Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 544/2006, de 6 de Novembro

Partilhar:

Texto do documento

Acórdão 544/2006

Processo 388/2006

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido Luís Manuel Barreto Bandeira Costa foi condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, por acórdão do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa de 2 de Julho de 2004.

O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo o seguinte:

"1 - O recorrente foi condenado pela prática de um crime de falsificação, previsto no artigo 256.º, n.os 1, alíneas a) e c), e 3, do Código Penal, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de Euro 7.

2 - Salvo o devido respeito, esteve mal o douto acórdão recorrido ao condenar o recorrente.

3 - A fls. 628 e seguintes, o arguido foi acusado por factos que indiciavam, segundo o Ministério Público, a prática em concurso real de um crime de burla, previsto e punível pelos artigos 26.º, 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), e de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256.º, n.os 1, alíneas a) e c), e 3, do Código Penal, e ainda de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punível pelos artigo 36.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência aos n.os 2 e 5, alínea a), do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro.

4 - O M.mº Juiz de Instrução entendeu ser de alterar a qualificação jurídica dos mesmos factos (cf. douto despacho a fls. 751 e seguintes), tendo pronunciado o ora recorrente pela prática de um único crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punível pelos artigo 36.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência aos n.os 2 e 5, alínea a), do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro.

5 - Finalmente, em sede de audiência de julgamento (cf. fls. 984 e seguintes), o douto Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: 'Os arguidos Luís Manuel Barreto Bandeira Costa e Luís Paulo Costa Rodrigues Lopes encontram-se pronunciados, em co-autoria, da prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelo artigo 36.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro. Face à prova produzida, designadamente as declarações dos arguidos, na eventualidade de aos mesmos vir a ser imputada a prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256.º, n.os 1, alíneas a) e c), e 3, do Código Penal, ao abrigo do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 358.º do mesmo Código, comunica-se neste momento aos arguidos a eventual alteração e, se assim o desejarem, concede-se prazo para preparação e apresentação da respectiva defesa.'

6 - Salvo melhor opinião, não podia o douto Tribunal a quo proceder a nova alteração (a terceira, nos mesmos autos) da qualificação jurídica dos factos imputados ao ora recorrente.

7 - Ora, considerando que a lei prevê que o M.mº Juiz de Instrução pode alterar a qualificação jurídica dos factos vertida na acusação e, bem assim, que o tribunal em fase de julgamento pode alterar a mesma qualificação relativamente à pronúncia, mas não prevê expressamente essa dupla alteração dentro do mesmo processo, teremos de - sempre à luz das mencionadas referências doutrinais - enquadrar tal possibilidade.

8 - Salvo melhor opinião, com o douto despacho de pronúncia constituiu-se, no tocante à qualificação jurídica dos factos, caso julgado formal (cf. artigo 672.º do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP) - ou pelo menos irrevogabilidade (cf. artigo 666.º do CPC, também aplicável ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP).

9 - A alteração da qualificação jurídica operada no douto despacho de pronúncia ter-se-á tornado irrevogável (artigo 666.º do CPC), e constitui-se caso julgado formal (artigo 672.º do CPC) sobre esta matéria.

10 - Ao decidir em contrário, o douto tribunal a quo violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 303.º e 358.º, n.os 1 e 3, ambos do CPP, e nos artigos 666.º e 672.º, ambos do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP.

11 - Deveria ter interpretado e aplicado correctamente o disposto nestes preceitos, mantendo a qualificação jurídica dos factos imputados ao recorrente, constante do douto despacho de pronúncia crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punível pelos artigo 36.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência aos n.os 2 e 5, alínea a), do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro.

12 - Pelo que deve ser substituída por outra que o faça, com os legais efeitos.

13 - Aliás, os próprios artigos 303.º e 358.º, n.os 1 e 3, ambos do CPP, e nos artigos 666.º e 672.º, ambos do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP, no entendimento do tribunal a quo de que é admissível alterar por diversas vezes a qualificação jurídica dos factos no âmbito do mesmo processo, seriam, salvo melhor opinião, inconstitucionais por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

14 - Ora, mantendo-se a imputação vertida no douto despacho de pronúncia (o mencionado crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção), deveria ser o ora recorrente absolvido, por força das considerações expendidas no douto acórdão recorrido, que por razões de economia processual se dão aqui por reproduzidas e que no essencial traduzem - e bem - não se verificar a comissão do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção.

