Acórdão 531/98
Processo 756/98
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I
1 - Em 8 de Julho de 1998, o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 115.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 26.º e 29.º, n.º 1, da Lei Orgânica do Regime do Referendo (Lei 15-A/98, de 3 de Abril), «a fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98, publicada em suplemento ao Diário da República, 1.ª série, de 30 de Junho, distribuído em 7 de Julho».
O Presidente da República fez acompanhar o seu requerimento de um elenco de dúvidas de constitucionalidade e de legalidade, relacionadas com a possível violação, pela proposta de referendo, do disposto no artigo 115.º, n.os 1, 3, 4, 5 e 6, da Constituição e nos artigos 241.º e 243.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo, cuja apreciação solicitou.
Admitido o pedido, foram de imediato distribuídos os autos.
2 - A resolução em causa é do seguinte teor:
«Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98
Proposta de realização de referendo sobre a participação de Portugal na construção da União Europeia
A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos dos artigos 115.º e 161.º, alínea j), da Constituição, apresentar a S. Exa. o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional e os cidadãos eleitores portugueses recenseados nos Estados membros da União Europeia sejam chamados a pronunciar-se sobre a pergunta seguinte:
'Concorda com a continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia no quadro do Tratado de Amsterdão?'
Aprovada em 29 de Junho de 1998.
O Presidente da Assembleia da República, António de Almeida Santos.»
3 - Os antecedentes da Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98 encontram-se na proposta de resolução 71/VII (Governo) e nos projectos de resolução n.os 69/VII (PCP), 91/VII (PSD) e 94/VII (CDS-PP).
3.1 - Na proposta de resolução 71/VII, o Governo propôs a colocação da seguinte pergunta, à qual deveriam responder «os cidadãos eleitores recenseados no território nacional, bem como os cidadãos eleitores portugueses recenseados nos Estados membros da União Europeia»:
«Portugal deve continuar a participar na construção da União Europeia que resulta do Tratado de Amsterdão?»
Depois de considerar a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia como um «passo essencial para a plena afirmação do nosso país no novo desenho geopolítico do continente, construído sob a égide da liberdade, da democracia e da prevalência dos valores do Estado de direito» e de explicar sumariamente a dinâmica do processo de integração, vincando, sobretudo, os avanços provocados pelo Acto Único Europeu e pelo Tratado de Maastricht, o Governo passa a indicar as razões da proposta de referendo:
«Na pendência da aprovação parlamentar do novo desenvolvimento da integração europeia que o Tratado de Amsterdão constitui, considera o Governo desejável poder aproveitar a nova configuração constitucional para auscultar a vontade popular sobre o ritmo e o sentido da participação portuguesa no projecto da União Europeia com vista a garantir que os futuros passos neste domínio continuarão a ser dados em perfeita consonância com o sentido geral da opinião colectiva, a qual, no passado, sempre claramente se expressou através da adesão maioritária às linhas programáticas de cariz partidário que assumiram o projecto europeu como referente essencial da acção externa do País.»
3.2 - Para o Grupo Parlamentar do PCP:
«A questão central que o Tratado de Amsterdão levanta é a do acréscimo de transferências de soberania, e esse é o objecto da pergunta do PCP. Obviamente, este acréscimo tem de ser enquadrado na dinâmica em que se insere e onde avulta a liquidação do escudo como moeda nacional e a sua substituição pela moeda única, bem como a imposição de orientações estritas para a atingir, de que resultam graves consequências sociais, bem como múltiplas consequências ulteriores, incluindo pesadas multas aos países.»
Por isso, propôs a seguinte pergunta:
«Concorda que a evolução da integração europeia implique maiores transferências de soberania nacional, desde a supressão do escudo e a imposição de multas aos países que não cumprem os critérios de Maastricht, até às novas transferências previstas no Tratado de Amsterdão?»
3.3 - Por seu turno, o PSD apresentou também o seu projecto de pergunta, na sequência de um anterior projecto de resolução (n.º 67/VII, de Outubro de 1997) - no qual formulava não uma, mas três perguntas, que resultavam dos três pontos em relação aos quais considerava essencial a consulta popular: legitimação do aprofundamento da integração europeia, concordância com o reforço de poderes da União e assentimento relativamente ao acréscimo de cooperação, no seio da União, no âmbito do combate ao desemprego.
No projecto de resolução 91/VII, o PSD entendeu dever proceder a uma simplificação da consulta, propondo a seguinte fórmula:
«Concorda com o aprofundamento da integração de Portugal na União Europeia, de acordo com o Tratado de Amsterdão?»
À consulta popular deveriam ser chamados «todos os cidadãos eleitores regularmente recenseados, residentes em território nacional ou no estrangeiro».
3.4 - Finalmente, no projecto de resolução 94/VII, o Grupo Parlamentar do CDS-PP recordou o propósito de referendar o avanço da integração em 1992, por ocasião da assinatura do Tratado da União Europeia, e, considerando que, passado esse momento, a realização do referendo não perdeu oportunidade, propôs as seguintes perguntas, a colocar a todos os cidadãos portugueses regularmente recenseados, sejam eles residentes em território nacional, na União Europeia ou em qualquer outro país estrangeiro:
«1 - Concorda com a participação de Portugal na construção europeia no quadro do Tratado de Amsterdão?
2 - Concorda que a evolução da construção europeia assente no reforço dos Estados nacionais, na cooperação e solidariedade entre os governos e no controlo democrático das decisões comunitárias, em detrimento do modelo de federalismo político?»
3.5 - Tanto os projectos como a proposta de resolução foram discutidos em Plenário e seguidamente submetidos à apreciação da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias para discussão e emissão de parecer. Tendo todos merecido parecer favorável, foram remetidos para a votação em Plenário (a discussão e a votação constam do Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 86, de 30 de Junho de 1998, pp. 2970 e segs.).
3.6 - Em face da rejeição dos projectos do PCP e do CDS-PP (o primeiro com votos contra do PS, do PSD e do CDS-PP, e o segundo com votos contra do PS, PCP e Os Verdes e com a abstenção do PSD), e reunido o consenso de PSD e PS em torno da pergunta proposta pelo Governo - entretanto objecto de alterações, correspondentes ao texto aprovado a final -, restava o problema da definição do universo eleitoral. Enquanto PSD e CDS-PP entendiam dever o referendo alargar-se aos cidadãos portugueses residentes fora da União Europeia, PS e PCP e Os Verdes consideravam que o interesse da consulta se restringia aos cidadãos portugueses residentes em Estados membros da União.
A segunda orientação acabou por vencer, com os votos a favor do PS, PCP e Os Verdes. Desta e da primeira votação resultou a Resolução 36-A/98, cujo texto ora se aprecia.
II
Antes de entrar na apreciação da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98, é conveniente, tendo em vista a determinação do sentido da pergunta, proceder à análise das expressões nela utilizadas: «construção da União Europeia»; «participação de Portugal na construção da União Europeia»; «Tratado de Amsterdão».
4 - «Construção da União Europeia»:
4.1 - Os marcos fundamentais da história da União Europeia são conhecidos.
A Europa comunitária foi desde o início projectada como um processo de pequenos passos (Jean Monnet), com reaproveitamento constante do acquis communautaire, reflectido na obrigação sempre imposta aos novos membros de aceitação do «acervo comunitário».
O objectivo da união política, revelado em Maastricht como uma «nova fase no processo de integração europeia», corresponde a uma ideia que vem de longe. Ela estava subjacente na Declaração Schuman, proferida em 9 de Maio de 1950; presidiu ao projecto, de 1953, de criação de uma comunidade política europeia (a ser instituída juntamente com a Comunidade Europeia de defesa) - que foi recusado pela França -, bem como ao Plano Fouchet, de 1961, no qual se tentou, em vão, ressuscitar a ideia fracassada nos anos 50; constituiu o mote da Declaração Solene sobre a União Europeia, de 1983, documento onde os então Dez Estados membros reafirmaram a vontade de transformar o conjunto das suas relações numa União Europeia; enfim, era afirmada de forma clara no ousado projecto de Tratado da União, do Parlamento Europeu, em 1984, resultado dos trabalhos da Comissão Spinelli, no qual a União surgia como uma organização de tipo federal, que consumiria as três comunidades.
Também a ideia de união económica e monetária, que obteve a sua consagração definitiva em Maastricht, se revelou antes desta fase. Ela foi logo aflorada em 1961, na Conferência da Haia, que estabeleceu o tríptico comunitário (acabamento, aprofundamento e alargamento); voltou a ser discutida na Cimeira de Paris, de 1972 (tendo ficado com data de realização aprazada para 1980); foi objecto dos relatórios sobre a União Económica e Monetária, da autoria da Comissão e do Primeiro-Ministro belga Tindemans, em 1975, que preconizavam a construção de um conjunto económico e social integrado; era, afinal, a segunda componente da União Política imaginada por Spinelli, no projecto de tratado da união europeia acima referido.
O sucesso alcançado ao nível da integração económica levou os Estados membros a aventarem hipóteses de união política. A dinâmica da engrenagem que se gerou no seio da Comunidade Económica Europeia, criada em 1957 pelo Tratado de Roma, e da qual o Tribunal de Justiça das Comunidades foi o principal responsável, levou a que um espaço com características marcadamente económicas - primeiro, uma união aduaneira, depois, um mercado comum, com liberdade de circulação dos factores de produção e uma política de livre concorrência entre as empresas -, se transformasse numa verdadeira comunidade de direito, no âmbito da qual os direitos dos cidadãos, como tais (e não apenas como operadores económicos), ganham crescente importância e tutela.
As Comunidades Europeias, impulsionadas por factores económicos, alargaram o seu domínio cada vez mais no sentido dos aspectos sociais. A necessidade de actualização dos Tratados, o desejo de propulsionar estádios mais avançados de integração económica, a par do objectivo, sempre presente, da integração política, conduziram à sua primeira revisão, através do Acto Único Europeu, em 1986.
O Acto Único tinha como principal objectivo promover a integração económica alargada. O mercado comum passava então a mercado interno, um espaço sem fronteiras internas. Como observa Paulo de Pitta e Cunha, a expressão «mercado interno» não é uma redundância em face do mercado comum, antes «traduz, sem dúvida, uma exigência acrescida de níveis de liberalização na óptica da melhoria da produtividade, da redução de custos, da exploração de economias de escala e da abertura de oportunidades de investimentos» [«Um novo passo na integração comunitária: O Acto Único Europeu» (1987), Integração Europeia - Estudos de Economia, Política e Direito Comunitários, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, pp. 389 e segs. e 394].
O Acto Único introduziu quatro importantes modificações, tendentes a facilitar o avanço do processo de integração. Simplificou consideravelmente as regras de harmonização das legislações nacionais, limitando a harmonização às disposições essenciais e adoptando o princípio do reconhecimento mútuo das normas e regulamentações nacionais; estabeleceu um processo de decisão mais rápido e mais eficaz, ampliando o âmbito de aplicação da votação por maioria qualificada; atribuiu ao Parlamento Europeu um papel mais importante no processo legislativo; finalmente, reafirmou os propósitos de reforçar a coesão económica e social da Comunidade, aumentar a capacidade monetária da Comunidade na perspectiva da união económica e monetária, consolidar a base científica e tecnológica da Comunidade, harmonizar as normas nacionais em matéria de saúde e segurança no local de trabalho, promover o diálogo entre parceiros sociais e empreender uma acção no domínio do ambiente.
Com o Acto Único Europeu, institucionalizou-se a cooperação em matéria de política externa (cf. artigo 30.º), lançando as bases da futura PESC (política externa e de segurança comum).
Esta revisão ficou muito aquém dos desejos dos mais integracionistas, que de pronto clamaram por uma nova revisão. Logo em 1988, o Conselho Europeu de Bruxelas encarregou o Comissário Jacques Delors de elaborar um relatório sobre as possibilidades de concretização da União Económica e Monetária, cujas soluções viriam a plasmar-se no Tratado da União Europeia, feito em Maastricht em 7 de Fevereiro de 1992.
Os objectivos da União Europeia constam do artigo B do Tratado de Maastricht. Da leitura dessa disposição podem retirar-se as grandes linhas da União: o reforço da coesão económica e social; o estabelecimento de uma União Económica e Monetária; a afirmação da identidade da União no plano internacional, através da execução de uma política externa e de segurança comum; o reforço da defesa dos direitos e dos interesses dos nacionais dos Estados membros, mediante a instituição de uma cidadania da União; o desenvolvimento de uma estreita cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos; a manutenção da integralidade do acervo comunitário.
O Tratado de Maastricht - que tem o sugestivo nome de Tratado da União Europeia - promete o reforço da integração através do estreitamento das relações entre os povos da Europa, apela ao princípio da subsidiariedade e afirma reconhecer a identidade dos Estados.
4.2 - A expressão «construção europeia» é também, em si mesma, uma peça na história da Europa Comunitária, desde o início baseada, como se viu, na ideia de formação progressiva, ou edificação, inerente aos tratados em que se funda.
Os textos dos tratados, em especial a partir do Acto Único, dão testemunho desta ideia de processo, desenvolvimento ou criação progressiva.
Assim, pode ler-se no preâmbulo do Acto Único Europeu (itálicos aditados):
«Animados da vontade de prosseguir a obra empreendida com base nos tratados que instituem as Comunidades Europeias e de transformar o conjunto das relações entre os seus Estados numa União Europeia [...];
Convencidos de que a ideia europeia, os resultados adquiridos nos domínios da integração económica e da cooperação política, bem como a necessidade de novos desenvolvimentos correspondem aos anseios dos povos democráticos europeus [...];
Determinados a melhorar a situação económica e social, pelo aprofundamento das políticas comuns e pela prossecução de novos objectivos, e a garantir um melhor funcionamento das Comunidades [...]»
Por sua vez, o artigo A do Tratado da União Europeia determina que:
«O presente Tratado assinala uma nova etapa no processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa [...]».
Os cultores do direito comunitário, com o intuito de transmitir este sentido expresso nos textos dos Tratados, passaram a utilizar uma linguagem que parece inspirada na arquitectura e na construção civil.
Eis um bom exemplo, extraído de um comentário ao Tratado da União Europeia, da autoria de Françoise de la Serre, publicado logo após a aprovação do Tratado, em Regards sur l'actualité - spécial Maastricht, edição de La documentation française (1987):
«Arquitectura e contributos essenciais do Tratado de Maastricht [...] - Uma arquitectura assente sobre três pilares.
A União Europeia criada pelos acordos de Maastricht tem sido abundantemente descrita como uma construção assente em três pilares de extensão desigual ligados por um frontão comum [...]. Neste novo edifício, o pilar principal é constituído pela Comunidade Europeia cujas competências são alargadas, em especial à União económica e monetária. Os dois outros pilares que enquadram a Comunidade Europeia são construídos, de um lado, pelas «disposições relativas à política externa e de segurança comum», de outro lado, pelas «disposições sobre a cooperação em matéria policial e de justiça» [...]. É óbvio que esta construção [...] não pode ser considerada muito unitária [...]. Esta falta de estrutura unitária é no entanto corrigida por alguns elementos [...]»
Do mesmo estilo compartilha a doutrina portuguesa.
Assim, Francisco Lucas Pires, na sua Introdução aos Tratados Que Instituem a Comunidade e a União Europeias, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1992, ao descrever a sequência dos tratados constitutivos das comunidades e da União Europeia, utiliza expressões como: «projecto dinâmico, encadeado e aberto», «work in progress», «engenharia metódica», «arquitectura de tipo funcionalista», «sucessão de cortes estruturais», «construção em diversos patamares», «o cimento e a locomotiva da integração».
Em outras obras, o mesmo autor escreve: «ao chegar aqui, porém, ao fim de uma marcha arrastada de quatro décadas, a construção europeia está diante do seu rubicão [...]», «o problema é, aliás, mais fundo do que o de continuar a subir andares pela escada de serviço para poupar ainda as escadarias e frontispícios da soberania nacional» (em «A caminho de uma constituição política europeia?», Análise social, 1992, pp. 725 e segs.); «a nova arquitectura europeia», «Europa com uma arquitectura política comum», «a construção europeia» (em Europa, na colecção «O que é», Difusão Cultural, Lisboa, 1992, respectivamente, pp. 123, 127, 142).
A expressão «construção europeia» surge ainda em autores como: Paulo de Pitta e Cunha, «Reflexões sobre a União Europeia» (1992), Integração Europeia ..., cit., pp. 397 e segs., 404; Maria Eduarda Azevedo, «O 'terceiro pilar' da União Europeia. Cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos», A União Europeia na Encruzilhada, Coimbra, Almedina, 1996, pp. 85 e segs.; Luís Máximo dos Santos, «Reflexões em torno da política externa e de segurança comum», A União Europeia na Encruzilhada, cit., pp. 139 e segs. (que representa graficamente a União Europeia através do desenho de um edifício).
5 - «Participação de Portugal na construção da União Europeia»:
5.1 - Após oito anos de negociações, foi assinado, em Junho de 1985, o Tratado de Adesão de Portugal e de Espanha às Comunidades Europeias, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1986.
O «acto relativo às condições de adesão e às adaptações dos Tratados», incorporado no Tratado de Adesão, definiu as medidas transitórias, destinadas a facilitar a ligação dos países aderentes às Comunidades. Estabeleceu-se um processo gradual, conducente à integração plena, que incluía períodos transitórios de adaptação, de duração diferente consoante as matérias em causa.
O português tornou-se uma das línguas oficiais das Comunidades.
Desde a sua adesão, Portugal participa em todas as instituições que definem e aplicam as normas jurídicas e as políticas das Comunidades Europeias e da União Europeia.
Portugal está representado pelo Primeiro-Ministro e por outros membros do Governo no Conselho Europeu e no Conselho, tendo assumido a presidência durante o 1.º semestre de 1992.
No Parlamento Europeu têm assento deputados portugueses. Personalidades de nacionalidade portuguesa integram a Comissão, o Tribunal de Justiça, o Tribunal de 1.ª Instância, o Tribunal de Contas, o Comité Económico e Social e o Comité das Regiões.
O escudo entrou, em Abril de 1992, no mecanismo de taxas de câmbio do Sistema Monetário Europeu.
Em Maio de 1998, tendo cumprido todos os critérios de convergência exigidos, Portugal foi considerado em condições de adoptar a moeda única e passou a integrar plenamente, com outros Dez Estados membros, o Sistema Europeu de Bancos Centrais.
Portugal é ainda parte, desde 1991, dos Acordos de Schengen sobre a supressão gradual do controlo nas fronteiras comuns.
Na qualidade de Estado membro, Portugal participa na criação da ordem jurídica comunitária, tanto ao nível do chamado direito primário ou originário, como ao nível do direito secundário ou derivado produzido pelas instituições comunitárias.
Assim, foi já com o estatuto de Estado membro que Portugal assinou o Acto Único Europeu, em finais de Fevereiro de 1986. Mais tarde, esteve envolvido na preparação, assinatura e ratificação de outros actos de direito primário, como o Tratado de Maastricht (1992) e o Tratado de Adesão da Áustria, Finlândia e Suécia (1994).
A participação na produção jurídica, ao nível do direito derivado, não se esgota na partilha da decisão política. A preparação e negociação dos actos normativos, em especial, regulamentos e directivas, é acompanhada e influenciada por comissões técnicas e grupos de trabalho em que se integram representantes do Governo, de associações e de outras entidades que interpretam interesses portugueses.
Todo este conjunto de funções e tarefas do Estado e de cidadãos portugueses se pode incluir num sentido muito amplo de «participação de Portugal na construção da União Europeia».
5.2 - A integração nas Comunidades Europeias e na União Europeia reflectiu-se também no texto constitucional.
Logo na primeira revisão constitucional, em 1982, tendo em vista a preparação da adesão de Portugal às Comunidades, foi introduzido no artigo 8.º da Constituição um n.º 3, com a seguinte redacção:
«As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre expressamente estabelecido nos respectivos tratados internacionais.»
Na revisão constitucional de 1989, aditou-se um novo número (n.º 5) ao artigo 7.º, que passou a dispor:
«Portugal empenha-se no reforço da identidade europeia e no fortalecimento da acção dos Estados europeus a favor da paz, do progresso económico e da justiça nas relações entre os povos».
Por outro lado, procurou-se precisar o sentido da parte final do n.º 3 do artigo 8.º, a fim de permitir a produção de efeitos de certos actos de direito comunitário derivado no ordenamento jurídico interno, sem mediação de qualquer acto legislativo ou regulamentar.
Aquando da adopção do Tratado da União Europeia, Portugal não escapou ao movimento que em vários Estados membros conduziu à revisão dos textos constitucionais.
A revisão constitucional de 1992 alterou os artigos 7.º, 15.º, 105.º, 166.º e 200.º da Constituição, a fim de tornar a lei fundamental conforme com a (nova) realidade europeia.
De acordo com Jorge Miranda (O Tratado de Maastricht e a Constituição Portuguesa, Brotéria, n.º 136, 1993, pp. 363 e segs., 370), a revisão justificava-se em relação às seguintes disposições:
«Artigo 7.º, visto que o n.º 5, introduzido em 1989 [...], se apresentava de alcance demasiado genérico para cobrir as exigências específicas de Maastricht;
Artigo 15.º, porque a relevância constitucional adquirida pelo Parlamento europeu obrigava à consagração da correspondente capacidade eleitoral dos estrangeiros;
Artigo 105.º, em virtude do exclusivo da emissão de moeda que atribuía ao Banco de Portugal.»
Ao artigo 7.º, talvez o mais relevante para a problemática em análise, foi aditado um novo número (n.º 6), nos termos do qual:
«Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio de subsidiariedade e tendo em vista a realização do princípio da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia.»
Através deste aditamento, visou-se resolver o problema da habilitação do Estado Português para proceder a transferências de atribuições - ou, na lógica da norma, à comunitarização de poderes - para a União e, mais concretamente, a favor do pilar comunitário.
A Lei Constitucional 1/92 alterou também o texto do n.º 5 do mesmo artigo 7.º, sublinhando o vector democrático do processo de integração.
As funções de informação e de acompanhamento e apreciação do processo de «construção da união europeia» passaram, a partir da revisão de 1992, a integrar expressamente a competência do Governo e da Assembleia da República.
Assim, nos termos do artigo 200.º, n.º 1, da Constituição, na versão de 1992 (actualmente artigo 197.º):
«Compete ao Governo, no exercício de funções políticas:
...
i) Apresentar, em tempo útil, à Assembleia da República, para efeitos do disposto na alínea f) do artigo 166.º, informação referente ao processo de construção da união europeia;
...»
Segundo o artigo 166.º (actualmente artigo 163.º):
«Compete à Assembleia da República, relativamente a outros órgãos:
...
f) Acompanhar e apreciar, nos termos da lei, a participação de Portugal no processo de construção da união europeia;
...»
6 - «Tratado de Amsterdão».:
6.1 - O Tratado de Amsterdão é fruto dos trabalhos de um grupo de reflexão formado por representantes dos governos, da Comissão e do Parlamento Europeu, encarregado de estudar a revisão do Tratado de Maastricht. Esta revisão deveria proceder, sobretudo, a uma reforma das instituições - preparando-as para o futuro alargamento aos Estados da Europa de Leste - e ao reforço do processo de integração europeia na senda do Tratado da União Europeia.
Os estudos realizados foram debatidos em três conferências intergovernamentais, uma em Março de 1996 (Conselho Europeu de Turim), a segunda em Dezembro de 1996 (Conselho Europeu de Dublim) e a última em Junho de 1997 (Conselho Europeu de Amsterdão). Foi nesta que se chegou a um consenso sobre as alterações substanciais a introduzir no Tratado.
O novo Tratado, que veio a ser assinado em Amsterdão, no dia 2 de Outubro de 1997, pelos plenipotenciários dos Quinze Estados membros da União Europeia, divide-se em três partes.
Da primeira constam mudanças de tipo substantivo ao Tratado da União Europeia e aos Tratados institutivos das três comunidades. A segunda procede ao saneamento de disposições tornadas obsoletas. A terceira alberga disposições finais, incluindo uma disposição que procede à renumeração dos artigos dos Tratados (para uma exposição geral sobre o Tratado de Amsterdão, cf.: Barros Moura, Introdução aos Tratados da União Europeia, Lisboa, 1998, pp. 17 e segs.; Sandro Gozi, «Prime riflessioni sul Trattato di Amsterdam: luci ed ombre sul futuro dell'Unione», Rivista italiana di diritto pubblico comunitario, 1997, pp. 917 e segs.; Antonio Tizzano, «Brevi considerazioni introduttive sul Trattato di Amsterdam», La Comunità internazionale, 1997, n.º 4, pp. 673 e segs.; Franklin Dehousse, «Le Traité d'Amsterdam, reflet de la nouvelle Europe», Cahiers de droit européen, 1997, n.os 3/4, pp. 265 e segs.; Michel Petite, «Le Traité d'Amsterdam: ambition et réalisme», Revue du marché unique européen, 1997, n.º 3, pp. 17 e segs.; Id., The Treaty of Amsterdam, http://www.law.harvard.edu., working paper, 2/98; Carl Frederik Bergström, «L'Europa oltre il mercato interno: commento al Trattato di Amsterdam», Rivista italiana di diritto pubblico comunitario, 1998, pp. 1 e segs.; Sally Langrish, «The Treaty of Amsterdam: selected highlights», European Law Review, 1998, n.º 1, pp. 3 e segs.; Christian Koenig, Matthias Pechstein, «Die EU-Vertragsänderung», Europa Recht, 1998, n.º 2, pp. 130 e segs.).
Assinale-se a simplificação formal a que se procedeu, substituindo por números as letras que designavam alguns preceitos do Tratado de Maastricht, eliminando dos textos vigentes disposições caducas e renumerando as disposições alteradas (cf.: Jean-Paul Jacqué, «Le Traité d'Amsterdam: La simplification et la consolidation des traités», Revue trimestrielle de droit européen, 1997, n.º 4, pp. 903 e segs.).
Como alterações substanciais, destaquem-se algumas das mais relevantes, ocorridas nas seguintes áreas:
Direitos fundamentais: consagração expressa (artigo 6.º, n.º 1, do TUE); instituição de um processo sancionatório por violação grave e persistente dos direitos fundamentais (artigo 7.º do TUE); atribuição ao Tribunal de Justiça de competência para fiscalizar a observância, por parte dos órgãos comunitários, dos direitos fundamentais [artigo 46.º, alínea d), do TUE]; consagração da cláusula de não discriminação baseada no sexo, raça, origem étnica, religião, crença, deficiência, idade ou orientação sexual (artigo 13.º do TCE); afirmação do princípio da igualdade entre sexos (artigos 2.º e 3.º, n.º 2, do TCE) (cf.: Patrick Wachsmann, «Le Traité d'Amsterdam: les droits de l'homme», Revue trimestrielle de droit européen, 1997, n.º 4, pp. 883 e segs.; Amaryllis Verhoeven, «How democratic need European Union Members be? Some thoughts after Amsterdam», European Law Review, 1998, n.º 3, pp. 217 e segs.);
Cooperação policial e judiciária em matéria penal, no âmbito da qual se procedeu a uma comunitarização das competências relativas à concessão de vistos, direito de asilo, imigração e outras políticas relativas à livre circulação de pessoas (título IV do TCE, de cuja aplicação ficaram excluídos o Reino Unido e a Irlanda, por força de um protocolo anexo ao Tratado de Amsterdão). As alterações mais relevantes traduzem-se em colocar estas matérias sob a alçada do Tribunal de Justiça (artigo 68.º do TCE) e em fazer transitar a competência relativamente à passagem de vistos e ao visto uniforme, por decisão do Conselho, tomada por unanimidade, no prazo de cinco anos, para o âmbito do processo de co-decisão, nos termos do artigo 67.º do TCE (cf.: Gérard Soulier, «Le Traité d'Amsterdam et la coopération policière et judiciaire en matière pénale», Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, 1998, n.º 2, pp. 237 e segs.). O Conseil Constitutionnel francês pronunciou-se no sentido de que este aspecto do regime da concessão de vistos, direito de asilo e imigração é incompatível com a Constituição francesa - por constituir um obstáculo às «condições essenciais do exercício da soberania» -, devendo portanto a Constituição ser revista antes da ratificação do Tratado (cf.: Florence Chaltiel, «Commentaire de la décision du Conseil Constitutionnel relative au Traité d'Amsterdam», Revue du marché commun et de l'Union européenne, 1998, n.º 415, pp. 73 e segs.; François Luchaire, «Le Traité d'Amsterdam et la Constitution», Revue du droit public, 1998, n.º 2, pp. 331 e segs.);
Política externa e de segurança comum: especificam-se os objectivos da PESC (artigo 11.º, n.º 1, do TUE), inclui-se a cláusula de solidariedade política (artigo 11.º, n.º 2, do TUE), introduz-se a regra segundo a qual as abstenções (salvo se excederem dois terços dos votos) não impedem a tomada das decisões (embora eximam do seu cumprimento os Estados que adoptem essa atitude - artigo 23.º, n.º 1, do TUE) e prevê-se a possibilidade de um Estado bloquear o processo de decisão através da invocação de «importantes e expressas razões de política nacional» (artigo 23.º, n.º 2, do TUE) (cf. Pierre des Nerviens, «Le Traité d'Amsterdam: Les relations extérieures», Revue trimestrielle de droit européen, 1997, n.º 4, pp. 801 e segs.);
Política social, com a sua incorporação, uma vez levantado o opt out britânico, no título XI do TCE (artigos 136.º e seguintes), submetida ao processo de co-decisão (embora se mantenha a exigência da unanimidade - artigo 137.º, n.º 3), reforçado pelos princípios da igualdade e do tratamento paritário de homens e mulheres, e a possibilidade de adoptar, por maioria qualificada, medidas inseridas na luta contra a exclusão social (artigo 137.º, n.º 2, terceiro parágrafo);
Política de emprego: inclusão, entre os objectivos da União, da promoção de um elevado nível de emprego (artigo 2.º do TUE) e aditamento de um título dedicado ao emprego (título VIII do TCE), onde se prevê o desenvolvimento de uma estratégia coordenada entre os Estados membros e a Comunidade;
Aperfeiçoamento dos regimes relativos à saúde pública (título XIII do TCE), à protecção dos consumidores (título XIV do TCE) e ao ambiente (título XIX do TCE);
Consagração de um «processo de cooperação reforçada» (artigo 43.º do TUE), que permite a diferenciação flexível da cooperação entre alguns Estados membros, desde que autorizados por maioria qualificada ou, em certas circunstâncias, por decisão unânime; este processo é em especial aplicável ao pilar comunitário (artigo 11.º do TCE) e à cooperação policial e judiciária em matéria penal (artigo 40.º do TUE) [cf.: José M. de Areilza Carvajal, Alfonso Dastis Quecedo, «Flexibilidad y cooperaciones reforzadas: nuevos métodos para una Europa nueva?», Revista de Derecho Comunitario Europeo, 1997, n.º 1, pp. 9 e segs.; Vlad Constantinesco, «Le Traité d'Amsterdam: Les clauses de 'coopération renforcée»'. Le protocole sur l'application des principes de subsidiarité et de proportionnalité», Revue trimestrielle de droit européen, 1997, n.º 4, pp. 751 e segs.; Claus Dieter Ehlermann, «Engere Zusammenarbeit nach dem Amsterdamer Vertrag: Ein neues Verfassungsprinzip?», Europa Recht, 1997, n.º 4, pp. 362 e segs.; Florence Chaltiel, «Le Traité d'Amsterdam et la coopération renforcée», Revue du marché commun et de l'Union européenne, 1998, n.º 418, pp. 289 e segs.; Henri Labayle, «Amsterdam ou l'Europe des coopérations renforcées (1.ère partie: les principes)», Europe - Éditions du Juris-Classeur, Março de 1998, pp. 4 e segs.; Id., «Amsterdam ou l'Europe des coopérations renforcées (2.ère partie: les modalités)», loc. cit., Abril de 1998, pp. 4 e segs.; José M. de Areilza, Enhanced cooperations in the Treaty of Amsterdam: some critical remarks, http://www.law.harvard.edu., working paper, 13/98].
As reformas institucionais, que não foram profundas, incidiram em especial sobre a extensão de competências do Parlamento, do Tribunal de Justiça e do Comité das Regiões (cf.: Claude Blumann, «Le Traité d'Amsterdam: Aspects institutionnels», Revue trimestrielle de droit européen, 1997, n.º 4, pp. 721 e segs.; Renaud Dehousse, «European institutional architecture after Amsterdam: Parliamentary system or regulatory structure?», Common Market Law Review, 1998, pp. 595 e segs.; Michael Nentwich, Gerda Falkner, The Treaty of Amsterdam: towards a new institutional balance, http://eiop.or.at/texte/1997-015a.htm; Dietmar Nickel, Michelle Petite, Amsterdam and european institutional balance: a panel discussion, http://www.law.harvard.edu., working paper, 14/98).
6.2 - De entre as disposições finais do Tratado de Amsterdão, importa aqui fazer especial referência ao artigo 14.º, que estabelece os requisitos para a respectiva entrada em vigor.
Dispõe esse preceito:
«1 - O presente Tratado será ratificado pelas Altas Partes Contratantes, de acordo com as respectivas regras constitucionais. Os instrumentos de ratificação serão depositados junto do Governo da República Italiana.
2 - O presente Tratado entra em vigor no primeiro dia do segundo mês seguinte ao do depósito do instrumento de ratificação do Estado signatário que proceder a esta formalidade em último lugar.»
Todos os Estados membros da União Europeia assinaram o Tratado.
Até ao momento, apenas dois - Alemanha e Suécia - procederam ao depósito dos respectivos instrumentos de ratificação.
Em dois outros Estados membros - Irlanda e Dinamarca - realizaram-se referendos sobre a aprovação do Tratado de Amsterdão (que incidiu também, no caso da Irlanda, sobre os opt outs obtidos pelo Governo Irlandês durante a negociação do Tratado).
Segundo o direito constitucional português, o processo de ratificação do Tratado de Amsterdão inclui a aprovação pela Assembleia da República - artigo 161.º, alínea i), da Constituição - e a ratificação pelo Presidente da República - artigo 135.º, alínea b), da Constituição.
O Tratado apenas entrará em vigor na ordem internacional se for ratificado por todos os Estados membros da União Europeia; dito de outro modo, se algum Estado membro não proceder à ratificação, o Tratado não entrará em vigor.
III
7 - Compete ao Tribunal Constitucional, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 115.º, n.º 8, e 223.º, n.º 2, alínea f), da Constituição, do artigo 26.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo e do artigo 11.º da Lei do Tribunal Constitucional, proceder obrigatoriamente à prévia fiscalização da constitucionalidade e da legalidade das propostas de referendo. O thema decidendum não é portanto delimitado pelas dúvidas suscitadas nem pelas normas invocadas no requerimento inicial.
8 - Estão verificados os pressupostos de natureza processual para que o Tribunal Constitucional possa apreciar a constitucionalidade e a legalidade da presente proposta de referendo.
A proposta de referendo provém da Assembleia da República, tendo sido aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98, e foi submetida ao Tribunal Constitucional pelo Presidente da República.
Foram observados os limites temporais do referendo fixados no n.º 7 do artigo 115.º da Constituição e no artigo 8.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo.
Não se suscita qualquer problema de repetição ilícita do referendo (n.º 10 do artigo 115.º da Constituição).
9 - Nos termos do disposto no artigo 115.º, n.º 3, da Constituição e no artigo 2.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo, o referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo.
Seja qual for o sentido que se atribua à pergunta (v. adiante n.º 14.1), a «questão europeia» é uma «questão de relevante interesse nacional» e, sob esse aspecto, susceptível de ser submetida a consulta popular.
10 - Quanto à verificação do requisito exigido pelo artigo 115.º, n.º 3, segunda parte, da Constituição (e pelo artigo 2.º, segunda parte, da Lei Orgânica do Regime do Referendo) - isto é, no caso, dever a questão ser decidida pela Assembleia da República através da aprovação de convenção internacional -, a resposta depende, antes de mais, do modo como se interpretem as disposições do n.º 4, alínea c), e do n.º 5 do artigo 115.º da Constituição.
Nos termos do artigo 115.º, n.º 4, alínea c), são excluídas do âmbito material do referendo as matérias previstas no artigo 161.º da Constituição, «sem prejuízo do disposto no número seguinte», que determina:
«O disposto no número anterior não prejudica a submissão a referendo das questões de relevante interesse nacional que devam ser objecto de convenção internacional, nos termos da alínea i) do artigo 161.º da Constituição, excepto quando relativas à paz e à rectificação de fronteiras.»
10.1 - As discussões doutrinárias sobre a possibilidade de realização de um referendo a propósito do Tratado de Maastricht ou da sua revisão, bem como os trabalhos preparatórios das revisões constitucionais de 1992 e de 1997 na parte respeitante às alterações a introduzir na versão originária do artigo 118.º, constituem importantes elementos auxiliares para a interpretação das disposições actualmente em vigor.
As questões relacionadas com a integração do nosso país na Comunidade Europeia não foram, em 1992, objecto de qualquer consulta popular, embora algumas vozes tenham sugerido essa possibilidade.
Dispunha o (então) artigo 118.º, no seu n.º 2, que:
«O referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo.»
Por sua vez, no n.º 3 excluíam-se do âmbito material do referendo, «designadamente, as alterações à Constituição, as matérias previstas nos artigos 164.º e 167.º da Constituição e as questões e actos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro.»
Para o que agora interessa, era necessário articular este n.º 3 com a alínea j) do artigo 164.º da lei fundamental, a qual atribuía à Assembleia da República competência para «aprovar as convenções internacionais que versem sobre matéria da sua competência reservada, os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras, os respeitantes a assuntos militares e ainda quaisquer outros que o Governo entenda submeter-lhe».
A interpretação conjugada das disposições citadas punha em causa a susceptibilidade de sujeição a consulta popular do tema da integração de Portugal na Comunidade Europeia.
Segundo Barbosa Rodrigues (O Referendo Português a Nível Nacional, Coimbra, 1994, pp. 187 e 188):
«[...] uma análise literal [da remissão do artigo 118.º, n.º 3, para o 164.º, alínea j)] levaria a concluir pela insusceptibilidade de referendo sobre toda e qualquer questão a decidir por esse órgão através de convenção internacional.
Semelhante solução revelar-se-ia, contudo, desajustada.
De facto, o impedimento consagrado pelo artigo 118.º, n.º 3, refere-se às matérias previstas no artigo 164.
Ora, a admitir-se uma exclusão tão alargada, estaríamos em rigor na presença não do limite substantivo sugerido, mas de um verdadeiro limite adjectivo de tipo orgânico.
Acresce que a sua existência não só se revelaria incompatível com os artigos 118.º, n.os 1, 2, 6 e 8, 164.º, alínea l), e 170.º, como no plano dos princípios, ofenderia significativamente o primado do Parlamento sobre o Governo.
Assim, dessa remissão para o artigo 164.º há que entender apenas vedados os segmentos convencionais específicos relativos à participação em organizações internacionais, amizade, paz, defesa, rectificação de fronteiras e assuntos militares.
Relativamente à participação de Portugal em organizações internacionais, o direito comunitário originário [...] justifica uma menção específica.
Sem prejuízo de uma solução equivalente, duas construções teóricas se afiguram possíveis.
Efectivamente, ou se entende que o citado ramo assenta em convenções basicamente semelhantes a quaisquer outras e a insusceptibilidade de referendo decorre então directamente da alínea em análise; ou, em razão do primado do direito comunitário, se entende que este se situa hierarquicamente acima da Constituição, e a sua vedação decorre, indirectamente, quer da exclusão do referendo constitucional, quer do tipo de limitações introduzido à realização dos referendos convencional e legislativo.»
Mais claro era Jorge Miranda, para quem a utilidade e a oportunidade de tal consulta em face da importância da questão europeia justificariam uma revisão do artigo 118.º, n.º 3, da Constituição, de modo a proporcionar a realização do referendo. Segundo este autor (O Tratado de Maastricht, citado, p. 374 e segs.):
«Por certo, para haver referendo teria de se fazer uma prévia modificação do artigo 118.º Porém [...], uma vez que sempre teria que haver revisão por causa de Maastricht, bem poderia a Assembleia da República, primeiro, rever o artigo 118.º e, seguidamente, assumir de novo poderes de revisão já com a virtualidade de referendo. Se bem que fosse um caminho algo complexo, não seria insusceptível de ser abreviado se nele as forças políticas estivessem realmente empenhadas.»
10.2 - Durante os trabalhos de revisão constitucional, em 1992, foram apresentadas as seguintes propostas para modificação do (então) artigo 118.º (cf. Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 11-RC, de 29 de Outubro de 1992, pp. 173 e seguintes; a votação realizou-se na reunião plenária de 17 de Novembro de 1992 - cf. Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 14, de 18 de Novembro de 1992, p. 454 e seguintes):
Alteração aos n.os 3 e 4 do artigo 118.º (PRC n.º 5/VI, CDS-PP):
«3 - O Presidente da República submeterá a referendo nacional a aprovação de tratados que comportem a atribuição a uma organização internacional de exercício da competência do Estado português.
4 - São excluídas do âmbito do referendo as alterações à Constituição, as matérias previstas nas alíneas a) a c), g) a i) e l) a m) do artigo 164.º e no artigo 167.º da Constituição e as questões e os actos de conteúdo orçamental tributário ou financeiro.»
Aditamento de um artigo 297-A (PRC n.º 2/VI, deputado independente Mário Tomé):
«O disposto no n.º 3 do artigo 118.º não se aplica ao Tratado da União Europeia enquanto se mantiver o processo da sua ratificação.»
Aditamento de um artigo 297-A (PRC n.º 6/VI, PSN):
«O Tratado da União Europeia, dada a sua incidência excepcional nos destinos do País, não é incluído na disposição excludente do n.º 3 do artigo 118.º da Constituição.»
Finalmente, o projecto de revisão constitucional do PCP (PRC n.º 4/VI) continha o seguinte artigo único:
«As exclusões de âmbito previstas no n.º 3 do artigo 118.º da Constituição não são aplicáveis a um referendo que venha a ser decidido, nos demais termos constitucionais e legais, sobre alterações aos Tratados das Comunidades - CEE , CECA e EURATOM - visando a instituição de uma união europeia.»
A oposição do PS e do PSD afastou a viabilidade de qualquer alteração (cf. debates da reunião plenária de 17 de Novembro de 1992, no Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 14, de 18 de Novembro de 1992, pp. 415 e seguintes).
10.3 - A polémica não foi inútil, pois, na revisão de 1997, o regime do referendo foi substancialmente alterado. Todos os projectos de revisão constitucional relativos ao artigo 118.º, com excepção de dois (PRC n.º 9/VII, dos deputados do PSD, Arménio Santos e outros, e PRC n.º 10/VII, de Os Verdes), contemplavam a possibilidade de sujeição a referendo de questões de relevante interesse nacional decorrentes da integração de Portugal na União Europeia (cf. Revisão Constitucional, publicação da Assembleia da República, Direcção de Serviços de Documentação e Informação, Abril de 1996, pp. 332 e segs.).
O Grupo Parlamentar do PS chegou a admitir a hipótese da consagração autónoma de uma norma transitória sobre tal matéria, mas a proposta não veio a ser votada (v. Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 9-RC, reunião de 18 de Junho de 1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, p. 157).
Por seu turno, o Grupo Parlamentar do CDS-PP pretendia que o referendo sobre questões relacionadas com as questões europeias fosse de convocação obrigatória, sobretudo por estarem em causa «matérias que dizem respeito ao Estado e à Nação, não apenas aos órgãos de soberania mas a todo o povo» e por isso «que todo o povo se deve sobre elas pronunciar» (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 10-RC, reunião de 21 de Junho de 1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, p. 176). Esta solução foi rejeitada (v. Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 14-RC, reunião de 16 de Julho de 1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, p. 283).
Teve também origem no Grupo Parlamentar do CDS-PP uma outra proposta, quanto ao âmbito do referendo sobre a «questão europeia». O Deputado Manuel Monteiro afirmou claramente que a intenção do CDS-PP era a de que o artigo 118.º permitisse a realização de referendos, não sobre questões concretas, mas sim sobre todo o texto dos tratados de revisão do Tratado da União Europeia:
«[...] Não se fazem referendos avulsos; [...] a haver um referendo, deve ser um referendo global, sobre todo o tratado, que implica, no seu conjunto, a transferência de competências e de soberania dos órgãos de Estado». (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 10-RC, reunião de 21 de Junho de 1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, p. 179.)
Esta proposta era acompanhada por uma outra, no mesmo sentido, do Grupo Parlamentar do PCP, que, por intermédio do deputado Luís Sá, afirmou:
«[...] É irrecusável que o problema político n.º 1 que está colocado à Assembleia da República, nesta revisão e nesta sede, é a questão da revisão do Tratado da União Europeia.
[...] A ideia que temos, nesta matéria, é que a possibilidade de chamar o povo português a pronunciar-se sobre o Tratado, globalmente considerado, é uma opção que deve ficar aberta, que o legislador de revisão constitucional não deverá fechar.» (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 11-RC, reunião de 25 de Junho de 1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, p. 189.)
A esta ideia contrapôs o Deputado Luís Marques Guedes (PSD) que:
«[...] Não devem os próprios tratados, em si, até pela sua complexidade e vulnerabilidade a alguns elementos de confusão junto da opinião pública, mas sim as questões que neles sejam determinantes e politicamente relevantes - que, obviamente, terão de ser seleccionadas por uma das entidades proponentes do tratado - que devem ser objecto de consulta, exactamente dentro da ideia de se manter um primado da objectividade, da precisão e da clareza que deve sempre estar presente em qualquer referendo. Nesse sentido, parece-nos que sujeitar a referendo tratados que, em alguns casos, podem ter 600 ou 700 artigos, a objectividade e a precisão da consulta popular feita através de referendo é, manifestamente, impossível [...] preferíamos que o texto constitucional se limitasse a delimitar as questões determinantes nos tratados.» (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 11-RC, reunião de 25 de Junho de 1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, pp. 189 e 190.)
Apesar de algumas opiniões discordantes, esta sequência sugere que as alterações introduzidas na versão originária do artigo 118.º pretendiam viabilizar a realização de um referendo sobre o Tratado de Maastricht ou sobre o Tratado que procedesse à sua revisão.
10.4 - Revisto o texto da Constituição em 1997, e no que aqui mais directamente interessa, as mudanças a assinalar são as que resultam da conjugação entre o n.º 4, alínea c), e o n.º 5 do (actual) artigo 115.º da Constituição, que contêm remissões mútuas.
De tais disposições resulta que a Constituição expressamente subtraiu da proibição de sujeição a referendo as questões que devam ser objecto de tratados internacionais, mesmo quando relativos à participação de Portugal em organizações internacionais desde que sejam de relevante interesse nacional. Ou, dito de outro modo, podem ser objecto de consulta popular, nos termos do artigo 115.º da Constituição, questões que advenham da participação de Portugal em organizações internacionais.
Como escreveu Gomes Canotilho, «a proibição de referendos em matéria da competência política reservada da Assembleia da República [artigo 161.º, alínea i)] não prejudica a possibilidade de submeter a referendo questões de relevante interesse nacional que devam ser objecto de convenção internacional (tratados e acordos), ou seja, questões relativas a tratados de participação de Portugal em organizações internacionais e tratados de defesa, quer sejam da competência da AR [artigo 161.º, alínea i)] ou do Governo [artigo 197.º, n.º 1, alínea c)]. Abriu-se, assim, a admissibilidade constitucional para o referendo sobre a integração de Portugal na União Europeia» (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 1998, p. 287).
Em resumo, pode concluir-se que as disposições conjugadas do n.º 4, alínea c), e do n.º 5 do artigo 115.º da Constituição, na versão que resulta da revisão de 1997, vieram permitir a realização de referendo sobre questões que devam ser objecto de «tratados de participação de Portugal em organizações internacionais», cuja competência pertença à Assembleia da República (excepto quando digam respeito à paz e à rectificação de fronteiras).
Tem obviamente de estar em causa um tratado ou convenção internacional ainda não definitivamente aprovado, como de resto esclarece a Lei Orgânica do Regime do Referendo (artigo 4.º). Seria o caso do Tratado de Amsterdão, já assinado por Portugal, mas ainda não aprovado pela Assembleia da República para subsequente ratificação pelo Presidente da República.
11 - Estabelecem-se no artigo 115.º, n.º 6, da Constituição e nos artigos 6.º e 7.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo as exigências a que devem obedecer as perguntas referendárias.
Assim, «cada referendo recairá sobre uma só matéria, devendo as questões ser formuladas com objectividade, clareza e precisão e para respostas de sim ou não».
12 - A proposta de referendo em apreciação recai sobre uma só «matéria», no sentido em que a Constituição Portuguesa utiliza este termo.
Na verdade, a «participação de Portugal na construção da União Europeia» constitui uma «matéria», consagrada enquanto tal na Constituição (como se observou no n.º 5.2), que merece consideração unitária, identificando uma das funções abrangidas na competência quer da Assembleia da República [artigo 163.º, alínea f)] quer do Governo [artigo 197.º, n.º 1, alínea i)].
Também a referência global ao «Tratado de Amsterdão» não suscita objecções sob este ponto de vista.
Não obstante a diversidade de temas por vezes contidos num tratado internacional, é possível considerá-lo ou referi-lo como um todo unitário, como um conjunto homogéneo, se se atender por exemplo ao seu tema central, ao objectivo final prosseguido ou à respectiva estrutura. Perante uma proposta de referendo relativo a uma convenção internacional, em que o carácter unitário e homogéneo não fosse susceptível de completa explicitação numa só pergunta, poder-se-ia para o efeito formular mais do que uma, nos termos autorizados pelo artigo 7.º, n.º 1, da Lei Orgânica do Regime do Referendo (ao abrigo do disposto no artigo 115.º, n.º 6, parte final, da Constituição).
No caso concreto do Tratado de Amsterdão, e apesar do seu conteúdo complexo, a sua unidade poderia reportar-se, designadamente, à definição dos objectivos gerais da União Europeia, constante do artigo 2.º (disposição que substituiu integralmente o artigo B do Tratado de Maastricht).
13 - Não se suscitam dificuldades autónomas quanto à bipolaridade ou dilematicidade da pergunta.
14 - Todavia, a questão não se encontra formulada com clareza e precisão.
O teor da pergunta é susceptível de comportar mais do que uma interpretação.
De acordo com um primeiro sentido - aquele que é sugerido tanto pela própria ordenação dos elementos na frase como pelo título que identifica a Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98 -, o foco da pergunta incidiria na «continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia», servindo a referência a «no quadro do Tratado de Amsterdão» como elemento circunstancial, complementar ou de esclarecimento.
De acordo com um outro possível sentido - implícito -, o objecto do referendo seria a «aprovação do Tratado de Amsterdão», servindo a primeira parte da frase como elemento circunstancial, complementar ou de esclarecimento.
A mera possibilidade de se atribuir mais do que um sentido à pergunta denota o seu carácter equívoco e a consequente falta de clareza.
A fórmula imprecisa usada para indicar a conexão entre a primeira e a segunda partes da frase não permite determinar o sentido da remissão para o Tratado de Amsterdão.
Além disso, a expressão «continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia no quadro do Tratado de Amsterdão», sendo susceptível de incluir uma ideia de «consolidação» ou «aprovação» de actuação anterior, pode ser interpretada pelos cidadãos eleitores no sentido de que uma eventual resposta «não» teria como consequência a saída de Portugal da União Europeia.
De acordo com o regime constitucional vigente, um referendo sobre a «questão europeia» não pode pôr em causa nem a aprovação da participação anterior de Portugal na União Europeia nem a permanência futura de Portugal na mesma União Europeia.
Na verdade, não seria constitucionalmente admissível um referendo que tivesse como objecto a «consolidação» ou a «aprovação» da actuação política anterior, pois, na ordem jurídica portuguesa, o referendo tem de incluir-se no processo de decisão de um acto futuro e normativo (artigo 115.º, n.º 3, segunda parte, da Constituição e artigo 2.º, segunda parte, da Lei Orgânica do Regime do Referendo). Um referendo «ratificativo» não se dirige (ou não se dirige apenas) a um acto futuro; um referendo «político» não se dirige (ou não se dirige apenas) a um acto normativo.
Do mesmo modo, não seria constitucionalmente admissível um referendo em que se questionasse a permanência futura de Portugal na mesma União Europeia, pois, na ordem jurídica portuguesa, o referendo só pode ter por objecto questões que devam ser decididas através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo (artigo 115.º, n.º 3, da Constituição e artigo 2.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo), sendo certo que são excluídas do âmbito do referendo as alterações à Constituição [artigo 115.º, n.º 4, alínea a), da Constituição e artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Lei Orgânica do Regime do Referendo].
Mas esta conclusão não conduz por si só à aceitação de um significado alternativo que se dirigisse directamente à aprovação do Tratado de Amsterdão, por ser esse o único juridicamente possível e aquele que porventura corresponde ao sentido parlamentar, extraído de elementos históricos e subjectivos (cf. supra, n.º 10.1, 10.2 e 10.3).
Independentemente da questão de saber se numa pergunta referendária que se dirigisse directamente à aprovação do Tratado de Amsterdão, os requisitos de clareza e precisão só poderiam ter-se por verificados se fosse indicado resumidamente o sentido geral ou os aspectos centrais do tratado objecto de referendo, reconhece-se que não é suficiente para aquele efeito a referência genérica e vaga à «continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia», sem definir em que sentido se orienta essa «continuação».
A interpretação de perguntas referendárias não pode ser feita em função da sua constitucionalidade e legalidade. Ao contrário, a apreciação da constitucionalidade e legalidade pressupõe a interpretação das perguntas. Ora, nesta operação, fazendo apelo a um paralelismo com a teoria da impressão do destinatário, o horizonte para aferir a compreensão das perguntas há-de ser o cidadão eleitor normal, sem conhecimentos especializados nas matérias sobre que é inquirido.
Neste caso, a cabal compreensão da pergunta exige conhecimentos quanto à situação do processo de construção da União Europeia, em geral, quanto ao conteúdo do Tratado de Amsterdão e quanto à situação do processo que, em Portugal, é necessário para a aprovação e ratificação do mesmo Tratado (como os que constam da exposição a que se procedeu nos n.os 4 a 6).
Tal circunstância repercute-se na inteligibilidade ou compreensibilidade e clareza que devem caracterizar as perguntas referendárias e que garantem a «genuinidade democrática do referendo» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 534).
Não estão assim presentes, no caso, as condições adequadas de esclarecimento «para aqueles que, afinal, terão necessariamente de proceder a uma mediação explicativa perante a opinião pública» (na expressão do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 288/98, Diário da República, 1.ª série-A, n.º 91, suplemento, de 18 de Abril de 1998).
Nestas condições, não parece que as deficiências da pergunta possam ser supridas através da campanha eleitoral a realizar para o efeito, já que nada garante que o seu carácter intrinsecamente equívoco se não mantivesse e fosse aproveitado até ao momento da votação.
15 - Há por último que reconhecer que a pergunta se não encontra formulada com objectividade.
Com efeito, a utilização do termo «continuação» na expressão «continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia no quadro do Tratado de Amsterdão» é susceptível de induzir os eleitores em erro, influenciando o sentido da resposta.
Ao levar os cidadãos eleitores menos informados a supor que uma resposta negativa teria como efeito necessário a cessação dessa «continuação», com o consequente abandono da União Europeia por parte de Portugal, isto é, ao não assinalar que o que se pretende é dar um novo passo no âmbito da construção europeia, e antes sugerindo a ideia de continuidade, a pergunta encontra-se formulada de modo a conduzir os eleitores que pretendem que Portugal continue a participar na construção da União Europeia a dar o seu voto afirmativo no referendo, desvalorizando aquilo que é essencial - ou seja, as alterações a introduzir com a aprovação do Tratado de Amsterdão.
16 - Perante o exposto, conclui-se que a pergunta constante da proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98 não respeita os requisitos de objectividade, clareza e precisão exigidos pelo artigo 115.º, n.º 6, da Constituição e pelo artigo 7.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo.
17 - Tendo em conta a conclusão a que se chegou, não pode o Tribunal Constitucional ir mais longe na apreciação da compatibilidade com a Constituição das soluções jurídicas que resultariam de qualquer das eventuais respostas à pergunta referendária.
Torna-se igualmente desnecessário apreciar a pertinência do universo eleitoral definido na Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98.
IV
18 - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Considerar que a proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98 não respeita os requisitos de objectividade, clareza e precisão exigidos pelo artigo 115.º, n.º 6, da Constituição e pelo artigo 7.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo;
b) Consequentemente, ter por não verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na mencionada Resolução da Assembleia da República n.º 36-A/98.
Lisboa, 29 de Julho de 1998. - Maria Helena Brito - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Maria Fernanda Palma - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Artur Maurício - Guilherme da Fonseca (com declaração de voto junta) - Luís Nunes de Almeida (com a declaração de que, embora considerando que a pergunta tem um sentido intrinsecamente unívoco, o que exclui a sua falta de clareza e precisão, já entendi que a mesma não se encontra formulada com objectividade, pelas razões do ponto 15 do acórdão) - Paulo Mota Pinto (vencido, conforme declaração de voto que junto) - Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto) - Bravo Serra (vencido, pelas razões aduzidas na declaração de voto apresentada pelo Exmo. Conselheiro Paulo Mota Pinto) - Messias Bento (vencido, pelo essencial das razões das declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Paulo Monta Pinto e Vítor Nunes de Almeida) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, pelo essencial das razões expendidas nas declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Paulo Mota Pinto e Vítor Nunes de Almeida).
Declaração de voto
1 - Acompanhei a decisão quanto à violação do n.º 6 do artigo 115.º da Constituição e do n.º 2 do artigo 7.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo, mas acrescentaria ainda a violação do n.º 3 desse artigo 115.º, e do artigo 2.º da mesma lei, diferentemente do entendimento que se apurou no acórdão, nos n.os 9 e 10, desviando-se o cerne da questão para o modo «como se interpretem as disposições do n.º 4, alínea c), e do n.º 5 do artigo 115.º da Constituição» [aí chegou-se à conclusão de que «a 'questão europeia é uma questão de relevante interesse nacional' e, sob esse aspecto, susceptível de ser submetida a consulta popular», e, com a revisão de 1997, à luz daqueles n.os 4, alínea c), e 5, veio permitir-se «a realização de referendo para a aprovação de 'tratados de participação de Portugal em organizações internacionais', cuja competência pertença à Assembleia da República»].
2 - Aderindo, face ao teor da pergunta, ao seu sentido possível de que o objecto do referendo seria a «aprovação do Tratado de Amsterdão», tal-qualmente se apura no acórdão (cf. n.º 14) e resulta da expressa remissão na pergunta para esse Tratado, o que questiono é a admissibilidade de realização de referendo para aquela aprovação, sendo que o n.º 3 do artigo 115.º da Constituição mantém a redacção de 1992 (era o n.º 2 do artigo 118.º) e não foi tocado na revisão de 1997, no sentido de que «o referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional e devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através de convenção internacional ou de acto legislativo» (sublinhado nosso).
«O objecto do referendo não pode ser directamente a aprovação do articulado de um projecto de lei ou de um tratado negociado e ou ajustado» - ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, depois de considerarem que o referendo não é em si mesmo fonte de direito e não se substitui «aos órgãos competentes para aprovar as leis ou tratados» (Constituição Anotada, 3.ª ed., pp. 531/532).
3 - A proibição constitucional e legal de referendar directamente os tratados, incluindo os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, uma verdadeira regra de intangibilidade do quadro constitucional e da reserva parlamentar, leva a excluir qualquer referência formal a tratados na pergunta no referendo relativo às questões da União Europeia, como acontece com a remissão para o Tratado de Amsterdão.
Se o referendo só pode ter por objecto questões que devam ser decididas através da aprovação de convenção internacional ou questões suscitadas por convenção internacional em processo de apreciação, mas ainda não definitivamente aprovado, daqui resulta que a convenção internacional como acto não pode - ela própria - ser referendada, nem formalmente identificada na pergunta ou nas perguntas que vão preencher o referendo.
A cautela de reduzir as perguntas do referendo às questões suscitadas por convenção internacional, e só elas, tem em vista a prevenção de práticas viciadas, de tipo plebiscitário (e seria deste tipo a pergunta reportada ao Tratado de Amsterdão).
Por consequência, somente uma pergunta, que incida sobre o actual estado e o aprofundamento da integração europeia (e a posição de Portugal nessa integração e aprofundamento) obedecerá ao figurino constitucional e legal.
Para a campanha para o referendo ficaria então o esclarecimento das questões que levanta tal integração - v. g., o euro e a supressão do escudo, o tipo de transferências de soberania nacional - e a promoção da correspondente opção.
É o próprio acórdão que acaba por o reconhecer quando, a propósito dos requisitos de clareza e precisão da pergunta referendária, exprime o entendimento de que tais requisitos «só poderiam ter-se por verificados se fosse indicado resumidamente o sentido geral ou os aspectos centrais do tratado objecto de referendo» (sublinhado nosso). - Guilherme da Fonseca.
Declaração de voto
Votei vencido pelas razões que passo a expor:
1 - As perguntas objecto de referendo devem, nos termos dos artigos 115.º, n.º 6, da Constituição e 7.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo, ser formuladas com objectividade, clareza e precisão. Entendo que a pergunta em análise preenche estes requisitos, mesmo numa apreciação a partir do ponto de vista de um seu «destinatário normal», desde que dela se faça, como se impõe, uma leitura unitária e completa - isto é, atentando em todo o texto da questão e sem desvalorizar qualquer elemento. Considero inaceitável qualquer leitura «amputada» da questão ou - o que vai dar ao mesmo - que não considere no mesmo plano o conjunto dos elementos que a compõem, desvalorizando um seu segmento como meramente «complementar, circunstancial ou de esclarecimento». A apreciação da objectividade, clareza e precisão da pergunta deve, é certo, ser efectuada a partir da perspectiva dos seus destinatários, mas não se pode partir do princípio de que estes deixarão de ler, ou de valorizar igualmente, quaisquer palavras constantes da questão.
É, contudo, justamente isto que, a meu ver, se faz quando se afirma que a pergunta é susceptível de comportar mais do que uma interpretação, ora por servir «a referência a 'o quadro do Tratado de Amsterdão' como elemento circunstancial, complementar ou de esclarecimento», ora «servindo a primeira parte da frase» como tal elemento. Não concordo, portanto, com a afirmação da equivocidade «intrínseca» e da falta de clareza da pergunta com base na «mera possibilidade» de lhe atribuir mais do que um sentido, sustentada num tal método de leitura «parcial» (sc., de parte) da questão - até porque, com esse método, se poderia concluir pela falta de clareza de praticamente qualquer pergunta (com excepção apenas das mais simples), desvalorizando um seu segmento para discernir nela vários sentidos.
2 - A meu ver (neste ponto, não discordando do acórdão), podendo o referendo ter como objecto questões a decidir por convenção internacional (artigo 115.º, n.º 3, da Constituição), nada impõe uma restrição a questões individualizadas e materialmente identificadas. Pode, assim, formular-se a questão com remissão para uma convenção internacional, indicando o seu sentido geral, sem que a remissão, só por si, prejudique a clareza da pergunta (exigida pelo n.º 6 do artigo 115.º da Constituição) - a conveniência em referendar o sentido geral de uma convenção é, a meu ver, antes uma questão política, não se devendo confundir a clareza da pergunta, considerada em si, com a falta de esclarecimento (que deverá resultar justamente da campanha eleitoral) sobre o conteúdo e o sentido da convenção em causa.
Ora, não tendo a clareza da pergunta por prejudicada pela remissão para o Tratado de Amsterdão, considero que a questão, lida do início ao fim, tem um sentido natural, perfeitamente claro e preciso, que é, na própria expressão da pergunta, o de questionar a «continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia no quadro do Tratado de Amsterdão». Resulta evidente, portanto, que nem se trata de questionar apenas «a continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia» (sem considerar a expressão «no quadro do Tratado de Amsterdão»), nem de perguntar simplesmente pela aprovação do Tratado de Amsterdão (não tomando em conta a sua inserção na «continuação da participação de Portugal na construção da União Europeia»). Antes a continuação (ou «aprofundamento», como, a meu ver ainda mais claramente, se dizia no projecto de resolução 91/VII, apresentado pelo PSD) da participação de Portugal na construção da União Europeia é objecto da pergunta «no quadro do Tratado de Amsterdão», isto é, justamente nos termos em que essa continuação decorre desse Tratado (sendo a campanha eleitoral a sede natural para o esclarecimento desses termos).
Deste modo, considero também que a formulação da pergunta, com o termo «continuação» referido à «participação de Portugal na construção da União Europeia no quadro do Tratado de Amsterdão», não implica qualquer falta de objectividade. É que uma interpretação da pergunta segundo a qual uma resposta negativa implicaria a saída da União Europeia não se contém, a meu ver, dentro do campo semanticamente admissível, e susceptível de ser captado mesmo por um destinatário normal (suposto apenas - é óbvio - que este consegue ler a pergunta do início ao fim). É certo que uma negação da continuação da participação na União Europeia implicaria a saída desta União. Todavia, é claro que não é isto que se pergunta - a questão em apreço é outra e refere-se à continuação, sim, mas da participação na construção da União Europeia no quadro do Tratado de Amsterdão. Pelo que, quem não deixe de ler uma parte da questão (ou, noutros termos, quem não desvalorize uma parte da questão como mais ou menos essencial) terá de concluir que um «não» apenas pode ter como consequência a negação da participação de Portugal nessa construção tal como está prevista no Tratado de Amsterdão.
Com estes fundamentos, considero que a presente pergunta respeita as exigências constitucionais e legais de objectividade, clareza e precisão. - Paulo Mota Pinto.
Declaração de voto
Votei vencido quanto à declaração de não verificação de constitucionalidade do presente referendo, essencialmente, por discordar das conclusões a que chegou a maioria do Tribunal quanto à objectividade, clareza e precisão da pergunta que é objecto do referendo.
Entendo, de facto, que, no que se reporta à objectividade, a pergunta formulada respeita a exigência do princípio de inteligibilidade colocada por qualquer referendo: sabe-se o que é a «construção da União Europeia» (são inequívocos os esclarecimentos do próprio texto do acórdão) e pertence à linguagem comum acessível a todos os cidadãos perguntar pela «continuação da participação» em qualquer actividade. O único elemento susceptível de suscitar dúvidas seria a expressão «no quadro do Tratado de Amsterdão». Porém, não se exige que todos os cidadãos tenham conhecimento profundo do texto do tratado: é, apenas, indispensável que conheçam os traços gerais das modificações que o mesmo introduz na União Europeia, e dessas há um conhecimento generalizado, sendo certo que o grau de conhecimento não é, em geral, pressuposto do dever de obediência ao disposto na lei.
Também a pergunta não sugere, de forma directa ou indirecta, qualquer dos possíveis sentidos das respostas. Aqueles que são aludidos nos autos situam-se num plano argumentativo que não é aquele em que se movimenta o cidadão comum. É a resposta deste que, num referendo, se pretende; não a solução prévia à resposta, de problemas de interpretação colocados por peritos em direito constitucional.
Assim, entendo que a pergunta é clara, precisa e objectiva, não envolvendo qualquer perigo de distorção da consulta ou de manipulação da formação da vontade dos eleitores. Com efeito, o sentido que, para o comum dos cidadãos, decorre do teor da pergunta é o de saber se concorda que Portugal se empenhe em que se dê mais um passo na construção da União Europeia. E esse passo tem os contornos do Tratado de Amsterdão.
Fica, assim, claro, que a pergunta não envolve o risco de o eleitor supor que não devendo Portugal dar mais esse passo - o decorrente do Tratado de Amsterdão - tenha por isso que abandonar a União Europeia.
Por todos estes motivos, não votei a decisão de não verificação de constitucionalidade tomada no acórdão. - Vítor Nunes de Almeida.