Decreto-Lei 118/2002
de 20 de Abril
Os direitos soberanos dos Estados sobre os seus recursos genéticos e a partilha justa e equitativa dos benefícios derivados da sua utilização estão consignados na Convenção para a Diversidade Biológica, segundo a qual cada Parte Contratante deverá, na medida do possível e conforme o apropriado, promover a elaboração de legislação e outras disposições regulamentares necessárias para a protecção da diversidade das espécies e dos recursos genéticos.
Também no Plano Global de Acção para a Conservação e Utilização Sustentável dos Recursos Genéticos para a Alimentação e Agricultura, adoptado pela Conferência Técnica Internacional sobre Recursos Genéticos Vegetais, realizada em Leipzig, em 1996, no âmbito da FAO, se refere, na alínea e) do seu parágrafo 203, que os governos devem considerar medidas legislativas que permitam a distribuição e comercialização de variedades locais.
Dentro destes recursos, e especificamente no que se refere a material vegetal de interesse no foro agrário, agro-florestal e paisagístico, as variedades locais constituem, no património genético nacional, uma parte diferenciada sob a acção de gerações sucessivas de agricultores que, através da sua acção, promoveram a sua adaptação, sendo reconhecida a relevância deste material para a valorização regional, em particular através do desenvolvimento rural sustentável.
Para além deste material, o acervo genético contido no material autóctone espontâneo constitui uma base não menos relevante para a promoção da sustentabilidade dos sistemas agrários, agro-florestais e paisagísticos, em particular para a manutenção e incremento da agro-biodiversidade.
O estabelecimento de um mecanismo de registo legal -em que seja requerente qualquer entidade pública ou privada, designadamente as autarquias, associações de agricultores ou de desenvolvimento regional ou qualquer pessoa singular- para os tipos de materiais atrás referidos, assente numa adequada caracterização e informado por colecções de referência especificamente identificadas para o efeito, constitui um suporte válido para a sua identificação e consequente base para a sua correcta conservação in situ e ex situ.
A caracterização deste material, cuja identidade deverá definir-se em termos sui generis de acordo com as características particulares das populações em que se insere, constitui ainda um reforço de base para a formulação dos processos de protecção das denominações de origem e das indicações geográficas e uma forma de prevenção contra a eventual apropriação abusiva deste material.
Este instrumento constituirá, igualmente, uma base para a partilha justa, com os intervenientes na diferenciação e ou na manutenção destes materiais, dos benefícios gerados pela sua utilização. Constituirá também, finalmente, um contributo positivo para a promoção do intercâmbio em segurança dos recursos genéticos vegetais, assegurando-se ainda a protecção e a preservação da diversidade cultural das populações locais associada aos recursos genéticos vegetais dessas comunidades, as quais não têm tido acesso aos mecanismos finais da propriedade intelectual e por isso têm visto cair em domínio público ou serem apropriadas por terceiros inúmeras contribuições técnicas sem com isso auferirem quaisquer benefícios.
O presente projecto de decreto-lei assume extrema necessidade e urgência na aprovação e publicação em resultado da obrigatoriedade decorrente da Convenção para a Diversidade Biológica, assinada pela CE em 13 de Junho de 1992 e aprovada em 21 de Dezembro de 1993, de que Portugal é Parte, e em que os Estados signatários assumiram o compromisso de adoptar medidas legislativas adequadas que permitam a distribuição e comercialização de variedades locais.
De igual modo, só com a aprovação e publicação deste regime de registo e protecção de material vegetal autóctone poderão tomar-se medidas que permitam proteger e salvaguardar certos e determinados recursos genéticos vegetais, assegurando assim a diversidade cultural das populações locais.
Ao abrigo deste diploma poderão ainda estabelecer-se condições para a colheita de determinado material com o objectivo de prevenir a sua extinção.
Assim:
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
Artigo 1.º
Objecto
1 - O presente diploma estabelece o regime jurídico do registo, conservação, salvaguarda legal e transferência do material vegetal autóctone com interesse actual ou potencial para a actividade agrária, agro-florestal e paisagística, incluindo variedades locais e material espontâneo do âmbito referido no artigo 2.º, bem como os conhecimentos a ele associados, sem prejuízo do disposto nos Decretos-Leis 316/89, de 22 de Setembro e 140/99, de 24 de Abril.
2 - O material vegetal que se encontre abrangido pelo âmbito de aplicação deste diploma, conforme o definido nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º, é considerado como recurso fitogenético de suma importância, estando os seus acesso e utilização condicionados às disposições estabelecidas no presente diploma e respectiva regulamentação, sem prejuízo da legislação especial em vigor.
Artigo 2.º
Âmbito
1 - O presente decreto-lei aplica-se a todas as variedades locais e restante material autóctone espontâneo de espécies vegetais com interesse actual ou potencial para a actividade agrária, agro-florestal e paisagística, independentemente da sua composição genotípica, com exclusão das variedades que se encontrem protegidas por direitos de propriedade intelectual ou sobre as quais exista um processo em curso para a atribuição dessa protecção.
2 - Para os efeitos dos artigos 4.º a 15.º, as espécies serão fixadas por portaria conjunta dos Ministros da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e do Ambiente e do Ordenamento do Território, sob proposta da Direcção-Geral de Protecção das Culturas (DGPC), ouvido o Conselho Técnico do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas para os Recursos Genéticos Agrários, das Pescas e Aquicultura (CoTeRGAPA).
3 - O material vegetal colectado não pertencente às espécies referidas no n.º 2 deverá ser obrigatoriamente descrito pelo respectivo colector, que fornecerá gratuitamente a sua descrição e uma amostra representativa do material colectado às entidades que concederam a autorização de colheita ou, na sua ausência, à direcção regional de agricultura (DRA) da zona geográfica onde esta foi efectuada.
Artigo 3.º
Conhecimentos tradicionais
1 - São considerados conhecimentos tradicionais todos os elementos intangíveis associados à utilização comercial ou industrial das variedades locais e restante material autóctone desenvolvido pelas populações locais, em colectividade ou individualmente, de maneira não sistemática e que se insiram nas tradições culturais e espirituais dessas populações, compreendendo, mas não se limitando a conhecimentos relativos a métodos, processos, produtos e denominações com aplicação na agricultura, alimentação e actividades industriais em geral, incluindo o artesanato, o comércio e os serviços, informalmente associados à utilização e preservação das variedades locais e restante material autóctone espontâneo abrangidos pelo disposto no presente diploma.
2 - Estes conhecimentos serão protegidos contra a sua reprodução e ou utilização comercial ou industrial, se se verificarem as seguintes condições de protecção:
a) Os conhecimentos tradicionais deverão ser identificados, descritos e registados no Registo de Recursos Genéticos Vegetais (RRGV);
b) A descrição a que se refere a alínea anterior deverá ser feita de forma que terceiros possam reproduzir ou utilizar os conhecimentos tradicionais e obter resultados idênticos aos obtidos pelo titular dos conhecimentos.
3 - Os titulares dos conhecimentos tradicionais poderão optar por mantê-los sob confidencialidade, caso em que o regulamento disporá sobre a publicação no boletim de registo a que se refere o artigo 12.º, o qual deverá limitar-se a dar ciência da existência dos conhecimentos e a identificar as variedades às quais eles estão associados, ficando a protecção conferida pelo registo limitada aos casos em que sua obtenção por terceiros ocorreu de modo desleal.
4 - O registo de conhecimentos tradicionais que até à data do pedido não tenham sido objecto de utilização em actividades industriais ou não sejam objecto de conhecimento público fora da população ou comunidade local em que eles foram obtidos outorgará aos respectivos titulares o direito a:
i) Oporem-se à sua reprodução, imitação e ou utilização, directa ou indirecta, por terceiros não autorizados, para fins comerciais;
ii) Cederem, transferirem ou licenciarem os direitos sobre os conhecimentos tradicionais, incluindo a sua transmissão por via sucessória;
iii) Ficam excluídos da protecção os conhecimentos tradicionais que sejam objecto de registos específicos da propriedade industrial.
5 - As entidades definidas no artigo 9.º do presente diploma terão direito ao registo dos conhecimentos tradicionais.
6 - O registo dos conhecimentos tradicionais produzirá efeitos por um período de 50 anos contados da sua solicitação, prorrogável por um período idêntico.
7 - Aplica-se aos conhecimentos tradicionais, com as devidas alterações, o disposto nos artigos 7.º, 9.º, 10.º, 12.º, 13.º e 14.º
Artigo 4.º
Registo de material vegetal
1 - O material vegetal que se encontra no âmbito da aplicação deste diploma, conforme o definido nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º, pode ser registado no RRGV, a funcionar no Centro Nacional de Registo de Variedades Protegidas da DGPC.
2 - O material vegetal registado deve obrigatoriamente possuir uma denominação e uma caracterização que obedeça às condições a estabelecer em portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas.
3 - A caracterização do material vegetal que serviu de base para o seu registo passa a constituir a descrição oficial do mesmo, no âmbito desta legislação.
4 - O registo dos materiais referidos no n.º 1 confere ao seu titular o direito à partilha dos benefícios derivados da sua utilização, nos termos do artigo 7.º
5 - O registo será concedido pelo director-geral de Protecção das Culturas, ouvido o CoTeRGAPA, de acordo com as condições a definir em portaria conjunta dos Ministros da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e do Ambiente e do Ordenamento do Território.
6 - Uma vez concedido o registo para determinado material vegetal, o mesmo passará a estar incluído na Lista Nacional de Registos de Recursos Genéticos Vegetais (LNRGV) da responsabilidade do RRGV.
Artigo 5.º
Duração do registo
O registo será válido por um período de 10 anos e renovado por períodos subsequentes de igual duração, desde que se mantenham as condições exigidas para a concessão do mesmo, sob pena de caducidade.
Artigo 6.º
Produtos com denominação de origem ou indicação geográfica
Os materiais vegetais utilizados na obtenção de produtos com denominação de origem ou indicação geográfica protegidas, desde que se encontrem no âmbito da aplicação deste diploma, devem obrigatoriamente ser registados, passando a integrar a lista referida no n.º 6 do artigo 4.º
Artigo 7.º
Acesso e partilha de benefícios
1 - O acesso ao germoplasma do material vegetal referido nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º, para fins de estudo, investigação, melhoramento ou aplicações biotecnológicas, será condicionado à autorização prévia do CoTeRGAPA, ouvido o titular do registo.
2 - A utilização de plantas ou de partes destas pertencentes ao material vegetal referido nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º, directamente ou através dos princípios activos nelas contidos, para fins industriais ou biotecnológicos, será igualmente sujeita a autorização prévia do CoTeRGAPA, e, em caso disso, do organismo competente do Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território, ouvido o titular do registo.
3 - Com o objectivo de evitar a sua extinção, pode estar a colheita ou o arranque de plantas da espécie em causa ou de partes destas sujeita a determinadas restrições de âmbito local ou nacional, a fixar por portaria conjunta dos Ministros da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e do Ambiente e do Ordenamento do Território.
4 - O acesso nos termos referidos nos n.os 1 e 2 está condicionado a uma partilha justa dos benefícios resultantes dessa utilização, por acordo prévio com o titular do registo.
Artigo 8.º
Comercialização
A regras de comercialização de sementes ou propágulos de plantas pertencentes ao material mencionado nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º serão objecto de portaria conjunta dos Ministros da Economia, da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e do Ambiente e do Ordenamento do Território.
Artigo 9.º
Solicitante do registo
1 - Pode solicitar o registo de material vegetal abrangido pelas condições estabelecidas no n.º 1 do artigo 4.º qualquer entidade pública ou privada, individual ou colectiva, que cumpra as seguintes condições:
a) Represente nos termos requeridos no n.º 2 os interesses da zona geográfica onde a variedade local se encontre mais difundida ou onde o material autóctone espontâneo apresente a maior variabilidade genética;
b) Cumpra o estipulado no n.º 3 do artigo 10.º
2 - Para satisfazer as condições mencionadas na alínea a) do número anterior, o solicitante deve ser reconhecido pela câmara municipal competente através de documento que ateste a idoneidade dessa entidade para a defesa dos interesses referidos no n.º 1.
3 - A câmara municipal competente para atestar o referido no número anterior será a designada pelo CoTeRGAPA, ouvidos os interlocutores permanentes que representem as DRA, ou pelo organismo competente do Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território no caso de se tratar de espécies selvagens autóctones.
4 - Para fazer prova de que assegura as condições indispensáveis para realizar o exigido na alínea b) do n.º 1, o solicitante deve apresentar um documento comprovativo, passado pela DRA do local onde irá proceder à manutenção do material vegetal em causa.
Artigo 10.º
Direitos e obrigações do titular do registo
1 - A entidade detentora do registo tem direito a receber uma parte dos eventuais benefícios resultantes da utilização prevista nos n.os 1 e 2 do artigo 7.º
2 - A realização de um qualquer dos actos previstos no n.º 1 do artigo 7.º, para o caso de material vegetal registado, só poderá ser autorizada ouvido o titular do registo.
3 - O titular do registo é o responsável pela manutenção in situ do material vegetal registado de acordo com a descrição oficial do mesmo referido no n.º 3 do artigo 4.º e com as condições técnicas estabelecidas pelo CoTeRGAPA, podendo delegar noutros a execução desta tarefa, devendo, neste caso, indicar ao RRGV qual a entidade escolhida para o efeito.
4 - A fim de ser incluído na colecção de referência ou para reposição do material existente, o titular do registo está obrigado a fornecer à entidade responsável pela coordenação das colecções de referência, sempre que esta o solicite e no local por esta indicado, o material de propagação correspondente a esse registo, com as características definidas pela DGPC, obedecendo à descrição oficial referida no n.º 3 do artigo 4.º
Artigo 11.º
Colecção de referência
1 - A entidade responsável pela supervisão técnica das colecções de referência é a DGPC, devendo o CoTeRGAPA promover e coordenar o estabelecimento e a manutenção das colecções de referência, que incluirão obrigatoriamente, a nível regional ou nacional, todo o material registado, de acordo com o que seja mais adequado a cada caso concreto.
2 - No caso de material registado ou com processo de registo em curso, o detentor da colecção de referência não poderá fornecê-lo a terceiros sem autorização do titular ou solicitante do registo e parecer favorável do CoTeRGAPA.
Artigo 12.º
Boletim de registo
A DGPC publicará periodicamente um boletim onde estão incluídos todos os materiais candidatos a registo e os já inscritos na LNRGV, bem como os conhecimentos tradicionais registados de acordo com o estabelecido no artigo 3.º
Artigo 13.º
Contra-ordenações
1 - A utilização de plantas ou partes destas pertencentes ao material vegetal referido nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º em violação do disposto nos n.os 1, 2 e 3 do artigo 7.º e da regulamentação prevista no presente diploma, bem como a violação das normas relativas a conhecimentos tradicionais previstas no artigo 3.º, constituem contra-ordenação punível com coima de (euro) 100 a (euro) 2500.
2 - A negligência é punível.
3 - No caso de a responsabilidade por contra-ordenação pertencer a pessoa colectiva, os valores máximos das coimas elevam-se a (euro) 30000.
4 - O produto das coimas reverterá em 20% para a DGPC, 10% para o Instituto Nacional de Investigação Agrária, 10% para a respectiva DRA e o restante para os cofres do Estado.
5 - Compete às DRA a instrução dos processos de contra-ordenação previstos no presente artigo, e ao director-geral de Protecção das Culturas a aplicação das respectivas coimas e sanções acessórias.
Artigo 14.º
Sanções acessórias
Consoante a gravidade da contra-ordenação e a culpa do agente, podem ser aplicadas, simultaneamente com a coima e nos termos do disposto no regime geral das contra-ordenações, as seguintes sanções acessórias:
a) Perda de objectos pertencentes ao agente;
b) Interdição do exercício de uma profissão ou actividade cujo exercício dependa de título público ou de autorização de homologação de autoridade pública;
c) Privação do direito de participar em feiras e mercados;
d) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos que tenham por objecto a empreitada ou a concessão de obras públicas, o fornecimento de bens e serviços, a concessão de serviços públicos e a atribuição de licenças e alvarás;
e) Encerramento de estabelecimento cujo funcionamento esteja sujeito a autorização ou licença de autoridade administrativa;
f) Suspensão de autorizações, licenças e alvarás.
Artigo 15.º
Responsabilidade civil
A aplicação das coimas referidas no artigo anterior não impede o titular de fazer valer, em relação ao estipulado nos artigos 7.º e 10.º, os seus direitos, designadamente a uma indemnização compensatória e a uma participação nos benefícios.
Artigo 16.º
Taxas
Pela inscrição na LNRGV ou no RRGV, são devidas taxas a fixar por portaria conjunta dos Ministros da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e das Finanças.
Artigo 17.º
Regulamentação
As normas de execução do presente diploma serão objecto de portaria conjunta dos Ministros da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e do Ambiente e do Ordenamento do Território.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 23 de Janeiro de 2002. - António Manuel de Oliveira Guterres - Guilherme d'Oliveira Martins - António Luís Santos Costa - Luís Manuel Capoulas Santos - José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.
Promulgado em 5 de Abril de 2002.
Publique-se.
O Presidente da República, JORGE SAMPAIO.
Referendado em 5 de Abril de 2002.
O Primeiro-Ministro, António Manuel de Oliveira Guterres.