15 - Por outro lado, e mesmo admitindo que seria possível operar a pretendida alteração da qualificação jurídica dos factos (o que, sem conceder, só por mero dever de patrocínio se admite), a verdade é que igualmente não se verifica a prática de um crime de falsificação, previsto no artigo 256.º, n.os 1, alíneas a) e c), e 3, do Código Penal.

16 - Com efeito, o elemento subjectivo deste tipo de crime exige que o agente actue com intenção de causar prejuízo a outrem, ou de obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo.

17 - No tocante a esta última exigência, não se verifica benefício ilegítimo porquanto o subsídio concedido pelo ICEP foi concedido em data anterior (cf. n.º 5 dos factos dados como provados) à da alegada utilização de documento falso (cf. n.º 15 dos factos dados como provados), e, bem assim, aquela entidade decidiu não revogar o subsídio concedido, e declarou que 'não se considera prejudicado em termos patrimoniais, pelo que não pretende obter a devolução da verba concedida ou qualquer outra indemnização' (cf. n.º 26 dos factos dados como provados).

18 - O subsídio pago pelo ICEP era efectivamente devido à empresa de que o recorrente é sócio-gerente.

19 - Quanto à intenção de causar prejuízo a outrem, note-se que o efeito prático de a certidão apresentada evidenciar a existência de dívidas à segurança social seria o de ser retida a percentagem de 25% do subsídio em dívida - cf. n.º 16 dos factos dados como provados.

20 - Ora, ficou também provado que 'face às dívidas à segurança social, a Transgranitos celebrou acordo ao abrigo do chamado "Plano Mateus", tendo cumprido com pontualidade as suas obrigações. A sua situação contributiva perante esta entidade encontra-se regularizada' - n.º 25 dos factos dados como provados.

21 - A este respeito, o próprio ICEP referiu que 'a segurança social não deixou de receber os valores a que tinha direito, pois que, como se viu, a situação se encontra regularizada [...]' e que '[...] os valores entregues ao abrigo do contrato de concessão de apoios financeiros a que em assunto se alude foram investidos de acordo com o previsto no mesmo contrato [...]', pelo que '[...] [se] pode, pois, concluir que nenhuma das entidades acima referenciadas ficou defraudada em qualquer valor pela não retenção da verba correspondente a 25% de 18 961 661$' (fl. 593).

22 - O que é reafirmado a fl. 595 ('o que havia a pagar pela empresa à segurança social foi já pago e, ainda, o que havia a investir no projecto foi investido') e a fl. 597 ('o facto de a Transgranitos ter regularizado atempadamente a sua situação devedora perante a segurança social, bem como ter aplicado os valores recebidos ao abrigo do contrato em epígrafe aos fins nele previstos').

23 - Mais: o montante correspondente aos 25% de retenção da segurança social era de 4 745 415$ (cf. n.º 16 dos factos dados como provados).

24 - O Plano Mateus, ao abrigo do qual a arguida Transgranitos regularizou as suas dívidas, previa o vencimento de juros a uma taxa de 10,25%, pelo que a segurança social recebeu já não apenas o valor inicial em causa, como um substancial valor de juros calculados a uma taxa (10,25%) que não lograria obter na banca comercial ou em aplicações financeiras alternativas.

25 - Estando a situação contributiva totalmente regularizada perante a segurança social (n.º 26 dos factos dados como provados), não apenas não existe qualquer prejuízo patrimonial para aquela entidade e ou benefício indevido para o ora recorrente como fica demonstrado que jamais foi intenção deste lesar patrimonialmente a segurança social, uma vez que toda a dívida veio a ser paga.

26 - Acresce que se mostra incorrectamente julgado o n.º 16 dos factos dados como provados, na parte em que concluiu que a adulteração da certidão 'permitiu que o incentivo fosse liquidado integralmente em 21 de Maio de 1996 pelo ICEP', uma vez que, conforme exposto, quer o ICEP, por escrito (de fl. 580 a fl. 597), quer as testemunhas Manuel Menezes (fl. 960, estando as declarações gravadas na cassette n.º 2, lado A, rotações 2567 a 3395) e Filipe Silva (fls. 982-983, estando as declarações gravadas na cassette n.º 1, lado A, rotações 3108, a lado B, rotações 2044), evidenciaram peremptoriamente que o recebimento do subsídio nada tinha a ver com a existência de dívidas à segurança social, e estas apenas determinavam a retenção de 25%.

27 - Com base nos mencionados meios de prova, deve pois ser corrigido o n.º 16 dos factos dados como provados, com a correcção explicitada.

28 - O douto tribunal a quo violou assim, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no artigo 256.º, n.os 1, alíneas a) e c), e 3, do Código Penal, ao condenar o arguido pela prática de um crime de falsificação.

29 - Deveria ter interpretado e aplicado correctamente tal preceito, absolvendo o arguido.

30 - Pelo que, conforme todo o exposto, deve ser substituído por outro que absolva o arguido, com os legais efeitos.

31 - Em sede de contestação, requereu o ora recorrente que fosse ordenado exame comparativo de letra e assinatura do documento junto aos autos a fl. 319 (e também a fl. 55), para determinar a identidade do respectivo subscritor, com recolha de autógrafos ao próprio e ao arguido Luís Paulo Lopes.

32 - Por douto despacho datado de 5 de Junho de 2003, foi decidido: 'Quanto ao exame pericial, em sede de julgamento se tomará posição acerca da necessidade, utilidade e ou viabilidade material e temporal da mesma.'

33 - No entanto, nunca o tribunal a quo se pronunciou sobre esta questão, nem em sede de julgamento nem em qualquer outro momento nos autos.

34 - Pelo que se verifica, salvo melhor opinião, violação dos direitos de defesa do recorrente, a qual integra omissão de pronúncia e ou nulidade insanável, a qual deverá ser declarada com os legais efeitos.

35 - Nestes termos, e nos mais de direito que VV. Exmas. doutamente suprirão, deve ser revogado o douto acórdão recorrido, e ser o mesmo substituído por douto acórdão que absolva o recorrente, com os legais efeitos, assim se fazendo a habitual justiça."

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 16 de Março de 2006, negou provimento ao recurso. Quanto à questão da alteração da qualificação jurídica dos factos, entendeu o Tribunal o seguinte:

"Entende o recorrente, nos termos e com os fundamentos atrás referidos, que, tendo o M.mº Juiz de Instrução, quando da pronúncia, alterado a qualificação jurídica dos factos vertida na acusação (alteração que a seu ver se tornou irrevogável, constituindo-se caso julgado formal), o tribunal a quo não podia proceder a nova alteração da qualificação jurídica dos factos imputados.

Logo da própria letra da lei aplicável decorre que, contrariamente ao que defende, a qualificação jurídica dos factos feita na pronúncia não faz caso julgado formal nem é, de modo algum, irrevogável.

Assim, dispondo o artigo 358.º do CPP, no seu n.º 1, que se, no decurso da audiência, se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa; no seu n.º 3 estabelece-se que o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia - de tudo resultando incontornável que a alteração da qualificação é admissível, mesmo tendo havido pronúncia.

Não havendo dúvida de que este preceito se aplica na fase de julgamento, nada na sua letra ou razão de ser (e é patente que o que informa este e os demais preceitos que estabelecem os limites e condições das alterações do objecto do processo é a salvaguarda dos direitos da defesa na medida em que dependa da sua definição) ou no espírito do sistema afasta a possibilidade da respectiva aplicação quando na pronúncia tenha havido, relativamente à considerada na acusação, alteração da qualificação dos factos - esta por sua vez seguramente autorizada pela disciplina processual, designadamente pelo artigo 303.º, n.º 1, do CP, que admite alteração não substancial dos factos (à qual o legislador equiparou, como vimos, a alteração da qualificação jurídica dos factos na fase de julgamento, por maioria de razão devendo ser a tal equiparada também em fase de pronúncia).

Temos pois que nada obsta do ponto de vista legal (quer de preceito expresso, como sejam os vindos de citar, quer da disciplina processual global no seu corpo e espírito) a que concorram alterações da qualificação jurídica dos factos em distintos momentos processuais em que a lei as autorize, concretamente, como foi caso, em sede de decisão instrutória/pronúncia e em sede de julgamento, cumpridas que sejam (como foram) as formalidades legais exigidas, mediante as quais o legislador considerou ficarem salvaguardados os interesses que com as normas disciplinadoras de tal alteração visou acautelar (e que essencialmente se reconduzem a definição, também sob o enfoque do enquadramento jurídico, do próprio objecto do processo, que, possibilitando a este a preparação da defesa e em tais termos garantindo o contraditório relativamente a um certo ilícito em concreto, constitui uma garantia de defesa do arguido).

Nenhum preceito legal, máxime constitucional, foi assim violado com a alteração ora operada, nos termos que pretende ou em quaisquer outros, não sendo designadamente ofendidos, em qualquer medida, os preceitos que consagram garantias de defesa do arguido."

Também quanto a esta questão improcede pois a sua argumentação.

2 - O arguido interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:

"Luís Manuel Barreto Bandeira Costa, arguido nos autos à margem referenciados, interpõe recurso para o Tribunal Constitucional do douto acórdão proferido por esse Venerando Tribunal em 16 de Março de 2006, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional), o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:

O requerente suscitou a questão da inconstitucionalidade dos artigos 303.º e 358.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Penal e 666.º e 672.º do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP, na motivação do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa;

As alegações de inconstitucionalidade constam quer da motivação quer da conclusão 13.ª das alegações de recurso;

Assiste assim ao recorrente o direito à interposição do presente recurso, para o qual tem legitimidade nos termos do disposto nos artigos 71.º e 72.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro;

O recorrente considera violado o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa - cf. artigo 75.º-A, n.º 2, da Lei 28/82, de 15 de Novembro;

O recorrente pretende ver declarada a inconstitucionalidade dos artigos 303.º e 358.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Penal e 666.º e 672.º do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP.

Termos em que requer a V. Ex.ª que, indo este aos autos, considere interposto recurso para o Tribunal Constitucional do douto acórdão desse Venerando Tribunal, com o âmbito acima indicado."

Notificado para produzir alegações, o recorrente alegou concluindo o seguinte:

"A) Os artigos 303.º e 358.º, n.os 1 e 3, do CPP e os artigos 666.º e 672.º do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP, no entendimento do tribunal a quo de que é admissível alterar por diversas vezes a qualificação jurídica dos factos no âmbito do mesmo processo, e em concreto alterar - diga-se por iniciativa do tribunal - a qualificação jurídica dos factos no decurso da audiência de julgamento, com consequente aumento da pena em que o arguido pode incorrer, são pelas razões já aduzidas inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.

B) O direito ao princípio do acusatório e contraditório em processo penal, bem como de acesso ao direito e tribunais para obtenção de uma decisão num prazo razoável e mediante um processo equitativo, num Estado de direito, não é conciliável com a acumulação num juiz de direito das vestes de julgador e acusador.

C) Ao decidir em contrário, o douto tribunal a quo violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 303.º e 358.º, n.os 1 e 3, do CPP e nos artigos 666.º e 672.º do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP, em manifesta oposição com os direitos fundamentais consagrados nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Decidindo nestes termos, e nos mais que VV. Exmas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ter provimento, decidindo-se pela inconstitucionalidade dos preceitos e da lei supra-referidos, com os legais efeitos, assim se fazendo a habitual justiça!"

O Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:

"1 - Não deverá conhecer-se do recurso quando o que se questiona é a própria decisão recorrida e não normas jurídicas por si interpretadas e aplicadas em desconformidade com a Constituição.

2 - A não entender-se assim, há que reconhecer que não é inconstitucional uma interpretação normativa dos preceitos dos artigos 303.º e 358.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Penal, segundo a qual pode ocorrer, no mesmo processo, em sede de pronúncia e, após, no decurso da audiência de julgamento, uma alteração da qualificação jurídica dos factos.

3 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso."

O recorrente respondeu à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, pugnando a sua improcedência.

Cumpre apreciar.

II - Fundamentação. - A) Questão prévia. - 3 - O Ministério Público sustenta que o recorrente apenas impugnou nos presentes autos a decisão e não normas jurídicas, invocando o acórdão do Tribunal Constitucional onde os então recorrentes impugnaram a interpretação alegadamente feita pelas instâncias dos próprios preceitos constitucionais.

Ora, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente esboçou, ainda que de modo não muito claro, uma questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, no n.º 13 das conclusões das alegações (transcrito supra) são enunciados os elementos essenciais de uma questão de constitucionalidade normativa, tendo o tribunal recorrido apreciado e decidido substancialmente a questão.

Assim, tomar-se-á conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada.

B) Apreciação do objecto do recurso. - 5 - O recorrente entende que os artigos 303.º e 358.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Penal e os artigos 66.º e 672.º do Código de Processo Civil, aplicados por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de permitirem a alteração da qualificação jurídica de factos mais de uma vez no mesmo processo, violam os artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da Constituição.

Preliminarmente, sublinha-se que o recorrente considera inconstitucional não o regime legal de alteração da qualificação jurídica dos factos mas somente a possibilidade de ocorrência de mais de uma alteração dessa natureza no mesmo processo. Por outro lado, realça-se, igualmente, que foi sempre concedido ao arguido prazo para preparar a respectiva defesa sempre que se procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos.

O recorrente invoca caso julgado formal ocorrido com a prolação do despacho de pronúncia quanto à qualificação jurídica dos factos.

Ora, o despacho de pronúncia traduz-se na decisão de submeter o arguido a julgamento.

Por força da estrutura acusatória do processo penal, tal decisão fixa o objecto do processo, encontrando-se o juiz de julgamento tematicamente vinculado na apreciação da acusação (em sentido material).

Contudo, no momento da pronúncia, o julgamento ainda não foi realizado. O juiz de julgamento tem poderes de investigação e tem naturalmente o poder de aplicar o direito.

O princípio da vinculação temática constitui uma garantia de defesa, na medida em que impede alterações significativas do objecto de processo, alterações essas que prejudicariam (poderiam até inviabilizar) a defesa. Porém, a dimensão do objecto do processo cuja alteração se repercute irreparavelmente na estratégia da defesa, e por isso só pode ser alterada em casos específicos, é a dimensão da alteração dos factos suporte de uma qualificação jurídica. E é assim já que a alteração substancial de factos implicará, por parte da defesa, uma necessária reorganização em matéria de prova.

Já a alteração da mera qualificação jurídica dos factos importa uma discussão sobre o direito aplicável, mas não tem a mesma repercussão na defesa que tem a alteração substancial dos factos. Daí que a lei preveja para os casos de alteração da qualificação jurídica (em qualquer fase) apenas a oportunidade de a defesa se pronunciar, nos termos do contraditório (artigo 358.º, n.os 1 e 3). Regime que foi introduzido no Código de Processo Penal pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão 22/96, Diário da República, 2.ª série, de 17 de Maio de 1996). O regime do objecto do processo deve ser interpretado de modo substancial em articulação com as garantias da defesa, é certo, mas também em equilíbrio com os demais princípios do processo penal, tais como os do jura novit cura, da verdade material e o imperativo da correcta aplicação do direito.

A alteração da qualificação jurídica dos factos durante o processo, ainda que mais de uma vez, não colide com a estrutura acusatória do processo penal nem com as garantias da defesa. Na verdade, a investigação tem por objecto os factos.

A qualificação jurídica depende da interpretação da lei em face do apuramento dos factos investigados. O juiz de julgamento tem, naturalmente, o poder de proceder à alteração da interpretação do direito, salvaguardada que seja a oportunidade de o arguido poder considerar na sua defesa a qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados. O entendimento do recorrente retira os poderes de investigação que, reconhecidamente, o sistema português confere ao juiz de julgamento, dentro, naturalmente, do objecto definido pela acusação. Nem a fase em que é feita a alteração da qualificação jurídica nem o facto de ser repetida põem em causa a estrutura acusatória do processo penal.

A invocação da existência do caso julgado formal, numa lógica de direito processual civil, a propósito da prolação do despacho de pronúncia, não procede, dado que no processo penal, em particular na matéria em causa nos presentes autos, regem, como foi dito, o princípio acusatório, o princípio da vinculação temática e o regime da articulação entre poderes de interpretação e poderes de julgamento. Depois da instrução, o processo segue para julgamento. No julgamento, o juiz aprecia os factos constantes da pronúncia e faz a aplicação do direito.

O recorrente sustenta ainda que no saneamento o juiz não pode proceder a uma correcção da qualificação jurídica. Trata-se, porém, de um momento diferente do que aqui se analisa. Com efeito, o saneamento não se confunde com a audiência de julgamento. E, mesmo na fase de saneamento, o recorrente acaba por admitir que a correcção pode ter lugar, já que sustenta que a acusação deve ser devolvida para correcção.

Na audiência de julgamento, tal solução não se justifica, não existindo qualquer princípio constitucional que impeça a qualificação jurídica dos factos pelo juiz, desde que seja realizada com respeito pelas garantias de defesa.

Não ocorre, portanto, a inconstitucionalidade sustentada pelo recorrente, pelo que se negará provimento ao recurso.

III - Decisão. - 6 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Apreciar a questão de constitucionalidade suscitada;

b) Negar provimento ao recurso, confirmando consequentemente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.

Lisboa, 27 de Setembro de 2006. - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1524431.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-01-20 - Decreto-Lei 28/84 - Ministérios da Justiça, da Saúde, da Agricultura, Florestas e Alimentação, do Comércio e Turismo e da Qualidade de Vida

    Altera o regime em vigor em matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda