como não estaria em causa o exercício do direito à remição e, consequentemente, também a violação do invocado preceito constitucional, caso a agravante se apresentasse a requerer a remição sem pretender depositar, por falta de meios, a importância exigida na nova versão da lei.

A remição só pode ser autorizada, tanto em face da lei antiga como em face da lei moderna, mediante a condição de certo depósito imediato: integral do valor da venda do bem na lei antiga e de 20% na lei moderna.

Não dispondo a agravante de meios para depositar o preço integral do valor da venda, não podia a remição ser autorizada, mesmo que tivesse oferecido um valor que seria bastante perante a nova versão da lei, por esta não ser susceptível de aplicação ao caso, como se demonstrou.

E isto mesmo a admitir-se que o artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, traduzia uma situação de desfavor para a remidora, pois que era essa a lei que existia, sendo por isso aplicável, sem qualquer excepção, quer aos presentes autos, quer a todos os processos anteriores a 15 de Setembro de 2003.

Pelo exposto, e ao contrário do que a agravante procura demonstrar, não houve qualquer violação constitucional, designadamente da norma invocada, pelo que se entende que bem se decidiu no despacho recorrido ao não se admitir a agravante a exercer o direito de remição nos termos em que se propôs fazê-lo.

Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter os despachos recorridos."

É contra este acórdão que por Maria de Lurdes Patrício Jerónimo vem interposto o presente recurso, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, por violação do artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da CRP, da norma do artigo 912.º, n.º 2, do CPC, "na versão anterior à redacção introduzida pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, que obrigava o remidor a depositar o preço no acto da remição".

Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, concluindo:

"1 - De acordo com o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, incumbe ao Estado proteger a família, promovendo a independência social e económica dos agregados familiares.

2 - No âmbito desta obrigação, está instituído o regime legal de remição de bens familiares nas vendas judiciais dos mesmos.

3 - O artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na versão anterior à redacção introduzida pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, obrigava o remidor a depositar o preço no acto da remição.

4 - Esta obrigação não era exigida de nenhum dos concorrentes à compra do bem, ficando assim o remidor em situação de tal inferioridade que muitas vezes se tornava impossível o exercício dessa remição.

5 - Foi o que aconteceu no presente caso, em que a praça, através da abertura das propostas em carta fechada, marcada para as 14 horas, impossibilitou à remidora a hipótese de conseguir obter um cheque visado do valor do preço, num banco e o depositar na Caixa Geral de Depósitos.

6 - Por tudo isto, considera-se que a redacção do artigo 912.º, n.º 2, do CPC, anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, ofende o citado artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, já que tira, por um lado, as oportunidades que, de outro, se pretendem dar aos elementos da família.

7 - E na medida em que esse artigo 912.º deveria ter sido considerado inconstitucional pela M.ma Juíza, esta deveria considerar a nova redacção dos artigos 912.º e 913.º do CPC dada pelo Decreto-Lei 38/2003 a aplicada ao caso.

8 - Esta nova redacção do CPC, que, no regime da remição, concede ao remidor os mesmos direitos quanto ao depósito do preço que concede aos demais concorrentes à praça é que deveria ter sido aplicada ao caso pela M.ma Juíza, pelo regime definido pelo artigo 13.º do Código Civil (leis interpretativas).

9 - Conforme afirma o douto acórdão recorrido, este novo regime é mais justo e equitativo.

10 - Conforme se verifica pela acta respectiva, a ora recorrente apresentou-se na praça com um cheque visado no valor de 20% do valor base do bem, como exigido pelo artigo 897.º do CPC (redacção actual), aplicável pelo artigo 913.º, n.º 2 (actual redacção).

11 - A M.ma Juíza deveria ter aceitado o depósito do cheque dos 20% e dar à remidora o prazo de 15 dias para fazer o depósito do restante do preço, como ordenam os normativos referidos na conclusão anterior.

12 - Não aceitando a remição oferecida nas condições citadas, a M.ma Juíza violou nomeadamente o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.

13 - O douto acórdão da Relação de Lisboa indeferiu a pretensão da recorrente e, embora julgando a nova redacção do normativo processual mais justa e equitativa relativamente à anterior, decidiu manter a decisão da 1.ª instância, por tomar o princípio constitucional em causa meramente programático para o Estado.

14 - Ora, os normativos processuais devem em tudo conformar-se com o programa constitucional e têm de ser considerados ilegais quando não se conformem com esse programa.

15 - Deve assim revogar-se o douto acórdão da Relação de Lisboa, assim como o douto despacho da M.ma Juíza do Tribunal de Vila Franca de Xira, de não aceitação da remição, por ter violado o artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição e dar-se como válido o exercício do direito de remição do bem vendido nos autos pela recorrente, ordenando-se que esta deposite o preço nos termos do artigo 897.º do CPC (redacção actual)."

A recorrida Eduardo Florindo, Materiais de Construção, Transportes e Máquinas, Lda., contra-alegou, concluindo:

"A) Considera a recorrente que o artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, viola o princípio constitucional definido pelo artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, na medida em que, por um lado, retira as oportunidades que, de outro, se pretendem dar aos elementos da família.

B) O artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa diz apenas que incumbe, designadamente ao Estado, para protecção da família, 'promover a independência social e económica dos agregados familiares'.

C) Tal norma, por ser de natureza programática, é dirigida unicamente ao Estado, incumbindo ao mesmo o dever constitucional de promover a independência social e económica dos agregados familiares, através da criação de condições que propiciem a realização de tal objectivo.

D) Contendo a referida norma apenas natureza programática, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade no que concerne ao artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março.

E) No entanto, sempre foi permitido à recorrente exercer o direito de remição. Tal faculdade é que não foi devidamente exercida por esta.

F) Isto porque o artigo 897.º, n.º 1, do CPC, com a redacção dada pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, não é susceptível de aplicação ao caso presente.

G) Sendo, nos termos da legislação em vigor, aplicável o artigo 912.º do CPC, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março.

H) O qual, mesmo que consubstanciasse uma situação de desfavor para a remidora, era a lei que existia, sendo, por isso, aplicável, sem qualquer excepção, quer aos presentes autos, quer a todos os processos anteriores a 15 de Setembro de 2003."

Por seu turno, a recorrida Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Vila Franca de Xira sintetizou o expendido nas suas contra-alegações nas seguintes conclusões:

"1) A acção executiva permite o ataque directo ao património do executado;

2) O processo executivo foi alvo de reforma legislativa;

3) Para salvaguardar os casos pendentes, o legislador estabeleceu, no n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, que as alterações legislativas só se aplicarão aos processos propostos a partir de 15 de Setembro de 2003;

4) A acção executiva da qual se recorre foi proposta em 28 de Outubro de 2002, pelo que não têm aplicação as novas disposições do Código de Processo Civil;

5) O Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, não alterou substancialmente o direito de remição;

6) A recorrente não exerceu o direito de remição, não obstante a M.ma Juíza a quo ter-lhe conferido tal direito, porque não dispunha de meios económicos para o fazer, tal como reconheceu na abertura e aceitação de propostas;

7) Não foi violado o artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa, norma programática, dado que o exercício do direito de remição sempre esteve garantido;

8) O presente recurso não passa de um expediente dilatório.

Termos em que requer-se a VV. Exmas. se dignem manter a interpretação de constitucionalidade proferida em douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não declarando o artigo 912.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, inconstitucional, por não violar a alínea a) do n.º 2 do artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa."

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir:

2 - Fundamentação:

2.1 - O direito de remição ora em causa - que "consiste essencialmente em se reconhecer à família do executado a faculdade de adquirir, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados no processo de execução" (José Alberto dos Reis, Processo de Execução, 2.º vol., reimpressão, Coimbra, 1982, p. 476) - "tem raízes profundas no nosso sistema jurídico", que remontam às ordenações e que, com ligeiras variações quanto ao leque dos familiares em que era encabeçado e à natureza dos bens sobre que podia ser exercitado, foi mantido desde o Decreto 24, de 16 de Maio de 1832 (artigo 153.º), passando pela Reforma Judiciária de 1837 (artigo 248.º), pela Novíssima Reforma Judiciária (artigo 602.º), pela Lei de 16 de Junho de 1855 (artigo 16.º), até aos Códigos de Processo Civil de 1876 (artigo 888.º), de 1939 (artigo 912.º) e de 1967 (artigo 912.º) - cf. autor e obra citados, p. 477, e Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, Lisboa, 1987, pp. 660-662.

Embora na sua actuação prática o direito de remição funcione como um direito de preferência dos titulares desse direito relativamente aos compradores ou adjudicatários, "os dois direitos têm natureza diversa, já pela base em que assentam, já pelo fim a que visam". Quanto à diversidade de fundamento, "ao passo que o direito de preferência tem por base uma relação de carácter patrimonial", sendo a razão da titularidade o condomínio ou o desdobramento da propriedade, já "o direito de remição tem por base uma relação de carácter familiar, sendo a razão da titularidade o vínculo familiar criado pelo casamento ou pelo parentesco (a qualidade de cônjuge, de descendente ou de ascendente)". Quanto à diversidade de fim, enquanto "o direito de preferência obedece ao pensamento de transformar a propriedade comum em propriedade singular, ou de reduzir a compropriedade, ou de favorecer a passagem da propriedade imperfeita para a propriedade perfeita", já "o direito de remição inspira-se no propósito de defender o património familiar, de obstar a que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas" (José Alberto dos Reis, ob. cit., pp. 477-478).

A protecção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado, é objectivo da consagração do direito de remição unanimemente reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina (cf., além dos autores já citados, Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lisboa, 1998, p. 381, Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6.ª ed., Coimbra, 2004, p. 341, José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Coimbra, 1993, p. 272, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, 3.º vol., Coimbra, 2003, p. 621, e J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Porto, 1998, p. 357).

Como refere José Alberto dos Reis (ob. cit., pp. 488-489):

"Com a atribuição deste direito não se prejudicam os credores, pois que a estes pouco importa que o adquirente seja uma pessoa da família do devedor, ou uma pessoa estranha. O que aos credores interessa é o preço por que os bens são vendidos; ora os remidores hão-de pagar, pelo menos, o preço que pagaria um comprador alheio à família do devedor.

Desta maneira, o direito de remição representa uma homenagem prestada à família do devedor. Homenagem justa, porque evita a desagregação do património familiar; homenagem inocente, porque nenhum prejuízo causa aos credores."

Ao direito de remição sempre (cf. o artigo 914.º, n.º 1, do CPC de 1967, norma inalterada desde a redacção inicial até aos nossos dias, e correspondente à primeira parte do artigo 914.º do CPC de 1939) foi atribuída prevalência sobre o direito de preferência (embora, naturalmente, se houver vários preferentes e se abrir licitação entre eles, a remição tenha de ser feita pelo preço correspondente ao lanço mais elevado), o que levou certos autores a qualificar o direito de remição como um "direito de preferência qualificado" (José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., p. 272) ou um "direito de preferência reforçado" (J. P. Remédio Marques, ob. e loc. cit.).

O artigo 913.º do CPC, na redacção posterior à reforma de 1995-1996 (operada pelos Decretos-Leis 329-A/95, de 12 de Dezembro e 180/96, de 25 de Setembro), mas anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março - versão considerada pelas instâncias como a aplicável ao caso dos presentes autos - , regulava o momento até ao qual o direito de remição podia ser exercido, momento que variava consoante a modalidade da venda (deixando em aberto a questão de saber se o direito de remição é exercitável em todas as modalidades de venda ou se será incompatível com a "venda directa a entidades que tenham direito a adquirir determinados bens" e com a "venda em estabelecimentos de leilões", como sustentava Eurico Lopes-Cardoso, ob. cit., p. 661, ou só com a "venda directa", como defende J. P. Remédio Marques, ob. cit., p. 357) e a formalização (ou não) desta por escrito. Assim:

No caso de venda judicial (sempre por propostas em carta fechada, uma vez que a reforma de 1995-1996 eliminou a modalidade de venda judicial por arrematação em hasta pública), o direito de remição podia ser exercido até ser proferido despacho de adjudicação dos bens ao proponente (este despacho de adjudicação só podia ser proferido "após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão" - artigo 900.º do CPC);

No caso de venda extrajudicial documentada por título, até à assinatura do título; e

No caso de venda extrajudicial não documentada por título, até ao momento da entrega dos bens [a referida reforma eliminou a possibilidade, prevista na parte final da alínea b) da versão originária do artigo 913.º, de, no caso de venda por negociação particular, o direito de remição poder ainda ser exercido no prazo de 10 dias a contar da data em que o remidor teve conhecimento da venda].

Por último, o n.º 2 do artigo 912.º do CPC, também na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, exigia que o preço fosse "depositado no momento da remição".

Esta última disposição foi objecto de entendimentos divergentes da jurisprudência, designadamente quanto à exigência, ou não, de prévio despacho judicial a admitir a remição e a fixar prazo para a efectivação do depósito do preço. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Dezembro de 1990, processo 41 782, decidiu que "pedido o direito de remição, não há que proceder ao depósito do preço enquanto não for proferido o competente despacho de deferimento" (sumário disponível em www.dgsi.pt/jtrl). No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Novembro de 2000, processo 31 496, decidiu: "I - O depósito do preço da remição - artigo 912.º, n.º 2, do Código de Processo Civil - é precedido de despacho a admiti-la e a mandar efectuar aquele em prazo para tanto fixado. II - Esse prazo não é peremptório, sendo admissível a prova de justo impedimento - artigo 146.º, n.os 1 e 2, ex vi artigo 145.º, n.º 4, do Código de Processo Civil" (sumário disponível em www.dgsi.pt/jtrp). Em sentido oposto decidiram os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Novembro de 2000, processo 51 063 ("quem for titular do direito de remir bens adjudicados ou vendidos judicialmente e quiser exercer essa prerrogativa mediante o pagamento do preço oferecido por tais bens deverá, com o pedido de remição, fazer o pedido de guias para depósito do preço e custas prováveis"), e de 6 de Julho de 2001, processo 1110/03 ("ao exercer o direito de remição, deve o requerente demonstrar que depositou o preço correspondente à proposta aceite, acrescido do montante respeitante às obrigações fiscais inerentes à transmissão, ou solicitar a emissão de guias para depósito imediato desses valores"), ambos com sumários disponíveis em www.dgsi.pt/jtrp, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Fevereiro de 2007, processo 9893/2007, que decidiu que "A necessidade de depósito do preço 'no momento da remição' é incompatível com quaisquer dilações, designadamente implicadas por necessidade de prévia notificação de despacho a admiti-la e a mandar efectuar aquele em prazo para tanto fixado" (texto integral disponível em www.dgsi.pt/jtrl).

2.2 - Este quadro legal foi substancialmente alterado pela chamada "reforma da acção executiva", operada pelo Decreto-Lei 38/2003, quer quanto ao momento até ao qual pode ser exercitado o direito de remição, quer quanto à oportunidade para o depósito do preço pelo remidor (cf. Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, 2004, pp. 201-202, José Lebre de Freitas, A Acção Executiva depois da Reforma, Coimbra, 2004, pp. 334-335, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, obra e volume citados, pp. 620-624, Fernando Amâncio Ferreira, obra e edição citadas, pp. 341-343, e Rui Pinto, A Acção Executiva depois da Reforma, Lisboa, 2004, pp. 196-197, e "A execução e terceiros - Em especial na penhora e na venda", Themis, ano V, n.º 9, 2004, pp. 227-261, em especial pp. 246-247).

A aludida reforma eliminou a distinção entre venda judicial e venda extrajudicial, prevendo-se agora seis modalidades de venda - venda mediante propostas em carta fechada, venda em bolsas de capitais ou de mercadorias, venda directa a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens, venda por negociação particular, venda em estabelecimento de leilões e venda em depósito público (artigo 886.º, n.º 1). No caso da venda mediante propostas em carta fechada [que, segundo Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol. II, Coimbra, 2004, p. 129), continua "a configurar-se como verdadeira venda judicial, atento o papel atribuído ao juiz"], desapareceu o despacho judicial de adjudicação, previsto no n.º 2 do anterior artigo 900.º, tendo sido instituído o título de transmissão, a emitir pelo agente de execução, nos termos do n.º 1 do actual artigo 900.º, que dispõe que "mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados".

Estas alterações implicaram ajustamentos na norma do actual artigo 913.º, n.º 1, relativa ao momento até ao qual pode ser exercido o direito de remição. Esse prazo passou a ser: i) "no caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n.º 4 do artigo 898.º" (esta disposição confere ao preferente que não tenha exercido o seu direito no acto de abertura e aceitação das propostas a faculdade de, na hipótese de o proponente ou preferente não depositar o preço no prazo fixado nos termos do n.º 2 do artigo 897.º, efectuar, no prazo de cinco dias posteriores ao termo do prazo anterior, o depósito do preço oferecido pelo proponente ou preferente faltosos, a ele se fazendo então a adjudicação), e ii) "nas outras modalidades de venda, até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documente".

Finalmente, quanto à questão do depósito do preço pelo remidor, a reforma de 2003 eliminou o n.º 2 do artigo 912.º (que, recorde-se, dispunha que "o preço há-de ser depositado no momento da remição"), dispondo agora o n.º 2 do artigo 913.º:

"Aplica-se ao remidor, que exerça o seu direito no acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, o disposto no artigo 897.º, com as adaptações necessárias, bem como o disposto nos n.os 1 a 3 do artigo 898.º, devendo o preço ser integralmente depositado quando o direito de remição seja exercido depois desse momento, com o acréscimo de 5% para indemnização do proponente se este já tiver feito o depósito referido no n.º 2 do artigo 897.º, e aplicando-se, em qualquer caso, o disposto no artigo 900.º"

Resulta desta disposição que:

A) Quando, na modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, o direito de remição é exercido no acto de abertura e aceitação das propostas: 1) o remidor deve apresentar, no acto, como caução, um cheque visado, à ordem do solicitador de execução ou, na sua falta, da secretaria, no montante correspondente a 20% do valor base dos bens, ou garantia bancária no mesmo valor (n.º 1 do artigo 897.º); 2) e, no prazo de 15 dias, depositar numa instituição de crédito, à ordem do solicitador de execução ou, na sua falta, da secretaria, a totalidade ou a parte do preço em falta (n.º 2 do artigo 897.º); 3) sob pena de, não depositando o preço nesse prazo, o agente de execução liquidar a respectiva responsabilidade e promover perante o juiz o arresto [arresto que será levantado logo que o pagamento seja efectuado, com os acréscimos calculados (n.º 2 do artigo 898.º)] em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal, sendo o remidor simultaneamente executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos (n.º 1 do artigo 898.º, com as necessárias adaptações), e 4) salvo se, ouvidos os interessados na venda, o agente de execução optar por determinar que a remição fique sem efeito, aceitando a proposta relativamente à qual foi exercitado esse direito (ou o lanço de valor imediatamente inferior feito por outro titular do direito de remição, na hipótese de se ter aberto licitação entre eles, nos termos do n.º 2 do artigo 915.º), ou determinando que os bens voltem a ser vendidos mediante novas propostas em carta fechada ou por negociação particular, não sendo o remidor remisso admitido a exercitar de novo esse direito e perdendo o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo 897.º (n.º 3 do artigo 898.º, com as necessárias adaptações);

B) Quando, na modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, o direito de remição for exercido em momento posterior ao acto de abertura e aceitação das propostas, e nas restantes modalidades de venda: o remidor deve, no momento do exercício do direito de remição, depositar integralmente o preço (eventualmente com o acréscimo de 5% para indemnização do proponente, nos casos em que este já tenha feito o depósito referido no n.º 2 do artigo 897.º).

2.3 - Como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a correcção da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional efectuadas pelo tribunal recorrido, mas apenas apurar se o critério normativo seguido na decisão impugnada - que é acolhido como um dado da questão de constitucionalidade viola, ou não, normas ou princípios constitucionais.

No presente caso, no próprio acto de abertura e aceitação de propostas em carta fechada, modalidade de venda adoptada na execução de que emerge o presente recurso, uma vez aceite a proposta apresentada por Eduardo Florindo, Materiais de Construção, Transportes e Máquinas, Lda., no valor de Euro 481 350, por ser a mais elevada e ser superior ao valor anunciado para a venda (E 259 200), a juíza que presidia ao acto tomou a iniciativa de interpelar as filhas do executado, que se encontravam presentes, perguntando-lhes se pretendiam exercer o direito de remição, mas, apesar da resposta afirmativa da ora recorrente, decidiu-se não julgar validamente exercido o direito de remição, por esta ter reconhecido não ter condições para efectuar no momento a depósito da totalidade do preço da proposta vencedora e o artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na versão anterior ao Decreto-Lei 38/2003, tida por aplicável, dispor que "o preço há-de ser depositado no momento da remição".

Seguiu-se, assim, uma interpretação do artigo 912.º, n.º 2, do CPC, na versão anterior ao Decreto-Lei 38/2003, interpretação reafirmada no acórdão ora recorrido, segundo a qual só se considerada validamente exercido o direito de remição, por um descendente do executado, no acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, se for acompanhado do depósito da totalidade do preço oferecido na proposta aceite.

Constitui objecto do presente recurso a questão da constitucionalidade desta interpretação normativa, independentemente - repete-se - da sua correcção ao nível do direito ordinário, designadamente face ao disposto no artigo 896.º, n.º 1, que apenas prevê, após a aceitação de uma proposta, a interpelação dos titulares do direito de preferência presentes ao acto de abertura e aceitação das propostas para que declarem se querem exercer o seu direito, sendo certo que, em regra (ressalvada a possibilidade de proposição de acção de preferência, nos termos gerais - artigo 892.º, n.º 4), é nesse acto, para o qual devem ser expressamente notificados (artigo 892.º, n.os 1 a 3), que os preferentes devem exercitar o seu direito, e face ao disposto no artigo 913.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, que permite o exercício do direito de remição, no caso de venda judicial, até ser proferido despacho de adjudicação dos bens ao proponente, sendo certo que, no caso, no momento em que não se admitiu o exercício do direito de remição, esse despacho (que só pode ser emitido após estar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão - artigo 900.º) ainda não havia sido proferido, sendo nesse mesmo acto que foi fixado o prazo de 15 dias para o proponente vencedor depositar o preço na Caixa Geral de Depósitos.

2.4 - O Tribunal Constitucional só pode julgar inconstitucional a norma que a decisão recorrida tenha aplicado, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada (artigo 79.º-C da LTC).

No presente caso, entende-se mais adequado confrontar a interpretação normativa questionada com o direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo (artigo 20.º, n.os 1 e 4, da CRP) do que directamente com a incumbência constitucional de o Estado, para protecção da família, promover a independência social e económica dos agregados familiares [artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da CRP]. Na verdade, o reconhecimento do direito de remição constitui um elemento adequado à protecção do património familiar, estando antes em causa, mais directamente, no presente recurso, a regulamentação adjectiva do exercício desse direito, que - adiante-se desde já - se entende não respeitar adequadamente o princípio da proporcionalidade reportado ao direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo.

Como assinala Carlos Lopes do Rego ("Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil", em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 835-859), "a garantia da via judiciária - ínsita no artigo 20.º da Constituição e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos - envolve, não apenas a atribuição aos interessados legítimos do direito de acção judicial [...] mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão constitucional de 1997) a regra do 'processo equitativo', expressamente consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional". O referido autor destaca ainda o "princípio da funcionalidade e proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostas pela lei de processo às partes", o qual, no seu entender, "pode fundar-se cumulativamente no princípio da proporcionalidade das restrições (artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição) ao direito de acesso à justiça, quer na própria regra do processo equitativo".

Da análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta garantia da via judiciária, desenvolvida no citado estudo e retomada, por último, no recente Acórdão 179/2007, apura-se que o juízo de proporcionalidade a emitir neste domínio tem de tomar em conta três vectores essenciais: i) a justificação da exigência processual em causa; ii) a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado, e iii) a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento do ónus.

O ónus de o remidor depositar, para exercitar validamente o direito de remição, a totalidade do preço por que tenha sido feita a adjudicação ou a venda, não é, à partida, desajustado, uma vez que visa acautelar, com plena eficácia, os interesses dos credores, designadamente do exequente, e afastar o risco de declarações de exercício do direito de remição não sérias ou não consistentes. E nem se poderá considerar intoleravelmente pesado desde que seja concedido ao remidor o tempo minimamente suficiente para se habilitar a efectuar tal depósito. É o que sucederia se, por exemplo, no presente caso, uma vez conhecido o valor de venda do bem, correspondente à proposta aceite, à recorrente tivesse sido facultado o exercício do direito de remição até ser proferido despacho de adjudicação do bem ao proponente, o que sempre lhe concederia tempo (recorde-se que ao proponente vencedor foi concedido o prazo de 15 dias para proceder ao depósito do preço e que o despacho de adjudicação só poderia ser proferido após, para além do depósito do preço, se mostrarem satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão).

Não foi este, porém, o critério normativo seguido pelas instâncias, mas antes o de que, manifestada pelo familiar do requerente a decisão de exercitar o direito de remição, na sequência de interpelação que oficiosamente lhe foi dirigida no próprio acto de abertura e aceitação das propostas, a constatação da impossibilidade de, nesse momento, proceder ao depósito da totalidade do preço implica que se considera invalidamente exercido, e definitivamente precludido, o direito de remição.

Este ónus, assim delineado e com as consequências que se lhe associaram, viola o aludido princípio da proporcionalidade, quer por se revelar excessivamente pesada a sua satisfação, quer atenta a extrema gravidade dessas consequências. Desde logo, é desconhecido, à partida, o montante do depósito a efectuar: no presente caso, sendo o valor base do bem de Euro 259 200, a recorrente terá sido surpreendida com a exigência de depositar, de imediato, Euro 481 350, valor da proposta aceite. Depois, a exigência de efectivação do depósito no próprio momento em que se exercita o direito de remissão inviabiliza, na prática, o recurso à banca, quer para emissão de cheque visado quer para eventual concessão de crédito, sendo sabido que o custo de uma e de outro varia consoante o montante em causa. Finalmente, a consequência associada ao reconhecimento da impossibilidade de proceder ao depósito da integralidade do preço é manifestamente desproporcionada, pois se traduz na perda definitiva e irreversível do direito de remição, ocorrida, aliás, numa altura em que ainda não se teria esgotado o prazo "normal" para o seu exercício (até à prolação do despacho de adjudicação), não fora a "interpelação" feita no próprio acto de abertura e aceitação das propostas.

Por todas estas razões se considera que o critério normativo acolhido na decisão ora recorrida viola o artigo 20.º, n.os 1 e 4, da CRP.

3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:

a) Julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo, consagrados nos n.os 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 912.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, segundo a qual só se considera validamente exercido o direito de remição, por um descendente do executado, no acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, se for acompanhado do depósito da totalidade do preço oferecido na proposta aceite; e, consequentemente b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.

Custas pelas recorridas, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.

Lisboa, 2 de Maio de 2007. - Mário José de Araújo Torres (relator) - Benjamim Silva Rodrigues - João Cura Mariano - Rui Carlos Pereira - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1575212.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1995-12-12 - Decreto-Lei 329-A/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais

  • Tem documento Em vigor 1996-09-25 - Decreto-Lei 180/96 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil, altera o Decreto-Lei 329-A/95 de 12 de Dezembro que o reviu e republicou e rectifica algumas inexactidões na republicação do Código em anexo ao citado diploma.

  • Tem documento Em vigor 2003-03-08 - Decreto-Lei 38/2003 - Ministério da Justiça

    Altera o Código de Processo Civil, o Código Civil, o Código do Registo Predial, o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o Código de Processo do Trabalho, o Código dos Valores Mobiliários e legislação conexa, alterando o regime jurídico da acção executiva.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda