Acórdão 117/2006/T. Const. - Processo 620/2005. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos de recurso, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida Kyo, Alternativas Culturais, Lda., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 11 de Maio de 2005.
Esta decisão, acolhendo argumentação da ora recorrida, considerou que a Portaria 1056/2002, de 20 de Agosto, que aprovou o Regulamento do Apoio às Actividades Musicais de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003, enfermava de inconstitucionalidade formal, por violação do disposto no artigo 112.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na redacção vigente à data em que foi emitida tal portaria.
2 - A ora recorrida interpôs no Supremo Tribunal Administrativo recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Cultura, de 20 de Maio de 2003, que homologou a "acta final e decisória" do júri do concurso de apoio às actividades musicais de carácter profissional e de iniciativa não governamental para o ano de 2003, regulado pelo Regulamento mencionado.
Pelo acórdão recorrido, o Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento ao recurso contencioso e anulou o acto recorrido por vício de violação de lei. É o seguinte, para o que agora releva, o teor da decisão recorrida:
"A primeira questão colocada pela recorrente é a da inconstitucionalidade formal da Portaria 1056/2002, de 20 de Agosto.
Esta portaria aprovou regulamentos de apoio às actividades teatrais, musicais, de dança e transdisciplinares de carácter profissional e de iniciativa não governamental para o ano de 2003, designadamente os seguintes:
a) Regulamento do Apoio às Actividades Teatrais de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003 (anexo I);
b) Regulamento do Apoio às Actividades da Dança de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003 (anexo II);
c) Regulamento do Apoio às Actividades Musicais de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003 (anexo III);
d) Regulamento do Apoio a Projectos Transdisciplinares de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003 (anexo IV).
No caso em apreço, o procedimento administrativo que esteve subjacente ao acto recorrido fez aplicação do Regulamento do Apoio às Actividades Musicais de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o ano de 2003.
Do texto dessa portaria não consta qualquer referência a diploma legislativo que essa portaria vise regulamentar ou que defina a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão.
O artigo 112.º, n.º 8, da CRP, na redacção da Lei Constitucional 1/2001, de 12 de Dezembro, vigente à data em que foi emitida aquela portaria, estabelece o seguinte:
'8 - Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.'
Esta norma constitucional estabelece 'a precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar' e o 'dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos'). 'Esta disciplina é, em princípio extensiva a todas as espécies de regulamentos, incluindo os chamados regulamentos independentes (cf. artigo 112.º, n.os 7 e 8), ou seja, aqueles cuja lei se limita a definir a competência subjectiva para a sua emissão'.
'A função da exigência da identificação expressa consiste não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar (obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento) mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principiologia do Estado de direito democrático).'
Por isso, a indicação expressa do diploma legislativo que se visa executar ou das normas que definem a competência subjectiva e objectiva para a emissão do regulamento independente não pode ser dispensada, mesmo que, eventualmente, sejam identificáveis, com forte probabilidade, aquele diploma ou normas.
No caso daquela portaria, está-se perante um regulamento independente, pois não se visa dar execução a qualquer diploma legislativo.
Por outro lado, não se indica naquela portaria qualquer norma que defina a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão.
Assim, tem de se concluir que a referida portaria enferma de inconstitucionalidade formal.
Por isso, o acto recorrido, que homologou a decisão do júri proferida em procedimento administrativo em que foi aplicada aquela Portaria, enferma de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação (artigo 135.º do CPA).
4 - Afectando a inconstitucionalidade formal do referido Regulamento a globalidade das suas normas, torna-se desnecessário apreciar se ele enferma de outros vícios de inconstitucionalidade.
Por outro lado, estando afectada de inconstitucionalidade formal também a norma que estabelece os critérios para apreciação de candidaturas (artigo 9.º do Regulamento do Apoio às Actividades Musicais de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003), fica prejudicado o conhecimento das questões de ilegalidade do acto recorrido por adição de novos parâmetros em relação aos aí previstos e por falta de ponderação de todos os elementos relevantes para a decisão, a que o júri se havia vinculado com base nos critérios previstos naquele Regulamento.
Para além disso, estando afectado pela referida inconstitucionalidade todo o procedimento administrativo em que se baseou o acto recorrido, torna-se desnecessário apreciar se o acto recorrido enferma dos vícios procedimentais e de forma que lhe são imputados pela recorrente.
Termos em que acordam em:
Conceder provimento ao recurso contencioso;
Anular o acto recorrido por vício de violação de lei."
3 - Desta decisão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade. Recebidos os autos neste Tribunal, alegou apenas o recorrente, concluindo pela seguinte forma:
"1 - Por força do princípio da primariedade ou precedência da lei sobre o regulamento, todos os regulamentos dotados de eficácia externa devem conter menção expressa da respectiva lei habilitante.
2 - Sendo as normas regulamentares em causa nos presentes autos susceptíveis de produzir efeitos na esfera jurídica dos administrados que participem nos concursos públicos ali previstos - e sendo o mesmo totalmente omisso quanto à referência da lei habilitante, mostra-se violado o preceituado no n.º 7 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa, o que conduz à confirmação do juízo de inconstitucionalidade formulado pelo acórdão recorrido."
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação. - O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de Maio de 2005, recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade formal, da Portaria 1056/2002, de 20 de Agosto, que, para além do mais, aprovou o Regulamento do Apoio às Actividades Musicais de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003, por violação do artigo 112.º, n.º 8, da CRP.
Na versão vigente à data da aprovação desta portaria - 18 de Julho de 2002 -, publicada no Diário da República, 1.ª série-B, de 20 de Agosto de 2002, dispunha o n.º 8 daquele artigo da CRP que "[o]s regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão".
Sobre o sentido e alcance deste preceito constitucional, cujo texto se mantém desde a Lei Constitucional 1/82 e que hoje consta do n.º 7 do artigo 112.º, disse este Tribunal, no Acórdão 76/88 (Diário da República, 1.ª série, n.º 93, de 21 de Abril de 1988, pp. 1547 e seguintes):
"É, pois, claro, [...] que abrangidos pela regra bidireccional do n.º 7 do artigo 115.º [n.º 7 do artigo 112.º] da Constituição da República Portuguesa estão todos os regulamentos, nomeadamente os que provenham do Governo [...] e dos órgãos próprios das autarquias locais [...]. Todos esses regulamentos, de um ou de outro modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede cada um deles, e que, por força do disposto no n.º 7 do artigo 115.º da Constituição da República Portuguesa, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento.
O papel dessa lei precedente - di-lo o n.º 7 do artigo 115.º - não é sempre o mesmo.
Umas vezes a lei a referir é aquela que o regulamento visa regulamentar. Será esse o caso dos regulamentos de execução stricto sensu ou dos regulamentos complementares.
Outras vezes a lei a indicar é a que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão. De facto, no exercício do poder regulamentar têm de ser respeitados diversos parâmetros, e assim é que 'cada autoridade ou órgão só pode elaborar os regulamentos para cuja feitura a lei lhe confira competência, não podendo invadir a de outras autoridades ou órgãos (competência subjectiva)' e nessa 'feitura deverá visar-se o fim determinante da atribuição do poder regulamentar (competência objectiva)' - Afonso Rodrigues Queiró, 'Teoria dos regulamentos', Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, n.os 1, 2, 3, 4, p. 19. A necessidade de citação dessa lei definidora da competência, subjectiva e objectiva da autoridade ou órgão que emite o regulamento verificar-se-á, designadamente, no caso dos regulamentos autónomos."
A exigência de indicação da lei habilitante formulada pelo artigo 115.º, n.º 7 [112.º, n.º 8], da Constituição da República Portuguesa (actual artigo 112.º, n.º 8 [112.º, n.º 7]) tem, assim, como objectivo, por um lado, disciplinar o uso do poder regulamentar, obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, se podem ou não emitir determinado regulamento, e, por outro lado, garantir a segurança e a transparência jurídicas, dando a conhecer aos destinatários o fundamento do poder regulamentar.
Como este Tribunal disse no Acórdão 357/99 (Diário da República, 2.ª série, n.º 52, de 2 de Março de 2000, p. 4255), "não impõe a lei constitucional que a indicação da lei definidora da competência conste de um qualquer trecho determinado do regulamento. A Constituição exige todavia que a menção seja 'expressa', recusando deste modo a legitimidade de referências meramente implícitas à base legal autorizante" (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 345/2001, não publicado).
Não oferecendo dúvida o carácter regulamentar do diploma em apreço (que, nos termos do respectivo sumário, aprova os regulamentos de apoio às actividades teatrais, musicais, de dança e transdisciplinares de carácter profissional e de iniciativa não governamental para o ano de 2003) e não resultando do respectivo teor qualquer referência à lei que visa regulamentar ou que define a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão, é patente a inconstitucionalidade formal da Portaria 1056/2002, por violação do disposto, actualmente, no n.º 7 do artigo 112.º da CRP.
III - Decisão. Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 112.º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa, a Portaria 1056/2002, de 20 de Agosto;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere ao julgamento de inconstitucionalidade.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006. - Maria João Antunes - Carlos Pamplona de Oliveira - Rui Manuel Moura Ramos - Maria Helena Brito - Artur Maurício.