Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 67/2006/T, de 9 de Março

Partilhar:

Texto do documento

Acórdão 67/2006/T. Const. - Processo 161/2005. - Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

1 - O Ministério Público recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 3 do artigo 72.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho proferido em 19 de Outubro de 2004, pelo juiz do 3.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, no inquérito n.º 654/04.9TAMTS, em que é arguido Carlos Alberto de Oliveira Ferreira, que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação do artigo 281.º do Código de Processo Penal, por violar a reserva da função jurisdicional e o princípio da independência dos tribunais, consagrados nos n.os 1 e 2 do artigo 202.º e no artigo 203.º da Constituição, e ainda, quando conjugado com a norma do artigo 64.º do mesmo diploma e interpretado no sentido de dispensar a assistência de defensor ao arguido no acto em que é chamado a dar a sua concordância à suspensão provisória do processo, o n.º 3 do artigo 32.º da Constituição.

Foi oportunamente determinado que o julgamento se faça com intervenção do plenário, ao abrigo do n.º 1 do artigo 79.º-A da LTC.

Nas suas alegações o Ministério Público sustenta, em síntese, que o regime da suspensão provisória do processo não colide com as normas e princípios constitucionais referentes à reserva de função jurisdicional e à independência dos tribunais, mostrando-se adequado e eficazmente plasmado no artigo 281.º do CPP o entendimento que, em fiscalização preventiva, fez vencimento no Acórdão 7/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º vol., p. 7) e que a dispensa de nomeação de defensor, para o acto em que o arguido aceita a suspensão provisória do processo pelo período e mediante as injunções com a natureza das que estão em causa, não colide com o comando do n.º 3 do artigo 32.º da Constituição.

Conclui nos seguintes termos:

"1 - A suspensão provisória do processo regulado no artigo 281.º do Código do Processo Penal, configurando um mecanismo que requer uma co-decisão do Ministério Público e do juiz de instrução criminal, não podendo em caso algum ser aplicada sem a concordância expressa deste último, não colide com qualquer norma ou princípio constitucionais, designadamente, com os que regem a função jurisdicional e a independência dos tribunais.

2 - Não é exigência constitucional a assistência obrigatória de advogado ao arguido, em acto processual em que está em causa a sua eventual concordância à suspensão provisória do processo, por um período de dois meses, mediante o pagamento de duas quantias de Euro 250 a favor de uma instituição de solidariedade social e a obrigação de não delinquir de forma dolosa.

3 - Termos em que deverá proceder o presente recurso."

O arguido foi notificado na pessoa do defensor oficioso nomeado no tribunal a quo aquando da admissão do recurso, mas não alegou.

2 - São as seguintes as ocorrências processuais relevantes para o que importa apreciar no âmbito do presente recurso:

a) Em processo de inquérito instaurado contra Carlos Alberto de Oliveira Ferreira, o magistrado do Ministério Público proferiu um despacho de que se extracta o seguinte:

"Os factos indiciados integram o crime de falsificação de estado civil, p. e p. no artigo 248.º, alínea b), do Código Penal, que é punível com prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

Não obstante tal cometimento, entende o Ministério Público ser oportuno proceder à suspensão provisória do processo, nos termos prescritos pelos artigos 281.º e 282.º, ambos do CPP, atendendo a que se verificam os pressupostos de que a lei faz depender a sua aplicação, assim se pondo em prática os princípios de política criminal que defendem que o direito penal deve ser encarado como a ultima ratio e também porque desta forma melhor se promove a ressocialização do arguido.

A suspensão provisória do processo é admissível quando, sendo o crime indiciado punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, a culpa do agente se apresente diminuta, este não possua antecedentes criminais e seja de prever fundadamente que o cumprimento das injunções ou regras de conduta respondem suficientemente às exigências de prevenção que o caso reclame.

A suspensão provisória do processo, informada pelos princípios de consenso e oportunidade, funda-se na busca de soluções consensuais para a protecção dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal e para a recuperação e ressocialização dos delinquentes, com vista à integração destes na sociedade. Ou seja, o que se pretende é atingir, por meios benignos e de consenso, os fins das penas estabelecidos no artigo 40.º do Código Penal, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

No que concerne à prevenção geral como prevenção positiva de integração e reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma infringida, entendemos que a suspensão provisória do processo atinge esse fim tão importante do direito penal. Efectivamente, e não obstante não ser aplicada uma pena, entendemos que o juízo de reprovação e aplicação de injunção ao arguido, traduz o sentimento comunitário de que o bem jurídico violado continua válido e vigente.

Atendendo ao circunstancialismo descrito entendemos que a culpa do arguido assume carácter diminuto. No entanto, ainda assim se torna necessário aplicar ao arguido uma injunção de molde a reduzir ao mínimo as possibilidades de voltar a delinquir.

É de prever que o cumprimento pelo arguido de injunções adequadas, seja suficiente para satisfazer as exigências de prevenção que o caso exige e que este concordou com a suspensão provisória do processo e com as injunções que lhe vão ser impostas.

Em conformidade, nos termos dos artigos 281 .º e 282.º, ambos do Código de Processo Penal, havendo concordância da Mmo. Juiz de Instrução Criminal, determino a suspensão provisória do processo pelo período de dois meses após a notificação deste despacho ao arguido, impondo-lhe as seguintes injunções:

a) Proceder ao pagamento em duas prestações, mensais e sucessivas, da quantia pecuniária no montante de Euro 250, sendo assim o primeiro pagamento no prazo de 8 dias a contar da notificação da decisão da suspensão, e o segundo pagamento até 30 dias após a efectuação da primeira.

b) A referida quantia reverta a favor da instituição de solidariedade social denominada "Casa do Caminho", sita na Senhora da Hora, nesta cidade;

c) Não praticar, durante o período de suspensão do processo qualquer facto criminalmente punível com dolo.

O arguido deverá logo após cada um dos referidos pagamentos juntar aos autos, os respectivos recibos comprovativos da sua satisfação.

Conclua os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal, para se pronunciar quanto à sua concordância ou não com a suspensão provisória do processo."

b) Concluso o processo, o juiz de instrução criminal proferiu o despacho recorrido, do seguinte teor:

"Do despacho do Ministério Público a fls. 20 a 32:

Discordamos da decisão de suspensão provisória do processo pelas seguintes razões:

Primeira. O Ministério Público não tem competência jurisdicional para decidir e impor injunções e regras de conduta ao arguido.

O Ministério Público faz uma interpretação literal do artigo 281.º do Código de Processo Penal, interpretação que deve ser considerada inconstitucional, conforme nos parece dever resultar do Acórdão 7/87, de 9 de Janeiro, do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987. Nesse douto acórdão, apreciando a constitucionalidade do artigo 281.º do Código de Processo Penal, na redacção que havia sido aprovada em 4 de Dezembro de 1986 pelo Conselho de Ministros, e que não continha qualquer referência ao juiz de instrução, refere-se o seguinte:

'Naturalmente que, praticados os actos necessários, compete também ao MP encerrar o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação (artigos 276.º, 277.º e 283.º).

O artigo 281.º consagra, porém, uma inovação nesta matéria, estabelecendo o princípio da oportunidade do exercício da acção penal pelo MP relativamente à pequena criminalidade, atribuindo-lhe o poder de suspender o processo, quando se verifiquem conjuntamente certas condições [as constantes do proémio do n.º 1 e das alíneas a) a e) do mesmo número], mediante a imposição - pelo próprio MP - de injunções e regras de conduta [as definidas nas alíneas a) a i) do n.º 2].

É a inconstitucionalidade de todo este processo que vem suscitada.

A questão posta, ou seja, a suspensão do processo do MP, findo o inquérito, pode cindir-se em duas: uma, a da admissibilidade da suspensão, em si mesma considerada; a outra, a da competência para ordenar a suspensão e a imposição das injunções e regras de conduta.

A admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional.

Já não se aceita, porém, a atribuição ao MP da competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei sem a intervenção de um juiz naturalmente o juiz de instrução e daí a inconstitucionalidade nessa medida dos n.os 1 e 2 do artigo 281.º, por violação dos artigos 206.º e 32.º, n.º 4, da CRP [sublinhado nosso]."

Ora, o artigo 206.º da CRP na redacção anterior à revisão de 1989, tinha o teor que hoje corresponde ao artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, sob a epígrafe "Função jurisdicional":

"Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados."

Os actos que devam constituir "actos judiciais" para os efeitos do artigo 202.º da Constituição (artigos 205.º e 206.º antes da revisão de 1989) devem ser praticados pelo juiz de instrução, como foi expressamente afirmado no Acórdão 7/87, de 9 de Janeiro, à semelhança do entendimento defendido pelo Professor Figueiredo Dias, e publicado em Para Uma Nova Justiça Penal, 1983, pp. 189 e segs., citado no acórdão [Diário da República, n.º 33, de 9 de Fevereiro de 1987, p. 504-(6)].

Como refere José António Barreiros, "o Ministério Público actua no processo penal como órgão autónomo de administração de justiça, o que se não confunde com a acção dos órgãos judiciais, nem com a função jurisdicional e lhe garante independência de actuação face ao Ministro da Justiça. [...] O Ministério Público não é, assim, órgão judicial, nem lhe cabe a função jurisdicional, a qual é património exclusivo do poder judicial (artigo 205.º da Constituição)" (Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, II, pp. 109 e 110).

No mesmo sentido, pode ler-se Germano Marques da Silva: "Sujeitos processuais são o juiz, a quem cabe o exercício da jurisdição, o Ministério Público, o arguido, o assistente e o defensor, aos quais cabe o exercício de poderes e deveres que soe conglobar-se na noção de acção, quer na forma de acusação, quer na forma de defesa. [...] Tomamos aqui a acção num sentido muito amplo, como o conjunto de poderes e deveres da acusação e da defesa em ordem ao reconhecimento do direito pela jurisdição." (Curso de Processo Penal, 1993, t. 1, pp. 95 e 96).

Citando Figueiredo Dias, "a específica função judicial há-de caracterizar-se materialmente pela declaração do direito do caso, através de uma decisão susceptível de transitar em julgado" (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, p. 366).

No entanto, no regime da suspensão provisória do processo não é isso que se verifica. Nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal, o juiz de instrução não decide a suspensão provisória do processo e não escolhe nem aplica as injunções e regras de conduta. Quem decide é o Ministério Público, e o juiz encontra-se numa situação idêntica à do arguido e à do assistente: concorda ou discorda [artigo 281.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal], e similar à que o Ministério Público tem na instrução, fase em que "é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 281.º, obtida a concordância do Ministério Público" (artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal),

Ou seja, nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal, como se verifica no caso dos autos, o juiz não decide, nem tem qualquer intervenção na decisão do Ministério Público. Ou seja, atribui-se a função jurisdicional ao Ministério Público, que decide o caso concreto, cabendo ao juiz de instrução uma intervenção processual acessória e não jurisdicional, de mera concordância, sem qualquer intervenção na escolha das injunções ou regras de conduta a aplicar ao arguido. Nesse mesmo sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Évora, em 8 de Abril de 1997 - in Colectânea de Jurisprudência, ano XXII, t. 2, p. 275:

"Quem decide pela suspensão provisória do processo é o Ministério Público. Quem impõe ao arguido as injunções e regras de conduta é o Ministério Público. [...] O juiz de instrução não pode substituir-se ao Ministério Público no sentido de impor por sua iniciativa injunções e regras de conduta que não sejam as propostas pelo Ministério Público."

Ao atribuir-se ao Ministério Público a competência para a prática daqueles actos jurisdicionais, viola-se o princípio de tutela jurisdicional dos direitos fundamentais, e a reserva de jurisdição dos tribunais a quem compete "administrar a justiça em nome do povo", "assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos" bem como "reprimir a violação da legalidade democrática" (artigo 202.º, n.os 1 e 2, da Constituição).

Segunda. O artigo 281.º do Código de Processo Penal viola o princípio da independência dos tribunais consagrado no artigo 203.º da Constituição, uma vez que não prevê qualquer intervenção do juiz de instrução para a escolha e determinação da solução de direito do caso concreto. O Ministério Público decide a suspensão provisória e determina as injunções ou regras de conduta a aplicar ao arguido, sem qualquer intervenção do juiz de instrução, que é depois colocado diante do "facto consumado", por vezes com a injunção já cumprida pelo arguido.

Nas palavras de Castro Mendes, "a independência dos juízes é a situação que se verifica quando, no momento da decisão, não pesam sobre o decidente outros factores que não os judicialmente adequados a conduzir à legalidade e à justiça da mesma decisão" (Estudos sobre a Constituição, 3.º vol., 1979, p. 654). O que manifestamente não sucede na previsão do artigo 281.º do Código de Processo Penal, condicionando o juiz pela anterior decisão do Ministério Público, nomeadamente quanto à selecção das injunções e regras de conduta e à determinação do período de suspensão, de uma forma ofensiva da dignidade da função de julgar.

Terceira. Acresce que o artigo 281.º do Código de Processo Penal é também inconstitucional quando interpretado em conjunto com o disposto no artigo 64.º do Código de Processo Penal, no sentido de ser dispensada a assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a concordar com a suspensão provisória do processo e com as injunções e regras de conduta que lhe são apresentadas pelo Ministério Público.

Na verdade, ainda que se defenda que as injunções ou regras de conduta não constituem uma pena no sentido do direito penal material nem uma sanção de natureza parapenal (Lowe e Rosenberg, citados por Manuel da Costa Andrade, "Consenso e oportunidade", in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, p. 353), as mesmas representam sempre uma limitação aos direitos e liberdades do arguido.

"Do ponto de vista do direito penal substantivo, trata-se aqui de uma sanção de índole especial não penal a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa. Significativo para o efeito que o arguido não possa ser coagido nem à aceitação das injunções e regras nem ao respectivo adimplemento: o efeito de sanção que lhe está ligado assenta na liberdade de decisão (Freiwilligkeit) do arguido" (Riess, citado por Manuel da Costa Andrade, ob. cit., p. 353).

No entanto, essa liberdade de decisão não existe se ao arguido não for garantida a assistência de um defensor, nomeadamente para o efeito de se poder pronunciar sobre a necessidade e adequação das regras de conduta e injunções apresentadas pelo Ministério Público. Só há verdadeira liberdade quando esta é esclarecida e informada, nomeadamente quanto à "ponderação das vantagens e desvantagens ligadas às alternativas em causa", na expressão utilizada por Costa Andrade (ob. cit). E esse esclarecimento deve resultar da obrigatoriedade de assistência do defensor no acto de audição do arguido sobre a pretendida suspensão provisória do processo.

No caso dos autos, essa assistência não se verificou. O arguido foi chamado a prestar o seu consentimento para a suspensão provisória do processo sem a adequada assistência de defensor.

Salvo melhor opinião, estas razões explicam de forma suficiente o nosso dissentimento em relação à aliás douta decisão do Ministério Público.

Notifique o Ministério Público e o arguido.

Devolva."

3 - Cumpre apreciar e decidir as seguintes questões de constitucionalidade, que constituem o objecto do recurso:

1.ª Se a norma do artigo 281.º do Código de Processo Penal, no segmento em que atribui ao Ministério Público o poder de decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, viola o artigo 202.º (reserva de função jurisdicional) ou o artigo 203.º (independência dos tribunais) da Constituição;

2.ª Se a norma do artigo 281.º em conjunto com o disposto no artigo 64.º do mesmo Código de Processo Penal, interpretados no sentido de ser dispensada a assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a dar a sua concordância à suspensão provisória do processo, viola o n.º 3 do artigo 32.º da Constituição.

4 - Dispõe o artigo 281.º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei 7/2000, de 27 de Maio:

"Artigo 281.º

Suspensão provisória do processo

1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, pode o Ministério Público decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, se se verificarem os seguintes pressupostos:

a) Concordância do arguido e do assistente;

b) Ausência de antecedentes criminais do arguido;

c) Não haver lugar a medida de segurança e internamento;

d) Carácter diminuto da culpa; e e) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

2 - São oponíveis ao arguido as seguintes injunções e regras de conduta:

a) Indemnizar o lesado;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia;

d) Não exercer determinadas profissões;

e) Não frequentar certos meios ou lugares;

f) Não residir em certos lugares ou regiões;

g) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;

h) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime;

i) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.

3 - Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.

4 - Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.

5 - ...

6 - ..."

Destacam-se os seguintes traços marcantes do regime legal da suspensão provisória do processo com particular interesse para apreciação das questões relativas à violação da reserva de função jurisdicional e à independência dos tribunais:

O processo suspende-se na fase de inquérito, por decisão do Ministério Público, mas com o consenso do arguido e do assistente e a concordância do juiz de instrução, durante um prazo determinado que pode ir até 2 anos (artigo 282.º, n.º 1), mediante a sujeição do arguido a injunções e regras de conduta;

Se o arguido cumprir as injunções ou as regras de conduta a que a suspensão tenha ficado condicionada, o processo é arquivado (n.º 3 do artigo 282.º), isto é, não chega a haver acusação e termos posteriores;

Se o processo tiver entrado na fase de instrução, ainda pode optar-se pela suspensão provisória do processo, obtida a concordância do Ministério Público, sendo agora a decisão primária do juiz de instrução (n.º 2 do artigo 307.º).

Estamos perante um instituto introduzido no ordenamento jurídico português pelo Código de Processo Penal de 1987, constituindo uma limitação ao dever de o Ministério Público deduzir acusação sempre que tenha indícios suficientes de que certa pessoa foi o autor de um crime (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), deixando o princípio da legalidade na promoção do processo penal de ser comandado por uma ideia de igualdade formal, para ser norteado pelas intenções político-criminais básicas do sistema penal, assentes na ideia de que, visando toda a intervenção penal a protecção de bens jurídicos e, sempre que possível, a ressocialização do delinquente, é adequado que a intervenção formal de controlo tenda para observar as máximas da mais lata diversão e da menor intervenção socialmente suportáveis. (Discutindo-se se esta realidade melhor se exprime pelo conceito de oportunidade regulada ou de legalidade atenuada. No sentido de que as hipóteses de cessação do dever de acusar positivadas no direito português não significam necessariamente uma mudança de paradigma na perseguição penal, Pedro Caeiro, "Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da 'justiça absoluta' e o fetiche da 'gestão eficiente' do sistema", in Revista do Ministério Público, n.º 84, Outubro-Dezembro de 2000, pp. 31 e segs.) Do ponto de vista substantivo, é um dos casos de introdução de medidas de diversão [diversão com intervenção; cf. sobre a tipologia das formas de diversão, socorrendo-se da lição de Faria Costa em "Diversão (desjudiciarização) e mediação: que rumos", in BFD, LXI, pp. 91 e segs., Pinto Torrão, A Relevância Político-Criminal da Suspensão Provisória do Processo, p. 121] e consenso na solução do conflito penal relativamente a situações de pequena e média criminalidade, para cuja consagração concorrem tanto razões de funcionalidade do sistema de justiça penal (desobstrução da máquina judicial e promoção da economia e celeridade processuais, com isso se fortalecendo globalmente a crença na efectividade dos mecanismos de reacção penal, com o que simultaneamente se realiza o objectivo de prevenção) como de prossecução imediata de objectivos do programa político-criminal substantivo (evitar a estigmatização e o efeito dissocializador, ligados à submissão formal a julgamento, relativamente a delinquentes ocasionais com prognóstico favorável, o que se insere no princípio de redução da aplicação das sanções criminais ao mínimo indispensável).

Além do consenso dos demais sujeitos processuais (Ministério Público, arguido e assistente), a lei exige a concordância do juiz de instrução. Esta intervenção de um juiz na suspensão provisória do processo em fase de inquérito não estava inicialmente prevista (também não estava previsto que a suspensão pudesse ser decretada na fase de instrução, o que veio a ser permitido pela Lei 59/98, de 25 de Agosto). Resultou de o Tribunal Constitucional se ter pronunciado, no Acórdão 7/87, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987 (cf. também, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9.º, pp. 7 e segs.), pela inconstitucionalidade dos n.os 1 e 2 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, então ainda só aprovado em Conselho de Ministros pelo decreto, registado sob o n.º 754/86, que foi submetido a fiscalização preventiva de constitucionalidade. De notar que o Tribunal não viu obstáculos de constitucionalidade ao instituto da suspensão provisória do processo, em si mesmo. O que não aceitou foi "a atribuição ao MP da competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução, e daí a inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.os 1 e 2 do artigo 281.º, por violação dos artigos 206.º e 32.º, n.º 4, da CRP". E, posteriormente à entrada em vigor do Código, o Tribunal reiterou o mesmo juízo de que a admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional, no Acórdão 244/99, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Julho de 1999.

5 - Não há que recuar na análise da questão de constitucionalidade ao ponto de reabrir o debate sobre se a intervenção do juiz é (continua a ser) constitucionalmente exigida para a suspensão provisória do processo, na fase de inquérito, mediante a imposição ao arguido de injunções ou regras de conduta. O que cumpre ao Tribunal averiguar, no presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, é se dos termos em que o n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal consagra a intervenção do juiz de instrução criminal resulta a violação de normas ou princípios constitucionais, designadamente dos que se inscrevem nos artigos 202.º (reserva de função jurisdicional) e 203.º (independência dos tribunais) da Constituição.

Comecemos por recordar que o artigo 202.º da Constituição preceitua, no n.º 1, que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo e o n.º 2 que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. É o princípio da reserva da função jurisdicional aos tribunais [sobre este princípio, cf. os Acórdãos, deste Tribunal, n.os 72/84, 56/85, 98/88 e 143/88 (Diário da República, 2.ª série, de 10 de Janeiro de 1985, de 28 de Maio de 1985, de 22 de Agosto de 1988 e de 15 de Setembro de 1988, respectivamente)]. E que o artigo 203.º dispõe que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. Correspondem a disposições constitucionais que se mantêm inalteradas desde a versão inicial da Constituição, embora com aglutinações e renumerações. [O artigo 202.º foi gerado pela revisão constitucional de 1989 que aglutinou no então artigo 205.º, que passou na revisão constitucional de 1997 a artigo 202.º, os primitivos artigos 205.º e 206.º (correspondendo aos n.os 1 e 2 respectivamente, que são os que para o caso interessam) e 209.º (corresponde actualmente ao n.º 3) e aditou o n.º 4. O artigo 203.º corresponde à renumeração do artigo 206.º da revisão constitucional de 1989 que renumerara o primitivo artigo 208.º]

Um dos corolários ou dimensões do princípio da independência dos tribunais é o de que o juiz, no exercício da sua função jurisdicional, apenas está submetido às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas (independência funcional). Por outro lado, como diz Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 658, a independência judicial postula o reconhecimento de uma reserva de jurisdição, entendida como reserva de um conteúdo material típico da função jurisdicional, o que implica que em determinadas matérias cabe ao juiz não apenas a última, mas também a primeira palavra. É o que se passa, desde logo, no domínio tradicional das penas restritivas da liberdade e das penas de natureza criminal na sua globalidade. Os tribunais são os "guardiões da liberdade" e daí a consagração do princípio nulla poena sine judicio (artigo 32.º, n.º 2, da CRP).

A questão que agora é colocada ao Tribunal Constitucional tem relevantes pontos de contacto com o que foi versado a propósito do sistema de determinação concreta de competência permitido pelo n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal. Melhor dizendo: a crítica de constitucionalidade que é dirigida à atribuição ao Ministério Público do poder de decidir a suspensão provisória do processo mediante injunções e regras de conduta filia-se na mesma compreensão das imposições que decorrem dos princípios constitucionais invocados na modelação do processo penal quanto à repartição de funções entre o Ministério Público e o juiz que levou a que se tivesse questionado a conformidade constitucional daquela outra opção do legislador. Também a constitucionalidade dessa norma foi posta em causa, além de outras razões, por violação da reserva constitucional da função jurisdicional e da independência dos tribunais, em virtude de permitir que a opção do Ministério Público condicionasse ou limitasse o conteúdo da decisão hipoteticamente possível do juiz face ao conteúdo abstracto da lei.

O Tribunal julgou sempre essas críticas improcedentes, em abundante jurisprudência iniciada com o Acórdão 393/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 13, pp. 1057 e segs.), de que se evidenciam as seguintes passagens:

"A independência dos tribunais conclama a independência dos juízes.

A independência dos juízes, que é, acima de tudo, um dever ético-social, vem a traduzir-se no dever de julgar 'apenas segundo a Constituição e a lei', sem sujeição, portanto, a quaisquer ordens ou instruções. Na interpretação e aplicação das leis, hão-de, pois, os juízes agir sem outra obediência que não seja aos ditames da sua própria consciência [cf. artigo 4.º da Lei 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais)].

Nenhum destes princípios é violado pelo artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pois quem julga é o juiz, e não o Ministério Público. É aquele, e não este, quem fixa a medida concreta da pena, movendo-se para tanto dentro da moldura abstracta fixada na lei.

Sucede é que o juiz, ao fixar a pena do caso, não pode exceder três anos (cf. citado artigo 16.º, n.º 4). Isso, porém, significa tão-só que ele não pode utilizar toda a moldura abstracta constante do tipo.

O Ministério Público condiciona, assim, a fixação da pena do caso: como porta-voz que é do poder punitivo do Estado, diz ao juiz que, face às circunstâncias do caso e tendo presentes os critérios legais de aplicação concreta das penas, a colectividade que ele representa não pretende que ao réu se aplique por aquele caso pena superior a três anos. E di-lo no exercício de um poder expressamente definido na lei.

Ora, isto não viola qualquer dos apontados princípios constitucionais.

Escreve a propósito Figueiredo Dias:

"O problema que então ficava para resolver era outro: era o de saber se, no caso (decerto, excepcional) em que, no fim do julgamento, o juiz lograsse a convicção de que deveria aplicar uma sanção em medida superior à predeterminada, deveria ter competência para a aplicar (e não há rigorosamente nada na Constituição que o impedisse), ou seria preferível que limitasse a sua convicção pelo máximo de medida da sanção que estava na sua competência normal aplicar. A Comissão decidiu-se, no artigo 16.º, n.º 3, pela última alternativa e, quanto a mim, com excelentes razões político-criminais, que seria deslocado explanar aqui.

O que interessa é acentuar que, deste modo - e como agora, porventura, já se terá tornado claro -, o princípio da reserva da função jurisdicional permanece intocado: é o juiz singular que julga, como é ele que determina concretamente a sanção dentro dos limites abstractos em que a lei lhe permite que mova a sua discricionariedade vinculada. A lei acrescento e acentuo - e só ela, de sorte que a independência do juiz também não é, no que quer que seja, afectada. O que sucede é que - e é isto o que há de singular no método de determinação concreta da competência - 'lei' não é apenas o preceito do Código Penal onde se prevêem os limites abstractos das sanções aplicáveis; 'lei' é também, e a igual título, o preceito do Código que limite a convicção do juiz pelo máximo das sanções que ele pode aplicar, quando o Ministério Público - como representante do Estado e porta-voz, portanto, do seu poder punitivo - entenda que, no caso, aquele máximo não deve ser ultrapassado. Esse entendimento tem na base um processo de 'aplicação do direito'? Decerto que sim, como o tem qualquer outro que o Ministério Público assuma no exercício da acção penal e, nomeadamente, na sua decisão de acusar ou antes de arquivar o processo: 'aplicação do direito', porém, não 'jurisprudência'. O Ministério Público co-determina deste modo, em certa medida, o sentido da decisão final? Decerto que sim, como o co-determina qualquer acto próprio de um sujeito processual, nomeadamente a sua decisão de recorrer ou de não recorrer! Os poderes do juiz são assim limitados, para além do que resulta da lei penal substantiva aplicável? Decerto que sim, como o são através de inúmeros comportamentos dos sujeitos processuais, nomeadamente aquele em que se traduz a fixação do objecto do processo pelo Ministério Público, ou - de uma forma ainda mais paradigmática para o caso aqui em discussão - aquele outro que põe em funcionamento a proibição de 'reformatio in peius'. De uma forma ainda mais paradigmática, digo, porque a argumentação dos opositores desta proibição - que, durante tantos anos, impediu a verdadeira conquista democrática em que uma tal proibição se traduz - não era no fundo outra senão a de que o regime próprio desta proibição tornaria parcialmente disponível o objecto do processo e permitiria assim que a actuação processual dos eventuais recorrentes subtraísse ao juiz funções que deveriam caber-lhe de forma indisponível!

Toda esta linha de argumentação não colhe face a um processo penal dotado, nos termos do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, de 'estrutura acusatória'. Não quero significar com isto que a estrutura acusatória do processo penal implique por necessidade soluções como a da proibição da reformatio in peius ou a constante do artigo 16.º, n.os 2 e 3. Digo, sim, que estas soluções são compatíveis com aquela estrutura acusatória e devem ser compreendidas à sua luz; e, ainda mais, que elas representam 'um autêntico reforço da estrutura acusatória do processo penal', sem por isso porem em causa o princípio da investigação ou o carácter indisponível do objecto do processo: que elas representam, numa palavra, a realização da 'máxima acusatoriedade do processo penal' compatível com os restantes princípios gerais que lhe presidem. Pela simples e boa razão - que o conjunto do presente trabalho, mas nomeadamente a sua parte final, procura tornar clara - de que levar ao ponto de censura soluções como aquelas de que aqui se trata não significaria respeito pelos princípios da indisponibilidade e da investigação: significaria, sim, conceder a um processo de estrutura inquisitória, ou de estrutura mista acusatória/inquisitória - esse, na verdade, irremediavelmente inconstitucional perante o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.

Julgo poder agora concluir: face à Constituição, tanto o sistema do projecto como o do Código, relativos ao artigo 16.º, são perfeitamente legítimos. Não é, pois, no domínio da arguição de inconstitucionalidade - que, a este como a outros propósitos, mal encobre o circunstancialismo político e sociológico em que hic et nunc se processam as relações institucionais e corporativas entre as magistraturas judicial e do Ministério Público - que a discussão entre os dois sistemas deve ser colocada. E, sim, no domínio das vantagens e desvantagens político-criminais que cada um apresenta para a máxima realização possível das finalidades antinómicas do processo penal que o problema deve ser posto e - assim se espera - aprofundado no futuro." [cf. 'Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal', Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pp. 3 e segs., especialmente pp. 19-22.]"

Esta doutrina é perfeitamente transponível para a crítica que a decisão recorrida faz à violação da reserva de jurisdição e do princípio da independência dos tribunais pela posição em que o juiz de instrução é colocado face ao entendimento do Ministério Público de utilizar o mecanismo instituído pelo artigo 281.º do Código de Processo Penal.

6 - O facto de o juiz de instrução estar condicionado pela decisão do Ministério Público, nomeadamente quanto à selecção das injunções e regras de conduta e à determinação do período de suspensão do processo, mais precisamente, de o seu leque de opções decisórias estar limitado à concordância ou discordância com a anterior aplicação do direito ao caso feita pelo Ministério Público e pela aceitação dos demais sujeitos processuais, não contende com o princípio constitucional da independência dos tribunais. Do mesmo modo que não pode considerar-se que assuma essa natureza ou tenha esse efeito o poder que o Ministério Público tem de pôr ou não em funcionamento o órgão judicial através do exercício da acção penal (cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I vol., p. 383) ou os termos em que apresenta a pretensão punitiva do Estado (Acórdão 393/89), também não belisca a independência funcional do juiz de instrução a circunstância de o Ministério Público submeter a concordância judicial uma decisão sua, que obteve já a aceitação dos restantes sujeitos processuais e que consiste em renunciar à submissão imediata do caso a julgamento, sempre que as exigências de prevenção geral e especial não requeiram a efectiva aplicação e cumprimento de uma pena. Os termos em que o juiz decidirá se deve ou não dar a sua concordância não dependem senão do que, em sua consciência, decorra da situação de facto revelada pelo processo e dos comandos legais. Seja qual for a extensão dos seus poderes - ainda naquela interpretação mais restritiva de que ao juiz não cabe senão a apreciação dos pressupostos e condições da suspensão que se analisem (ou na parte em que se analisem) num mero juízo verificativo de conformidade à lei, estando-lhe vedada a intervenção nos juízos de prognose ou na margem de apreciação por parte do titular da acção penal [a previsão da alínea e) do n.º 1 e a adequação das injunções ou regras de conduta adoptadas] -, a decisão do juiz não depende de quaisquer ordens ou instruções mas, directamente e só, das fontes normativas a que constitucionalmente deve obediência.

A limitação do campo de pronúncia judicial relativamente às possibilidades abstractas da lei substantiva em decorrência das opções dos sujeitos processuais é, aliás, embora sem carácter absoluto, postulada relativamente a todo o processo judicial pelo princípio da imparcialidade e vai implicada noutros princípios constitucionais do processo penal, designadamente no princípio do acusatório e da proibição da reformatio in pejus. Mas a liberdade do acto de julgar, que é a única vertente ou perspectiva da independência judicial de que tem sentido falar-se a propósito da norma em causa, não sofre com o facto de não caberem ao juiz de instrução quer a opção primária por suspender ou não o processo, quer a escolha das injunções ou regras de conduta. O juiz de instrução concordará ou não com a solução que lhe é apresentada, (i) livre de instruções de qualquer tipo e provenientes de qualquer entidade, (ii) livre de toda a espécie de pressões, directas ou indirectas, susceptíveis de influenciar a declaração do direito do caso, (iii) cabendo-lhe encontrar a solução juridicamente imposta, no âmbito dos poderes que é chamado a exercer. São estas as condições da independência funcional dos juízes. Neste sentido, a maior ou menor extensão dos poderes que exerce não torna o juiz mais ou menos independente.

Acresce dizer, com Figueiredo Dias, "A 'pretensão' a um juiz independente como expressão do relacionamento democrático entre o cidadão e a justiça", Sub Judice, n.º 14, Janeiro-Março de 1999, pp. 27 e segs., que o estrito dever do juiz de obediência à lei é um "mero limite externo da independência, que nada tem a ver estruturalmente com ela e em nada pode, por isso, afectá-la". É um contrapolo da independência judicial, sem o que a função jurisdicional poderia resvalar para o exercício de um poder democraticamente ilegítimo.

Conclui-se, pois, que a norma em causa não viola o princípio da independência dos tribunais e dos respectivos juízes, consagrado no artigo 203.º da Constituição.

7 - Entende a decisão recorrida que também é infringido o artigo 202.º da Constituição na medida em que não é um juiz (o juiz de instrução) quem decide a suspensão do processo e a imposição de injunções e regras de conduta, mas antes o Ministério Público. Passando a analisar este fundamento do juízo de inconstitucionalidade efectuado pelo tribunal a quo, importa averiguar se a decisão do Ministério Público pela suspensão provisória do processo consubstancia um acto materialmente jurisdicional.

O Ministério Público constitui, ao lado do tribunal, um órgão autónomo de administração da justiça, constitucionalmente incumbido de "exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade", que goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei, sendo integrado por magistrados hierarquicamente subordinados que não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei (artigo 219.º da Constituição). Cabe-lhe dirigir o inquérito, o que implica necessariamente aplicar o direito e formular juízos. Ao decidir-se, nesta fase, pela suspensão provisória do processo, o Ministério Público opta por não exercer imediatamente a acção penal. Esse acto, em si mesmo, não colide mais nem menos com o monopólio da função jurisdicional pelos juízes do que o seu reverso: a dedução imediata da acusação.

É certo que tal opção pode tornar-se definitiva se as injunções ou regras de conduta forem cumpridas. Mas não é por isso, pelo facto de a opção ser potencialmente definitiva ou, mais exactamente, de co-envolver a expectativa de que o processo virá a ser arquivado, sem a qual a opção pela suspensão não seria tomada, que pode dizer-se que o Ministério Público pratica um acto materialmente jurisdicional. Haverá, apenas, se esse vier a ser o desenvolvimento do processo, um conflito que acabará por ser dissipado ou suprimido; não a sua resolução e, muito menos a aplicação de qualquer pena, por entidade diversa do juiz.

Por outro lado, como o Tribunal reconheceu logo no Acórdão 7/87, centrando-se sobretudo no parâmetro específico do n.º 4 do artigo 32.º da Constituição, não há obstáculo de ordem constitucional à direcção do inquérito pelo Ministério Público, como ele vem desenhado no Código, e a que lhe compita encerrá-lo, arquivando-o ou deduzindo acusação. Não pode também havê-lo quanto a algo que é um minus relativamente ao arquivamento, sempre que as exigências de prevenção não justifiquem os custos do prosseguimento formal típico para os propósitos político-criminais da intervenção mínima, da não-estigmatização do agente, do consenso e da economia processual. E também o não há face ao artigo 202.º, porque a concretização da reserva para administrar justiça mediante a atribuição de competência aos tribunais para reprimir a violação da legalidade democrática (artigo 202.º, n.º 2, da Constituição) não é incompatível com soluções em que a actuação do tribunal, mesmo no processo penal, seja condicionada pelo impulso processual inicial ou sucessivo de outros sujeitos processuais, nem impede que a intervenção do juiz de instrução se limite, na fase de inquérito, a uma função de garantia, sempre que se torne necessária a prática de actos que colidam com a esfera dos direitos, liberdades e garantias (juiz de garantias ou juiz das liberdades).

Acresce, por último, que o acto processual em causa - a decisão primária de suspensão e escolha das injunções e regras de conduta - também não cabe em qualquer das hipóteses singulares de reserva de acto jurisdicional ou "casos constitucionais de reserva judicial" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 792) no domínio do processo penal, designadamente no n.º 2 do artigo 27.º da Constituição, porque as injunções e regras de conduta não revestem a natureza jurídica de penas, embora se consubstanciem em medidas que são seus "equivalentes funcionais" (Cf. neste sentido Pinto Torrão, op. cit., p. 192, Anabela Miranda Rodrigues, Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, p. 193, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal,III, 2.ª ed., p. 112.)

E é assim por três razões fundamentais. Trata-se de uma sanção a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena, nem a correspondente comprovação da culpa. Ao arguido cabe decidir, na sua estratégia de defesa, se aceita submeter-se a tais injunções e regras de conduta ou se prefere que o processo prossiga para julgamento. E a todo o momento pode a elas subtrair-se - obviamente se não forem de execução instantânea -, bastando-lhe deixar de cumpri-las (n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal).

Em conclusão, a norma do artigo 281.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que, na fase de inquérito, cabe ao Ministério Público a competência para decidir a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução, também não viola a reserva de função jurisdicional consagrada nos n.os 1 e 2 do artigo 202.º da Constituição.

8 - Na razão terceira do despacho recorrido, o tribunal a quo considerou, ainda, que o artigo 281.º do Código de Processo Penal também é inconstitucional quando interpretado em conjunto com o disposto no artigo 64.º do Código de Processo Penal, no sentido de ser dispensada a assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a concordar com a suspensão provisória do processo e com as injunções e regras de conduta que lhe são apresentadas pelo Ministério Público.

Quanto a esta questão é conveniente começar por precisar um aspecto: no contexto do despacho recorrido "ser dispensada a assistência de defensor ao arguido" significa "não ser imposta a obrigatoriedade de assistência de defensor ao arguido". Aquilo que o juiz a quo censura ao legislador ordinário não é violar o direito do arguido "a não estar só", mas infringir o dever do Estado de "não deixá-lo só" perante as autoridades judiciárias.

O n.º 3 do artigo 32.º da Constituição remete para a lei a definição dos casos em que é obrigatória a assistência por advogado, o que significa que cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a selecção das situações em que a assistência deve ser obrigatória. E, embora seja constitucionalmente exigível que essa selecção seja materialmente adequada à relevância dos diversos actos e fases do processo criminal, desde logo por ser condição de garantia dos direitos de defesa do arguido (cf. Acórdão 413/2004, Diário da República, 2.ª série, de 23 de Julho de 2004), a verdade é que não se encontra razão para que essa obrigatoriedade se imponha ao legislador, de modo taxativo, para todos os casos de suspensão provisória do processo, como subjaz ao entendimento perfilhado pelo despacho recorrido.

Efectivamente, o que aqui pode estar em causa, o objectivo específico da assistência de defensor para o acto de concordância, é assegurar que a aceitação, pelo arguido, da suspensão do processo e das injunções ou regras de conduta, traduza um consentimento informado, isto é, que seja o produto de uma vontade esclarecida quanto à ponderação das vantagens e desvantagens ligadas às alternativas em presença. Alternativas e consequências que, na generalidade dos casos, são facilmente inteligíveis e representáveis, sem necessidade de aconselhamento técnico-jurídico, por um arguido dotado de normal capacidade intelectual e volitiva e experiência da vida.

Assim, o legislador não faz um uso materialmente inadequado da margem de conformação que lhe é outorgada no n.º 3 do artigo 32.º da Constituição ao não incluir o acto de concordância pelo arguido com a suspensão provisória do processo no elenco daqueles em que taxativamente e sem excepção tem de ser assegurada a presença de defensor (n.º 1 do artigo 64.º do Código de Processo Penal). Basta, para que o comando constitucional se considere cumprido, relativamente às situações cabíveis no tipo de acto em causa no artigo 281.º, o disposto na cláusula geral do n.º 2 do artigo 64.º do Código de Processo Penal que prescreve, além dos casos previstos no número anterior, o poder-dever de o tribunal nomear defensor ao arguido, oficiosamente ou a pedido deste, sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou a conveniência de o arguido ser assistido por defensor.

Cumpre, aliás, recordar que o presente recurso de constitucionalidade respeita a uma situação em que está em causa a aceitação da suspensão provisória do processo, pelo período de dois meses, mediante o pagamento de duas prestações mensais a favor de uma instituição de solidariedade social e não praticar, durante o período de suspensão do processo, qualquer facto criminalmente punível a título de dolo. O que demonstra, pela evidência do exemplo, que a preocupação que afligiu o despacho recorrido só em concreto pode ser resolvida e tem na cláusula geral solução normativa idónea.

Tanto basta para que se conclua que a norma do artigo 281.º em conjunto com o artigo 64.º do mesmo Código, interpretada no sentido de ser dispensada a assistência de defensor ao arguido no acto em que este é chamado a dar a sua concordância à suspensão provisória do processo, não viola o n.º 3 do artigo 32.º da Constituição.

9 - Decisão. - Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o julgamento de não inconstitucionalidade agora efectuado.

Sem custas.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2006. - Vítor Gomes - Mário Torres Pamplona de Oliveira - Maria Helena Brito - Rui Moura Ramos - Maria dos Prazeres Beleza - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - Benjamim Rodrigues - Gil Galvão - Maria João Antunes - Maria Fernanda Palma [voto o presente acórdão, em atenção, essencialmente, ao perfil político-criminal (antiestigmatizante, reparador da ofensa e alternativo ao ritual processual condenatório) e humanizador do processo penal, desempenhado pelo instituto da suspensão provisória do processo] - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1473814.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1985-07-30 - Lei 21/85 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-09 - Acórdão 7/87 - Tribunal Constitucional

    Declara não se pronunciar pela inconstitucionalidade dos artigos 108.º, n.º 2, alínea b); 135.º, n.os 2 e 3; 174.º, n.os 3 e 4; 177.º, n.º 2, com referência ao artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b); 178.º, n.º 3; 187.º, n.º 1; 190.º; 200.º; 250.º, n.º 3; 251.º, n.º 1; 252.º, n.º 3; 263.º; 270.º, n.º 1; 281.º, n.os 3 e 5, salvo, quanto a este último número, consequencialmente, na parte em que ele remete para o n.º 4; 286.º, e 337.º n.os 1, alínea a), e 3, e pronunciar-se pela inconstitucionalidade dos artigos (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 2000-05-27 - Lei 7/2000 - Assembleia da República

    Altera o Decreto-Lei nº 400/82, de 3 de Setembro, que aprova o Código Penal e o Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprova o Código de Processo Penal.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda