Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 3/99, de 10 de Julho

Partilhar:

Sumário

Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto Lei 224/84, de 6 de Julho, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatível, sobre a mesma coisa. (Proc.º 1050/98 - 2.ª Secção)

Texto do documento

Acórdão 3/99

Processo 1050/98 - 2.ª Secção. - Acordam em pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:

Maria Fernanda de Jesus Contente Felício e marido, Joaquim Roldão Felício, deduziram contra o Banco Nacional Ultramarino, S. A., embargos de terceiro.

Alegaram, em síntese:

São donos da fracção autónoma designada pela letra K, correspondente ao rés-do-chão, B, do prédio sito na Rua de Cesário Verde, 12, Costa da Caparica, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º 0042/070185 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2691;

Adquiriram a fracção por escritura pública de 22 de Junho de 1987;

Só vieram a registar a aquisição em 10 de Setembro de 1996;

A dita fracção foi penhorada em 9 de Março de 1995 e a penhora foi registada provisoriamente, por dúvidas, em 8 de Novembro de 1995, sendo o registo convertido em definitivo em 15 de Julho de 1996.

Pediram, consequentemente, que os embargos fossem recebidos e julgados provados e procedentes, dando-se sem efeito a penhora ofensiva do seu direito.

Os embargos foram recebidos e contestados, prosseguindo os autos até ao despacho saneador sentença. Deram-se como assentes os factos alegados pelos embargantes e acima resumidos, uma vez que se consideraram provados no processo pelos competentes documentos autênticos, cuja autenticidade o embargado não pôs em causa. Naquele despacho foram os embargos julgados totalmente improcedentes, mantendo-se a validade da penhora, com base nos seguintes fundamentos:

«De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.

A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do CRP.

'Terceiros', para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito arredado por facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente (v.

Acórdão, com força obrigatória geral, do STJ n.º 15/97, de 20 de Maio, in Diário da República, 1.ª série, de 4 de Julho de 1997).

Este conceito amplo de 'terceiro' era já o defendido por vasta doutrina e jurisprudência (v., por todos, o referido acórdão) e o mais consentâneo com a finalidade do registo (v. artigo 1.º do CRP).

Do exposto concluo que o embargado é terceiro (para efeitos do disposto no artigo 5.º do CRP), pelo que o direito não registado dos embargantes não lhe é oponível.» Recorreram os embargantes e, nas suas alegações de recurso, solicitaram a subida directa do recurso a este Supremo, nos termos do artigo 725.º do Código de Processo Civil (CPC), facto que não mereceu oposição por parte do recorrido.

Concluíram, deste modo, as alegações recursivas:

«1 - Diz a súmula do acórdão uniformizador da jurisprudência invocado:

'Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito arredado por um facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.' 2 - O acórdão supõe que há um direito registado que, por isso, não deve ser arredado por facto jurídico, ainda que anterior, mas não registado ou registado posteriormente, sendo este o seu entendimento correcto, pela sua súmula perante o caso concreto que o provocou.

3 - No caso dos presentes embargos a situação é diferente, pois aqui há um contrato de compra de fracção, feita pelos embargantes, não registada oportunamente, isto é, antes da sua penhora, embora o registo da penhora seja anterior ao registo daquela compra.

4 - A penhora, diligência judicial no âmbito da execução, não confere qualquer direito, não constitui direito a favor do exequente, constituindo um ónus, mas não o direito que o acórdão supõe.

5 - Por outro lado, a compra da fracção transfere a propriedade dela para os embargantes por efeito do contrato [artigo 879.º, alínea a), do CC], não sendo o registo predial constitutivo.

6 - Não havendo qualquer direito resultante da penhora, não sendo esta um direito, não se verifica o pressuposto: direito registado de que fala o acórdão, susceptível de ser arredado pela compra anterior, não registada oportunamente, feita pelos embargantes.

7 - A decisão recorrida faz errada aplicação do acórdão uniformizador, ao supor que há um direito registado oponível à compra da fracção pelos embargantes e consequente aquisição da propriedade.

8 - Por outro lado, a sentença violou os citados dispositivos do CC: artigo 408.º, n.º 1, e artigo 879.º, alínea a), pois não contemplou o facto da transferência da propriedade a favor dos embargantes por força do contrato da compra e venda, independentemente do registo.

9 - Os embargantes, ora recorrentes, têm a posição de terceiros, ex vi do artigo 351.º, n.º 1, do CPC, não são parte na causa.

10 - À execução estão sujeitos apenas os bens do devedor - artigo 821.º do CPC, sendo a venda judicial uma venda forçada efectuada pelo Estado que, assim, se substitui ao dono da coisa objecto de penhora, e, nos termos do artigo 892.º, é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar e, uma vez que o imóvel penhorado não pertence ao património do executado (pertence aos embargantes), o Estado carece de legitimidade para efectuar a venda e, então, a venda é nula, nulidade que é de conhecimento oficioso.

11 - Não deve o tribunal colocar-se na posição incómoda de praticar acto da venda nula e, mantendo-se a penhora, propondo-se vender a fracção, o tribunal a quo viola os citados dispositivos do n.º 1 do artigo 351.º e do artigo 851.º do CPC e do artigo 892.º do CC.

12 - Caso a penhora se mantenha, os embargantes - cujo direito de propriedade sobre a fracção está provado documentalmente - terão de percorrer o complicado ou, pelo menos, mais demorado caminho do protesto, anulação da venda, reivindicação, etc., para obterem o resultado substancial que nos embargos se pretende e que no processo de embargos pode ser obtido com segurança, mandando o princípio da economia processual, subjacente ao artigo 351.º, n.º 1, citado, que os embargos sejam julgados procedentes e levantada a penhora e também por aqui este artigo se mostra violado pela sentença recorrida.

13 - Tanto bastará para que a sentença recorrida seja revogada, julgando-se procedentes os embargos e levantada a penhora.

14 - Acresce que ao Estado compete garantir a efectivação dos direitos fundamentais dos cidadãos (artigo 2.º da Constituição da República) e o direito à propriedade privada é garantido pela Constituição (artigo 62.º) e tem dignidade constitucional, nesta medida tendo natureza análoga aos direitos fundamentais (artigo 17.º).

15 - Quando o Estado penhora, mantém a penhora, e depois, substituindo-se ao devedor, vende o bem penhorado que sabe ser de terceiro (os ora embargantes), apesar de o artigo 851.º do CPC dizer que só os bens do devedor respondem pelas dívidas, viola os citados dispositivos da Constituição (artigos 2.º, 62.º e 17.º) porque então estamos perante uma nova forma de privação forçada da propriedade, privação que não se esgota nas figuras da requisição e de expropriação referidas no n.º 2 do artigo 62.º da Constituição e a sentença recorrida não contemplou estes textos da Constituição, violando-os.

16 - Caso se considere que o acórdão uniformizador em referência é aplicável ao caso, então também, na súmula, ele não contempla os artigos 2.º, 62.º e 17.º da Constituição, nos mesmos termos referidos com relação à sentença recorrida, violando-os.

17 - Conclusões anteriores levam a que, caso se entenda aplicável aqui o acórdão uniformizador em referência, se considere que é viável a sua revisão e substituição por outro acórdão que, na uniformização da jurisprudência, fixe o conceito tradicional de terceiros, único capaz de assegurar a protecção do direito de propriedade privada garantida na Constituição e então a alteração do acórdão uniformizador deverá ser no sentido de que a expressão 'terceiros' para efeitos do registo predial tem o alcance restrito tradicional, de adquirentes, do mesmo autor, de direitos incompatíveis sobre certa coisa.

18 - A possibilidade de revisão do acórdão uniformizador, a pedido dos interessados, está prevista no n.º 2 do artigo 732.º do CPC e sublinhada no preâmbulo do Decreto-Lei 329-A/95, de 18 de Agosto.

19 - Finalmente, a título acessório, invoca-se a nulidade derivada do facto de a sentença recorrida ser omissa quanto à posse dos embargantes e seus factos alegados - omissão de questão que o Tribunal devia conhecer - artigo 668.º, n.º 1, do CPC e que aqui pode ser invocada - artigo 722.º, n.º 3, do mesmo Código, nulidade que deve ser declarada, com as consequências legais.

20 - No presente recurso só há questões de direito a decidir e, considerando isto, requerem, ao abrigo do artigo 725.º, n.º 1, do CPC, que o presente recurso seja enviado directamente ao Supremo Tribunal de Justiça.

21 - Requerem também que, se for entendido que o acórdão uniformizador em referência é aqui aplicável e que é viável a sua substituição por outro, o julgamento se faça com intervenção do plenário das secções cíveis - cf.

artigo 732.º-A do CPC.» Em contra-alegações, o recorrido pronuncia-se pela manutenção do decidido.

Por despacho de fls. 68 e 69, o Exmo. Juiz reconheceu haver omissão de pronúncia e supriu a nulidade, pronunciando-se sobre a matéria em questão, mas mantendo, na íntegra, a parte decisória da sentença.

O recurso foi admitido para ser processado como revista, nos termos do artigo 725.º, n.º 5, do CPC. Remetidos os autos ao Exmo. Conselheiro Presidente, a fim de ajuizar da conveniência de julgamento ampliado, para eventual alteração do acórdão unificador vigente, obteve-se decisão no sentido de se viabilizar a eventual revisão da jurisprudência.

Nos termos do artigo 732.º-B, n.º 1, do CPC, os autos foram ao Ministério Público para emissão de parecer. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto concluiu do seguinte modo:

«Face ao exposto, somos de parecer que, como resultado do julgamento ampliado do presente recurso de revista, se deverá decidir, além do mais, pela manutenção e confirmação da jurisprudência uniformizada através do Acórdão deste Supremo Tribunal datado de 20 de Maio de 1997, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 4 de Julho de 1997, bem como no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, pp. 88 e segs.» Corridos os vistos, cumpre decidir.

Objecto do recurso:

a) Inaplicabilidade do acórdão unificador vigente ao caso presente;

b) Responsabilidade apenas dos bens do devedor;

c) Nulidade da venda de bens alheios;

d) Acção de reivindicação;

e) Inconstitucionalidade da forma de privação da propriedade;

f) Inconstitucionalidade do próprio acórdão unificador;

g) Revisibilidade do referido acórdão unificador;

h) Omissão de pronúncia.

Emerge dos autos a situação fáctica já acima arrolada e que se resume no seguinte:

Os recorrentes compraram uma fracção autónoma e não a registaram;

O recorrido, credor do vendedor da fracção, obteve a penhora desta e registou-a;

A referida compra só depois foi registada.

Consequências. - Para a análise da questão fundamental, objecto do recurso, que se situa no âmbito do conceito de terceiro para efeitos de registo, vamos mencionar, em primeiro lugar, duas posições básicas contrastantes sobre a matéria em causa e, em seguida, procuraremos tomar a posição reputada mais consentânea com a ortodoxia jurídica actual. Alinha em tese próxima da tradicional Orlando de Carvalho e, com reservas, no encalço da tese dissidente adoptada no Acórdão unificador de jurisprudência de 20 de Maio de 1997 (ver nota 1), Carvalho Fernandes.

I - Posição de Orlando de Carvalho (ver nota 2). - (alfa)) Pressupostos:

O direito português é, nos termos do artigo 408.º do Código Civil, um sistema rigorosamente de título, na medida em que não só não incorpora um modo no título, mas também não acolhe a regra «posse vale título». É, assim, um sistema rigorosamente causal e, em princípio, consensual. Pelo que é indispensável uma publicidade suficiente para afastar os enormes riscos para o público, donde a importância do princípio da publicidade como compensador da causalidade e consensualidade, salvaguardado por um ónus de registo, a cargo dos conservadores do registo predial.

O registo predial português é um registo:

De aquisições ou de mutações (ver nota 3);

Declarativo (ver nota 4);

Facultativo (ver nota 5).

(beta)) Bases do sistema:

Emerge o carácter declarativo: a verdade material não substitui a registal ou tabular, mantendo-se as duas verdades, cada uma com o seu regime e esfera específicos.

Citando-se Coviello: «a transcrição é uma forma externa que não exerce nenhuma influência sobre a substância do negócio: se este é nulo ou anulável, fica tal como era mesmo depois de transcrito. Aquela não sana os vícios do título, não cria direitos, apenas os conserva. Havendo colisão entre o direito fundado num título válido mas não transcrito, e um título transcrito mas nulo ou anulável por razões de forma ou de substância, é sempre o primeiro que terá a prevalência».

A transcrição constitui, porém, um alerta para os interessados, já que o registo proporciona três espécies de efeitos:

Efeito imediato ou automático, inerente ao registo definitivo: presunção iuris tantum da titularidade do direito, conforme o registo o define (ver nota 6);

Efeitos laterais: todos os que se produzem independentemente dos outros dois (ver nota 7);

Efeito essencial ou central: inoponibilidade a terceiros dos factos sujeitos a registo enquanto este se não fizer, acompanhada da substituição, em matéria de prevalência, da regra da prioridade da aquisição pela da prioridade da inscrição (ver nota 8).

O registo dirige-se, pois, mais à publicidade do que à plenitude da garantia, o que se reporta ao seu carácter declarativo, buscando-se a publicidade da aquisição, competindo aos interessados tomar as respectivas precauções.

O instrumento da precaução assenta em ser o registo condição de oponibilidade do direito, conforme o registo o demarcou, perante terceiros com pretensões colidentes ou contraditórias. Portanto, age acauteladamente quem regista, sob pena de consequências que sibi imputant.

Ora, sendo este o sistema português, o que devem ser terceiros para este fim? Adapta-se, em princípio, a tal situação o conceito tradicional, segundo o qual, nos termos de Manuel Andrade, terceiros são «os que do mesmo autor ou transmitente recebem sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente incompatíveis».

Isto pressupõe que o transmitente ou causante é o mesmo, pois, não o sendo, só um dos adquirentes é a domino (ver nota 9).

Assim, conclui-se que o conceito de terceiro é o delineado por Manuel Andrade, substituindo-se, porém, o adjectivo «incompatíveis» por «conflituantes». Isto para não excluir os casos de concurso de direitos reconhecidos por lei (direitos reais de garantia, direitos reais de aquisição) (ver nota 10).

E conclui este ilustre professor: «A lógica do mecanismo fica perfeitamente clara. Se A vende validamente a B, B não regista, e A vende, em seguida, a C e C regista, a venda a B, sendo embora venda a domino, perante C é como se não existisse. Por isso, a venda a C, sendo uma venda a non domino, funciona como uma venda a domino e, porque C regista, prevalece sobre a de B, fazendo o direito deste decair. O registo, mediante o efeito central, cobre a ilegitimidade do tradens que resulta da alienação feita a B: ou seja, que resulta de uma anterior disposição válida, ao invés da tutela da boa fé, que só permite cobrir a ilegitimidade do tradens (o vício suprível é sempre este), mas que resulta de uma anterior disposição inválida.» II - Posição do acórdão referido e de Carvalho Fernandes (ver nota 11). - Foram os seguintes a deliberação jurisprudencial unificadora e o teor do respectivo aresto, actualmente em vigor: «Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.» Sua fundamentação:

«Transferindo-se a propriedade da fracção predial em causa para o embargante, por mero efeito do contrato de compra e venda, nos termos dos artigos 408.º, n.º 1, e 879.º, alínea a), do Código Civil, dir-se-ia que a posterior penhora de tal fracção em execução instaurada contra o vendedor é ineficaz em relação ao comprador, de todo estranho ao processo executivo.

As coisas não podem, porém, ser vistas com esta simplicidade. Há que considerar, no caso, as regras do registo predial.

A transmissão da titularidade do direito de propriedade é apenas um efeito essencial do contrato de compra e venda. Simplesmente, a eficácia não pode ser vista somente num plano interno (entre vendedor e comprador, ou seus herdeiros), mas também num plano exterior (em relação a terceiros). E neste plano há que tomar em conta os princípios do registo predial.

A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo - artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Código do Registo Predial.

Como o está igualmente a penhora - alínea m) do n.º 1 do mesmo artigo 2.º Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo - artigo 5.º, n.º 1, do citado Código do Registo Predial.

Assim, pretendendo-se que a eficácia do contrato de compra e venda de bens imóveis não fique confinada ao plano interno (artigo 4.º, n.º 1, do Código do Registo Predial), há que o levar ao registo, pois este é pressuposto da sua eficácia relativamente a terceiros.

Enquanto o acto não figurar no registo, o alienante aparece, em relação a terceiros, como titular do direito que transferiu por mero efeito do contrato de alienação.

O que deve, porém, entender-se por terceiros para efeitos do registo predial? Num conceito mais restrito, terceiros são apenas as pessoas que, relativamente a determinado acto de alienação, adquirem do mesmo autor ou transmitente direitos total ou parcialmente incompatíveis. Trata-se da definição de Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 19, considerando-se apenas a hipótese da dupla alienação do mesmo direito real.

Não é, porém, exacto que só possa falar-se de terceiros quando o transmitente ou alienante seja comum.

Como é referido por Oliveira Ascensão, Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, pp. 29 e 30, citado no Acórdão deste Supremo de 18 de Maio de 1994, in Colectânea de Jurisprudência, ano II, t.

2.º, p. 113, 'parece-nos seguro que semelhante concepção [a concepção restrita] é incompatível com dados actuais da lei sobre registo. Porque existem hoje textos categóricos a estabelecer a aquisição por meio de registo, em termos que não têm já nada a ver com as hipóteses de dupla disposição de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa.

Essas hipóteses são a da aquisição de um direito em consequência da disposição realizada pelo titular aparente, por força de registo formalmente inválido [hoje o n.º 2 do artigo 17.º] e a da aquisição de um direito de invalidade substancial, que vem prevista no Código Civil [é feita aqui referência ao artigo 291.º desse Código].

Assim sendo, o conceito de terceiros tem de ser amplo, de modo a abranger outras situações que não somente a dupla transmissão do mesmo direito'.

Terceiros, como referem Antunes Varela e Henrique Mesquita, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127.º, p. 20, 'são não só aqueles que adquiram do mesmo alienante direitos incompatíveis mas também aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos actos jurídicos (penhora, arresto, hipoteca judicial, etc.) de que tais direitos resultam'.

Este entendimento é também o defendido por Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.º, p. 165, quando escreve: 'Pode dizer-se que, se um prédio for comprado a determinado vendedor e for penhorado em execução contra este vendedor, o comprador e o penhorante são terceiros: o penhorante é terceiro em relação à aquisição feita pelo comprador, e este é terceiro em relação à penhora, pois os direitos do comprador e do penhorante são incompatíveis entre si e derivam do mesmo autor.' E, de seguida, acrescenta o mesmo professor: 'A noção de terceiro em registo predial é a que resulta da função do registo, do fim tido em vista pela lei ao sujeitar o acto a registo, e, pretendendo a lei assegurar a terceiros que o mesmo autor não dispôs da coisa ou não a onerou senão nos termos que constarem do registo, esta intenção legal é aplicável também ao caso da penhora, já que o credor que fez penhorar a coisa carece de saber se esta se encontra, ou não, livre e na propriedade do executado.' Defendendo-se este conceito amplo de terceiros, para efeitos de registo predial, pronunciaram-se Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., n.º 4 do artigo 819.º, e Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., p. 161.

Só este conceito amplo de terceiros tem em devida conta os fins do registo e a eficácia dos actos que devam ser registados.

Na verdade, se o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (cf. artigo 11.º do Código do Registo Predial), tão digno de tutela é aquele que adquire um direito com a intervenção do titular inscrito (compra e venda, troca, doação, etc.) como aquele a quem a lei permite obter um registo sobre o mesmo prédio sem essa intervenção (credor que regista uma penhora, hipoteca judicial, etc.).

No caso que nos ocupa, o credor embargado e o embargante são terceiros.

Por assim ser, e porque a compra efectuada pelo embargante não foi levada ao registo antes de a penhora ter sido registada, é aquela ineficaz em relação a esta, devendo a execução prosseguir os seus termos.

Não importa apurar se o credor exequente agiu de boa ou má fé ao nomear à penhora a fracção predial em causa. É que a eficácia do registo é independente da boa ou má fé de quem regista.

Como ensinaram Antunes Varela e Henrique Mesquita, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127.º, p. 23: 'o registo destina-se a facilitar e a conferir segurança ao tráfico imobiliário, garantindo aos interessados que, sobre os bens a que aquele instituto se aplica, não existem outros direitos senão os que o registo documenta e publicita. Os direitos não inscritos no registo devem ser tratados como direitos "clandestinos", que não produzem quaisquer efeitos contra terceiros.

Se os efeitos do registo fossem impugnáveis pelo facto de o titular inscrito ter sabido ou ter podido saber, antes de requerer a inscrição, que havia direitos incompatíveis não registados, o instituto do registo deixaria de proporcionar a segurança e a comodidade que constituem as suas finalidades principais'.» Considerações, em síntese, de Carvalho Fernandes:

A questão não se coloca exclusivamente na escolha entre duas concepções, uma ampla e outra restrita, de terceiros para efeitos de registo, mas antes na configuração de dois regimes diferentes de tutela de terceiros.

(alfa)) Caracterização do sistema do registo predial português:

Conjugação do disposto no artigo 408.º do Código Civil e no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial.

Para tal desiderato importa invocar o disposto nos artigos 7.º e 6.º do CRP.

A presunção emergente do disposto no artigo 7.º cria uma situação registal desconforme com a substantiva, mas insusceptível de ser ignorada por respeito à função consignada no artigo 1.º do CRP (ver nota 12).

Por outro lado, o princípio da prioridade contido no artigo 6.º dá prevalência ao direito primeiramente inscrito, não obstante a eventual mais-valia no aspecto substantivo.

Corolários no plano da eficácia normal consolidativa:

Efeito aquisitivo (constitutivo). Embora o disposto no citado artigo 5.º, n.º 1, não possa ser entendido em termos absolutos, pois nem sempre a eficácia externa dos actos registáveis depende do registo, é certo que, em relação a determinados terceiros, a sua eficácia não opera enquanto não forem registados. Neste sentido o registo consolida as situações jurídicas emergentes desses actos, ao assegurar-lhes eficácia interna e externa.

Este efeito opera não só quando ocorre uma dupla alienação sucessiva por alguém que é titular inscrito do direito alienado, quando o segundo adquirente inscreva antes do primeiro, mas também quando, inexistindo qualquer registo, um terceiro adquira e registe um direito de outra natureza incompatível (ver nota 13) com o negócio não inscrito. De qualquer modo, o efeito do registo é sempre aquisitivo.

Este efeito (aquisitivo), porém, não ocorre em casos de má fé (ver nota 14).

Assim, e nos termos referidos, perfilha-se o conceito amplo de terceiros.

(beta)) Noutro plano situa-se a tutela dos direitos de terceiros resultantes do disposto no artigo 291.º do Código Civil e dos artigos 17.º, n.º 2, e 124.º do CRP.

Trata-se dos casos de terceiros que adquirem de quem não tinha legitimidade para alienar, por motivo de vício substantivo ou de registo, que inquina a situação jurídica do alienante. Também, por força das referidas disposições, se pode verificar uma aquisição tabular, situação não englobada da doutrina do mencionado acórdão.

Esta é, pois, na sua essência, a posição do referido anotador.

III - Vejamos. - 1 - Os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros, com a situação específica da hipoteca (ver nota 15). Aqueles factos, porém, e salvo algumas excepções, só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo (ver nota 16). Isto na perspectiva do escopo registal essencial: dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (ver nota 17). Por isso se entende que tal publicidade constitui condição de eficácia dos actos registáveis, relativamente a terceiros.

Só que, a partir desta base teleológica, sem dúvida, de grande relevo para a tranquilidade do comércio jurídico, depara-se com inarredáveis escolhos geradores de efeitos perversos, eles próprios génese de intranquilidade e que levam à compreensão da fractura da jurisprudência e da doutrina quanto a esses efeitos. Perante a doutrina do referido aresto unificador, Isabel Pereira Mendes (ver nota 18) afirma que: «[...] está de parabéns o registo predial, porque foi substancialmente fortalecida a sua importância e dignidade no mundo do direito. Fez-se a justiça que se impunha. Dedicou-se a atenção a este assunto e evidenciou-se o valor da segurança jurídica que constitui o grande trunfo desta instituição».

Mas a que preço? 2 - Numa perspectiva conceptual assente, como se viu, fundamentalmente, na autoridade do saudoso mestre, Manuel Andrade (ver nota 19)», seguida tradicionalmente pela jurisprudência, terceiro, como se constatou, é o que adquiriu (ver nota 20), de um autor comum, direitos incompatíveis.

Para o Acórdão do STJ de 17 de Fevereiro de 1994 (ver nota 21), «terceiro é aquele que tenha a seu favor a inscrição registal dum direito e, por isso mesmo, não possa ser afectado pela produção dos efeitos de um acto que esteja fora do registo e com ele seja incompatível».

Tal conceito ultrapassa, assim, a restritividade do posicionamento tradicional. A este respeito, Antunes Varela (ver nota 22) entende que, se é certo o conceito de terceiro, para efeitos de registo predial, não abranger quem, sobre determinada coisa, adquiriu direitos incompatíveis de sujeitos diferentes, «já não é exacto que só deva falar-se de terceiros quando exista um transmitente ou alienante comum». Assim, ainda no entender deste ilustre professor, no conceito de terceiro devem incluir-se aqueles que sobre uma coisa alienada pelo seu titular «adquiram contra este, mas sem o concurso da sua vontade, direitos de natureza real através de actos permitidos por lei, em regra actos judiciais ou que assentem numa decisão judicial (ver nota 23)».

Tal posição envolve, obviamente, uma ampliação do conceito tradicional, vindo ao encontro de certezas registais, meta efectivamente desejável e indispensável para a tranquilidade dos cidadãos envolvidos no comércio imobiliário, que são milhões, já que, praticamente, quase toda a gente, durante o percurso vivencial, mais cedo ou mais tarde, se envolve em actos desta natureza.

Também Vaz Serra (ver nota 24) entendia que o penhorante é terceiro para efeitos de registo predial, tal como qualquer titular de um direito real de garantia. Assim, se entre um credor com hipoteca judicial (sujeita a registo, como é evidente) e o comprador do mesmo imóvel prevalece o direito primeiramente registado, «pela mesma razão, as alienações ou onerações sujeitas a registo e registadas depois do registo da penhora não devem prevalecer sobre o direito do penhorante que poderá ser pago pelo produto da coisa penhorada com preferência a qualquer titular de direito sobre esta registado após o registo da penhora».

3 - Sem dúvida, o acórdão unificador (assento) acima transcrito recolhe plenamente a intenção expressa no já referido artigo 1.º do CRP: publicitar a situação jurídica dos prédios, para alcançar segurança no comércio jurídico imobiliário. Essa é, porém, uma meta ideal que o presente estado legislativo não permite alcançar. É que a segurança resultante de um acto que a generalidade das pessoas não assimila bem, sobretudo desconhece, ou conhece vagamente, os efeitos da falta do registo, é contrariada pela insegurança e intranquilidade do reverso da situação: após se comprar, pagar e cumprir a formalidade, essa sim, ritologia bem assimilada e integrada no acervo cultural das populações, consubstanciada em escritura no notário, depara-se, surpreendentemente, com o objecto da compra a pertencer a outrem, por efeito (constitutivo) de um registo, com a agravante de poder perder-se o valor do preço escrupulosamente pago.

Quer dizer: a doutrina do acórdão unificador, radical e provocatória, intrinsecamente apelativa de uma esperada actuação urgente por parte do legislador, complementar-se-ia desta forma prontamente interventiva, assim se colmatando os inerentes e intoleráveis inconvenientes. O acórdão foi subscrito na convicção (ver nota 25) de que os órgãos legislativos se moveriam naquele sentido. As desvantagens desvanecer-se-iam, por exemplo, legislando-se de forma a tornar o registo obrigatório e a estabelecer-se a obrigatoriedade de imediata comunicação pelo notário ao conservador do registo predial, de que uma escritura pública acabara de ser celebrada. Já muito tempo decorreu e não se vislumbra qualquer intenção legislativa (ver nota 26). Reconhecemos, é certo, as dificuldades que sempre resultariam da falta de um cadastro predial (geométrico) devidamente elaborado e actualizado. Mesmo assim, porém, com o estabelecimento da obrigatoriedade do registo, a maior parte das questões conexionadas com o conceito de terceiro, e que emergem precisamente do processo executivo respeitante a bens anteriormente alienados, esfumar-se-iam, nomeadamente quanto a prédios urbanos (ver nota 27). Aliás, a falta de tal cadastro e os seus inerentes efeitos sempre se atenuariam com a salvaguarda do carácter presuntivo do registo (juris tantum).

4 - Deste modo, afigura-se, para já, imperativo repensar a doutrina expendida no referido aresto e considerar os seus efeitos práticos, como é o caso dos autos (ver nota 28). E depressa. Com efeito, tem-se assistido a uma autêntica corrida ao registo de penhoras e à precedente caça da inexistência de registo de escrituras públicas de transferência de propriedade, por vezes conhecendo o registador, perfeitamente, a venda anterior. Tal é evidenciado pelos inúmeros processos entrados nos tribunais, por esse país fora, e que vão chegando a este Supremo.

Nesta base há que considerar:

(alfa)) Natureza do registo predial:

Cremos ser aceitável a tese de que o registo predial não tem, no estado legislativo vigente, natureza constitutiva. Quanto a isso, mostra-se bastante explícito o teor do artigo 7.º do Código do Registo Predial:

«O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.» Trata-se de presunção legal geralmente taxada de juris tantum (ver nota 29).

Deste modo, em regra, pode ser ilidida mediante prova do contrário (ver nota 30).

(beta)) A legislação registal tende a agredir princípios fundamentais de natureza substantiva e a agressão é frontal com a adopção do conceito alargado de terceiro. Assim, no caso de negócio jurídico translativo de propriedade imobiliária, v. g., de compra e venda, o momento da aquisição ou da transferência do direito de propriedade é o da celebração da escritura que o formaliza, por via do qual a propriedade efectivamente se transfere (ver nota 31).

Portanto, o bem respectivo sai da esfera jurídica do alienante para entrar na do adquirente.

(gama)) Por outro lado, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse. Para além disso, também é certo que o registo merece da lei relevância especial, mas em que se procura definir uma situação concreta, não generalizável, como refere Carvalho Fernandes. É o caso do artigo 291.º do Código Civil e do artigo 17.º, n.º 2, do CRP (ver nota 32), que assenta nos seguintes pressupostos:

Direitos adquiridos a título oneroso;

Adquirente de boa fé;

Registo da aquisição anterior ao registo da acção de nulidade ou de anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.

Aliás, daqui pode retirar-se um argumento no sentido de que a eficácia do registo não é independente da boa ou má fé de quem regista.

(delta)) Importa chamar à colação a argumentação, em síntese, expendida no referido acórdão unificador e que ficou expressa em vários votos de vencido, exarados naquele aresto.

Assim:

a) (ver nota 33) Carácter excepcional dos citados artigos 291.º e 17.º, n.º 2.

Diogo Bártolo, in Efeitos do Registo Predial, afirma, a p. 19, «que a expressão 'só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo' não deve ser interpretada à letra porque senão estar-se-ia a legitimar, antes do registo, toda e qualquer ingerência de terceiros na esfera jurídica do verdadeiro titular do prédio, o que seria deveras estranho, dado a lei já reconhecer o direito do adquirente ainda antes do registo, como se conclui do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Código do Registo Predial» e, a p. 20, «Pretende-se, com a publicidade registral, informar os terceiros acerca das titularidades sobre os prédios, a fim de evitar que sejam feitas aquisições a quem não tenha legitimidade para alienar.

Sendo assim, parece legítimo concluir que a letra do artigo 5.º, n.º 1, apenas pretendeu proteger os terceiros que, iludidos pelo facto de não constar do registo a nova titularidade, foram negociar com a pessoa que no registo (ou fora dele) continuava a aparecer como sendo o titular do direito, apesar de já o não ser.» Orlando de Carvalho, «Terceiros para efeitos de registo», in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LXX, 1994, que considera que o registo tem como característica ser um registo de aquisições, e não de pessoas facultativo e declarativo (pp. 98 e 99).

Diz ainda este autor (p. 102): «Quem adquiriu a domino, ainda que não tenha transcrito, é sempre preferido a quem adquire a non domino, se bem que o seu título se torne público. O que importa, em suma, é realçar que terceiros são apenas os que estão em conflito entre si, o que só se verifica quando o direito de um é posto em causa pelo outro. Pressupõe isto que o transmitente ou causante é o mesmo, pois, não o sendo, só um dos adquirentes é a domino e o direito do outro, mais do que afectado pelo direito daquele, é afectado pelo não direito do seu tradens.» Alienando-se bens que não são do devedor, eles não constituem garantia comum do crédito. A presunção derivada do registo deve, pois, ser sempre refutável.

b) (ver nota 34) O exequente que nomeia bens à penhora e o seu anterior adquirente não são «terceiros», embora sujeita a registo, no caso de imóveis, a penhora não se traduz na constituição de algum direito real sobre o prédio, sendo apenas um dos actos em que se desenvolve o processo executivo ou, mais directamente, um ónus que passa a incidir sobre a coisa penhorada para satisfação dos fins da execução (ver nota 35). A ineficácia apenas se reporta aos actos posteriores à penhora, pelo que «os actos de disposição ou oneração de bens, com data anterior ao registo da penhora, prevalecem sobre esta» (P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 1.ª ed., p. 67).

Adere-se, portanto, ao conceito restrito de terceiros.

c) (ver nota 36) Aquela expressão «conceito» (de terceiro) conduz a pensar que este caso parece ser uma situação em que, por um lado, estão excessivas regras conceituais e, por outro, uma realista jurisprudência de interesses ou, mais do que isso, de valores. É que tudo consiste em viabilizar, ou não, que um bem de terceiro, sem qualquer justificação substantiva, responda por débito de outrem.

O que transfere a titularidade de um bem não é o registo, é, designadamente, o negócio de compra e venda, com a sua eficácia real [artigos 408.º e 879.º, alínea a), do Código Civil]. Tudo isto a conjugar com o carácter meramente presuntivo do direito registado, conforme se reflecte no artigo 7.º do Código do Registo Predial. A máxima suum quique tribuere continua a ser um muito relevante leit motiv da actividade jurisdicional.

d) (ver nota 37) «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os que do mesmo autor ou transmitente recebam sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente conflituantes», conforme ensina Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1960, pp.

19-20, e Orlando de Carvalho, «Terceiros para efeitos de registo», in Boletim da Faculdade de Direito, ano 70.º, 1994, pp. 97 e segs.

Continua inteiramente válida a justificação deste conceito «restrito» de terceiros para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial que foi dada por Manuel de Andrade: não existe cadastro geométrico dos prédios urbanos, o dos prédios rústicos não abrange todo o País e não é rigoroso, e o que se regista são actos de transmissão com base em título que pode ser bem pouco fiável, nomeadamente pelo que respeita aos casos de justificação judicial, justificação notarial (em que se permite que se supere o princípio do trato sucessivo) e habilitação de herdeiros.

Em consequência de o registo não ser constitutivo, pode dar-se o caso de o titular inscrito haver transmitido o seu direito a um primeiro adquirente, deixando aquele de ser titular do direito.

Isto permite que um terceiro obtenha um título (mediante justificação notarial, justificação judicial, habilitação de herdeiros - com ou sem partilha -, penhora e arrematação e, quiçá, outras) sem intervenção daquele titular inscrito. Este título é substancialmente inválido porque representa aquisição a non domino. A sua criação só é possível por o sistema ser imperfeito, por permitir a transmissão independentemente do registo.

A posse não está sujeita a registo, sendo eficaz erga omnes, independentemente dele, o que sempre prevalece sobre o registo.

Se o direito de propriedade é o rei dos direitos reais, então a posse é a rainha: aquele que pretenda o domínio de uma coisa tem de assegurar-se de ter ambos por si. É por isto que à «negligência» do primeiro adquirente que não logre obter registo prioritário se poderá opor, as mais das vezes, a «negligência» do segundo adquirente que haja descurado a posse.

5 - Deste modo, e enquanto se mantiver a legislação de que dispomos, é, pois, demasiado arriscado adoptar o referido conceito amplo. É claro que seria desejável emprestar sempre toda a segurança a um acto constante do registo, nomeadamente se efectivado por intermédio de processo judicial, mas tal não pode acontecer à custa da imolação sistemática de princípios jurídicos substantivos fundamentais. Aliás, normalmente, essa segurança existe, sempre que à venda, forçada embora, corresponde uma compra, de um mesmo transmitente. Isto sem prejuízo de a venda judicial poder ser anulada, a pedido do comprador, no quadro estabelecido no artigo 908.º do CPC, ou de não produzir efeitos, caso proceda a reivindicação de proprietário ou ocorram as outras circunstâncias mencionadas no artigo 909.º do CPC.

Pode dizer-se: quem não regista não merece protecção porque a negligência ou a ignorância devem ser sancionadas.

Aqueles atributos negativos podem reduzir-se a mera ingenuidade emergente da convicção de que todos os concidadãos agem de forma eticamente correcta, o que merece alguma compreensão. Por outro lado, se à negligência não é devida protecção, porque há-de merecê-la a diligência abelhuda, esperta, oportunista, sobretudo a de má fé (ver nota 38), intencional, dolosa? Tal diligência assume, ou poderá assumir, aspectos intoleráveis por parecer que, aceitando-a, se instiga ou se premeia a trapaça rasteira.

Afigura-se, pois, prudente e sensato, no contexto delineado, regressar ao conceito tradicional. Os males inerentes supomo-los menos gravosos dos que os da tese oposta. A mudança de posição deste Supremo, a par dos complexos trabalhos de vera arquitectura jurídica que têm sido produzidos, são factores demonstrativos do angustiante esforço no sentido de se encontrar uma plataforma correcta. Vero aporismo, esforço inglório, pois só por via legislativa, repetimo-lo, se poderá resolver satisfatoriamente o problema, de modo a afastar-se, de vez, o rol de referidos efeitos malquistos, permitindo-se que da publicidade do registo se extraiam, tanto quanto possível em plenitude, as respectivas consequências efectivamente estabilizadoras.

6 - Efeitos da posse.

Nos termos do artigo 1268.º, n.º 1, do Código Civil, «o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse».

Como é sabido, «posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real» (ver nota 39). Tal posse, mantida por certo lapso de tempo, faculta, em princípio, ao possuidor a aquisição do respectivo direito real, isto é, verifica-se o substracto genésico da usucapião (ver nota 40).

Deste modo, a posse susceptível de prevalecer contra registo anterior ao início da posse, a que o mencionado artigo 1268.º se refere, não será a que já produziu usucapione, pois que esta é uma forma concreta de aquisição originária. Por isso, porque é originária, mesmo que haja registo anterior ao início dessa posse, ele cede perante aquela forma de aquisição. Assim, a posse a que se reporta o mencionado artigo só pode ser a que, revestindo-se dos requisitos inerentes ao seu conceito (ver nota 41), entre os quais interessa, neste momento, realçar o da publicidade, ainda lhe falta capacidade aquisitiva por carência do decurso de tempo necessário.

Portanto, às excepções expressas (ver nota 42) ao princípio geral de que os factos sujeitos a resisto só produzem efeitos contra terceiros, depois da data do respectivo registo, há que acrescentar também a que resulta da posse ainda não usucapiente, mas já em exercício. Com uma diferença: no caso da usucapião, como já se disse, ela sobrepõe-se a qualquer registo, seja qual for o momento - anterior ou posterior - da sua efectivação; no caso vertente, a posse relevante, em confronto com o registo, é apenas a que se iniciou antes deste.

Justificação de tal relevância:

Como já ficou escrito, o registo predial destina-se, essencialmente, a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. Ora, a posse referida é naturalmente pública e, portanto, a segurança do comércio jurídico é inerente à própria forma de exercício. Dir-se-á (ver nota 43): conforme o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea e), do CRP, está sujeita a registo a mera posse e, portanto, ela só produz efeitos, quanto a terceiros, após a data do registo.

No caso do artigo 1268.º, se não houver registo anterior ao início da posse, existe presunção de propriedade. Logo, o titular da mera posse, mesmo registada (ver nota 44), se o for posteriormente ao início da posse a que se reporta aquele artigo, sempre ficará com o ónus de impugnar aquela presunção, demonstrando, v. g., que a sua posse já produziu usucapião. Seja como for, como numa das epígrafes seguintes constataremos, a questão, in casu, assume determinadas particularidades.

Note-se, desde já, que, mera posse, susceptível de registo é a que se encontra reconhecida por sentença passada em julgado, nos termos já referidos na nota 5. Não é, obviamente, o caso dos autos.

7 - Questão dos direitos reais de garantia.

Por força do condicionamento da eficácia, em relação a terceiros, dos factos sujeitos a registo, é evidente que, se alguém vende, sucessivamente, a duas pessoas diferentes a mesma coisa, e é o segundo adquirente quem, desconhecendo a primeira alienação, procede ao registo respectivo, prevalece esta segunda aquisição (ver nota 45), por ser esse o efeito essencial do registo. Estão em causa direitos reais da mesma natureza. Aqui, a negligência, ignorância ou ingenuidade do primeiro deve soçobrar perante a agilidade do segundo, cônscio, não só dos seus direitos como dos ónus inerentes. É sob este prisma que a primeira venda leva à constituição de um direito resolúvel, no dizer de Oliveira Ascensão (ver nota 46), cuja resolução ocorre perante a verificação do facto complexo de aquisição posterior, de boa fé, seguida de registo.

Isto, conforme já resulta do que acima ficou exarado em nota, quer a alienação seja voluntária, isto é, livremente negociada, quer coerciva, ou seja, obtida por via executiva. Efectuada a compra, por via de arrematação em hasta pública, ou por qualquer outro modo de venda judicial, este modo de alienação, na perspectiva em causa, tem, pelo menos, a mesma eficácia daqueloutra. Também aqui a prioridade do registo ultrapassa a incompatibilidade.

Situação diferente é a resultante do confronto do direito real de garantia resultante da penhora registada quando o imóvel penhorado já havia sido alienado, mas sem o subsequente registo. Aqui, o direito real de propriedade, obtido por efeito próprio da celebração da competente escritura pública, confronta-se com um direito de crédito, embora sob a protecção de um direito real (somente de garantia). Nesta situação, mesmo que o credor esteja originariamente de boa fé, isto é, ignorante de que o bem já tinha saído da esfera jurídica do devedor, manter a viabilidade executiva, quando, por via de embargos de terceiro, se denuncia a veracidade da situação, seria colocar o Estado, por via do aparelho judicial, a, deliberadamente, ratificar algo que vai necessariamente desembocar numa situação intrinsecamente ilícita, que se aproxima de subsunção criminal (ver nota 47), ao menos se for o próprio executado a indicar os bens à penhora. Assim, poderia servir-se a lex, mas não seguramente o jus.

Certo que «o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo» (ver nota 48). Não deixa, porém, de se obedecer à lei, reconhecendo, como efectivamente se reconhece, que o credor tem o direito de executar o património do devedor (ver nota 49). São ineficazes, sem prejuízo das regras do registo, e em relação ao exequente, os actos de disposição ou de oneração dos bens penhorados (ver nota 50). Dos bens penhorados, mas pertencentes ao devedor.

Com efeito, «o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado» (ver nota 51). E tão-só.

Como já se verificou, o imóvel penhorado, na caso dos autos, já havia saído do património do devedor.

Portanto, não podia garantir nenhuma das suas dívidas. Como bem alheio que é, pode o seu titular embargar de terceiro.

A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Portanto, efectuada a venda, é que os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo (ver nota 52). In casu ainda se não efectivou a venda. Nesta perspectiva, poderia dizer-se que, a conceder-se eficácia ao registo, de alguma maneira estaria a emprestar-se-lhe capacidade impeditiva de o embargante conservar o seu direito de propriedade. No entanto, é certo que ninguém pode ser privado, no todo em ou parte, daquele direito senão por via de expropriações ou requisições, mediante pagamento de indemnização (ver nota 54), sob pena de inconstitucionalidade (ver nota 53). De certo modo, estaríamos perante a figura do confisco, facto susceptível de ferir profundamente o senso comum e, portanto, de gerar grande sobressalto social (ver nota 55).

Resta acrescentar que, em casos como o presente, o exequente, perante o conteúdo do requerimento inicial de embargos e a sua eventual procedência, passa a saber que o prédio já não é do executado, cessando a sua boa fé. A má fé - conhecimento da situação jurídica de certo prédio - neutraliza o requisito da publicidade registal, tornando-o irrelevante, mesmo quando estão em causa actos da mesma natureza, por exemplo, duas alienações. Com efeito, a publicidade destina-se a dar conhecimento. Se este já existe, inútil se torna aquela. Por isso e por todos os valores acima expostos, torna-se evidente que, mesmo no caso de duas compras/vendas consumadas, com registo da segunda, esta não deve prevalecer se o segundo comprador conhecia a alienação anterior.

De tudo isto há que retirar as respectivas consequências. Analisemos, no entanto, antes disso, cada uma das conclusões que constituem o objecto do recurso.

A - Inaplicabilidade do acórdão unificador vigente ao caso presente:

1 - Entendem os recorrentes que a doutrina do referido acórdão não se aplica ao caso em apreciação porque aquele teve na base uma situação de arrematação em hasta pública já efectivada.

2 - Mesmo que assim fosse (e não será), é certo que tal doutrina envolve univocamente a hipótese em apreço, constando da sua fundamentação a referência expressa à penhora e seu registo. Daí a sua evidente aplicabilidade, se se mantivesse. Note-se que os factos e a própria dedução dos embargos ocorreram antes da vigência do aresto em crise.

B - Responsabilidade apenas dos bens do devedor:

Já acima se teceram as necessárias considerações quanto ao presente item.

C - Nulidade da venda de bens alheios:

Também neste aspecto já é possível retirar as competentes ilações, com base nas considerações já acima explanadas.

D - Acção de reivindicação:

O contexto das acções de reivindicação é o que resulta do que já se deixou afirmado, sendo certo que não se mostra pertinente mais qualquer desenvolvimento.

E - Inconstitucionalidade da forma de privação da propriedade:

Também já foi feita uma referência que se afigura bastante.

F - Inconstitucionalidade do próprio acórdão unificador:

Dada a impostação do problema e as consequências que se vão retirar, esta epígrafe perdeu interesse.

G - Revisibilidade do referido acórdão unificador:

Obviamente, os assentos hoje são sempre alteráveis e revisíveis.

H - Omissão de pronúncia:

1 - Segundo os recorrentes, a sentença seria nula por ter deixado de se pronunciar sobre uma questão posta: consequências dos factos relativos à alegação da posse por eles exercida.

2 - Tal omissão foi, porém, reconhecida pelo Exmo. Juiz prolator.

Consequentemente, foi proferido o despacho a fls. 68 e 69, a pronunciar-se sobre o assunto e a reparar a respectiva nulidade, mas, como já foi dito, manteve, na íntegra, a parte decisória da sentença recorrida.

Aliás, se decisão final dependesse dos factos alegados, certamente a sorte da acção poderia ser diferente, pois a respectiva alegação se afigura inapelavelmente deficiente quanto a factos. Na verdade, pretendendo os recorrentes afirmar a posse da fracção, limitaram-se a alegar:

«Adquirida assim (ver nota 56) a propriedade sobre a fracção autónoma, os embargantes entraram imediatamente na sua posse, aliás inerente ao direito de propriedade.» (Artigo 6.º do requerimento inicial.) E no artigo 7.º:

«E, desde então, exercem a posse sobre ela: ocuparam-na, mobilaram, ali se instalaram e dela têm o gozo e fruição.» Acrescentam no artigo 8.º:

«E averbaram a compra na repartição de finanças e na caderneta predial.» 3 - É patente a insuficiência fáctica, tendo em conta a teoria da substanciação e a exuberância de conceitos jurídicos.

Contudo - e pelo que já se disse -, a sorte da decisão não depende de tal situação, Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo (ver nota 57). No caso, não foi pedido expressamente o cancelamento do registo da penhora, limitando-se os requerentes a pedir a procedência do embargo, com as legais consequências. A jurisprudência tem, porém, justamente, entendido que tal pedido se considera implícito. É, aliás, uma legal consequência.

Nestes termos:

I) Concede-se a revista e, consequentemente, julgam-se os embargos procedentes, ordenando-se o levantamento da penhora sobre a fracção em causa e o cancelamento do respectivo registo. Custas pelo recorrido;

II) Revendo-se a doutrina do mencionado aresto de 20 de Maio de 1997, formula-se, pois, o seguinte acórdão unificador de jurisprudência:

«Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.» (nota 1) In Diário da República, 1.ª série-A, de 4 de Julho de 1997.

(nota 2) Expressa in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, n.º 70 (1994), pp. 97 e segs.

(nota 3) O que se regista são as vicissitudes do domínio, as mudanças da sua titularidade.

(nota 4) Mera condição de eficácia da aquisição, não condição da validade. Só nas hipotecas pode ser constitutivo.

(nota 5) Na medida em que a sua falta, embora possa ter consequência, não infringe nenhum dever.

(nota 6) Artigo 7.º do CRP.

(nota 7) Artigos 291.º, 435.º, 1294.º e 1295.º do CC.

(nota 8) Artigos 5.º e 6.º do CRP.

(nota 9) Esta doutrina começou a ser questionada a partir de 1960 pela posição de Gama Vieira e pela de Oliveira Ascensão e Meneses Cordeiro, com base no artigo 17.º, n.º 2, do CRP, para além da que na alínea b) abordaremos.

(nota 10) V. g., hipoteca e consignação de rendimentos.

(nota 11) Expressa na Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, Dezembro de 1997, pp. 1303 e segs.

(nota 12) Publicidade para segurança do comércio jurídico imobiliário.

(nota 13) Incompatibilidade absoluta no primeiro exemplo e relativa, no segundo.

(nota 14) Para outros, só se verifica havendo aquisição a título oneroso e de boa fé; outros só a título oneroso; outros ainda quando a incompatibilidade resulta de actos jurídicos sucessivos do mesmo alienante.

(nota 15) Artigo 4.º, n.º 2, do CRP.

(nota 16) Artigo 5.º do CRP. As excepções são: usucapião, servidões aparentes, factos relativos a bens indeterminados.

(nota 17) Artigo 1.º do CRP.

(nota 18) Citada no referido parecer do Ministério Público.

(nota 19) Teoria Geral da Relação Jurídica, II, n.º 57. No mesmo rumo, entre outros, Manuel Salvador, in Terceiros e os Efeitos dos Actos ou Contratos, p.

209.

(nota 20) Quer a aquisição resultasse de acto voluntário, quer forçado.

Exemplo: arrematação em hasta pública. Esta arrematação não é, na verdade, uma venda feita espontânea e voluntariamente pelo exequente. A determinação da sua natureza jurídica tem oscilado entre a venda feita pelo juiz em nome do Estado, no exercício da sua função jurisdicional executiva (M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 172) e o acto misto de direito privado em relação ao adquirente e de direito público quanto ao vendedor (Ans. de Castro, A Acção E. S. C. e Esp., p. 255).

De qualquer modo, o que realmente ocorre e verdadeiramente caracteriza tal venda forçada é a inerente coerção: o vendedor (executado) é obrigado a vender ao comprador (arrematante) que ofereceu o melhor preço, procurando-se dar satisfação aos créditos do exequente e eventuais reclamantes. Trata-se, porém, de uma verdadeira venda em que a propriedade passa directamente do executado para o comprador, embora por intermédio do juiz (Estado), normalmente subordinada como tal à regra nemo plus juris re aliena transferre potest quam ipse habet. Tal resulta, aliás, do disposto no artigo 909.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, assim se devendo interpretar o disposto no artigo 824.º, n.º 1, do Código Civil (BMJ, n.º 381, p. 655).

(nota 21) CJ - S., ano II, t. 1.º, p. 107.

(nota 22) Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127.º, p. 10.

(nota 23) Relembre-se o conteúdo da nota 5.

(nota 24) RLJ, ano 109.º, p. 22.

(nota 25) Foi, pelo menos, a do relator do presente acórdão.

(nota 26) Não obstante a iniciativa referida no referido parecer.

(nota 27) Como é sabido, a situação cadastral é particularmente confusa e imprecisa relativamente aos prédios rústicos.

(nota 28) E outros ainda mais explícitos. Como o seguinte também pendente neste Supremo e que, com a instância suspensa, aguarda a presente decisão: A vendeu, há anos, a B um andar que este logo pagou, escriturou a passou a habitar, mas não registou; o andar continuou registado em nome de A, que contraiu, depois, uma dívida com C. Este bem sabia que o prédio já tinha sido vendido, mas, em processo executivo, obteve penhora sobre o andar, a qual logo registou. B veio embargar de terceiro. Se não tiver êxito, A, vendedor, além de já ter recebido o preço da venda, libertar-se-á, à custa do mesmo prédio, de uma dívida. Eventualmente, se o preço da venda em hasta pública for superior ao montante do crédito, ainda vai embolsar o valor sobrante? (nota 29) V., por exemplo, o acórdão deste Supremo, in Revista, n.º 504 (processo de Ansião).

(nota 30) Artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil.

(nota 31) Artigos 1327.º, alínea a), e 408.º, n.º 1, do Código Civil e artigo 80.º, n.º 1, do Código do Notariado.

(nota 32) Para Isabel Pereira Mendes, as duas disposições completam-se e o seu campo de aplicação está intrinsecamente relacionado - Código do Registo Predial, 7.ª ed., p. 105.

(nota 33) Conselheiro Roger Lopes.

(nota 34) Conselheiro Martins Costa.

(nota 35) No acórdão unificador de jurisprudência (processo 86 931), a propósito de um conflito entre o direito de crédito de promitente-comprador, destituído de eficácia erga omnes e o direito real de terceiro adquirente da coisa, escreveu-se: «O artigo 5.º do CRP não é convocável, uma vez que o conflito não se verifica entre titulares de direitos reais, mas entre o titular de um direito real e o titular de um direito de crédito. A prevalência dada por esta norma ao que primeiro registar a aquisição pressupõe que duas ou mais pessoas já tenham adquirido, que ambas sejam titulares de direitos reais conflituantes. E não é esta a hipótese em julgamento: nesta, à data do registo da acção, o promitente-comprador ainda nada adquiriu e a questão que se coloca é a de saber se pode ou não adquirir do promitente-vendedor faltoso coisa que já é alheia a este.» O Prof. Almeida Costa produziu anotação francamente concordante, in RLJ, ano 131.º, pp.

244 e segs. Mutatis mutandis, tal posição reflecte-se no caso da penhora.

(nota 36) Conselheiro Cardona Ferreira.

(nota 37) Conselheiro Sousa Inês.

(nota 38) Integra-se no conceito de má fé o conhecimento da existência de compra e venda anterior. Há que retirar daqui consequências adequadas, pois, actualmente, tende a entender-se que a interpretação, na sua expressão concreta, não pode ignorar a máxima lex scripta, ius non scriptum, e a realização do direito é sempre «uma monodinâmica constitutivo integradora que não pode prescindir de elementos normativos translegais e transpositivos». C. Neves, RLJ, ano 130.º, p. 294.º In casu, impõe-se a sua consideração na perspectiva do jus.

(nota 39) Artigo 1251.º do CC.

(nota 40) Artigo 1287.º do CC.

(nota 41) Titulada, de boa fé, pacífica, contínua, pública, exercida em nome próprio.

(nota 42) Artigo 5.º, n.º 2, do CPC.

(nota 43) Assim o disse, o Exmo. Juiz a quo, na sua decisão.

(nota 44) Só é registável a mantida por tempo não inferior a cinco anos, de forma pacífica e pública, e reconhecida por sentença - artigo 1295.º, n.º 2, do CC.

(nota 45) Sem prejuízo, claro, da responsabilidade civil e criminal em que incorra o vendedor.

(nota 46) In Direitos Reais, p. 396 (1971).

(nota 47) Artigos 217.º e seguintes do Código Penal. Estabelece-se, portanto, uma situação semelhante à referida no assento 4/98, de 5 de Novembro de 1998 (Diário da República, 1.ª série-A, de 18 de Dezembro de 1998), onde se reconheceu ser inconcebível o Estado a praticar um ilícito civil e, eventualmente, criminal, no caso de se substituir ao vendedor quando o bem em causa já estava vendido antes do registo da acção de preferência.

(nota 48) Artigo 8.º, n.º 2, do CC. É certo, porém, que, actualmente, o preceito já não deve ser encarado na perspectiva gelada de uma interpretação dogmático-catequística (cf. a citada RLJ, ano 130.º, p. 294).

(nota 49) Artigo 817.º do CC.

(nota 50) Artigo 819.º do CC.

(nota 51) Artigos 818.º e 610.º do CC.

(nota 52) N.º 2 do citado artigo 824.º (nota 53) Artigos 1308.º a 1310.º do CC.

(nota 54) Artigo 62.º da CRP.

(nota 55) É diferente a situação resultante da existência de duas alienações efectivas, ambas baseadas em actos capazes de produzirem a transferência da propriedade. Então, um dos adquirentes tem de sair prejudicado. Como se viu, por via do mecanismo registal, deve ser o primeiro por não haver registado.

(nota 56) Por escritura pública.

(nota 57) Artigo 8.º do CRP.

Lisboa, 18 de Maio de 1999. - Armando Figueira Torres Paulo (vencido) - Roger Bennett da Cunha Lopes - José Martins da Costa (votei a decisão, nos termos da declaração que junto) - António Pais de Sousa - José Miranda Gusmão de Medeiros - Agostinho Manuel Pontes Sousa Inês - Fernando da Costa Soares (vencido) - Fernando Machado Soares - Jorge Alberto Aragão Seia (faltou) - João Fernando Fernandes de Magalhães (dispensei o visto) - Ilídio Gaspar Nascimento Costa (vencido) - Rui Manuel Brandão Lopes Pinto (vencido - mantenho o conceito alargado de terceiros do acórdão uniformizador anterior, mas temperado pelo princípio da boa fé aferido ao momento do registo) - Armando Castro Tomé de Carvalho (vencido, nos termos da declaração de voto apresentada pelo Exmo. Colega Dr. Ferreira de Almeida) - João Augusto de Moura Ribeiro Coelho (vencido, pelas razões expostas pelo conselheiro Ferreira de Almeida) - José da Silva Paixão (revendo a anterior posição) - José Manuel Peixe Pelica (pese embora ter sido relator de processo onde defendi opinião diferente) - José Augusto Sacadura Garcia Marques (vencido, por aderir, no essencial, aos fundamentos que levaram à prolacção do anterior Acórdão de uniformização de jurisprudência de 20 de Maio de 1997) - Fernando João Ferreira Ramos (vencido, adiro, no essencial, à argumentação acolhida no anterior Acórdão de 20 de Maio de 1997, admitindo, no entanto, que o entendimento nele perfilhado possa ser temperado pelo recurso ao conceito de boa fé) - Joaquim Lúcio Faria Teixeira (vencido, nos termos da declaração que junto) - Fernando José Matos Pinto Monteiro - Dionísio Alves Correia - António Quirino Duarte Soares (vencido, conforme declaração que junto) - Luís António Noronha do Nascimento (voto favoravelmente o acórdão com a declaração junta) - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - Herculano Albino Valente Matos Namora - Armando Lopes de Lemos Triunfante - João José Silva Graça - Francisco António Lourenço - Armando Moita dos Santos Lourenço (faltou) - José Alberto de Azevedo Moura Cruz (vencido, conforme a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Ferreira de Almeida) - Abílio de Vasconcelos Carvalho - Joaquim José de Sousa Dinis - Abel Simões Freire - Afonso de Melo (faltou).

Declaração de voto

Entendo hoje que a posição correcta é a do Acórdão de 20 de Maio de 1997. - Ilídio Gaspar Nascimento Costa.

Declaração de voto, no processo 1050/98

Parece-me que o plenário das secções cíveis pode e deve pronunciar-se sobre o fundamento para revisão da posição assumida em anterior acórdão de uniformização de jurisprudência: trata-se de questão prévia ou pressuposto da intervenção do plenário e o tribunal competente para o julgamento é também competente para apreciação dessas questões; o despacho do Exmo. Presidente deste Tribunal, previsto no artigo 732.º-A do CPC, tem a natureza de simples decisão interlocutória, e pode invocar-se, para o efeito, o disposto nos artigos 687.º, n.º 4, e 689.º, n.º 2, do citado Código.

Por outro lado, entendo que não havia fundamento para revisão da posição assumida no Acórdão de 20 de Maio de 1997 sobre o conceito de «terceiros» para efeito do registo predial.

A lei não prevê, expressamente, os requisitos desse fundamento: não se aplica o artigo 732.º-A, n.º l, pois não se trata de «assegurar a uniformidade da jurisprudência», mas de um objectivo de algum modo oposto, na medida em que pode resultar uma alteração da jurisprudência; o n.º 2 desse artigo 732.º-A fala em «jurisprudência anteriormente firmada» e poderia discutir-se se essa expressão é equivalente às de «jurisprudência [...] fixada» ou «jurisprudência uniformizada», previstas nos n.os 4 e 6 do artigo 678.º do citado Código, sendo certo que o uso, pelo legislador, de expressões distintas significa, em princípio, a referência a realidades jurídicas diversas.

De qualquer modo, resulta do conjunto dessas disposições que o julgamento ampliado da revista, para efeito de reapreciação de «jurisprudência uniformizada», exige que ele se mostre necessário ou conveniente ou, como se diz no artigo 446.º, n.º 3, do CPP, que a jurisprudência anterior esteja «ultrapassada».

Para tanto, deverá atender-se a reacções da jurisprudência (através de declarações de voto ou de decisões dos tribunais de 1.ª ou 2.ª instâncias) ou da doutrina (pelos mais diversos meios) à posição anterior, a alterações legislativas com possível reflexo nessa posição ou a quaisquer outros factores que a possam pôr em causa; em suma, deverá ocorrer um conjunto de ponderosas circunstâncias supervenientes, não se afigurando como bastante o simples facto de, em certo momento, poder haver uma votação favorável a alteração da jurisprudência, ao contrário do que parece resultar do disposto no n.º 2 do citado artigo 732.º-A.

De outro modo, terá de admitir-se a possibilidade de sucessivas ou repetidas alterações de jurisprudência, designadamente em curtos períodos de tempo, o que se mostra contrário ao espírito ou finalidade da uniformização da jurisprudência e se traduziria em desprestígio para a administração da justiça e, em especial, para este Tribunal.

No caso presente, não se configura qualquer das aludidas circunstâncias supervenientes, tudo se resumindo aos argumentos já analisados no Acórdão de 20 de Maio de 1997, pelo que se não justificaria a revisão da jurisprudência então uniformizada.

Noto finalmente que a noção de terceiros «tem de ser depreendida da finalidade das disposições legais que sujeitam os actos a registo e que ela pode variar consoante essa finalidade» (Vaz Serra, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 97.º, p. 59, em nota).

Por isso, e porque a função das decisões judiciais não é a formulação de conceitos amplos ou genéricos, mas a resolução dos casos concretos, da parte decisória do presente acórdão deveria constar apenas que «o exequente que nomeia bens à penhora e o anterior adquirente desses bens não são terceiros para efeito do registo predial».

Nessa medida, e em coerência com a declaração de voto de vencido que juntei ao Acórdão de 20 de Maio de 1997, subscrevo a decisão. - José Martins da Costa.

Declaração de voto

Entendo hoje que a posição correcta é a do Acórdão de 20 de Maio de 1997. - Ilídio Gaspar Nascimento Costa.

Declaração de voto

Entendo que não pode nem deve alterar-se a uniformização de jurisprudência havida pelo Acórdão 15/97, de 20 de Maio de 1997.

I - Não pode alterar-se porque tal possibilidade não tem base legal nem constitucional.

Não o autoriza a simples passagem do texto do n.º 2 do artigo 732.º-A do CPC quando dispõe que o julgamento alargado deve ser sugerido pelo relator, pelos adjuntos ou pelos presidentes das secções cíveis «designadamente quando verifiquem a possibilidade de vencimento da solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada [...]».

Temos para nós que esta referência do preceito legal a jurisprudência firmada não atinge a jurisprudência uniformizada nos termos do artigo 732.º-A do CPC/97.

Em síntese, sustenta-se este ponto de vista nos seguintes argumentos:

a) Desde logo e pelo preciosismo da linguagem empregue - «jurisprudência anteriormente firmada» - é de entender que se não está a falar de «jurisprudência uniformizada»;

b) É de presumir que o legislador sabe exprimir-se e, se quisesse nesse local visar a «jurisprudência uniformizada», não se compreende que não tivesse usado essa precisa linguagem, até porque é a própria, a técnica, e a consagrada mesmo no título desse normativo - «Uniformização de jurisprudência»;

c) Outra tem de ser, pois, a realidade visada com essa expressão de «jurisprudência anteriormente fixada» e essa não pode ser outra que não seja a jurisprudência dos «assentos» firmada anteriormente à vigência deste CPC/97;

d) Aos olhos do legislador de 95 urgia retirar natureza «legislativa» aos «assentos» e a primeira e imediata medida sobre tal tomada foi a do n.º 2 do artigo 17.º do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, que os reduziu ao valor do acórdão de fixação de jurisprudência dos artigos 732.º-A e 732.º-B do CPC que aquele diploma introduz.

Mas o problema, e sobretudo porque a doutrina dos «assentos» havia sido alcançada sem a contradita das partes e, por isso, sem a possibilidade do seu contributo para o enriquecimento da construção subjacente à decisão firmada, podia não ficar resolvido de todo.

Impunha-se constitucionalizar os «assentos», isto é, impunha-se dar-lhes uma estrutura dialéctica, permitindo a reanálise da sua doutrina pela submissão àquele debate sempre que tal se mostrasse útil e juridicamente sadio. O caminho seguido foi, então, o de que se pudesse alargar a revista à jurisprudência firmada nos «assentos» sempre que no recurso, em causa agora, houvesse possibilidade de vencimento de solução jurídica oposta àquela.

O legislador de 95 ficou-se por, da doutrina dos «assentos», reter na lei uma sua observância relativa e periclitante.

É esta a leitura que se pode também fazer do preâmbulo àquele Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, quando, focando o «assento» e tão-somente este, nunca o acórdão de fixação de jurisprudência fala da imposição do princípio da sua ampla revisibilidade;

e) Certo é, pois, que aquele n.º 2 do artigo 732.º-A do CPC/97 não conduz a possibilidade do alargamento da revista à doutrina dos acórdãos de fixação de jurisprudência e, assim, no caso concreto, à do Acórdão de fixação de jurisprudência 15/97, de 20 de Maio de 1997;

f) De outro modo, o que de todo recusamos, teríamos de deixar ficar pelo absurdo, senão pelo ludíbrio, a força impositiva da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça consagrada nos artigos 678.º, n.os 4 e 6, e 754.º, n.º 2, do CPC ao estabelecerem, ou a admissibilidade sempre de recurso de decisão que não acate aquela jurisprudência fixada, ou a contenção, e proibição mesmo, de recurso que possa pôr em causa essa mesma jurisprudência fixada, e tudo para proteger a estabilidade e a observância dessa uniformização jurisprudencial do STJ.

Defender a livre modificabilidade da jurisprudência uniformizada pelo STJ é pugnar pela sua absoluta inutilidade, porquanto é sustentar que ela apenas regula o caso concreto apreciado na revista simples.

Para quê, então, a revista ampliada? Haja algum pudor jurisprudencial e, por outro lado, considere-se até que a livre modificabilidade da regulamentação jurisprudencial é que coloca os tribunais no caminho do poder legislativo, na invasão das competências dos artigos 161.º e 198.º da Constituição da República Portuguesa, afinal o que se pretendeu combater com a destruição dos «assentos»;

g) Aliás, se aquele dispositivo do n.º 2 do artigo 732.º-A do CPC/97 abrangesse os acórdãos de fixação de jurisprudência proferidos já no seu âmbito, teria de ser julgado inconstitucional. É que, então, ele viola os princípios da segurança jurídica, da protecção da confiança dos cidadãos e da separação de poderes extraíveis aqueles dos artigos 2.º e 9.º, alínea b), e definido este pelo artigo 111.º, todos da Constituição da República Portuguesa, que, pela via da afirmação do Estado de direito, garantem aos cidadãos, o primeiro e segundo, a durabilidade e permanência da ordem jurídica e a confiança na estabilidade das respectivas situações jurídicas, designadamente, a permanência e a inalterabilidade do caso julgado, como se retira de Direito Constitucional, 4.ª ed., pp. 311-312, de José Joaquim Gomes Canotilho, e, o terceiro, uma organização do Estado orientada pela eficiência da especialidade e pela abrangência da representatividade das suas funções;

h) Pondere-se ainda que só este entendimento da realidade jurídica em causa tem capacidade para estabelecer a harmonia entre todos aqueles dispositivos legais, isto é, tem possibilidade de surpreender um verdadeiro sistema jurídico, o fim último de toda a hermenêutica judicial.

II - Sempre, não deve alterar-se a uniformização de jurisprudência havida pelo Acórdão do STJ n.º 15/97, de 20 de Maio de 1997, porquanto:

A interpretação das leis e assim dos vários ramos de direito, de sobremaneira os interpenetrantes, deve fazer-se na base de que há harmonia entre eles e não a partir de pressuposições de antagonismos entre si - artigo 9.º do CC.

Igual deve ser o nosso comportamento perante os «assentos» ou perante os acórdãos de fixação jurisprudencial. Para além do mais exigem-no a própria razão de ser desse instituto e a necessidade de estabilização de um mínimo de justiça relativa.

Nessa óptica, entendo que não há necessidade de alterar a jurisprudência fixada pelo Acórdão 15/97, de 20 de Maio de 1997, na medida em que a preocupação da protecção da boa fé do adquirente, retirada da publicidade fáctica da sua aquisição conhecida pelo aproveitador da falta do respectivo registo, agora expressa no novo acórdão de fixação de jurisprudência, pode dispensar-se pelo simples funcionamento das regras do abuso de direito do artigo 334.º do CC, aliás, mesmo no âmbito da anterior fixação de jurisprudência 15/97.

Tanto bastará para evitar o atropelo das leis do registo ou o favorecimento imerecido do adquirente negligente e até enganador, ainda que às vezes inocente, dos ditos «terceiros».

De resto, a lei do registo como o Acórdão de fixação de jurisprudência 15/97 em questão não interferem na constituição ou transmissão substantivas do direito de propriedade. O seu múnus é tão-só o de regular a sua eficácia, nada mais. Se, na dinâmica desse direito, ocorreram mudanças na sua titularidade, o registo respeita-as interna e externamente se registadas, e só internamente se não registadas ou enquanto não registadas. Nesta harmonia da lei, dos diversos ramos de direito e da jurisprudência assente se encontra a prevalência da defesa da segurança do tráfego comercial, o grande sustentáculo das sociedades modernas.

É assim que, efectuada a penhora, se o bem seu objecto já antes havia sido adquirido por outrem ao executado, em tal transmissão não registada não toca aquele acto judicial. Apenas lhe cerceia uma das «potestas» em que esse direito se decompõe, o poder de disponibilidade. Apenas, protegendo o credor justamente confiante na garantia patrimonial do seu devedor, deixada à vista por esse adquirente negligente, na acomodação de todas essas leis e jurisprudência, aquele bem permanecerá afecto à sua típica e legal função, não enganosa porque publicada em registo, a da garantia comum do credor que nela confiou e lhe era legítimo confiar - artigos 601.º a 604.º do CC, artigo 5.º, n.º 1, do CRP e artigo 821.º do CPC.

Depois, a subjectivação pela boa fé, agora introduzida no novo acórdão de fixação de jurisprudência, não serve nem à objectividade do registo nem à função delimitadora da fixação de jurisprudência.

Por outro lado, o novo caso aqui trazido pelos presentes autos não coloca circunstanciação diferente da que serviu de fundamento ao referido Acórdão de fixação de jurisprudência 15/97, isto é, não ocorre alteração dos elementos de facto ou de direito que àquele presidiram.

Ainda, em salvaguarda dos princípios constitucionais acima delineados da segurança jurídica, da protecção da confiança, do respeito pelo caso julgado e da separação de poderes, consagrados nos artigos 2.º, 9.º, alínea b), e 111.º da Constituição da República Portuguesa, só aquela alteração objectiva do mundo externo poderia consentir a modificabilidade da jurisprudência uniformizada. Ora, não se verificando no caso dos autos essa alteração, como se não verifica, não é legítimo sequer tomar-se aqui o «julgamento alargado» previsto no n.º 2 do artigo 732.º-A do CPC e, menos ainda, proceder-se à modificação do referido Acórdão de fixação de jurisprudência 15/97.

Mas, sempre inconstitucional se torna a norma do n.º 2 do artigo 732.º-A do CPC por violação daqueles princípios constitucionais quando, como no caso, e pressupondo-o aplicável à jurisprudência uniformizada, não se contém nos limites daquela objectividade, além de que, e sempre, a permissibilidade do alargamento do recurso a jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito só é consentida, mesmo pelo n.º 2 do artigo 732.º-A do CPC/97, para a doutrina dos «assentos», como já vimos.

Neste alinhamento, julgaria a revista simples de harmonia com o exposto e negaria a revista alargada ao Acórdão de fixação de jurisprudência 15/97, sobredito.

Lisboa, 18 de Maio de 1999. - Lúcio Teixeira.

Declaração de voto

1 - Entendi que se deveria rever o anterior acórdão uniformizador de jurisprudência, de que foi relator o Exmo. Conselheiro Tomé de Carvalho, porque a norma ali fixada é demasiado abrangente; com base nela, deverão ser considerados terceiros, também, aqueles que adquiram de alienantes diferentes.

O conceito de terceiros não deve ter limites tão largos, pois, de outro modo, corremos o risco de criar, por via jurisprudencial, um sistema de registo constitutivo, o que não é, de todo, a intenção da lei, como é bem evidente do teor do artigo 1.º do Código do Registo Predial.

Figure-se, por exemplo, a hipótese seguinte:

A comprou um prédio ao legítimo proprietário B (e seu titular inscrito), mas não registou a aquisição;

C, por seu turno, comprou o mesmo prédio a D (que não é dono nem goza de inscrição no registo) e, apesar disso, conseguiu inscrever a aquisição (a possibilidade de inscrição, nestas circunstâncias, não é impossível, face às normas que consagram os princípios da legitimação - artigo 9.º do Código do Registo Predial - e do trato sucessivo - artigos 34.º e 35.º do mesmo Código).

Num caso assim, C, a ser considerado terceiro (e sê-lo-á, à luz do vigente acórdão uniformizador) poderá ignorar a compra efectuada por A ao legítimo dono e titular inscrito, não obstante o registo, à data em que contratou com D, lhe dizer que não era este último o dono do prédio.

Isto não pode ser.

2 - O conceito de terceiros deve ser entendido de harmonia com a função declarativa e com as finalidades de segurança do comércio imobiliário, que são reconhecidas, entre nós, ao registo predial.

Pretende-se, com o registo dos prédios, garantir a quem consulta os livros e as fichas das conservatórias que aquele que figura ali como titular ainda não alienou ou onerou o prédio.

O conceito de terceiros deve, por isso, limitar-se aos que, do mesmo titular inscrito, adquiriram direitos conflituantes (conflituantes no todo ou em parte).

Mas não só.

As mesmas função e finalidades do registo predial impõem que o conceito de terceiros se estenda àqueles cujo direito, adquirido ao abrigo da lei, sem intervenção voluntária do titular inscrito, tenha este mesmo titular como sujeito passivo (isto para abranger os casos, que são os mais frequentes, da penhora, do arresto, da hipoteca judicial sobre bens que, entretanto, o titular inscrito (contra quem aquelas diligências foram realizadas) já havia alienado, sem que o adquirente tenha registado a aquisição.

Em ambas as situações se justifica o cumprimento das ditas funções declarativa e de segurança do comércio jurídico, reconhecidas ao registo predial.

3 - Afigurou-se-me, também, que, atenta a função publicitária do registo, esta doutrina deve ser temperada pelos princípios da boa fé de maneira a que não possam ser considerados terceiros e beneficiar da regra de inoponibilidade consagrada no artigo 5.º do Código do Registo Predial, os que adquiriram o direito sabendo que o titular inscrito já havia alienado ou onerado o prédio.

O princípio da boa fé constitui uma reserva moral do sistema jurídico, que não pode ser ignorado no domínio de um direito (o direito registal) que assume, como se acaba de ver, funções substantivas, e não de mero instrumento burocrático ao serviço do direito civil.

Veja-se, a propósito, o n.º 2 do artigo 17.º do Código do Registo Predial, onde a boa fé avulta como um princípio estruturante do registo predial.

Em resumo, e com ressalva da importância que atribuo à boa fé, limitei-me a seguir o entendimento de Vaz Serra e de Antunes Varela e H. Mesquita (cf., a propósito, a anotação dos dois últimos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 126.º, pp. 384 e segs., onde citam Vaz Serra).

4 - Como, no caso do acórdão, não vem posta em causa a boa fé do exequente (dada a função publicitária do registo, a boa fé daquele que baseia, no registo, os seus actos deve presumir-se), negaria a revista, mas reformularia o acórdão uniformizador de jurisprudência nos seguintes termos:

«Terceiros, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do Código de Registo Predial, são os adquirentes, de boa fé, de direitos conflituantes, no todo ou em parte, sobre o mesmo prédio, derivados de actos jurídicos que tenham o mesmo titular inscrito como sujeito activo ou sujeito passivo.» Lisboa, 25 de Maio de 1999. - António Quirino Duarte Soares.

Declaração de voto

Voto a concepção restrita do conceito de «terceiro», aqui em discussão, nos termos propostos pelo Exmo. Conselheiro Pereira de Graça.

Defendo a concepção restrita de «terceiro» pelas razões seguintes:

1.º Estamos a importar da Alemanha a concepção ampla de «terceiro» sem atentar nas especificidades próprias que estiveram na sua origem e sem atentar na diversidade de condições sociais entre os dois países, o que nos poderá conduzir a uma colonização jurídica com efeitos sociais perversos na aplicação do acórdão uniformizador votado anteriormente sobre a matéria;

2.º Em Portugal e em França, entre outros países, o contrato de compra e venda tem eficácia real e translativa, ao contrário do que sucedia no direito romano inversamente, na Alemanha o contrato de compra e venda não tem quaisquer efeitos reais nem transmite a propriedade, tal como sucedia no direito romano;

Daqui resulta desde logo uma consequência: em Portugal e em França nunca se pensaria, inicialmente, em registar a compra e venda porque esta só por si era bastante para que a coisa passasse do vendedor para o comprador, enquanto na Alemanha a compra e venda tinha efeitos simplesmente obrigacionais que se aproximavam do nosso contrato-promessa e que nada tinham a ver com a transferência do direito real ligado à coisa vendida.

A partir daqui, a estrutura translativa dos direitos reais na Alemanha teve de ser diferente da dos países latinos; os Alemães tiveram de recriar um novo negócio que transmitisse a propriedade.

Foi o que aconteceu. E, hoje, na Alemanha temos dois actos jurídicos diferentes para transferir a propriedade sobre imóveis: um negócio causal celebrado entre vendedor e comprador que nada transfere, que não tem nenhuns efeitos reais, que apenas tem efeitos obrigacionais entre os contraentes, e um outro negócio jurídico posterior, celebrado entre as mesmas partes, totalmente abstracto e não causal, com efeitos reais, e que tem de ser imediatamente registado.

O registo, necessário para a publicidade e o efeito translativo de um acto abstracto, não causal, aparece, pois, como elemento constitutivo intrínseco da própria transferência da propriedade: se esta se transfere por contrato cuja causa se ignora (e porque se ignora, mais difícil se torna atacá-la por vícios estruturais à luz do direito), necessário se torna que o registo garanta aquilo que a abstracção de um acto não causal não pode garantir nem legitimar.

Significa isto por conseguinte que, neste campo, se desenvolveram duas orientações diferentes: os países que se desligaram da concepção romana da compra e venda e atribuíram eficácia real àquele contrato jamais concederam ao registo efeito constitutivo porque a transmissão da propriedade provinha do contrato, e não do registo; a Alemanha que - por razões peculiares - seguiu a tradição romanista da compra e venda, consagrou o registo constitutivo porque a transferência da propriedade jamais advinha da compra e venda, mas do contrato abstracto imediatamente registado (cf. Almeida e Costa, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 131.º, n.º 3893, pp. 244/246, e Isabel Pereira Mendes, Estudos sobre Registo Predial, pp. 26 e segs.);

3.º As consequências desta dicotomia de sistemas são óbvias: a Prússia (à volta da qual se fez a unificação da Alemanha) começa a organizar o cadastro da propriedade a partir do século XVII, posteriormente estendido a toda a Alemanha, já que isso era imprescindível num país onde o registo era constitutivo de direitos reais; nos países onde os contratos de alienação de imóveis tinham eficácia real e a propriedade se transmitia de imediato o cadastro da propriedade nem é pensado porque o registo é meramente enunciativo ou publicitário.

Impor o registo constitutivo, ou atribuir-lhe efeitos vinculativos similares, só faz sentido, na verdade, onde o cadastro da propriedade existe e está organizado. Esse foi, aliás, o principal argumento de Manuel de Andrade quando defendeu a concepção restrita de «terceiro» (cf. Teoria Geral da Relação Jurídica, II vol., pp. 18-20 e segs.), mais recentemente defendida também por Orlando de Carvalho (Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXX, 1994, pp. 97 e segs.).

Não há em Portugal cadastro dos prédios urbanos e o dos prédios rústicos abrange tão-só parte do território (cf. Isabel Pereira Mendes, ob. cit., p. 172);

alargar assim o conceito de «terceiro» a uma latitude tão ampla quanto aquela que foi anteriormente acolhida é contraditório, socialmente perverso, e corresponde a construir a casa pelo telhado.

Mas há também razões histórico-geográficas ligadas à existência/inexistência do cadastro de propriedade.

Fazer o cadastro na Europa continental do Norte é fácil: da Bretanha à Polónia, tudo é - salvo raras excepções - uma vasta planície. Inversamente, na Europa mediterrânica o desenho da planta cadastral é «um puzzle complicadíssimo, de fragmentos das mais variadas utilizações» com o seu cortejo de montanhas, enseadas, reentrâncias, promontórios, etc. (cf. Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, p. 11).

Portugal é um país atlântico por posição mas mediterrânico por natureza, na fórmula célebre de Pequito Rebelo citado por Orlando Ribeiro naquela obra (p.

39); e a deficiência/ausência da planta cadastral da propriedade imobiliária não foi excepção no nosso país onde se seguiu com toda a naturalidade o exemplo dos países mediterrânicos da Europa do Sul;

4.º Portugal copiou, tal como a Espanha, o sistema de registo predial germânico, rejeitando o francês (são estes os dois principais sistemas registrais europeus), mas tem um modelo de transferência imediata de propriedade nos contratos de alienação completamente diferente do modelo germânico e igual ao francês.

E este é o grande busílis de toda esta questão. Copiamos o registo predial alemão com os seus princípios estruturantes (trato sucessivo, legitimação, legalidade, identificação do prédio, etc.), mas não lhe atribuímos efeito constitutivo porque temos contratos de compra e venda com efeitos reais imediatos e automáticos; e porque a alienação de imóveis se faz por virtude do contrato, conferimos ao registo o carácter publicitário característico do modelo francês.

Nesta discrepância radicam, a meu ver, todas as dificuldades com que nos deparamos hoje na definição do conceito de «terceiro».

Já no século XIX houve tentativas para, mesmo sem cadastro predial, implementar o registo constitutivo em Portugal, coisa que o Código Civil de Seabra rejeitou definitivamente; desse tempo ficou-nos porém a regra ainda actual de que a hipoteca só é válida, mesmo entre as partes, se for registada.

Guilherme Moreira foi, mais tarde, um dos primeiros defensores do conceito alargado de «terceiro» (cf. Carlos Rodrigues, Código do Registo Predial Anotado, p. 81) seguido mais tarde por Carlos Ferreira de Almeida, O.

Ascensão e Isabel Pereira Mendes.

Mas supomos que, aqui, entra em jogo outro factor.

Os povos mediterrânicos europeus foram sempre tradicionalmente povos emigrantes e ou colonizadores.

Portugueses, Espanhóis, Franceses, Italianos, Gregos, Sírios, etc., emigraram sempre; para povos emigrantes, o registo constitutivo (ou o conceito amplo de «terceiro», sua consequência lógica) é um ónus impensável.

Quem compra e vai embora ou quem emigrou e compra quando vem apenas temporariamente e não dispõe de tempo para muita coisa, não dá ao registo o valor absoluto de constituir direitos; ademais se o cadastro da propriedade não existe ou é insuficiente esse desvalor sobre o registo acentua-se ainda mais.

Inversamente, um povo que não emigra tem o tempo mais disponível para conferir ao registo predial um valor absoluto, que contende com a certeza das coisas e a segurança negocial.

Talvez isto ajude a compreender a concepção registral constitutiva dos Alemães e a concepção publicitária que o registo predial tem tradicionalmente nos povos europeus do Sul, habituados a contratos de alienação onde a transferência da propriedade se opera de imediato como exigia a sua habitual mobilidade de movimento migratório;

5.º O conflito de interesses que aqui se desenha é evidente: de um lado o do credor que confiou na infalibilidade registral; do outro o do verdadeiro proprietário, que não tem nada que ver com o diferendo credor-devedor, mas que não registou em tempo o seu direito.

Com a tradição histórica do nosso país, o seu sistema publicitário de registo, a imperfeição do cadastro predial, os hábitos sociológicos ainda dominantes no nosso povo, entendemos que o conflito terá de ser resolvido através da concepção restrita de «terceiros» que melhor defende o proprietário - não devedor.

E entendemos assim porque os efeitos sociais da concepção restrita são bem menos perversos do que os da concepção ampla.

Escrevia Barbosa de Melo que «a ponderação das consequências constitui ainda um momento de argumentação jurídica pelo menos para todos quantos entendem - e são hoje muitos - que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida» (citado no Acórdão do STJ - Boletim, n.º 389, p. 547).

São esses efeitos práticos que para nós são decisivos por força dos factores acima descritos. Não rejeitamos a concepção ampla de «terceiro» quando o cadastro predial estiver organizado e o sistema registral for célere; nas actuais circunstâncias essa concepção vai levar à «colonização» jurídica de muitíssima gente de diversos estratos sociais do nosso país com efeitos quiçá catastróficos. - Luís António Noronha Nascimento.

Declaração de voto

Em meu entender, continua essencialmente válida - e de harmonia com os cânones da boa hermenêutica jurídica - a doutrina do aliás recente Acórdão uniformizador de jurisprudência datado de 20 de Maio de 1997, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 4 de Julho de 1997, e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, pp. 88 e segs., no sentido da consideração do conceito amplo ou abrangente da noção de terceiros para efeitos de registo predial.

Sendo embora certo possuir o registo entre nós uma eficácia meramente publicitária, que não constitutiva, não podendo assim fornecer uma absoluta e efectiva garantia da existência do direito na titularidade do registrante, deve pelo menos assegurar a qualquer interessado com legitimidade para inscrever actos no registo - nos quais haja ou não intervindo o titular inscrito - que, a ter existido esse direito, ele ainda se conserva integrado na respectiva esfera jurídica, isto é, que não foi ainda transmitido a outra pessoa - cf. Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pp. 18 e segs.

Na esteira de A. Varela e M. H. Mesquita, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 126.º, pp. 374 a 384, e ano 127.º, pp. 19 a 32, e - cuja retórica argumentativa em geral subscrevemos - não se vislumbram razões plausíveis para discriminar negativamente, para efeitos da regra do artigo 5.º, n.º 1, do CRP/84, todos aqueles que, confiando na situação publicitada através do registo e exercendo uma faculdade que a lei lhes atribui (de unilateralmente inscreverem direitos a seu favor, v. g., o registo de uma penhora, de um arresto ou uma hipoteca judicial, sem a vontade ou sem colaboração do titular inscrito), daqueles que, sobre os bens inscritos no registo, adquiram direitos com o assentimento do titular inscrito, v. g., através de negócios de aquisição derivada com ele realizados.

Assim, por exemplo, e na esteira de Vaz Serra, in RJJ, ano 103.º, p. 156, «se um prédio for comprado a determinado vendedor e for penhorado em execução contra este vendedor, o comprador e o penhorante são terceiros: o penhorante é terceiro em relação à aquisição feita pelo comprador e este é terceiro em relação à penhora, pois os direitos do comprador e do penhorante são incompatíveis entre si e derivam do mesmo autor» (sic).

Serão assim «terceiros» relativamente a determinado negócio translativo, não só aqueles que adquiram do mesmo tradens direitos incompatíveis, mas, outrossim, aqueles cujos direitos hajam sido adquiridos ao abrigo de actos jurídicos unilaterais da autoridade judicial e tenham esse transmitente como sujeito passivo.

É pois de exigir, em ambas as situações de alienação ou oneração de um dado bem, identidade de transmitente, já que só ao titular inscrito do direito transmitido assiste legitimidade - enquanto o registo não for efectuado - para realizar uma segunda alienação na medida em que a primitiva alienação, em consequência da omissão no registo, é inoponível a terceiros.

Deste modo, se A vender o mesmo prédio sucessivamente a B e a C, este é terceiro em relação a B e poderá opor-lhe a aquisição se o inscrever prioritariamente no registo; mas se a segunda alienação (a favor de C) for feita, D, C já não poderá ser considerado terceiro em relação a B, prevalecendo a aquisição por este feita, ainda que C consiga registar tal compra. E isto porque o negócio celebrado entre C e D, como venda a non domino que é, enfermará de nulidade insanável - cf. artigo 892.º, n.º 1, do CCIV/66 - cf. autores citados, ano 126.º, p. 384.

A tese proposta pelo Exmo. Conselheiro Relator posterga os princípios do registo predial e da certeza, segurança e comodidade ao mesmo intimamente associados - protecção daqueles que confiaram na aparência criada pelo registo. E isto ao arrepio das soluções adaptadas em termos de direito europeu comparado (v. g., os de raiz latino-mediterrânica), das quais se fizeram adequado eco os citados ilustres mestres coimbrãos (cf., v.

g., os artigos 2644.º do Código Civil Italiano e 3.º, n.º 1, do Decreto de 4 de Janeiro de 1955, este último no direito francês).

Com efeito, face a tal tese, os efeitos do registo seriam sempre passíveis de impugnação em caso de o titular que dele figura ter sabido, ou ter podido saber - antes de haver requerido a respectiva inscrição - que afinal havia direitos incompatíveis ainda não registados sobre o mesmo bem. O que reclamaria para o pretendente à aquisição de uma determinada propriedade imobiliária o ónus de desenvolver uma penosa actividade indagatória acerca, não só da real inscrição do prédio em nome do potencial alienante mas também da existência de outros eventuais actos de transmissão pelo mesmo alienante entretanto efectuados a favor de diferentes adquirentes. E isto ficando sempre sujeito à censura judicial sobre o não cumprimento eficaz e aturado do seu dever de diligência!...

É certo que, face ao aresto unificador supracitado, a noção ora proposta no projecto acórdão introduz, como ingrediente «temperador e moralizador», o conceito de «adquirentes de boa fé» para os fins da protecção concedida pelo artigo 5.º do CRP, de resto na peugada de certa jurisprudência francesa e ainda de alguma doutrina nacional (cf. Carvalho Fernandes, in ROA, ano 57, Dezembro de 1997, pp. 1303 e segs.).

Isto como forma de evitar considerar como «terceiros», como tal protegidos face ao conceito amplo supra-referido, os que adquiriram o direito e lograram registá-lo, apesar de cientes de que o titular inscrito já havia onerado ou transmitido esse direito a outrem que não procedeu ao respectivo registo.

Contudo não se ignora que tal ressalva - da inoponibilidade do registo restrita aos adquirentes de boa fé - poderá surtir, como efeitos práticos perversos - para além de uma indagação adicional tornada dependente sobretudo da prova testemunhal adrede produzida, com a sua consabida falta de fiabilidade -, a afectação da eficácia registral, pois muito dificilmente será concebível que aquele que adquiriu um direito e não o registou não tenda sempre a não reconhecer a prioridade do adquirente sucessivo registrante, arguindo-o de actuação de má fé ...

A eficácia do registo não deveria poder, em princípio, ficar dependente da boa ou má fé de quem regista um determinado direito ou de quem adquire um determinado bem imóvel de um mesmo transmitente.

Porém, se o «preço a pagar» pela subsistência do cerne da eficácia registral, vis a vis o conceito amplo de terceiro adoptado no Acórdão de uniformização de 20 de Maio de 1997, for o da limitação aos terceiros de boa fé da protecção conferida pelo registo, então que se introduza tal restrição.

Salvo o devido respeito, o projecto consagra uma tese tendencialmente propiciadora do casuísmo em matéria de tamanha sensibilidade, como é esta do comércio jurídico imobiliário e da iniciativa e prioridade registrais, ficando sem se saber para que serve, na prática, o registo predial e qual a sua real eficácia. O que pode surtir consequências devastadoras ao nível do investimento estrangeiro no sector do imobiliário, cujos capitais não deixarão, por certo, de procurar mercados mais «seguros»!...

E representará, sem dúvida, tal tese um drástico retrocesso em matéria de registo e em termos de certeza e segurança do comércio jurídico a ele sujeito.

Temos para nós que as soluções de jure condendo, neste domínio, caminharão no sentido do alargamento da eficácia do registo, mormente perante a chamada «globalização» económica em curso, que não no da sua restrição ou limitação fazendo apelo a ancestrais hábitos de oralidade, indocumentação e alergia ao registo no âmbito dos direitos reais.

Isto para não falar da perplexidade que certamente gerará a prolação de dois acórdãos de sentido amplamente contraditório no âmbito da mesma matéria por parte do nosso mais alto tribunal, no curto período de menos de dois anos! ... tudo ao sabor de maiorias de natureza conjuntural ...

Em suma, e para a hipótese de vingar a adopção de uma nova fórmula em alteração da já consagrada pelo citado Acórdão unificador de 20 de Maio de 1997, sugeriria, como «mal menor», e em sua substituição, a seguinte:

«Terceiros para efeitos de registo predial são todos aqueles que, tendo obtido de boa fé registo de um direito sobre determinado prédio - dimanante de acto jurídico em que haja intervindo o mesmo titular inscrito ou de acto unilateral de autoridade emitido ao abrigo da lei e que tenha esse titular como sujeito passivo - veriam esse direito ser total ou parcialmente arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado, ou registado posteriormente.» Em qualquer das hipóteses - e ao contrário da tese que fez vencimento -, negaria a revista e confirmaria, em consequência, a decisão recorrida que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelos ora recorrentes. - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1999/07/10/plain-104074.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/104074.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1995-12-12 - Decreto-Lei 329-A/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais

  • Tem documento Em vigor 1997-07-04 - Acórdão 15/97 - Supremo Tribunal de Justiça

    Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente. (Proc. nº 87159 - 1ª secção)

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1999-08-06 - Declaração de Rectificação 11/99 - Supremo Tribunal de Justiça

    Declara ter sido rectificado o Acórdão n.º 3/99, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 159, de 10 de Julho de 1999 (Processo n.º 1050/98 - 2.ªSecção).

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda