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Acórdão 82/2007, de 13 de Março

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Sumário

Julga inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República), a norma do artigo 173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 12/85, de 30 de Julho, interpretado no sentido de permitir, em recurso de deliberação do Conselho Superior da Magistratura, a emissão de parecer pelo Ministério Público sobre a questão prévia da legitimidade do autor de participação disciplinar para interpor recurso contencioso da deliberação que rejeitou reclamação contra a deliberação de arquivamento do procedimento disciplinar, com a qual não havia sido anteriormente confrontado, e sem que desse parecer seja dado conhecimento ao recorrente para se poder pronunciar

Texto do documento

Acórdão 82/2007

Processo 461/06

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Em 21 de Março de 2005 deu entrada no Conselho Superior da Magistratura (CSM) participação do advogado João Nunes Peres contra Ascensão Amaral Marques Abrantes, juíza em exercício de funções no 2.º Juízo do Tribunal da Comarca de Chaves.

Em sessão do Conselho Permanente do Conselho Superior da Magistratura de 24 de Maio de 2005, foi deliberado arquivar o processo administrativo a que a referida participação dera origem "em virtude de não se indiciar matéria de natureza disciplinar na actuação processual" da participada, e ordenou-se a remessa de cópia de todo o expediente à Ordem dos Advogados.

Dessa decisão apresentou o participante reclamação, que, por deliberação do plenário do Conselho Superior da Magistratura de 20 de Setembro de 2005, foi rejeitada por "o reclamante carecer de legitimidade para a dedução dessa reclamação, visto não ser titular de um interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação reclamada".

O autor da participação interpôs, então, recurso contencioso de anulação dessa deliberação. No Supremo Tribunal de Justiça, foi em 21 de Dezembro de 2005 emitido pelos serviços do Ministério Público o seguinte parecer:

"1 - João Nunes Peres, advogado, através do requerimento de fls. 3/9, vem interpor recurso contencioso da deliberação do plenário do Conselho Superior da Magistratura, datada de 20 de Setembro de 2005 (fl. 11), que confirmou a deliberação do respectivo Conselho Permanente, datada de 24 de Maio de 2005 (fl. 21), determinante do arquivamento do processo administrativo despoletado por força de exposição oportunamente apresentada pelo recorrente contra a magistrada judicial do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Chaves, a juiz de direito Ascensão Amaral Marques Abrantes.

Mais concretamente, pelo seu desempenho funcional na instrução em processo de inquérito-crime, objecto da exposição dirigida ao Conselho Superior da Magistratura, nos autos a fls. 33/37, onde o participante e ora recorrente, que patrocinava a arguida ali constituída, descortina matéria susceptível de procedimento disciplinar, ao arrepio do entendimento da deliberação recorrida, que concluiu pela existência tão-só de decisões jurisdicionais, impugnáveis pela via recursiva.

2 - Na matéria em causa, que na óptica do recorrente reveste natureza disciplinar e eventualmente pode contender com o mérito profissional da visada, releva a exclusividade da competência do Conselho Superior da Magistratura, atenta a qualidade de magistrada judicial da denunciada [cf. artigo 149.º, alínea a), da Lei 21/85, de 30 de Julho].

Ao que acresce, por outro lado, ponderar o disposto no artigo 164.º, n.º 1, da mesma lei, em conformidade com o princípio geral que emana do artigo 55.º, n.º 1, alínea a), do CPTA (e já antes dos artigos 821.º, n.º 1, do Código Administrativo, e 46.º, n.º 1, do Regulamento do STA), quando atribui legitimidade activa para a impugnação de actos administrativos aos titulares de um "interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou decisão".

3 - O mesmo é dizer que o interesse que fundamenta a legitimidade activa em contencioso é pessoal e directo e, como tal, tem que incidir de forma imediata sobre a esfera dos direitos ou interesses legalmente protegidos do recorrente.

O hipotético interesse mediato, indirecto ou reflexo do exponente e ora recorrente carece de virtualidade para legitimar a sua pretensão de contrariar a decisão de ente público exclusivamente competente para o efeito, quanto este determinou o arquivamento do processo administrativo instaurado, porque nele apenas viu matéria de natureza jurisdicional e não, necessariamente, de cariz disciplinar.

4 - Assim sendo, pertinente a conclusão de que não sendo o recorrente, nas sobreditas circunstâncias, o titular dos interesses protegidos, em derradeira análise, pelo direito disciplinar, também não é directa e imediatamente afectado pela deliberação recorrida, o que, de harmonia com o disposto no citado artigo 164.º, n.º 1, da Lei 21/85, lhe retira legitimidade para interpor o presente recurso.

5 - Encurtando razões, dir-se-á, por último, que é sob este entendimento que se tem movimentado a orientação jurisprudencial da secção do contencioso deste Supremo Tribunal, como são disso exemplo os Acórdãos de 16 de Abril de 1991, de 23 de Abril de 1998, de 21 de Novembro de 2000, de 8 de Março de 2001, de 23 de Outubro de 2003 e de 21 de Setembro de 2004, proferidos, respectivamente, nos processos n.os 80864-1.ª Sec., 1390/97-3.ª Sec., 2964/00-7.ª Sec., 3699/00-4.ª Sec., 1635/03-2.ª Sec. e 1802/04-4.ª Sec.

6 - Posto que, somos de parecer que o presente recurso deverá ser objecto de rejeição por ilegitimidade activa do recorrente."

O recurso veio a ser rejeitado por acórdão de 19 de Janeiro de 2006 do Supremo Tribunal de Justiça, por ilegitimidade do recorrente. Tal decisão tem o seguinte teor:

"[...]

É dessa deliberação [de 20 de Setembro de 2005] que vem interposto, ao abrigo do artigo 168.º, n.º 1 e segs., do EMJ, o presente recurso contencioso de anulação.

Nele, o recorrente sustenta, antes de mais, em indicados termos, a legitimidade para reclamar da deliberação do Conselho Permanente de 24 de Maio de 2005 que o plenário do CSM em 20 de Setembro de 2005 lhe não reconheceu, e insistindo, depois, em que a deliberação do Conselho Permanente, de arquivamento do processo administrativo gerado pela participação aludida "em virtude de não se indiciar matéria de natureza disciplinar na actuação processual" da participada (destaque nosso), "não tem [...] qualquer fundamentação", "está deficientemente fundamentada", e partiu de pressupostos de facto errados.

Em tema de legitimidade, a tese do recorrente é, em suma, como segue: a participada impôs limites ilegais ao exercício da profissão de advogado; o recorrente, lesado no seu direito de exigir o exercício da sua profissão segundo as normas que o seu estatuto profissional define, queixou-se nomine proprio contra o impedimento do exercício da sua actividade profissional nos termos em que a lei o regulamenta.

Em recurso contencioso de anulação, o participante, ora recorrente, pretende, ainda, que, no provimento do recurso, se ordene se proceda disciplinarmente "contra a denunciada", de que requer a citação, oportunamente - v., sobre esta última pretensão, Acórdãos deste Tribunal de 11 de Janeiro de 2001, no processo 358/00, 2.ª, e desta Secção de 13 de Dezembro de 2001, no processo 1048/01, com sumário, respectivamente, nas pp. 31 (2.ª col.-2-1, II e III) e 377 (2.ª col., último) da edição anual de 2001 dos Sumários de Acórdãos Cíveis deste Tribunal organizada pelo Gabinete dos Juízes Assessores do mesmo.

Tendo tido vista dos autos consoante o artigo 173.º, n.º 1, do EMJ, o MP, para além de notar estar em causa desempenho funcional da participada na instrução em processo de inquérito-crime em que o recorrente descortina matéria susceptível de procedimento disciplinar, e tal assim ao arrepio do entendimento da deliberação recorrida, que concluiu pela existência tão-só de decisões jurisdicionais impugnáveis em via de recurso, destaca ou salienta o disposto, em sede ou tema de legitimidade, no artigo 164.º, n.º 1, do EMJ.

Em face, nomeadamente, dessa disposição legal, emitiu parecer no sentido da rejeição deste recurso, por ilegitimidade do recorrente.

Importa decidir, nos termos do n.º 3.º do artigo 173.º do EMJ, sem necessidade de vistos. Assim:

O artigo 178.º do EMJ declara expressamente a subsidiariedade das normas que regem os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo para o STA.

No respeitante a este recurso, a questão da legitimidade está expressa, directa e imediatamente regulada no artigo 164.º, n.º 1, do EMJ.

Esse preceito atribui legitimidade activa para reclamar ou recorrer a "quem tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou decisão".

Como assim, a quem tal tiver efectivamente, e não apenas a quem simplesmente tal alegue, invoque ou pretexte - menos cogente, desde logo, se manifestando, em vista da subsidiariedade expressamente declarada no artigo 178.º do EMJ, a invocação do artigo 55.º, n.º 1, alínea a), do CPTA. Isto posto:

Como no próprio requerimento de interposição deste recurso se pode ler (respectiva p. 4, 1.º §, 2.º período, em citação de Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, "Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos", pp. 278 e segs., nota 4 ao artigo 55.º do CPTA), o interesse é pessoal quando o interessado possa retirar da anulação do acto impugnado uma utilidade concreta - que pode ser de ordem moral - para si próprio.

O recorrente argue lesão da sua honorabilidade pessoal e profissional, susceptível de reparação, a ser disso caso, pelos meios comuns civis ou criminais.

A finalidade essencial do processo disciplinar almejado é defender os interesses da administração da justiça, punindo os visados que os contrariem.

O exercício da acção disciplinar não tem, por isso, em princípio, em conta os interesses pessoais dos participantes.

Não achado na participação do ora recorrente nada de especificamente censurável à participada em termos disciplinares, não tinha a entidade recorrida, sem competência para se pronunciar sobre matéria jurisdicional, de considerar ainda, à luz da doutrina do Acórdão STA de 15 de Outubro de 1999, BMJ, n.º 490/104, citada pelo recorrente (em 12 - do requerimento de interposição deste recurso), se os factos participados, que julgou não integrarem infracções disciplinares, envolviam, ou não, também efectiva ofensa de valores pessoais do participante.

Observa-se no parecer do MP já referido que, exigido que o interesse que fundamenta a legitimidade activa em questão seja pessoal e directo, esse interesse tem, enquanto tal, que incidir de forma imediata na esfera dos direitos ou interesses legalmente protegidos de quem recorre.

Segundo esse parecer, o hipotético interesse mediato, indirecto ou reflexo do ora recorrente não legitima a sua pretensão de contrariar a decisão do ente público exclusivamente competente em matéria disciplinar [consoante artigos 136.º e 149.º, alínea a), do EMJ], quando este determinou o arquivamento do processo administrativo instaurado porque viu nele apenas questões de natureza jurisdicional e não necessariamente com cariz disciplinar.

Vem, deste modo, a ser, de facto, pertinente a conclusão de que, nas circunstâncias descritas, o recorrente, para além de não ser o titular dos interesses em último termo protegidos pelo direito disciplinar, também não é directa e imediatamente afectado pela deliberação recorrida, o que, em vista do disposto no n.º 1 do artigo 164.º do EMJ lhe retira legitimidade para interpor este recurso.

O parecer citado refere, neste entendimento, acórdãos desta Secção de 16 de Março de 1991, de 23 de Abril de 1998, de 21 de Novembro de 2000, de 8 de Março de 2001, de 23 de Outubro de 2003 e de 21 de Setembro de 2004, nos processos n.os 80864-1.ª, 1390/97-3.ª, 2964/00-7.ª, 3699/00-4.ª, 16305-2.ª e 1802/04-4.ª"

Dessa decisão apresentou o recorrente reclamação, nos seguintes termos:

"A) Expor a V. Exmas. o seguinte:

1 - Como resulta de fl. 3 do mesmo, o MP teve vista aos autos e emitiu parecer.

2 - Esse parecer foi tido em consideração na decisão de VV. Exmas., sem que tenha sido permitido ao recorrente pronunciar-se sobre o mesmo.

3 - Tal omissão consubstancia vício processual, por violação do princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC).

B) Arguir, com a fundamentação aduzida, tal vício, que deve ser sanado, anulando-se todo o processado posterior a tal omissão e determinando-se, pois, a notificação do recorrente para que se pronuncie sobre o conteúdo do parecer do MP, seguindo-se, após, o demais de lei."

Por Acórdão de 23 de Março de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu indeferir a referida reclamação. Pode ler-se no referido aresto:

"[...]

Já, consoante artigo 172.º, n.º 1, do EMJ, indicados no requerimento de interposição deste recurso os respectivos fundamentos de facto e de direito, e logo, pois, nele analisada a questão prévia da legitimidade do recorrente, observou-se, em sede de apreciação dessa questão prévia, o determinado no subsequente artigo 173.º

Precisamente subordinado à rubrica ou epígrafe "Questões prévias", o seu n.º 1 determina que, distribuído o recurso, os autos vão, em fase liminar, com vista ao MP.

O n.º 3 desse mesmo artigo estabelece, por sua vez, que, quando o relator entender que ocorre ilegitimidade das partes ou manifesta ilegalidade do recurso, adiantando exposição breve e fundamentada, apresentará o processo na primeira sessão sem necessidade de vistos. Desta sorte:

A reclamada intervenção do MP, que não é parte no processo, nesta fase liminar do recurso, faz-se em defesa da legalidade, que estatutariamente lhe compete, consoante artigos 219.º, n.º 1, da Constituição, 5.º, n.os 1 e 3, da LOFTJ (Lei Orgânica e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais - Lei 3/99, de 13 de Janeiro), e 2.º, n.º 2, do Estatuto do MP (Lei 47/86, de 15 de Outubro, com as alterações introduzidas pela Lei 23/92, de 20 de Agosto).

Está-se perante caso em que, logo em vista do alegado pelo recorrente no requerimento da interposição do recurso, se julgou devida sumária, liminar, rejeição do mesmo - e, por conseguinte, inútil mais desenvolvido ou aprofundado debate.

Em tais parâmetros, resulta sem cabimento nova intervenção do recorrente, que com nada, essencialmente, nem ninguém, de novo se defronta."

2 - Inconformado, veio então o autor da participação, João Nunes Peres, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), nos seguintes termos:

"1 - O recurso é interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Setembro.

2 - Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 173.º do EMJ, quando interpretada no sentido com que o foi na decisão recorrida, isto é, no sentido de que tendo o MP tido vista, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, e tendo então exarado parecer com quatro folhas, em que pugna pela ilegitimidade activa do recorrente, é possível ao tribunal decidir de acordo com esse parecer, sem que previamente tenha sido dada oportunidade ao recorrente de tomar posição sobre a perspectiva do MP.

3 - Tal interpretação, nos termos em que foi acolhida, viola os princípios constitucionais do contraditório, da proibição da indefesa, do acesso aos tribunais, de queixa para defesa dos seus direitos e de tutela jurisdicional efectiva dos mesmos ou de interesses legalmente protegidos, integrantes dos princípios do Estado de Direito Democrático e consagrados nos artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 9.º, n.º 2, alínea b), 18.º, 20.º, n.º 1, 52.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, todos da CRP.

4 - A questão da inconstitucionalidade não foi antes suscitada pois era de todo impensável e imprevisível, actualmente, aceitar-se que pode haver decisão judicial, acatando a posição de um interveniente, sem respeito pelo princípio do contraditório, aliás bem explícito no artigo 3.º, n.os 1, 2 e 3, do CPC, quando toda a tradição processual no STJ até vai em sentido contrário (cf., v. g., processo 1930/05, da 6.ª Secção)."

Admitido o recurso, foi determinada a produção de alegações que o recorrente encerrou desta forma:

"1 - A decisão recorrida entendeu que o recorrente não tinha o direito a pronunciar-se sobre o parecer do MP, na esteira da decisão recorrida, por o mesmo ser vista para defesa da legalidade, que estatutariamente compete ao MP, na fase liminar do recurso.

2 - Não tem razão, porquanto a aceitar-se tal tese, impedido estava o recorrente de exercer o seu direito de queixa e de conseguir a tutela jurisdicional efectiva do mesmo, apesar de estar em causa a ofensa de valores pessoais.

3 - Tal interpretação do artigo 173.º do EMJ viola os artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 9.º, b), 18.º, 20.º, n.º 1, 52.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, todos da CRP, por desrespeito do princípio do contraditório, subjacente à tutela jurisdicional dos direitos e que a própria lei ordinária consagra (artigo 3.º do CPC).

4 - Assim, deve ser exarado juízo de inconstitucionalidade de tal interpretação, com as inerentes consequências na tramitação do recurso."

A entidade recorrida, notificada para contra-alegar, nada disse.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos. - 3 - É o seguinte o teor da disposição do artigo 173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei 21/85, de 30 de Julho, que contém a norma que constitui o objecto do presente recurso:

"Artigo 173.º

Questões prévias

1 - Distribuído o recurso, os autos vão com vista ao Ministério Público, por cinco dias, sendo em seguida conclusos ao relator.

2 - O relator pode convidar o recorrente a corrigir as deficiências do requerimento.

3 - Quando o relator entender que se verifica extemporaneidade, ilegitimidade das partes ou manifesta ilegalidade do recurso, fará uma breve e fundamentada exposição e apresentará o processo na primeira sessão sem necessidade de vistos."

Constitui objecto do presente recurso a norma que se extrai do acima transcrito artigo 173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei 21/85, de 30 de Julho, interpretado no sentido de permitir a emissão de parecer pelo Ministério Público sobre a questão prévia da legitimidade do autor de participação disciplinar para interpor recurso contencioso da deliberação que rejeitou reclamação contra a deliberação de arquivamento, sem que desse parecer seja dado conhecimento ao recorrente para se poder pronunciar. Para o recorrente, tal norma viola os artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 9.º, n.º 2, alínea b), 18.º, 20.º, n.º 1, 52.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição, nos termos já referidos.

4 - Importa recordar que a constitucionalidade de normas processuais penais que prevêem a emissão, em processo penal, de parecer pelo Ministério Público no tribunal ad quem, que não teria de ser dado a conhecer ao arguido, foi várias vezes apreciada pelo Tribunal Constitucional, designadamente no domínio do Código de Processo Penal de 1929. Assim, designadamente, o Acórdão 533/99, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Novembro de 1999, e disponível em www.tribunalconstitucional.pt, não julgou inconstitucional "a norma constante do artigo 664.º do Código de Processo Penal de 1929, interpretada no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar, deve ser dada aos réus a possibilidade de responderem", independentemente do sentido do parecer (ou seja, quer se pronuncie no sentido do agravamento da sua posição, quer não). E, posteriormente, por exemplo no Acórdão 279/2001 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 27 de Setembro de 2001, e disponível em www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o artigo 416.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de permitir a emissão de parecer pelo Ministério Público junto do Tribunal Superior, sem que dele seja dado conhecimento ao arguido para se poder pronunciar.

A verdade, todavia, é que a questão de constitucionalidade se punha então, e como tal foi analisada e decidida, à luz das "garantias de defesa" constantes do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição. No presente caso, diversamente, o "vício procedimental" que é esgrimido pelo recorrente e que resultaria de uma norma que o possibilitaria em termos inconstitucionais - com concessão de "vista" do Ministério Público "sem possibilidade de resposta" - ocorre, não no processo penal, mas no domínio do recurso previsto e regulado pelos artigos 168.º a 178.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, e é invocado, não pelo arguido, mas pelo recorrente que foi autor de participação em processo disciplinar.

O Tribunal Constitucional também já apreciou, porém, as exigências constitucionais relativas à notificação ao particular, recorrente num recurso contencioso interposto contra um acto praticado por um órgão do Estado, do parecer que o Ministério Público emitiu, para sobre ele se pronunciar. Assim, decidiu, no Acórdão 185/2001 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt e publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 50.º, pp. 259 e segs.), não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto na alínea c) do artigo 27.º com o artigo 53.º do Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos), "segundo a qual, num recurso contencioso interposto por um particular contra um acto praticado por um órgão do Estado, não há que notificar o recorrente particular para se pronunciar sobre o parecer que o Ministério Público emite, na vista final do processo, no qual não levanta nenhuma questão nova que possa conduzir à rejeição do recurso" (itálico aditado). Para fundamentar esta decisão, salientou-se que fora decisiva, no Acórdão 533/99, "a verificação de que, no processo penal, o Ministério Público intervém no exercício do poder punitivo do Estado, e a esse título exerce a acção penal - ou seja, neste sentido, intervém como parte; no contencioso administrativo de anulação, que neste recurso nos interessa, não podemos esquecer que a norma em apreciação apenas prevê que o Ministério Público tenha vista do processo para emitir parecer sobre a decisão a proferir quando não foi ele a interpor o recurso (cf. início do artigo 27.º e fim do artigo 53.º) - ou seja, quando o Ministério Público apenas intervém no recurso como garante da legalidade objectiva e não como representante de nenhuma das partes". Mas disse-se igualmente que as razões apontadas para justificar a inconstitucionalidade da norma então apreciada [no Acórdão 533/99] não ocorriam na norma agora em julgamento, pois "não se verifica aqui a impossibilidade de controlo pelas partes que, ali, foi considerada decisiva; por um lado, porque, sendo o parecer apresentado por escrito, sempre podem questionar a apreciação feita pelo tribunal sobre a existência, ou não, de uma questão nova, e sobre a decisão de as notificar para se pronunciarem ou não; em caso de discordância - ou seja, para o que interessa, se o tribunal tiver entendido não ter sido suscitada uma questão nova e, portanto, tiver julgado o recurso sem ter mandado notificar a parte para se pronunciar -, sempre esta pode invocar nulidade justamente por falta dessa notificação, que origina, naturalmente, uma violação relevante do princípio do contraditório (artigo 201.º do Código de Processo Civil).

Com efeito, o respeito por este princípio apenas exige que, em caso de o Ministério Público ter suscitado uma questão nova - um novo obstáculo ao conhecimento do recurso, para o que agora interessa ao recorrente seja dada oportunidade de a apreciar, antes da decisão do recuso; e foi precisamente com este sentido que o Supremo Tribunal Administrativo interpretou e aplicou a norma em julgamento". [Itálico aditado.]

Noutros arestos, o Tribunal Constitucional julgou já inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, normas que dispensavam a notificação ao particular do parecer do Ministério Público em recurso contencioso que tratou de questões sobre as quais aquele ainda não dispusera de oportunidade para se pronunciar.

Assim, no Acórdão 582/2000 (Diário da República, 2.ª série, de 13 de Fevereiro de 2001), julgou-se "inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, a norma constante do n.º 3 do artigo 8.º do Decreto-Lei 185/93, de 22 de Maio, quando interpretada no sentido de que, no recurso judicial da decisão do organismo de segurança social que rejeite a candidatura da adoptante, não é necessária a notificação ao recorrente do parecer que o Ministério Público emita, sendo esse parecer desfavorável ao recorrente e versando sobre matéria relativamente à qual o recorrente ainda não tenha tido oportunidade de se pronunciar". Disse-se neste Acórdão 582/2000:

"[...]

Apesar de não se encontrar autonomamente consagrado na Constituição, fora do âmbito do processo penal, o princípio do contraditório tem diginidade constitucional, por derivar, em última instância, do princípio do Estado de direito (cf., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 397/89, Diário da República, 2.ª série, n.º 212, de 14 de Setembro de 1989, pp. 9197 e segs.; n.º 62/91, Diário da República, 1.ª série, n.º 91, de 19 de Abril de 1991, pp. 2245 e segs.; n.º 284/91, Diário da República, 2.ª série, n.º 245, de 24 de Outubro de 1991, pp. 10 680 e segs.).

O princípio do contraditório tem como objectivo assegurar um tratamento igualitário das partes no processo, designadamente ao nível da admissão da prova e da apreciação do seu valor. Sendo obrigado a ouvir ambas as partes, o tribunal fica dotado da base imprescindível para proferir uma decisão imparcial e justa. Esse princípio decorre portanto também, quer do direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), quer do direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4), quer do próprio princípio da igualdade (artigo 13.º).

10 - De todo o modo, a norma constante do n.º 3 do artigo 8.º do Decreto-Lei 185/93, de 22 de Maio, quando interpretada no sentido explicitado no número anterior, viola o direito a um processo equitativo, a que a Constituição passou a fazer expressa referência a partir da revisão de 1997.

Como este Tribunal disse no Acórdão 345/99 (Diário da República, 2.ª série, n.º 40, de 17 de Fevereiro de 2000, p. 3293 e seguintes):

"O conceito de 'processo equitativo' tem sido desenvolvido sobretudo pela jurisprudência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo artigo 6.º tem precisamente como epígrafe 'Direito a um processo equitativo' e cujo § 1.º dispõe, retirando as palavras do artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que 'qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativamente', frase que é repetida no artigo 14.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. Ora a revisão constitucional pretendeu precisamente, fazendo uma 'transposição explícita do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem', tendo presente 'todo o trabalho do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem', 'dar dignidade constitucional' (expressões do deputado Alberto Martins na reunião de 5 de Setembro de 1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, edição provisória não oficial de José de Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional em CD-ROM, 2.ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 1999), a conteúdos normativos que, através daquele direito internacional, já integravam a ordem jurídica portuguesa e inclusivamente, num certo entendimento, através da remissão no n.º 2 do artigo 16.º, a própria ordem constitucional (no mesmo sentido se pronunciou o deputado Luis Sá, ibidem: 'toda a densificação é bem vinda e nesse sentido creio que a consagração do princípio do processo equitativo pode ser uma contribuição para que no plano da legislação ordinária venha a ser reforçado o princípio da igualdade das armas, dos direitos de defesa, da justiça no processo em termos gerais': também o deputado Luís Marques Guedes admitiu um 'ganho acrescido')."

O respeito por um processo equitativo exige a criação de condições objectivas que permitam assegurá-lo. Ora, não se vê como tal possa acontecer quando se considere não ser necessária a notificação ao recorrente do parecer que o Ministério Público emita, sendo esse parecer desfavorável ao recorrente e versando sobre matéria relativamente à qual o recorrente ainda não tenha tido oportunidade de se pronunciar."

E também no Acórdão 361/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 50.º, pp. 843 e seguintes, e disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o juízo de não inconstitucionalidade a que se chegou teve como pressuposto o facto de no parecer proferido pelo Ministério Público na "vista" que antecede a sentença, nos processos versando as acções sobre responsabilidade civil contratual dos entes públicos, e que não fora notificado às partes, não ter sido "suscitada nenhuma questão que pudesse conduzir a que se não tomasse uma decisão "de fundo" na acção".

O juízo sobre a conformidade da norma em apreço - relativa à não notificação ao autor de participação disciplinar, para sobre ele se pronunciar, do parecer emitido Ministério Público sobre a questão prévia da legitimidade daquele para interpor recurso contencioso da deliberação que rejeitou reclamação contra a deliberação de arquivamento do procedimento disciplinar - com as exigências constitucionais de um processo equitativo depende, pois, de saber se estava, ou não, em causa, no parecer não notificado ao recorrente, uma "questão nova", com a qual ele não havia anteriormente sido confrontado, e sobre a qual não tinha, pois, tido oportunidade de se pronunciar.

5 - Ora, da consulta dos autos decorre, efectivamente, que o recorrente não tinha, antes do parecer emitido pelo Ministério Público no recurso contencioso da deliberação que rejeitara a reclamação contra a deliberação de arquivamento, sido confrontado com a questão da sua falta de legitimidade para interpor esse recurso contencioso.

Com efeito, na deliberação recorrida apenas estivera em causa a legitimidade para o autor de participação disciplinar reclamar da deliberação que determinou o arquivamento do procedimento disciplinar, e não a legitimidade para interpor recurso contencioso da deliberação de rejeitou essa reclamação (por falta de legitimidade para reclamar). Trata-se de questões diversas, e que não têm de ser resolvidas no mesmo sentido.

A questão tratada no parecer do Ministério Público de 21 de Dezembro de 2005, reportada à legitimidade para o reclamante interpor recurso contencioso da decisão que rejeitou a reclamação por falta de legitimidade, era, pois, uma questão nova, sobre a qual o recorrente não tinha, pois, ainda tido oportunidade de se pronunciar. Assim, as exigências constitucionais do processo equitativo - no caso, do direito ao contraditório -, afirmadas pelo Tribunal Constitucional em recurso contencioso quando estejam em causa questões novas que possam levar à rejeição do recurso, impunham que desse parecer fosse dado conhecimento ao recorrente, para sobre ele se pronunciar.

Ao permitir a decisão do recurso sem tal notificação ao recorrente, a dimensão normativa é, pois, violadora do direito a um processo equitativo, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República e decorrente, em última instância, do próprio princípio do Estado de direito, e comportando, como sua dimensão essencial, o direito ao contraditório (audiatur altera pars).

E conclui-se, assim, que é de conceder provimento ao presente recurso de constitucionalidade.

III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República), a norma do artigo 173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei 21/85, de 30 de Julho, interpretado no sentido de permitir, em recurso de deliberação do Conselho Superior da Magistratura, a emissão de parecer pelo Ministério Público sobre a questão prévia da legitimidade do autor de participação disciplinar para interpor recurso contencioso da deliberação que rejeitou reclamação contra a deliberação de arquivamento do procedimento disciplinar, com a qual não havia sido anteriormente confrontado, e sem que desse parecer seja dado conhecimento ao recorrente para se poder pronunciar;

b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2007. - Paulo Mota Pinto - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Maria Fernanda Palma - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1553191.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1985-07-16 - Decreto-Lei 267/85 - Ministério da Justiça

    Aprova a lei de processo nos tribunais administrativos.

  • Tem documento Em vigor 1985-07-30 - Lei 21/85 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1986-10-15 - Lei 47/86 - Assembleia da República

    Aprova a orgânica do Ministério Público.

  • Tem documento Em vigor 1992-08-20 - Lei 23/92 - Assembleia da República

    Altera a Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, que aprova a lei orgânica do Ministério Público.

  • Tem documento Em vigor 1993-05-22 - Decreto-Lei 185/93 - Ministério da Justiça

    Aprova o novo regime jurídico da adopção. Altera o Código Civil aprovado pelo Decreto Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966 e a Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro.

  • Tem documento Em vigor 1999-01-13 - Lei 3/99 - Assembleia da República

    Aprova a lei de organização e funcionamento dos Tribunais Judiciais.

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