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Acórdão 673/2005/T, de 3 de Fevereiro

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Texto do documento

Acórdão 673/2005/T. Const. - Processo 100/2003. - Acordam, na 2.ª Secção, do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório. - Em acção de despejo instaurada na 4.ª Vara Cível da Comarca do Porto, Manuel Gomes Coelho formulou, contra a Auto Sofá - Comércio de Mobiliário, Lda., com fundamento no não pagamento das rendas vencidas desde 1 de Outubro de 2000, pedido de condenação na entrega, inteiramente devolutas de pessoas e bens, de três fracções autónomas por ele arrendadas a essa ré e no pagamento das rendas vencidas e vincendas.

A ré contestou, excepcionando a sua ilegitimidade, por, em 20 de Maio de 1998, ter comunicado por fax ao autor, após conversações entre ambos, a cedência do estabelecimento EURODIVAN - Artigos para o Lar, Lda., comunicação que, recepcionada pelo autor, foi por ele assinada e devolvida, tendo a ré formalizado o trespasse por escritura pública celebrada em 17 de Setembro de 1998, tendo a partir desta data a EURODIVAN assumido a posição de arrendatária.

O autor, na réplica, para além de ampliar a causa de pedir à da não comunicação do alegado trespasse, pediu a intervenção principal desta sociedade.

Citada a EURODIVAN, veio esta interveniente contestar e reconvir, corroborando a descrição dos factos feita pela ré Auto Sofá e aduzindo, em suma, que em 21 de Dezembro de 1999 acordou com o autor a compra e venda das fracções, pelo preço de 190 000 000$, montante em que seriam reduzidos os valores até aí entregues a título de rendas, tendo no acto, como sinal e princípio de pagamento, a EURODIVAN entregue dois cheques pré-datados, nos valores de 2 000 000$ e 2 210 000$, que posteriormente foram recebidos pelo autor. Apesar de posteriormente ter efectuado entregas de valores no total de 3 912 500$, um representante do autor ter-lhe-á comunicado, no decurso do ano 2001, que o referido acordo ficara sem efeito. Termina preconizando a improcedência da acção e deduzindo reconvenção, visando a condenação do autor na execução específica do contrato-promessa de compra e venda ou, em alternativa, a pagar-lhe o valor das fracções à data da rescisão, com dedução do preço convencionado, ou restituir-lhe o sinal e a parte do preço que pagou em dobro.

Após réplica do autor à contestação da interveniente e frustração de tentativa de acordo, o autor veio requerer o despejo imediato do locado, ao abrigo do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro (doravante designado por RAU), com fundamento na falta de pagamento, quer pela primitiva ré quer pela interveniente, das rendas vencidas na pendência do processo, pretensão a que a interveniente se opôs, aduzindo que, aquando da celebração do acordo tendo em vista a venda das fracções em causa, o autor dispensou a interveniente do pagamento da renda, conforme já alegado no artigo 13.º da contestação, para além de que, face à posição do autor, que considera ineficaz o trespasse efectuado, se encontra por determinar quem é o actual arrendatário das fracções.

Foi elaborada a base instrutória, com formulação de quesitos relativos, designadamente, à alegada celebração de contrato-promessa de compra e venda entre o autor e a interveniente, à entrega por esta de valores por conta do preço estipulado e à falta de colaboração do autor no sentido da celebração do contrato definitivo de compra e venda (quesitos 14.º a 26.º). E, de seguida, foi proferido despacho a decretar o despejo imediato da ré e da interveniente do local em causa, do seguinte teor:

"Incidente de despejo imediato de fls. 116 e seguintes:

Vem o autor requerer este incidente, nos termos do artigo 58.º do RAU, invocando completa falta de pagamento de rendas até 8 de Março de 2002.

Ouvidas a ré e a interveniente (demandada a título subsidiário), nem uma nem outra fizeram prova do pagamento ou depósito de qualquer das rendas em causa, invocando esta última a circunstância de estar alegada a dispensa de pagamento de rendas.

Cumpre decidir.

É fundamento de despejo imediato a não comprovação do pagamento das rendas vencidas após o termo do prazo da contestação quando seja causa de pedir da acção a falta de pagamento de rendas.

O arrendatário, a título de réu principal ou subsidiário, apenas pode fazer prova documental do pagamento ou do depósito das rendas respectivas.

Não lhe é permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do pagamento, sendo as mesmas a apreciar e a decidir na acção.

Nenhum dos ouvidos fez tal prova.

Assim, nos termos da norma referida, decreto o despejo imediato da ré e da interveniente do locado, sendo este constituído pelas fracções descritas em A) e B) da matéria assente."

A interveniente interpôs recurso de agravo deste despacho para o Tribunal da Relação do Porto, terminando as respectivas alegações com a formulação das seguintes conclusões:

"1 - A douta decisão recorrida, ao considerar que, no âmbito do incidente previsto no artigo 58.º do RAU, a recorrente 'apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósito das rendas respectivas', não lhe sendo 'permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do pagamento', fez incorrecta interpretação do citado preceito, contrariando a jurisprudência que vem sendo seguida a propósito, designadamente a constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 1998, in Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, vol. 2.º, p. 81, e do Acórdão da Relação do Porto de 17 de Maio de 1994, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 437, p. 577.

2 - Perante a actual redacção do artigo 58.º do RAU, não é mais aceitável a conclusão que prevalecia no domínio de aplicação do anterior artigo 979.º do Código de Processo Civil, nos termos da qual a única defesa relevante que o arrendatário pode produzir é demonstrar que pagou ou depositou a renda.

3 - Da actual redacção do artigo 58.º do RAU resulta que este artigo pressupõe que as rendas deviam ser pagas e não o foram; isto é o mesmo que dizer que não se justifica o despejo imediato previsto no artigo 58.º do RAU quando se discute se aquele que se arroga o direito de receber renda está, ou não, em situação de poder exigi-la.

4 - A providência do artigo 58.º do RAU pressupõe que se encontra assente a relação processual entre demandante e demandado.

5 - Nos presentes autos, é o próprio autor que põe em causa a validade do arrendamento em relação à recorrente EURODIVAN, não a reconhecendo como actual legítima arrendatária, sustentando expressamente que o trespasse realizado é ineficaz em relação a si (cf. os artigos 4.º, 13.º, 14.º e 15.º da réplica).

6 - Daí que, não sendo à recorrente reconhecida pelo senhorio a qualidade de actual arrendatária, não se lhe pode impor uma obrigação (pagar rendas) que apenas sobre o detentor de tal posição impende.

7 - A dar-se como assente (?) a validade do arrendamento nos termos em que o autor configurou a presente acção, então a obrigação de pagar as rendas recairia sobre a ré, Auto Sofá - que, nos termos da petição inicial, é a única entidade reconhecida pelo autor como legítima arrendatária (cf. os artigos 4.º, 13.º e 15.º da réplica).

8 - Sendo controversos os termos que assumiu a relação locatícia estabelecida entre as partes, o que foi levado à base instrutória dos presentes autos, nomeadamente por indefinição quanto à identidade do actual arrendatário e actual montante das rendas, não é possível impor a qualquer das rés uma obrigação (pagamento de rendas) sem previamente se apurar quem possui legitimidade para suportar tal obrigação e qual o actual montante mensal da renda.

9 - Por outro lado, na sua defesa, a recorrente veio alegar factos que colocam em causa o direito que o autor se arroga de receber rendas, nomeadamente por ter sido este que a dispensou do respectivo pagamento (artigo 13.º da contestação) e ainda porque se recusou a dar quitação (artigo 31.º da contestação).

10 - Assim sendo, é inaceitável que o arrendatário, não tendo pago por razões unicamente imputáveis ao senhorio, esteja obrigado a ir pagar ou depositar, com indemnização, as rendas em questão.

11 - É que o incidente previsto no artigo 58.º do RAU, 'porque é de uma nova acção - incidental embora - que se trata, ao arrendatário está aberta a possibilidade de se opor ao seu senhorio do mesmo modo e nos exactos termos em que se lhe oporia numa acção autónoma' (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 1995, in Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1995, vol. 3.º, p. 59).

12 - Aliás, o entendimento do despacho recorrido viola as disposições dos artigos 2.º, 9.º, alínea b), 13.º, 18.º e 20.º, n.os 1 e 4, da lei fundamental, colidindo directamente contra princípios constitucionais, como o do Estado de direito democrático e os princípios da igualdade, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva."

Por Acórdão de 14 de Novembro de 2002, este Tribunal da Relação negou provimento ao agravo, desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:

"III - Temos, portanto, que, na situação em presença, o autor pretende, através do incidente a que se reporta o artigo 58.º do RAU, obter o despejo imediato das fracções objecto do contrato de arrendamento, invocado como causa de pedir na acção em que o aludido incidente foi deduzido.

Com efeito, do indicado normativo da codificação locatícia urbana decorre que, durante a pendência de qualquer acção de despejo que haja sido instaurada, devem continuar a ser pagas ou depositadas as rendas devidas, constituindo a omissão de tal pagamento fundamento para a dedução de uma nova acção, agora de natureza incidental, a qual é enxertada na acção principal, independentemente de, nesta, ser idêntica ou diversa a causa de pedir que haja sido aduzida pelo senhorio, como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento celebrado.

Na verdade, a obrigação de pagamento da renda convencionada ou fixada, imposta ao locatário como contrapartida da obrigação que impende sobre o locador de proporcionar àquele o gozo da coisa, constitui um dos requisitos do contrato de locação em geral - artigos 1022.º e 1038.º, alínea a), do Código Civil - e, na concreta situação em apreço, do contrato de arrendamento urbano - artigos 1.º e 8.º, n.º 1, alínea c), do RAU -, requisito esse, aliás, representativo do sinalagma funcional em que se desdobra o negócio jurídico bilateral em que foram intervenientes senhorio e inquilino - v. Das Obrigações em Geral, do Prof. Antunes Varela, 8.ª ed., vol. I, p. 396.

Temos, pois, que, no aludido normativo locatício - artigo 58.º do RAU -, aliás analogamente ao já antecedentemente estatuído no artigo 979.º do Código de Processo Civil de 1961, consagra-se a atribuição ao senhorio, e no decurso da tramitação de uma qualquer acção de despejo pelo mesmo instaurada, da possibilidade de utilização da faculdade de obtenção daquele desiderato por via incidental, desde que se verifique a existência cumulativa de dois pressupostos fundamentais, traduzidos na falta de pagamento pelo inquilino das rendas devidas pela ocupação e pelo uso do imóvel e na circunstância de tais rendas se terem vencido na pendência da lide - n.º 2 daquele artigo 58.º e Código Civil Anotado, dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, 4.ª ed., vol. II, p. 586.

Com efeito, salvo convenção em contrário, no domínio do arrendamento urbano, há lugar ao vencimento das rendas locatícias no 1.º dia útil do mês do calendário gregoriano imediatamente anterior àquele a que as mesmas digam respeito - artigo 20.º do RAU -, donde, portanto, decorre que, para que possa haver lugar a rendas vencidas no decurso de uma acção de despejo, se torna necessário, do ponto de vista do obrigado ao pagamento daquelas - arrendatário -, que se verifique a existência de um arrendamento pelo mesmo não impugnado na acção instaurada, impugnação essa respeitante quer quanto ao conteúdo do objecto do contrato quer quanto à titularidade do direito, relativamente àquele que se arroga, para o recebimento das referidas rendas, a assunção da qualidade de senhorio - Arrendamento Urbano, do conselheiro Aragão Seia, 6.ª ed., p. 367.

Na verdade, a consagração por via legislativa do referido despejo incidental constitui 'a única forma de evitar que alguém possa, gratuitamente, desfrutar de imóveis durante o longo período que pode levar à conclusão de um despejo e numa situação que já não seria reparada por nenhuma condenação em indemnização ou em rendas vencidas sempre que o despejado não tivesse bens bastantes' n.º 11 do preâmbulo do Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro.

Por outro lado, confinando-se a tramitação processual do aludido incidente à petição do senhorio e à resposta do arrendatário, o único meio de defesa de que este pode lançar mão a fim de obviar ao decretamento do despejo imediato do arrendado encontra-se limitado à alegação do pagamento ou do depósito do quantitativo invocado pelo senhorio como encontrando-se em dívida - artigo 58.º, n.º 3, do RAU -, já que a alegação de quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas da efectivação do atempado pagamento pelo arrendatário das rendas vencidas na pendência da acção, inclusive a mora accipiendi do senhorio - Boletim do Ministério da Justiça, n.º 484, p. 355 -, tem como necessário pressuposto da sua relevância a possibilidade de produção de prova sobre tais factos, possibilidade essa, porém, que se não coaduna com os meios probatórios estabelecidos pelo legislador relativamente a tal procedimento incidental.

Com efeito, a prova a produzir, tendente à caducidade do despejo peticionado pelo senhorio, embora pelo legislador haja sido consagrada a sua efectivação por qualquer meio - artigo 58.º, n.º 3, do RAU e Novo Regime do Arrendamento Urbano, do Prof. Menezes Cordeiro e Dr. Francisco Fraga, p. 105 -, contrariamente, aliás, ao que se dispunha no artigo 979.º, n.º 2, do Código de Processo Civil quanto à exclusividade da prova do pagamento das rendas vencidas no decurso de a acção ter de revestir a forma de documento, reconduz-se, todavia, e em última análise, apenas àquela prova documental.

Assim, e desde logo, se não sofre dúvidas que a prova do pagamento ou do depósito das rendas em mora resulta, necessariamente, do competente recibo ou do duplicado da guia do respectivo depósito bancário, por outro lado, a obrigatoriedade legal de a apresentação da prova daqueles indicados factos extintivos do direito peticionado ter de acompanhar a resposta do arrendatário - artigo 58.º, n.º 3, do RAU - constitui factor manifestamente obstaculizante de que sobre os mesmos possa ser produzido qualquer outro meio de prova, com excepção, a priori, da confissão extrajudicial do senhorio, a qual, porém, tem igualmente de revestir a forma escrita, dado que a antecedentemente referenciada simplificação processual dos actos que integram o incidente em apreço não se compadece com a possibilidade de poder ter lugar a confissão judicial artigos 352.º, 355.º e 364.º, n.º 2, do Código Civil.

Temos, portanto, e em síntese, que, caso não seja feita, documentalmente, e pelo arrendatário, a prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da acção, tem, óbvia e necessariamente, de ser decretado o despejo incidental imediato, requerido pelo senhorio.

Ora, na situação que nos vem presente para decisão, mostra-se aceite pelos respectivos sujeitos passivos processuais - ré e interveniente - que as fracções que o autor ora pretende ver despejadas, por falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção por si instaurada, foram objecto de arrendamento para comércio de mobiliário, não tendo sido objecto de qualquer impugnação quer a titularidade da qualidade de senhorio por aquele invocada quer a existência de qualquer vício susceptível de constituir factor limitativo do pleno uso e fruição do arrendado por parte da interveniente que na lide se arroga a qualidade de arrendatária.

Temos, portanto, que, encontrando-se a recorrente a ocupar o locado, não vislumbramos a que título, e com que fundamento legal, possa aquela questionar a obrigação de se eximir ao pagamento da retribuição correspondente à aludida disponibilidade de uso do mesmo durante o período de pendência da acção de despejo, já que, impendendo tal obrigação, como já anteriormente foi referido, das normas em vigor para o contrato de arrendamento, nestas não foi consagrada qualquer norma susceptível de, nas circunstâncias descritas, isentar o arrendatário do pagamento da renda devida.

Por outro lado, a já 'estafada e comum' alegação de inconstitucionalidade de qualquer norma que não sirva os interesses da parte vencida, também, e em nosso entender, no caso em apreço, não colhe qualquer acolhimento.

Com efeito, a recorrente alegou a inconstitucionalidade do artigo 58.º do RAU, quando interpretado no sentido de a defesa por parte do arrendatário se restringir apenas à prova documental, alegação essa que se torna, inclusive, incompreensível na situação vertente, uma vez que, tendo a mesma referido que, a partir de Setembro de 2000, 'não procedeu a qualquer pagamento adicional ao autor' artigos 20.º e 32.º da contestação de fls. 46 e seguintes -, não vislumbramos como poderia ser objecto de prova testemunhal a ocorrência de um facto - pagamento das rendas vencidas na pendência da acção -, aliás o único em causa no incidente em apreço, que a própria recorrente afirma não se ter verificado.

Todavia, ainda que o direito de defesa revista reconhecimento expresso de índole constitucional, no âmbito do processo criminal - artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa -, e, de natureza implícita, no domínio do processo civil - artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa -, tal direito, que tem como necessário pressuposto o chamamento do réu a juízo - artigo 3.º, n.º 1, do Código de Processo Civil -, concretiza-se, relativamente àquele, no conhecimento efectivo do processo instaurado, na concessão de um prazo suficientemente amplo para a dedução de oposição e no tempero da rigidez das preclusões e cominações decorrentes da falta de contestação - Introdução ao Processo Civil, do Prof. Lebre de Freitas, p. 83 -, matérias estas das quais se encontra manifestamente afastada a que se relaciona com os meios probatórios admissíveis, na fase processual da instrução, quanto aos factos alegados pelas partes intervenientes na lide.

Na verdade, a opção do legislador comum por determinado meio de prova em detrimento de outro não configura que tal opção seja violadora das garantias de defesa daquele a quem incumbe a prova do facto em causa, antes sim constituindo um meio de garantia e certeza do tribunal quanto ao cumprimento ou incumprimento de determinada obrigação por parte daquele sobre quem impenda a produção de tal meio de prova, encontrando-se, portanto, em íntima correlação com uma clara e nítida intenção da entidade legiferante de permitir ao órgão judicial a prolação de uma decisão que constitua a efectiva concretização da correcta e inquestionável solução do direito em litígio.

Improcedem, pois, as conclusões da agravante.

IV - Porém, ainda que, por mero exercício de raciocínio, pudesse colher qualquer acolhimento a tese da recorrente quanto à preterição na decisão impugnada dos meios probatórios que são legalmente admissíveis no incidente deduzido, sempre, porém, lhe não assistiria qualquer razão no que respeita à decidida restituição imediata do arrendado ao autor.

Com efeito, à data da outorga do contrato de arrendamento invocado na acção - 15 de Novembro de 1995 -, encontrava-se em vigor a primitiva redacção do artigo 7.º do RAU, em cujo n.º 2 se estatuía a obrigatoriedade de redução a escritura pública dos arrendamentos para o exercício do comércio - alínea b) e artigo 80.º, n.º 2, alínea l), do Código do Notariado.

E, se é certo que tal imposição legal foi abolida pelo Decreto-Lei 64 A/2000, de 22 de Abril, o qual determinou a substituição da exigência daquele documento autêntico por mero documento escrito - n.º 1 do citado artigo 7.º do RAU -, a referida alteração, todavia, é irrelevante relativamente aos contratos que, embora celebrados em momento anterior, se mantinham em plena vigência à data da entrada em vigor da modificação ocorrida quanto à forma a observar na sua celebração.

Tal inaplicabilidade resulta do facto de a lei nova, referente à forma a observar na celebração dos negócios jurídicos, ter o seu âmbito de aplicação circunscrito às situações jurídicas que venham a constituir-se após a sua entrada em vigor, daí decorrendo a inalterabilidade das imposições legais que se mostravam exigíveis à data da constituição das relações jurídicas já existentes artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, Código Civil Anotado, dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, 4.ª ed., vol. I, p. 61, e Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, do Prof. Baptista Machado, pp. 65, 66, 69 e 70.

Assim, e uma vez que a celebração do contrato de arrendamento entre o autor e a ré teve lugar por escrito particular, datado de 15 de Novembro de 1995, ou seja, já no domínio da vigência do RAU - 1995 -, sempre, igualmente, lhe será inaplicável o disposto no artigo 6.º do diploma preambular do Decreto-Lei 321-B/90, pelo que, consequentemente, a inobservância da forma à data legalmente estabelecida para a celebração dos contratos de arrendamento destinados a fim comercial tem como directa e imediata consequência a nulidade do referido negócio jurídico - artigo 220.º do Código Civil.

Por outro lado, encontra-se também apurado nos autos que a ré procedeu ao trespasse à interveniente, e ora recorrente, do estabelecimento comercial instalado nas fracções objecto do contrato de arrendamento celebrado entre o autor e aquela trespassante.

Ora, em caso de ocorrência de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial, que pode definir-se como sendo o contrato mediante o qual o arrendatário transmite para outrem, a título definitivo, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial no mesmo instalado, transmissão essa que, normal e habitualmente, engloba o respectivo direito ao arrendamento - v. Arrendamento Urbano, do conselheiro Aragão Seia, 6.ª ed., p. 646, e Sobre a Transferência da Posição do Arrendatário no Caso de Trespasse, do Prof. Rui Alarcão, pp. 36 e 38 -, se, por um lado, a transmissão por parte do trespassante para o trespassário da posição de arrendatário de que aquele era titular não se encontra condicionada à autorização do respectivo senhorio - artigo 115.º, n.º 1, do RAU -, por outro lado, é incontroverso que a titularidade daquele direito de uso e fruição apenas pode ser transmitida por quem do mesmo seja titular, já que nemo transferre potest quam ipse habet.

Temos, portanto, que, carecendo a aludida ré da qualidade de arrendatária, esta não poderia intervir no trespasse do aludido direito ao arrendamento celebrado com a interveniente, e ora recorrente, procedendo à transmissão de um direito de que não era titular, pelo que, não constando dos autos que aquele direito haja sido excluído do negócio jurídico celebrado, e sendo este presuntivamente oneroso, já que do conteúdo das peças processuais juntas aos autos não resulta a gratuitidade do referido contrato, no que respeita àquela indicada transmissão, tal contrato terá de considerar-se como inquinado de um vício de invalidade, do tipo nulidade.

Com efeito, no que respeita aos contratos onerosos em que haja lugar à alienação de bens e relativamente aos quais inexista regulamentação legal específica, como ocorre, v. g., no trespasse, aos mesmos são aplicáveis as normas relativas ao contrato de compra e venda - artigo 939.º do Código Civil.

Assim, carecendo a trespassante de legitimidade para a alienação do direito ao arrendamento referente ao estabelecimento objecto do referido contrato, por se tratar de um bem do qual não era titular, configurando, portanto, e em relação àquele, a natureza de um bem alheio, tal contrato é nulo - artigo 892.º do Código Civil -, nulidade essa de conhecimento oficioso pelo tribunal, a todo o tempo - artigo 286.º do Código Civil e pp. 263 do vol. I e p. 185 do vol. II da obra citada dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela.

Ora, do conhecimento oficioso pelo tribunal da referida nulidade, e uma vez que foram alegados pelo autor factos tendentes à obtenção da entrega do arrendado, sempre teria de haver lugar à restituição deste àquele - artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil e assento 4/95, in Diário da República, 1.ª série-A, n.º 114, de 17 de Maio de 1995 -, face à nulidade do arrendamento celebrado com a trespassante e à ineficácia do trespasse relativamente ao senhorio - p. 185 do vol. II do Código Civil Anotado, dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, e Do Contrato de Compra e Venda, do Dr. Baptista Lopes, p. 141 -, sem prejuízo, contudo, da responsabilidade da trespassária pelo ressarcimento ao autor das contrapartidas pecuniárias correspondentes ao período temporal em que deteve, e detém, o gozo e a fruição do imóvel em causa.

Temos, pois, que, nada obstaculizava, antes impunha, que o Sr. Juiz, no despacho saneador, tivesse procedido à restituição das aludidas fracções ao autor, sem prejuízo do prosseguimento da acção para apuramento dos quantitativos em dívida peticionados pelo senhorio, mas, não tendo sido seguido tal caminho, e, dada a procedência do requerido despejo incidental, também, no momento presente, já se não justifica que tal decisão de índole substantiva, consubstanciada naquela indicada entrega, seja agora decretada.

V - Perante o exposto, decide-se negar provimento ao recurso interposto, com a consequente integral manutenção do despacho agravado."

A interveniente EURODIVAN - Artigos para o Lar, Lda., interpôs, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), recurso para este Tribunal Constitucional do referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), na interpretação, acolhida na decisão recorrida, segundo a qual o arrendatário, na resposta ao incidente de despejo imediato, "apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósitos das rendas", não lhe sendo "permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas e impeditivas do pagamento", considerando a recorrente violados os princípios do Estado de direito democrático [artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição da República Portuguesa - CRP], da igualdade (artigo 13.º da CRP), da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º da CRP) e do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP).

No Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:

"1 - A interpretação da norma do artigo 58.º do RAU no sentido de que o arrendatário apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósito das rendas respectivas, não lhe sendo permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do pagamento, viola princípios fundamentais da Constituição da República Portuguesa, designadamente o princípio do Estado de direito [artigos 2.º e 9.º, alínea b), da CRP], o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), o princípio da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º da CRP) e o princípio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional (artigo 20.º da CRP).

2 - Acresce que o entendimento sufragado naquela douta decisão constitui fundamento de incidente de ilegalidade perante o Tribunal Constitucional, uma vez que a decisão em crise consagrou o acolhimento de interpretação normativa impugnada por vício de ilegalidade [artigo 280.º, n.º 2, alínea d), da CRP].

3 - De facto, a douta decisão recorrida fez incorrecta aplicação legal do disposto no artigo 58.º do RAU, contrariando o entendimento que a jurisprudência e a doutrina vêm seguindo (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 1998, in Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, vol. 2.º, p. 81, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 351, pp. 368 e 369, o Acórdão da Relação do Porto de 17 de Maio de 1994, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 437, p. 577, o Acórdão da Relação de Lisboa de 18 de Janeiro de 1983, in Colectânea de Jurisprudência, 1983, t. I, pp. 102 e 103, o Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Junho de 1979, in Jurisprudência das Relações, 15.º, p. 580, Pais de Sousa, Extinção do Arrendamento Urbano, 2.ª ed., pp. 437 e segs., Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 4.ª ed., Almedina, pp. 306 e 307, Pais de Sousa, Cardona Ferreira e Lemos Jorge, Arrendamento Urbano, Notas Práticas, Rei dos Livros, p. 200).

4 - Perante a actual redacção do artigo 58.º do RAU, não mais é aceitável o entendimento nos termos do qual a única defesa relevante que o arrendatário pode produzir é que pagou ou que depositou a renda a que o senhorio se refere.

5 - É que da redacção do artigo 58.º do RAU resulta que este artigo pressupõe que as rendas devem ser pagas, e não o foram.

6 - Conforme refere Aragão Seia (Arrendamento Urbano, p. 306), 'só pode falar-se em rendas vencidas na pendência da acção se esta tiver subjacente um arrendamento válido, que não é posto de qualquer modo em questão pelo réu ou se este não põe em causa o direito que o autor se arroga de receber rendas'.

7 - Ora é precisamente este o caso dos presentes autos.

8 - Na verdade, por um lado, é o próprio autor (locador) que, desde logo nos termos em que configurou a acção, põe em causa a validade do arrendamento em relação à aqui recorrente EURODIVAN, não a reconhecendo como actual legítima arrendatária, sustentando expressamente que o trespasse realizado é ineficaz em relação a si (cf. os artigos 4.º, 13.º, 14.º e 15.º da réplica).

9 - Por outro lado, a recorrente também colocou em causa o direito que o autor se arroga de receber rendas, nomeadamente alegando que foi este que a dispensou do respectivo pagamento na sequência de contrato-promessa de compra e venda (artigo 13.º da contestação) e ainda porque o autor se recusou a dar quitação de pagamentos efectuados (artigo 31.º da contestação).

10 - Assim sendo, sendo controversos os termos que assume a relação locatícia estabelecida entre as partes, mormente por indefinição quanto à identidade do actual arrendatário, não é possível impor a nenhuma das rés (EURODIVAN e Auto Sofá) uma obrigação (de pagamento ou depósito de rendas) sem previamente se apurar, em definitivo, quem possui legitimidade para suportar tal obrigação.

11 - Aliás, nos presentes autos é igualmente controvertida a questão de saber qual o montante da renda actual (cf. os quesitos 3.º, 4.º, 5.º, 8.º, 13.º e 17.º da base instrutória), pelo que, por maioria de razão, não se afigura legítimo exigir a qualquer uma das rés o pagamento de rendas e indemnizações cujo montante não é possível liquidar.

12 - Em qualquer caso, a decisão recorrida enferma de vício de inconstitucionalidade material por desconformidade e violação concreta das normas e dos princípios constitucionais supra-referidos.

13 - De facto, do princípio do Estado de direito, consagrado em termos gerais no artigo 2.º da CRP, decorre a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito - garantia da via judiciária (artigo 20.º, n.º 1, da CRP).

14 - Na concretização desse princípio, a Constituição da República Portuguesa contém alguns 'subprincípios' e normas designados por garantias gerais de procedimento e de processo, de entre os quais avultam a garantia de um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP) e o princípio da igualdade processual das partes (artigos 13.º e 20.º, n.º 1, da CRP).

15 - Por outro lado, do princípio da garantia da via judiciária (artigo 20.º da CRP) decorre uma imposição directamente dirigida ao legislador no sentido de conferir operatividade prática à defesa de direitos, designadamente por via da consideração de um direito subjectivo público destinado a assegurar ao cidadão uma posição jurídica subjectiva adequada cuja violação lhe permite exigir protecção jurídica.

16 - A douta decisão que considerou que, no âmbito do incidente previsto no artigo 58.º do RAU, a aqui recorrente 'apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósito das rendas respectivas', não lhe sendo 'permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do pagamento' consagra uma restrição inaceitável e que colide directamente com o disposto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

17 - Na verdade, restringir os meios de defesa ao dispor do arrendatário, no âmbito do incidente previsto no artigo 58.º do RAU, 'a pagar ou a depositar rendas', constitui uma violação clara da norma constitucional contida no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

18 - A sufragar aquele entendimento, ver-se-ia comprimida de modo inadmissível, injusto e desproporcionado (e por isso, inconstitucional) uma das mais significativas garantias constitucionais de um Estado de direito consagradas na CRP, como sejam a garantia do processo equitativo e o princípio da igualdade processual das partes, supra-referidos.

19 - É, pois, violador da equidade e do princípio da igualdade das partes restringir, no âmbito do incidente do artigo 58.º do RAU, o leque de opções de defesa processual admitidas a uma das partes em termos distintos daqueles que são admitidos em termos gerais processuais.

20 - De igual modo, a douta decisão recorrida, na interpretação que acolheu da referida norma do RAU, colide com o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) - princípio estruturante do sistema constitucional global -, designadamente com a garantia de igualdade processual das partes em litígio (artigo 20.º, n.º 1, da CRP)."

O recorrido contra-alegou, preconizando o improvimento do recurso e a condenação da recorrente como litigante de má fé.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

2 - Fundamentação. - 2.1 - A primeira questão que, no âmbito do presente recurso, poderia suscitar-se respeita à utilidade do conhecimento do seu objecto, atentas as considerações tecidas no n.º IV do acórdão recorrido, em que se desenvolve um outro fundamento para o imediato decretamento do despejo das fracções em causa: a nulidade, por falta de escritura pública, do contrato de arrendamento para exercício de comércio celebrado com a ré Auto Sofá e a consequente nulidade, por falta de legitimidade da transmitente, do trespasse para a interveniente EURODIVAN.

Sabido que o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica que é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele vier a ser efectuado na decisão recorrida, a existência de um outro fundamento desta decisão, insusceptível de ser afectado pelo eventual provimento do recurso de constitucionalidade, justifica o não conhecimento deste recurso.

Porém, no presente caso, apesar das aludidas considerações sobre as nulidades do primitivo contrato de arrendamento e do trespasse, o certo é que o acórdão recorrido acaba por não as assumir como fundamento autónomo da decisão de improvimento do recurso de agravo. O que nele se consigna é que o juiz de 1.ª instância, no despacho saneador, poderia ter logo decretado a restituição do local, com base nas ditas nulidades contratuais, prosseguindo a lide para apuramento das quantias em dívida ao autor; porém - conclui o acórdão - "não tendo sido seguido tal caminho [pelo juiz de 1.ª instância], e, dada a procedência do requerido despejo incidental, também, no momento presente, já se não justifica que tal decisão de índole substantiva, consubstanciada naquela indicada entrega, seja agora decretada".

Neste contexto, não se pode considerar que a decisão contida no acórdão recorrido assenta também num segundo fundamento autónomo, pelo que persiste utilidade no conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.

2.2 - Dispunha o artigo 979.º do Código de Processo Civil, no âmbito da regulamentação da acção de despejo:

"1 - Se o réu deixar de pagar rendas vencidas na pendência da acção, pode o autor requerer, por esse motivo, que se proceda imediatamente ao despejo.

2 - Ouvido o arrendatário, se este não provar, por documento, que fez o pagamento ou o depósito, é logo ordenado o despejo.

3 - ..."

Esta estatuição foi substituída pelo artigo 58.º do RAU, ora em causa, nos termos do qual:

"1 - Na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.

2 - O senhorio pode requerer o despejo imediato com base no não cumprimento do disposto no número anterior, sendo ouvido o arrendatário.

3 - O direito a pedir o despejo imediato nos termos deste preceito caduca quando o arrendatário, até ao termo do prazo para a sua resposta, pague ou deposite as rendas em mora e a importância de indemnização devida e disso faça prova, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que serão contadas a final."

A formulação genérica do preceito parece indiciar a sua aplicabilidade sempre que ocorra falta de pagamento de rendas na pendência de uma acção de despejo, seja qual for o fundamento desta (falta de pagamento de rendas ou qualquer outro) e independentemente das questões litigiosas no seu âmbito suscitadas, mas esse entendimento - sufragado no acórdão recorrido - não tem sido sempre seguido, quer na doutrina quer na jurisprudência.

Como assinalava Jorge Alberto Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 7.ª ed., Coimbra, 2003, p. 382): "Só se pode falar em rendas vencidas na pendência da acção se esta tiver subjacente um arrendamento válido, que não é posto de qualquer modo em questão pelo réu ou se este não põe em causa a qualidade de senhorio que o autor se arroga para receber as rendas."

A nível jurisprudencial - quer face ao artigo 979.º do CPC quer já na vigência do artigo 58.º do RAU - também se tem entendido que a providência em causa (despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção), constituindo como que uma nova acção de despejo imediato, com base na falta de pagamento de renda, inserida ou enxertada na acção pendente, atenta a sua tramitação simples e expedita, "pressupõe que se acha assente a relação processual entre demandante e demandado: indiscutido, ou tornado líquido, que ao demandante assiste o direito a receber uma renda mensal do demandado, se este se absteve de a pagar no decurso da acção, o preceito em análise [então ainda o artigo 979.º, n.º 2, do CPC] permite restabelecer prontamente a ordem jurídica desse modo ofendida; já não, porém, quando precisamente se discute se aquele que se arroga o direito a recebê-las está ou não realmente na situação jurídica de poder exigi-lo; nessa última hipótese, não há que decretar o despejo com base neste preceito" (Acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de Junho de 1969, Jurisprudência das Relações, 15.º, p. 580). Entendimento reiterado no Acórdão, da mesma Relação, de 19 de Janeiro de 1989 (Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, t. 1, p. 112), segundo o qual "o despejo imediato por falta de pagamento ou depósito de rendas na pendência da acção pressupõe estar assente a relação processual onde é proferido" e "tal não sucede se o réu suscitar a questão da ilegitimidade do autor e esta se mantém em aberto" (no caso, o réu suscitara a questão da ilegitimidade do autor, sustentando que o senhorio não era ele, mas a sua ex-mulher; mantendo-se esta questão em aberto à data da suscitação do incidente, entendeu-se não ser aplicável o incidente de despejo imediato).

Já na vigência do artigo 58.º do RAU, o Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 1998, processo 197/98 (Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, t. 2, p. 81; texto integral disponível em www.dgsi.pt/jstj), sustentou que só na hipótese de mora do locatário aquele preceito prevê que, para evitar o despejo imediato, ele tenha de fazer prova de ter pago ou depositado as rendas em dívida e a indemnização respectiva, pois que, havendo mora do senhorio, tem de se aceitar que o inquilino se defenda de um eventual pedido incidental de despejo imediato com a simples invocação dessa mora e seja admitido a prová-la, não tendo a prova a produzir de ser apenas documental.

Numerosa jurisprudência das Relações tem também sublinhado que o incidente de despejo imediato pressupõe que se mostre assente, na acção em que ele se enxerta, não só a existência de um contrato de arrendamento válido mas também que autor e réu são efectivamente as partes no contrato e que nenhum litígio persiste quanto, por exemplo, ao montante da renda, à mora do locador ou ao incumprimento, por parte deste, de qualquer dever contratual, que fosse susceptível de não tornar líquida e incontroversa a mora do locatário no pagamento das rendas vencidas na pendência da acção. Só perante situações em que não existe controvérsia quanto ao dever de o réu pagar certa renda ao autor, por força de contrato de arrendamento, é que seria aceitável que, face a incumprimento dessa obrigação na pendência da acção de despejo e formulação, pelo autor, de pedido de despejo imediato, a possibilidade de defesa do réu fosse restringida à prova do pagamento ou depósito das rendas em dívida.

O Tribunal da Relação de Lisboa (www.dgsi.pt/jtrl), por exemplo, considerou inaplicável o incidente quando se mantém em aberto a questão de saber quem é o locatário (Acórdão de 4 de Fevereiro de 1992, processo 37 901), se existe contrato de arrendamento (Acórdão de 2 de Junho de 1999, processo 71 622), se é exigível o pagamento da renda (Acórdãos de 8 de Março de 2001, processo 110 012, e de 19 de Junho de 2001, processo 32 537) ou se foi legal a actualização da renda efectuada pelo senhorio (Acórdão de 30 de Abril de 2002, processo 24 357).

O Tribunal da Relação do Porto (www.dgsi.pt/jtrp) entendeu não poder ser decretado o despejo imediato em casos em que persiste controvérsia sobre se o demandado mantém a qualidade de inquilino [Acórdãos de 14 de Fevereiro de 1991, processo 409 737, de 25 de Fevereiro de 1997, processo 9 621 498, de 1 de Abril de 1997, processo 97 200 008 (este sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 466, p. 587), e de 5 de Janeiro de 1999, processo 9 820 943], sobre o efectivo vencimento das rendas reclamadas (Acórdão de 22 de Junho de 1992, processo 9 230 318), sobre o incumprimento pelo senhorio do dever de assegurar ao inquilino o gozo do local arrendado (Acórdão de 17 de Maio de 1994, processo 9 311 416), sobre o direito do autor a receber do demandado as rendas reclamadas (Acórdãos de 10 de Abril de 1997, processo 9 730 093, de 30 de Junho de 1997, processo 9 651 415, de 12 de Maio de 1998, processo 9 820 329, de 14 de Março de 2000, processo 20 145, de 3 de Abril de 2001, processo 120 328, e de 20 de Maio de 2002, processo 250 216), sobre a existência de mora do locador (Acórdãos de 10 de Julho de 1997, processo 9 520 204, e de 6 de Julho de 2001, processo 150 768) e do locatário (Acórdão de 19 de Junho de 2001, processo 120 165), sobre a existência de acordo segundo o qual os réus pagariam as rendas quando pudessem e iriam entregando quantias para serem imputadas na liquidação das rendas vencidas, começando pelas mais antigas (Acórdão de 24 de Novembro de 1997, processo 9 750 679), sobre o direito do inquilino a efectuar o depósito de apenas 30% do montante da renda, nos termos do artigo 18.º do RAU, para reembolso das despesas efectuadas com obras por ele executadas ao abrigo do precedente artigo 16.º (Acórdão de 2 de Dezembro de 1997, processo 965 283), sobre a existência de acordo no sentido de não pagamento de rendas a partir de certa data como modo de ressarcir prejuízos sofridos pelo arrendatário, só sendo reactivado o pagamento das rendas após a feitura de certas obras pelo senhorio (Acórdão de 15 de Junho de 1998, processo 9 850 631) ou sobre a validade do contrato de arrendamento (Acórdãos de 11 de Outubro de 2004, processo 454 472, e de 2 de Dezembro de 2004, processo 436 441).

Também o Tribunal da Relação de Coimbra (www.dgsi.pt/jtrc), no Acórdão de 2 de Novembro de 1999, processo 294/99, entendeu que, porque o incidente previsto no artigo 58.º do RAU é um incidente autónomo, com cariz de uma acção nova, enxertada na acção de despejo e independente em relação a esta, "ao arrendatário está aberta a possibilidade de se opor ao seu senhorio do mesmo modo em que se lhe oporia numa acção autónoma, designadamente esgrimindo as excepções que lhe poderia opor em tal acção, como, por exemplo, a ilegitimidade, a cláusula cum potuerit ou a exceptio non adimpleti ou non rite adimpleti contractus"; o Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão de 6 de Março de 1997, processo 1201/95 (sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 465, p. 663), decidiu que "não pode ser ordenado aquele despejo imediato enquanto não estiver decidida a excepção de ilegitimidade invocada pelo réu na contestação, em que alega não ter a condição de arrendatário"; e o Tribunal da Relação de Guimarães (www.dgsi.pt/jtrg), no Acórdão de 4 de Fevereiro de 2004, processo 2387/03-1, considerando que "o direito de o senhorio obter o despejo imediato do locado com fundamento na falta de pagamento ou depósito das rendas vencidas no decurso da acção não é uma prerrogativa absoluta que sempre lhe assiste no caso de, numa acção de despejo, se constatar que o arrendatário não demonstra ter pago a renda invocada pelo demandante", pois "para que esta medida possa ser accionada necessário se torna ter como certas a validade do contrato e a certeza de que as rendas em análise são devidas ao senhorio", decidiu que "se a própria renda ou o seu exacto montante estiverem em litígio na acção, essa vicissitude faz com que já não se esteja no enquadramento da disciplina estatuída no artigo 58.º do RAU".

Não compete ao Tribunal Constitucional, no âmbito dos recursos de constitucionalidade para ele interpostos, tomar posição sobre qual a interpretação do direito ordinário que considera mais correcta, mas a enunciação da corrente jurisprudencial que restringe a aplicabilidade do incidente de despejo imediato, previsto no artigo 58.º do RAU, às situações em que não persiste, na acção de despejo, controvérsia quer quanto à existência de um contrato de arrendamento válido, quer quanto à qualidade de locador e locatário de autor e réu, quer quanto à exigibilidade e valor das rendas não pagas na pendência de acção, permite compreender que, nessas situações, possa vir a ser considerada constitucionalmente tolerável a restrição dos meios de defesa do réu ao pagamento ou depósito das rendas em dívida, mas que idêntica solução já não seja de acolher em situações em que se encontra questionada, por qualquer fundamento, o próprio dever de efectuar pagamento de rendas na pendência da acção.

É esta última a situação dos presentes autos, em que, como se viu, para além de se encontrar questionada a qualidade de arrendatária quer da ré Auto Sofá (por ela própria) quer da interveniente EURODIVAN (pelo autor), esta invoca a existência de um acordo (contrato-promessa de compra e venda das fracções em causa), celebrado com o autor, distinto do contrato de arrendamento, acordo esse que seria o título que legitimaria a sua ocupação do local e que incluiria cláusula que a dispensava do pagamento de rendas, sendo os valores que fosse entregando ao autor imputados no pagamento do preço de compra das fracções. Trata-se, como se relatou, de matéria controvertida, que foi levada à base instrutória (quesitos 14.º a 21.º).

A questão que constitui objecto do presente recurso consiste, assim, na constitucionalidade da interpretação do artigo 58.º do RAU segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.

2.3 - A recorrente alega que a interpretação normativa impugnada viola os princípios do Estado de direito democrático [artigos 2.º e 9.º, alínea b), da CRP], da igualdade (artigo 13.º da CRP), da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º da CRP) e do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP).

Entende-se, porém, que o parâmetro constitucional mais pertinente se centra no princípio da proibição da indefesa, que decorre, em primeira linha, do princípio do contraditório, a que se deve subordinar todo o processo, uma vez iniciado. Como refere Carlos Lopes do Rego ("Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime de citação em processo civil", Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 835-859): "A garantia da via judiciária - ínsita no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos - envolve não apenas a atribuição aos interessados legítimos do direito de acção judicial, destinado a efectivar todas as situações juridicamente relevantes que o direito substantivo lhes outorgue, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão constitucional de 1997) a regra do 'processo equitativo', expressamente consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional", sendo do princípio do contraditório que "decorre, em primeira linha, a regra fundamental da proibição da indefesa".

Este Tribunal, no Acórdão 335/95, teve oportunidade de densificar o sentido desta regra, ao consignar:

"7 - O direito de defesa do demandado é indiscutivelmente um direito de natureza processual que está ínsito no direito de acesso aos tribunais, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição.

Quando este preceito estatui que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, é manifesto que tanto abrange os demandantes que recorrem aos tribunais para fazer valer as suas pretensões, como os demandados que ficam sujeitos à jurisdição do tribunal da causa e que têm o direito de se opor a tais pretensões. Como estabelece o n.º 1 do artigo 103.º da Grundgesetz alemã, 'todos têm o direito a ser ouvidos em juízo' (v. também o artigo 24.º da Constituição italiana).

Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição anglo-americana) de garantir que cada um dessas partes deva ser chamada a dizer de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga-se a todas as outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo nos processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria execução ou à penhora.

Como escreveu Manuel de Andrade, a estruturação 'dialéctica ou polémica do processo teria partido do contraste dos interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões [...] para o esclarecimento da verdade. É tal a sua vantagem - seu rendimento - que as leis a consagram mesmo onde repelem ou cerceiam o princípio dispositivo [...]. Espera-se que, também para os efeitos do processo, da discussão nasça luz; que as partes (ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz, mais sereno mas mais distante dos factos e menos activo, dificilmente seria capaz de descobrir por si [...]' (Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista por Herculano Esteves, Coimbra, 1979, p. 379)."

E no Acórdão 473/94:

"2 - A Constituição acolhe e define no artigo 2.º o princípio do Estado de direito democrático, individualizando depois no artigo 20.º, n.º 1, como um dos seus subprincípios concretizadores, o direito de acesso aos tribunais.

Este direito inclui, desde logo, no seu âmbito normativo, o direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada.

Mas, para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se, no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; c) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional, se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal.

Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual "a proibição da 'indefesa', que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses" (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 82 e 83).

Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, caracterizando o Acórdão 86/88, Diário da República, 2.ª série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais como sendo, 'entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 364)'."

Fazendo aplicação destas considerações ao caso ora em análise, surge, de forma ostensiva, como uma restrição constitucionalmente intolerável do direito de defesa a limitação, no incidente de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência de acção de despejo, das possibilidades de defesa do requerido à alegação e prova de que, até ao termo do prazo para a sua resposta, procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização. Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não serem autor e ou réu os verdadeiros locador e ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local). No presente caso, em que, para além da controvérsia sobre a qualidade de locatária da primitiva ré, a interveniente (ora recorrente) sustenta o seu direito de ocupação do local em contrato-promessa de compra e venda que teria celebrado com o autor, com consequente inexistência do dever de pagamento de rendas, sendo as entregas de valor feitas imputadas no pagamento do preço de compra, questão que se encontrava ainda pendente quando foram proferidas as decisões das instâncias ora em causa, é óbvia a desadequação e inefectividade do único meio de defesa que foi reconhecido à recorrente: a prova do pagamento ou depósito das rendas pretensamente em falta, acompanhada da indemnização devida.

Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes nem a efectividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da CRP.

3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:

a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida; e, consequentemente,

b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2005. - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1465877.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1990-10-15 - Decreto-Lei 321-B/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Aprova o regime do arrendamento urbano.

  • Tem documento Em vigor 1995-05-17 - Assento 4/95 - Supremo Tribunal de Justiça

    QUANDO O TRIBUNAL CONHECER OFICIOSAMENTE DA NULIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO INVOCADO NO PRESSUPOSTO DA SUA VALIDADE, E SE NA ACÇÃO TIVEREM SIDO FIXADOS OS NECESSARIOS FACTOS MATERIAIS, DEVE A PARTE SER CONDENADA NA RESTITUIÇÃO DO RECEBIDO, COM FUNDAMENTO NO NUMERO 1 DO ARTIGO 289 DO CODIGO CIVIL, - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE NULIDADE E DA ANULAÇÃO - . PROCESSO NUMERO 85202/94 - PRIMEIRA SECÇÃO.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

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