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Acórdão 709/97, de 20 de Janeiro

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Sumário

Não se prununcia pela inconstitucionalidade da norma constante do numero 2 do artigo 1º do decreto 190/VII, aprovado em 9 de Outubro de 1997 pela Assembleia da República, subordinado ao título «Lei de Criação das Regiões Administrativas»; Pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma constante do numero 3 do mesmo artigo 1º por violação dos artigos 255º e 256º da Constituição; Pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma constante do numero 1 do artigo 11º do citado decreto por violação do princípio que emerge dos aludidos artigos 255º e 256º da Constituição. (Proc. nº 532/97)

Texto do documento

Acórdão 709/97
Processo 532/97
I - 1 - Em 31 de Outubro de 1997 deu entrada neste Tribunal um requerimento formulado pelo Presidente da República e por intermédio do qual o mesmo solicitava, nos termos dos artigos 278.º, n.os 1 e 4, da Constituição e 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 3, e 11.º, n.º 1, do decreto 190/VII, aprovado pela Assembleia da República - Lei de Criação das Regiões Administrativas - e que, nos serviços do Presidente da República, deu entrada em 29 dos indicados mês e ano.

Por outro lado, 54 deputados à Assembleia da República pertencentes ao Grupo Parlamentar do Partido Social-Democrata vieram requerer em 6 de Novembro de 1997, fundados nos artigos 278.º, n.º 4, da Constituição e 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da referida Lei 28/82, a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas ínsitas nos artigos 1.º, n.os 2 e 3, e 11.º, n.º 1, do citado decreto, tendo sido determinado que o processo tocante a este pedido fosse incorporado naqueloutro nascido do requerimento do Presidente da República.

Nada obstando à apreciação dos dois pedidos, quer do ponto de vista de legitimidade de quem os formula, quer da tempestividade da sua dedução, impõe-se que este Tribunal a ela proceda de molde a que essa apreciação seja efectuada conjuntamente, razão pela qual a análise a que se irá proceder incidirá sobre as normas constantes dos artigos 1.º, n.os 2 e 3, e 11.º, n.º 1, do citado decreto.

2 - Tais normas rezam do seguinte modo:
«Artigo 1.º
Objecto
1 - ...
2 - Os poderes, a composição e a competência das regiões administrativas, bem como o funcionamento dos seus órgãos, são os constantes da Lei 56/91, de 13 de Agosto.

3 - As leis de instituição em concreto de cada região administrativa podem estabelecer diferenciações quanto ao regime aplicável a cada uma, nos termos do artigo 255.º da Constituição da República Portuguesa.

Artigo 11.º
Alteração dos limites geográficos
1 - Após a consulta directa prevista no artigo 256.º da Constituição, os limites das regiões administrativas podem ser alterados, nos termos constitucionais, mediante lei orgânica a aprovar pela Assembleia da República, a qual assegurará designadamente que o processo inclua a audição das respectivas assembleias municipais e das assembleias regionais das regiões envolvidas.

2 - ...»
3 - Relativamente ao transcrito no n.º 3 do artigo 1.º, o Presidente da República suscita a dúvida consistente em saber se a mesma não violará o que se consagra nos artigos 255.º, 108.º, 110.º, n.º 2, e 111.º, n.º 1, todos da Constituição, pois que:

Tal n.º 3, na medida em que prevê que o estabelecimento de diferenciações - que admite poder ser levado a efeito faseadamente - quanto ao regime aplicável a cada uma das regiões administrativas possa ser efectuado pelas leis de instituição em concreto dessas regiões (leis ordinárias «simples») e não por intermédio da lei de criação das regiões (que é qualificada pela Constituição como lei orgânica), contrariaria os artigos 255.º e 166.º, n.º 2, da lei fundamental;

Tendo em conta que as leis orgânicas obedecem a regimes de aprovação, de veto e de fiscalização da constitucionalidade diversos dos das leis ordinárias «simples», a possibilidade em causa redundaria numa indirecta alteração ou frustração da «distribuição de competências e poderes constitucionalmente estabelecidos», razão pela qual seriam ofendidos os artigos 108.º e 110.º, n.º 2, da Constituição, bem como o princípio da separação e interpendência dos órgãos de soberania decorrente do n.º 4 do seu artigo 111.º, e isso porque, na sua óptica, não se pode admitir que a «remissão prevista no n.º 3 do artigo 1.º do decreto 190/VII tenha a virtualidade e converter a lei de instituição em concreto de cada região em lei orgânica».

3.1 - No tocante ao n.º 1 do artigo 11.º do decreto, equaciona o Presidente da República uma possível violação dos artigos 256.º, n.º 1, 115.º, n.os 1 e 6, 113.º, n.os 1 e 6, e 166.º, n.º 2, da Constituição.

E isso, em síntese, atentas as seguintes razões:
Comandando o n.º 1 do artigo 256.º da Constituição que a instituição em concreto de cada região administrativa depende do voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores chamados a pronunciar-se em consulta directa, de alcance nacional e relativa a cada área regional, tal significa que a «criação e possibilidade de funcionamento efectivos», ou seja, aquela instituição, está dependente «do voto favorável dos cidadãos eleitores integrantes de um determinado universo eleitoral chamado a pronunciar-se sobre a questão»;

Daí que, realizado que seja o referendo, a possibilidade, conferida pelo n.º 1 do artigo 11.º do decreto, de a Assembleia da República alterar os limites das regiões administrativas, sem que essa alteração seja precedida de novo referendo e por ele condicionada, vá representar uma inobservância dos resultados da anterior consulta directa aos cidadãos, de carácter vinculativo e que, necessariamente, teve de obedecer ao princípio da intelegibilidade e clareza das perguntas referendárias, assim modificando ou obscurecendo o significado, consequência e alcance daquela consulta, dada «a alteração qualitativa do correspondente universo eleitoral, com a inclusão de novos eleitores ou exclusão de anteriores», com o que se mostrariam violados os artigos 256.º, n.os 1 e 3, e 115.º, n.º 1 - aplicável por força daquele n.º 3 - e 6, ambos da lei fundamental;

Seria ainda violado, na sua perspectiva, o princípio da tipicidade dos actos legislativos consagrados nos n.os 1 e 6 do artigo 112.º e, no particular referente às leis orgânicas, no n.º 2 do artigo 166.º, consequentemente sendo violados de igual sorte os princípios da constitucionalidade do exercício do poder político, da tipicidade e reserva constitucional da competência dos órgãos de soberania e da separação e interdependência entre estes órgãos, prescritos pelos artigos 110.º, n.º 2, e 111.º, n.º 4 , estes como aqueles da Constituição, no ponto em que se entendesse que as leis de instituição em concreto das regiões administrativas a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do decreto haveriam de revestir a forma de leis orgânicas.

4 - Quanto ao pedido deduzido pelos deputados do mencionado Grupo Parlamentar e no que tange ao n.º 2 do artigo 1.º do decreto, funda-se ele numa eventual violação dos artigos 255.º e 166.º, n.º 2, da Constituição, já que nessa norma se vem a estatuir uma remissão para a Lei 56/91 - lei ordinária «simples» - quanto a matérias que, de acordo com aqueles artigos, deveriam constar de lei orgânica.

4.1 - Respeitantemente ao n.º 3 do mesmo artigo 1.º, os requerentes de que ora nos ocupamos sustentam a violação dos artigos 255.º e 256.º da Constituição.

Fazem-no defendendo que dos aludidos artigos 255.º e 256.º resulta que o processo de regionalização se inicia com a criação legal das regiões - o qual tem de obedecer ao que se consagra no primeiro, onde, por entre o mais, se inclui o regime e eventuais diferenciações -, prosseguindo com a consulta aos cidadãos eleitores, efectuada a nível nacional sobre aquela criação e, relativamente a cada área regional, sobre a sua instituição em concreto, e terminando, sendo afirmativo o resultado dos referendos, com a aprovação obrigatória, decorrente do carácter vinculativo da consulta, das correspondentes leis de instituição.

Ora, segundo os ditos peticionantes, como naquela consulta global - que inclui a que se reporta a nível nacional e a que diz respeito a cada área regional - os cidadãos eleitores são chamados a pronunciar-se não só sobre a criação como também sobre a instituição em concreto de cada região, aquando da efectivação de tal consulta terão já as regiões de se apresentar «devidamente identificadas e delimitadas territorialmente e com um regime prefixado na lei de criação». Daí que, no caso de resposta afirmativa ao referendo, tenha a Assembleia da República de emitir a ou as correspondentes leis de instituição, «tal qual as mesmas resultaram da lei de criação, nomeadamente, com o regime eventualmente diferenciado dela constante e limites territoriais também nela prefixados», pelo que o n.º 3 do artigo 1.º do decreto violará os preceitos constitucionais acima indicados.

4.2 - Tocantemente à norma do n.º 1 do artigo 11.º do decreto, os deputados solicitantes fundamentam a violação dos artigos 115.º, n.º 1, e 256.º da Constituição na medida em que por ela é permitido o estabelecimento de alterações «dos limites das regiões instituídas» «sem a legitimação dos referendos» e, assim, admite que a Assembleia da República decida «em desconformidade com o resultado de um referendo».

5 - Determinada a notificação do Presidente da Assembleia da República para, querendo, se pronunciar sobre os pedidos, veio o mesmo oferecer o merecimento dos autos, juntando o Diário da Assembleia da República contendo os trabalhos preparatórios do decreto em crise.

II - 1 - Inicia-se-á a análise dos pedidos pela norma do n.º 2 do artigo 1.º do decreto a que se reporta o formulado pelos deputados do citado Grupo Parlamentar.

Dados os termos em que ele é deduzido, a requerida pronúncia de inconstitucionalidade só se alcançaria se porventura o Tribunal viesse a concluir que uma lei orgânica não pode, ao definir um dado regime - cuja estatuição esteja sujeita, na sua edição legislativa, à adopção daquela forma de acto normativo -, remeter para uma outra lei ordinária «simples».

Torna-se claro que, se um acto normativo que, por força da Constituição, tenha de assumir, em face da matéria por ele tratada, a forma de lei orgânica vier a remeter, quanto a essa matéria, para um outro acto normativo que tal forma não deva assumir, estará ele eivado de vício de desconformidade com o diploma básico, porquanto contradiz, nesse particular, o que se prescreve nos artigos 112.º, n.os 1 e 6, e 166.º, n.º 2, daquele diploma.

Só que, in casu, o que o n.º 2 do artigo 1.º do decreto prescreve é, no tocante a determinadas matérias, que, pela actual versão da lei fundamental decorrente da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro, têm agora de constar de lei orgânica - cf. seus artigos 166.º, n.º 2, e 255.º -, uma remissão para um acto legislativo que, ao tempo em que foi editado, não carecia de adoptar a forma de lei orgânica.

Trata-se, assim, de um remeter para um acto legislativo que, então, não padecia de vício formal, cujas estatuições normativas são aceites por um acto legislativo que reveste a dignidade de lei orgânica; desse modo, e para o futuro, o regime legal que constava da Lei 56/91, de 13 de Agosto, só poderá sofrer alterações se as mesmas vierem a constar de lei orgânica.

E, para além disso, não pode deixar de realçar-se que a «remissão» operada pelo n.º 2 do artigo 1.º do decreto é algo que, do ponto de vista de cobertura constitucional, está em parte perfeitamente ressalvado pela disposição constante do artigo 298.º da lei fundamental.

Termos em que não divisa o Tribunal vício de inconstitucionalidade naquela norma.

2 - Passando à apreciação do n.º 3 do mesmo artigo 1.º, anota-se, em primeiro passo, que o Tribunal não põe em causa que não tenha de constar de um só acto normativo todo o regime respeitante à criação legal das regiões administrativas, o que inculca que, verbi gratia, o estabelecimento de diferenciações, que porventura implique uma diversidade de regimes delas decorrentes, possa ser levado a cabo faseadamente.

Ora, de acordo com esta postura, a questão que se coloca é a de saber se é possível, atenta a leitura conjugada e sistemática dos artigos 255.º e 256.º da Constituição, uma construção segundo a qual as diversidades de regimes de cada região atinentes, designadamente, às matérias referidas naquele primeiro artigo não têm de constar sempre da lei de criação das regiões (entendida esta como um ou mais actos normativos), que há-de ser editada previamente à consulta popular a que se reporta o artigo 256.º

A esta questão responde o Tribunal negativamente.
Na verdade, muito embora a lei de criação das regiões não seja, ela mesma, referendável, não deixa de ser certo que a conjugação das prescrições constantes dos artigos 256.º, n.º 1, e 255.º do diploma básico impõe que, aquando da realização da consulta popular prevista naquele artigo 256.º, tenha já de estar efectuada uma previsão legal da especificidade do regime de cada região, desde que a lei de criação tenha previsto a consagração de diferenciações.

É que daquelas prescrições extrai o Tribunal que a Constituição, relativamente às regiões administrativas, desenha um procedimento segundo o qual, após a sua criação - que há-de ser simultânea, efectivada por uma lei ínsita na reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, revestindo a forma de lei orgânica [cf. artigos 164.º, alínea n), e 166.º, n.º 2], e que pode estabelecer diferenciações quanto ao regime de cada uma delas -, a respectiva instituição está dependente do voto favorável expresso da maioria dos cidadãos eleitores, cuja pronúncia há-de incidir sobre uma consulta directa de alcance nacional e de alcance local (ou seja, quanto a este último, no âmbito da região em concreto).

Um tal procedimento deve, pois, acarretar que, na ocasião em que a consulta directa vier a ter lugar, as diferenciações de regime aplicáveis a cada região tenham já de estar desenhadas.

Ora, se essas diferenciações pudessem ficar consagradas nas leis de instituição em concreto a que se refere o artigo 256.º da Constituição, tal como estatui o n.º 3 do artigo 1.º do decreto, isso significaria que a consulta directa não poderia, nesse circunstancialismo, pressupor ou ponderar a diversidade de regimes, o que contrariaria o procedimento constitucionalmente consagrado e a que acima se aludiu, procedimento esse que deflui dos artigos 255.º e 256.º da lei fundamental.

Neste contexto, concluir-se-á pela desconformidade constitucional da norma ora sub iudicio.

Atingida esta conclusão, dispensar-se-á o Tribunal de apreciar os demais argumentos que, pelos requerentes, foram carreados para sustentar o ou os vícios constitucionais de que aquela norma padeceria.

3 - Resta analisar o normativo constante do n.º 1 do artigo 11.º do decreto.
Sublinhar-se-á, em primeira linha, que, como se depara óbvio, a Constituição não prevê de modo expresso a designada «alteração das regiões», nomeadamente no que concerne aos respectivos limites territoriais, e procedimento que a ela conduza.

Desta asserção, e para que se possa responder às dúvidas de constitucionalidade suscitadas, haverá, desde logo, que focalizar a questão de saber qual a interpretação que deve ser acolhida relativamente à norma sub specie.

3.1 - Efectivamente, tendo em conta o seu teor - uma vez que nela se refere que, após a consulta directa prevista no artigo 256.º da Constituição, os limites das regiões administrativas já instituídas podem sofrer alteração «nos termos constitucionais» -, poder-se-ia defender que a norma em apreço não exclui a possibilidade de a alteração dos limites geográficos das regiões somente poder ser efectuada realizada que fosse previamente uma auscultação da população.

Mas, de um outro ponto de vista, sustentável é também que o teor normativo se interprete no sentido de que, posteriormente à consulta a que alude o dito artigo 256.º, tais limites podem ser alterados sem que aquela consulta venha a ter lugar, ou seja, tão-só por simples intermédio de lei orgânica (que, conforme o estipulado nos números e artigo em causa, terá de assegurar a audição das assembleias municipais e regionais das regiões envolvidas).

Perante essa dualidade de sentidos que o n.º 1 do artigo 11.º do decreto poderia eventualmente comportar, o Tribunal entende que é o segundo aquele que melhor se compagina com o facto de a norma em crise ser uma norma de procedimento.

É que, tratando-se, como se trata, de uma norma que consagra um determinado iter procedimental quanto a um dado aspecto - alteração dos limites geográficos das regiões administrativas após a efectivação da consulta a que alude o artigo 256.º da Constituição -, há que reconhecer, então, que foi esse iter o que o legislador quis que viesse a ser seguido para reger a matéria a tratar. Sendo assim, reconhecer-se-á igualmente que, se nada mais é referido pelo legislador, o procedimento por ele consagrado esgota-se em si mesmo, e, por isso, não é defensável que no mesmo algo mais possa caber.

E, se na norma procedimental que constitui o n.º 1 do artigo 11.º do decreto não se encontra a previsão da realização de qualquer forma de consulta popular directa, então há-de concluir-se que o órgão legislativo que a editou a não quis.

A este fundamento acresce que não seria perfeitamente compreensível a razão da audição das assembleias municipais e das assembleias regionais das regiões envolvidas se o processo de alteração nela previsto houvesse de pressupor a realização de uma consulta directa para auscultação da vontade dos cidadãos.

Daí que o Tribunal, maioritariamente, perfilhe a óptica de harmonia com a qual o n.º 1 do artigo 11.º do decreto permite a alteração dos limites das regiões administrativas sem que seja efectuada consulta referendária.

3.2 - Essa conclusão, contudo, não representará senão um primeiro passo para a análise que, no ponto de que tratamos, se impõe efectuar.

Mister é, como se torna claro, que se dê resposta à questão de saber se, não contemplando a Constituição, como já se disse, a alteração das regiões uma vez criadas, nem, consequentemente, qualquer procedimento no tocante a essa alteração (e no caso releva uma alteração dos seus limites geográficos), ela, de um lado, é admissível e, de outro, respondendo-se afirmativamente, se o cabido procedimento há-de, necessariamente, impor a realização de uma consulta referendária.

Se a imutabilidade das regiões administrativas, uma vez legalmente criadas, é, crê-se, algo de indefensável - pois que, seguramente, não foi essa a intenção do legislador constituinte que, igualmente, por certo não pretendeu que, criadas que fossem as regiões, nenhuma alteração fosse possível, a menos que ocorresse uma nova criação ou, se se quiser, a substituição da criação legal anterior por uma outra -, de maior dificuldade se reveste o problema respeitante a saber se a Constituição consagrará princípio de acordo com o qual a modificação ou alteração das regiões (aqui se incluindo o que concerne aos seus limites territoriais - que é o que agora interessa) inculcará a realização de consulta popular directa.

A aludida maior dificuldade resulta, desde logo, da falta de preceito constitucional expresso e, depois, da disposição ínsita na alínea d) do n.º 4 do artigo 115.º, em conjugação com o artigo 164.º, alínea n), da Constituição.

Numa primeira e meramente literal leitura daquela alínea d) do n.º 4 do artigo 115.º, poderia extrair-se que a matéria respeitante à modificação das regiões administrativas - que são incluídas no conceito de autarquias locais (cf. artigo 236.º, n.º 1, da Constituição) - não era susceptível de inclusão no âmbito dos referendos.

Todavia, na alínea n) do artigo 164.º da lei fundamental, para além da modificação de autarquias locais, também está incluída a matéria respeitante à sua criação e respectivo regime, e estes, no que se reporta às regiões administrativas - muito embora, como já se sublinhou, a lei de criação dessas regiões não seja, ela mesma, sujeita a referendo -, não deixam, de forma indirecta, de ser objecto de consulta referendária.

Efectivamente, a instituição em concreto das regiões administrativas depende, ex vi do n.º 1 do artigo 256.º da Constituição, da lei de criação e do voto favorável resultante de um referendo de alcance nacional ao qual, forçosamente, não podem, de todo em todo, ser estranhos os parâmetros acarretados por aquela criação (ou, dizendo de outro modo, os elementos que globalmente configuram as regiões) com a consequente definição, quer do território que a cada uma cabe, quer dos respectivos poderes, quer da composição, competências e funcionamento dos seus órgãos, quer, por fim, das diferenciações de regime que aquela lei de criação eventualmente venha a estabelecer. E daí que se possa concluir que, na realidade das coisas, se é certo que a Lei de Criação das Regiões Administrativas não é, qua tale, referendável, menos certo não é que o regime que nela é estatuído - e que terá de ser reflectido na concreta instituição das regiões - terá de ser directamente sufragado pelos cidadãos ou, o que é o mesmo, terá de ser directamente legitimado, não podendo o legislador prescrever em sentido diverso do que resultou da consulta popular.

Claro que não seria pelo que imediatamente acima se veio de dizer que se poria, sem mais, em causa uma exclusão do âmbito do referendo da matéria respeitante à criação da subespécie «regiões administrativas» da espécie autarquias locais.

Só que, com respeito às regiões, e tendo em conta o que, quanto a elas, se consagra nos artigos 255.º e 256.º da lei fundamental, não se poderá deixar de convir que, referentemente às demais autarquias locais, há uma relação «regra geral/regra excepcional», pelo que toca ao regime que se estipula nos artigos 115.º, n.º 4, alínea d), e 164.º, alínea n).

De facto, é a própria Constituição que, de modo expresso, prevê um procedimento no tocante à instituição dessas regiões, procedimento esse que inclui a feitura de uma consulta referendária, pelo que se poderia até dizer que, quanto ao «bloco constitucional» que a elas respeita, se posta ele numa «região de estranheza» relativamente ao «bloco» de criação, extinção, modificação e regime das demais autarquias locais.

Nesta senda, o Tribunal defende, neste particular, que não se antevê como lícito perante a postura constitucional decorrente da revisão de 1997 que o intérprete ou o legislador possa retirar da democracia directa no tocante às regiões aquilo que a própria lei fundamental não permite e que, no fundo, se traduz numa vinculação dirigida ao legislador ordinário do resultado referendário ou, como alguns autores sustentam, «uma força de lei material positiva» ou «uma força de lei formal negativa» (cf. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, pp. 267 e segs.).

É comummente sabido que as autarquias locais são tidas como pessoas colectivas de população e território, motivo pelo qual este último é, a todos os títulos, um elemento essencial estrutural dessas pessoas colectivas.

Como antes da instituição concreta das regiões exige a Constituição que seja auscultada a opinião dos cidadãos eleitores, a mesma, necessariamente, terá, de entre o mais, que ter em conta aquele elemento estrutural de uma realidade sobre a qual se vão pronunciar. Ora, uma alteração ou modificação de tal elemento - nomeadamente se for acentuada, o que, nesses casos, poder-se-ia dizê-lo, equivaleria a uma verdadeira «reinstituição» de determinada região - sem precedência de um processo que imponha uma consulta referendária equivaleria a uma verdadeira subversão da exigência contida no artigo 256.º da Constituição.

Assim - independentemente do problema de saber se uma determinada questão, uma vez submetida a referendo e sendo positiva a resposta a extrair da consulta popular, à matéria referente a essa questão não mais poderá ser conferido diverso tratamento legislativo sem que, previamente, se realize nova auscultação directa dos cidadãos eleitores -, o Tribunal defende que, no vertente caso, a consulta referendária impõe-se em face do princípio que resulta da conjugação dos artigos 255.º e 256.º da Constituição, consulta essa que haverá de ter lugar depois da feitura de uma lei orgânica alteradora dos limites geográficos das regiões administrativas.

Na verdade, para a sua instituição em concreto impõe a lei fundamental a realização prévia de um referendo vinculativo que, como se sublinhou, tem, por entre o mais, de pressupor, de entre os elementos que globalmente configuram aquelas regiões, o tocante ao respectivo território. Como, na sequência da resposta positiva à consulta referendária, não poderá o legislador deixar de instituir em concreto as regiões, uma alteração territorial, após tal consulta, e sem nova auscultação directa da vontade popular, significaria, bem vistas as coisas, uma verdadeira ultrapassagem do poder vinculativo daquela primitiva consulta e, dessa sorte, uma diminuição do asseguramento da democracia directa que os artigos 255.º e 256.º impõem para o caso.

Ora, neste mesmo caso - em que a adopção de uma medida legislativa (a instituição em concreto das regiões) está intrinsecamente ligada a uma consulta directa, o que significa que a edição legislativa está condicionada e é directa consequência dessa consulta - não seria cabido, entende o Tribunal, sustentar a possibilidade de, sem que nova auscultação directa da vontade dos cidadãos viesse a ter lugar a seguir à edição de lei orgânica que alterasse os limites geográficos das regiões, se alterar, porventura imediatamente a seguir, um dos elementos que, por entre outros, foi parametricamente decisivo para a formação da vontade colectiva que deu origem ao resultado referendário.

Neste contexto, entende o Tribunal que o disposto na alínea d) do n.º 4 do artigo 115.º da Constituição, ao menos no que concerne à modificação e regime das autarquias locais, não é aplicável à subespécie «regiões administrativas», para as quais, no tocante àqueles pontos, deve reger o princípio de que as modificações dos respectivos elementos estruturais não possam ser efectuados sem precedência de consulta referendária a realizar após a edição de uma lei orgânica que altere tais elementos, como se extrai da conjugação dos artigos 255.º e 256.º do diploma básico.

E porque se interpretou o n.º 1 do artigo 11.º do decreto como permitindo a alteração ou modificação dos limites das regiões administrativas sem uma tal precedência, concluir-se-á, nessa medida, pela desconformidade constitucional da norma em apreço em face da violação do princípio que se emerge dos artigos 255.º e 256.º da lei fundamental.

4 - Formulado este juízo - que assentou, quanto às alteração ou modificação dos limites territoriais das regiões, na exigência de uma consulta directa aos cidadãos, de acordo com um princípio que flui dos artigos 255.º e 256.º da Constituição -, não irá o Tribunal, porém, fornecer uma indicação exauriente acerca dos termos em que essa exigência deverá ser observada em tal situação e, nomeadamente, do âmbito territorial que, nessa mesma situação, deverá ter aquela consulta.

É que, estando em causa um princípio constitucional - pois é um princípio implicitamente acolhido no texto da Constituição, e dele extraído, e não uma acabada regra desse texto, designadamente a do seu artigo 256.º, que o Tribunal, na verdade, reputa violado -, não só a sua «concretização» passa por uma detida análise e ponderação da especificidade da situação a que ele há-de aplicar-se, como, além disso, não pode, sequer, excluir-se a priori que essa mesma «concretização» comporte uma certa margem, maior ou menor, de possibilidades de escolha (qualquer delas compatível com a Constituição).

Ora, assim sendo, há-de essa tarefa de «concretização» do princípio, eminentemente prospectiva e complexa como é, ser deixada primariamente ao legislador, ao qual privilegiadamente compete - não tendo o Tribunal de a ele se antecipar.

Eis porque, relativamente à «concretização» do princípio da necessidade de consulta directa aos cidadãos na situação em apreço (a de alteração dos limites territoriais das regiões), o Tribunal se limitará a sublinhar dois pontos.

Um deles, como já foi referido, é o de que essa necessidade não dispensa, por sua vez, a de uma intervenção parlamentar por via de lei orgânica, à semelhança do que se prevê no n.º 2 do artigo 256.º da Constituição.

Na verdade, se é a partir deste texto que se infere que em matéria de alteração dos limites regionais há-de vigorar um princípio de democracia directa, então, sob pena de incoerência e inconsequência constitucional, não pode deixar ainda de inferir-se do mesmo texto que tal princípio não vigorará aí, porém, em exclusivo, mas combinado com o princípio da democracia representativa, e desempenhando uma função «ratificativa» (ou aposterioristicamente condicionadora) relativamente a este último.

Este, dir-se-á, um ponto em que a Constituição não admite alternativa. Donde que a consulta directa haverá de ter lugar, no caso, em seguida à, e tendo presente a modificação dos limites territoriais das regiões, operada previamenta por lei orgânica emanada da Assembleia da República, e não (como é o caso do referendo previsto no artigo 115.º da Constituição) em ordem a uma ulterior decisão parlamentar.

O segundo ponto que se salientará tem a ver com a circunstância de a «concretização» dos princípios não poder prescindir do perfil das situações em presença - como já se disse - e, portanto, com a especificidade da situação que agora importa considerar.

Mais concretamente: tem a ver com o facto de nesta situação não se estar já perante a «inicial» instituição em concreto das regiões, mas tão-só perante uma subsequente alteração dos seus limites territoriais.

É que, sendo assim, afigura-se que em tal situação a consulta directa nunca poderá deixar de ter uma dimensão local; e, seguramente pelo menos, no caso de as alterações dos limites regionais assumirem um alcance ou amplitude tais (verbi gratia, as que importem uma verdadeira substituição do «modelo» de regionalização inicialmente ou anteriormente adoptado por um outro) que devam razoavelmente entender-se que importam, afinal, ao conjunto do todo nacional, haverá de exigir-se a realização de um referendo com este âmbito.

III - Em face do que se expôs, decide este Tribunal:
a) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 1.º do decreto 190/VII, aprovado em 9 de Outubro de 1997 pela Assembleia da República, subordinado ao título «Lei de Criação das Regiões Administrativas»;

b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do mesmo artigo 1.º por violação dos artigos 255.º e 256.º da Constituição;

c) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 11.º do citado decreto por violação do princípio que emerge dos aludidos artigos 255.º e 256.º da Constituição.

Lisboa, 10 de Dezembro de 1997. - Bravo Serra Alberto Tavares da Costa - Messias Bento - Maria da Assunção Esteves - Vítor Nunes de Almeida - Fernando Alves Correia - Maria Fernanda Palma [vencida quanto à alínea c) e com declaração de voto quanto à alínea b)] - José de Sousa de Brito [vencido quanto à alínea c)] - Armindo Ribeiro Mendes [vencido quanto à alínea c), nos termos da declaração de voto apresentada em conjunto com o Exmo. Colega Luís Nunes de Almeida] - Guilherme da Fonseca [vencido quanto às alíneas b) e c), conforme declaração de voto junta] Luís Nunes de Almeida [vencido quanto à alínea c), nos termos da declaração de voto junta] - José Manuel Cardoso da Costa.


Declaração de voto
I - 1 - Votei a inconstitucionalidade do artigo 1.º, n.º 3, do decreto 190/VII (acompanhando, consequentemente, neste ponto, a decisão do Tribunal), com o exclusivo fundamento de que as diferenciações de regime aplicáveis a cada região (a que se refere como possibilidade o artigo 255.º da Constituição) não poderão ser aprovadas após a consulta directa que se prevê no artigo 256.º, n.º 1, da Constituição. Entendo, diferentemente, que o processo de instituição em concreto das regiões na sua fase constitutiva impõe uma sequência em que a criação legal do modelo essencial de regionalização e do regime das regiões é um pressuposto da consulta directa e da instituição em concreto das regiões.

É certo que não decorre dos artigos 255.º e 256.º, n.º 1, da Constituição que eventuais alterações do regime geral ou especial constantes da lei ou das leis de criação das regiões, após a fase constitutiva de todas e cada uma delas regiões, exijam, necessariamente, por imperativo constitucional, uma repetição do processo previsto nos artigos 255.º e 256.º, n.º 1. Com efeito, a matéria da alteração do regime concreto de uma região, posterior à fase constitutiva ou à sua instituição em concreto, não foi abordada pela 4.ª revisão constitucional.

Todavia, perante esta «lacuna» constitucional só se poderia concluir pela admissibilidade de diferenciações de regime de cada região, contemporâneas da sua instituição em concreto, se tais diferenciações não possuíssem uma natureza constitutiva ou, dito doutro modo, não estivessem contempladas no artigo 255.º da Constituição. Ora, a norma em crise não permite sequer qualquer distinção entre diferenciações constitutivas e não constitutivas de regime, sendo forçoso concluir que as diferenciações de regime nela contempladas hão-de preceder a consulta directa do eleitorado prevista no artigo 256.º, n.º 1, da Constituição. Por esta razão, concluí pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º, n.º 3, do decreto 190/VII da Assembleia da República.

2 - As outras questões de constitucionalidade suscitadas - no âmbito do pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República - não conduziriam, no meu parecer, à inconstitucionalidade do artigo 1.º, n.º 3, do decreto 190/VII. Tendo sido a primitiva relatora deste processo, pronunciei-me, exaustivamente, sobre cada uma delas e penso que teria utilidade, pela dificuldade das questões jurídicas envolvidas, que o Tribunal as tivesse afrontado no texto do seu acórdão.

Assim, pelas razões constantes do memorando por mim elaborado, entendo que o artigo 1.º, n.º 3, não violaria o artigo 255.º (isoladamente), não violaria também o princípio da tipicidade dos actos legislativos consagrado no artigo 112.º, n.os 1 e 6, da Constituição e, especialmente no que respeita a leis orgânicas, no artigo 166.º, n.º 2, da Constituição e não violaria, por último, os princípios da constitucionalidade do exercício do poder político e da tipicidade e reserva constitucional da competência dos órgãos de soberania, consagrados nos artigos 108.º e 110.º, n.º 2, da Constituição, nem o princípio da separação e interdependência entre os órgãos de soberania, contemplado no artigo 111.º, n.º 4, da Constituição.

3 - Para averiguar se a norma constante do artigo 1.º, n.º 3, do decreto 190/VII da Assembleia da República viola, autonomamente, o artigo 255.º da Constituição (independentemente do disposto no artigo 256.º, n.º 1) é necessário responder às seguintes questões:

a) A exigência de lei orgânica aplica-se a todas as matérias referidas no artigo 255.º?

b) As leis de instituição em concreto das regiões poderão ser leis orgânicas?
A resposta à primeira pergunta é, obviamente, afirmativa. Se as diferenciações de regime relativas a cada região são matéria da lei de criação das regiões, embora não necessariamente num sentido histórico-formal de acto legislativo único e irrepetível, então toda a matéria da referida lei deve revestir, necessariamente, a natureza de lei orgânica, conforme preceitua o artigo 166.º, n.º 2.º Chega-se a esta conclusão atendendo à natureza da qualificação jurídico-constitucional como lei orgânica.

Com efeito, a introdução desta categoria de actos legislativos pela revisão constitucional de 1989 foi justificada pela necessidade de proteger certas matérias, essenciais à configuração do regime político e ao Estado de direito democrático, dos efeitos de uma instabilidade do poder político induzida pela rápida alteração das maiorias democráticas. Porém, tal instituto foi, necessariamente, produto do consenso de vários partidos políticos e não abrangeu todas as matérias estruturantes do Estado de direito democrático (cf. Rebelo de Sousa, Os Partidos Políticos no Direito Constitucional Português, 1983, pp. 650 e segs., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., 1991, pp. 845 e segs., e Luís R. Moreira da Silva, Da Lei Orgânica na Constituição da República Portuguesa, 1991, p. 60).

Assim, as leis orgânicas não são uma categoria autónoma de actos legislativos. São, em tudo, leis da Assembleia da República, identificadas pela natureza da matéria que versam. É, com efeito, a natureza da matéria que impulsiona o legislador constitucional a enumerar os casos em que é requerida lei orgânica e não teria sentido, por isso, limitar a reserva de lei orgânica ao primeiro acto legislativo que verse determinada matéria (sobre as matérias que foram escolhidas para a reserva orgânica, em função do acordo PSD/PS na revisão de 1989, cf. Gomes Canotilho, ob. cit., 5.ª ed., p. 846, e Luís Moreira da Silva, text. cit., pp. 57 e segs.).

Por outro lado, as leis orgânicas, pelo seu regime, função e valor reforçado (votação, controlo preventivo de constitucionalidade, veto e promulgação - artigos 168.º, n.º 5, 278.º, n.º 4, 136.º, n.º 3, e 112.º, n.º 3, da Constituição), não podem ser limitadas à normação de uma matéria num único e irrepetível momento histórico, pois, obviamente, novas leis orgânicas (e só elas) poderão alterá-las. O que está fora de causa é que uma lei ordinária possa regular as matérias incluídas na reserva de lei orgânica. Se isso suceder, verificar-se-á uma indirecta alteração da distribuição de competências e poderes constitucionalmente estabelecidos, tal como sustenta o Presidente da República no seu pedido.

4 - A segunda questão anteriormente enunciada indaga se as leis de instituição em concreto das regiões poderão qualificar-se como leis orgânicas quando regulem matérias previstas no artigo 255.º da Constituição. O Presidente da República sustenta que a remissão para o artigo 255.º, feita pelo n.º 3 do artigo 1.º do decreto 190/VII, não tem a virtualidade de converter a lei de instituição em concreto de cada região em lei orgânica porque a isso se opõe o princípio da tipicidade dos actos legislativos, consagrado no artigo 112.º, n.os 1 e 6, e, especialmente no que respeita a leis orgânicas, no artigo 166.º, n.º 2, da Constituição.

Todavia, a procedência deste argumento dependeria de que a tipicidade das leis orgânicas impusesse um sentido histórico ao acto legislativo a que se refere o artigo 255.º e não admitisse uma identificação de tal acto em razão da matéria e do sentido da vontade legislativa objectivamente expressa. Na verdade, o artigo 166.º, n.º 2, ao consagrar, conjugadamente com o artigo 112.º, n.os 1 e 6, a tipicidade das leis orgânicas, não se refere a actos legislativos historicamente identificados, mas sim a actos legislativos identificados pela matéria.

Por outro lado, a tipicidade das leis orgânicas não impede que matérias não sujeitas à reserva de lei orgânica sejam tratadas conjuntamente com matérias sujeitas a essa reserva. Nesta hipótese, as leis, materialmente mistas, hão-de ser qualificadas como leis orgânicas e devem ser submetidas ao regime mais rigoroso de aprovação, de veto e de fiscalização da constitucionalidade próprio das leis orgânicas. Deste modo, não se subtrairia à reserva de lei orgânica nenhuma matéria que lhe esteja constitucionalmente atribuída.

5 - Num outro plano, os argumentos da constitucionalidade do exercício do poder político e da tipicidade e reserva constitucional da competência dos órgãos de soberania (artigos 108.º e 110.º, n.º 2, da Constituição), bem como os argumentos relacionados com o princípio da separação e interdependência entre os órgãos de soberania (artigo 111.º, n.º 4, da Constituição), só prevaleceriam se, de algum modo, fosse subtraída ao Presidente da República a possibilidade de controlo (veto e fiscalização de constitucionalidade) daquelas leis de instituição concreta das regiões.

Ora, o facto de tais leis poderem consagrar, simultaneamente, matéria relativa às diferenciações de regime de uma certa região implica que, nessa parte, elas sejam submetidas ao regime das leis orgânicas. Não será pela circunstância de tais leis conterem outras matérias, que repercutem o resultado de um referendo, que elas ficariam globalmente subtraídas aos poderes de controlo (veto e fiscalização de constitucionalidade) do Presidente da República, como sucederá com as leis que apenas exprimam o efeito vinculativo de um referendo (artigo 115.º, n.os 1 e 8, da Constituição).

Não seria a inclusão formal de uma matéria de regime das regiões - não referendável - na mesma lei (em sentido formal e histórico) que consagra a resposta a um referendo sobre matérias legitimamente submetidas a tal consulta que tornaria, globalmente, tal lei subtraída aos poderes de controlo do Presidente da República.

Só uma confusão entre a matéria submetida a referendo e a lei que institua em concreto as regiões levaria a concluir que seriam afectados os princípios da constitucionalidade do exercício do poder político e da tipicidade dos actos legislativos e a reserva constitucional de competência dos órgãos de soberania e a separação e interdependência entre os órgãos de soberania. As leis que instituam em concreto as regiões não são objecto de referendo, nos termos do artigo 256.º, n.º 1, da Constituição, mas são precedidas de referendo que formula as suas condições de legitimidade e define matérias a que elas se terão de vincular. A organicidade de tais leis, em função das matérias não referendáveis previstas no artigo 255.º, sujeita-as ao regime de votação, controlo preventivo de constitucionalidade, veto e promulgação característico das leis orgânicas, ficando pois excluída qualquer restrição dos poderes e competências presidenciais, caso elas contemplassem matéria de diferenciação de regime das regiões.

II - 6 - Votei a não inconstitucionalidade do artigo 11.º, n.º 1, do decreto 190/VII, em face dos artigos 255.º e 256.º, n.º 1, da Constituição, por duas razões fundamentais:

a) Não resulta da intenção normativa do artigo 11.º, n.º 1, de modo explícito e inequívoco, uma exclusão de ulteriores processos de consulta directa;

b) A alteração de limites geográficos das regiões, numa fase posterior à sua instituição, sem consulta directa, não contraria necessariamente, em todos os casos, qualquer norma constitucional, nem a sua eventual inconstitucionalidade pode ser deduzida de princípios não positivados, tais como um hipotético princípio do referendo, derivado do artigo 256.º, n.º 1, da Constituição.

7 - A primeira divergência com a maioria do Tribunal refere-se à tese, sustentada no acórdão, de que o artigo 11.º, n.º 1, é passível de uma única interpretação, segundo a qual o procedimento previsto naquele preceito é incompatível com ulterior consulta directa. De tal interpretação decorreria, por isso, uma incompatibilidade com a Constituição, no caso de esta exigir para as alterações dos limites geográficos das regiões uma consulta directa aos eleitores.

A citada interpretação, sem dúvida necessária para um posterior pronunciamento pela inconstitucionalidade do artigo 11.º, n.º 1, não é sustentável. Com efeito, é desde logo absurdo considerar-se que existe incompatibilidade entre consulta directa posterior à criação de uma lei orgânica de alteração dos limites e a audição das assembleias municipais e regionais das regiões envolvidas, prevista no artigo 11.º, n.º 1.

Tal audição é meramente consultiva e integra-se, como o artigo 11.º, n.º 1, prevê, no processo de criação da lei orgânica que altera os limites geográficos. Uma eventual consulta directa seria vinculativa e integrar-se-ia numa fase diferente do processo de alteração dos limites geográficos. Apenas haveria incompatibilidade lógica entre a audição das assembleias municipais e uma consulta directa confirmativa das alterações territoriais se aquela audição fosse vinculativa, isto é, constituísse uma espécie de referendo orgânico.

A tese sustentada pela maioria do Tribunal é tanto mais incorrecta quanto é certo que no processo que levou à elaboração da lei de criação das regiões foi integrada uma auscultação das autarquias já existentes. O absurdo da tese da incompatibilidade manifestar-se-ia até na impossibilidade constitucional de conjugar audições consultivas integradas no processo de elaboração das leis com ulteriores consultas directas ratificativas das soluções legais.

Por outro lado, a afirmação de que, sendo o artigo 11.º, n.º 1, uma norma procedimental, não poderia, apesar da referência aos termos constitucionais, compatibilizar-se com uma consulta directa é surpreendente, já que, para a maioria do Tribunal, os «termos constitucionais» derivados do artigo 256.º, n.º 1, exigem a mesma consulta directa para alteração dos limites territoriais.

Na realidade, a tese de que o artigo 11.º, n.º 1, é uma norma procedimental e, por isso, necessariamente taxativa (fechada ou exaustiva) é exactamente contraditória com a circunstância de o artigo 11.º, n.º 1, ao remeter para os termos constitucionais, integrar uma cláusula normativa susceptível de interpretação jurídica. Assim, ou o artigo 11.º, n.º 1, por não ser taxativo, não pode ser uma norma procedimental no sentido definido pelo acórdão ou, ao ser uma norma procedimental, como sustenta o acórdão, é um exemplo de norma procedimental não taxativa.

Por fim, não resulta sequer dos princípios gerais do direito quanto à interpretação das normas que as normas procedimentais não sejam passíveis de interpretação conforme à Constituição, sobretudo tendo em conta que a intenção normativa fundamental do artigo 11.º, n.º 1, é ser conforme à Constituição.

Em face de todas estas razões, deveria o Tribunal não ultrapassar os ditames da pura necessidade lógica na interpretação jurídica e concluir pela não inconstitucionalidade do artigo 11.º, n.º 1, como questão prévia e prejudicial da ulterior questão de uma eventual contradição entre o artigo 11.º, n.º 1, e o artigo 256.º, n.º 1, da Constituição.

8 - A segunda divergência com a maioria do Tribunal resulta de considerar incorrecta a fundamentação «etérea» em que o pronunciamento pela inconstitucionalidade assentou e o seu resultado. Na verdade, a maioria do Tribunal entendeu que o artigo 256.º, n.º 1, não prevê qualquer processo de alteração de limites geográficos das regiões. E admite, igualmente, que a não previsão dessa matéria é uma lacuna constitucional. Mas considera que essa mesma lacuna (cuja hipotética intencionalidade não se averigua, apesar do artigo 256.º, n.º 1, ser produto da 4.ª revisão constitucional) não se pode colmatar por analogia, mas apenas pelo recurso a um princípio do qual resultaria a criação de uma norma no espírito do sistema (artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil), que exigiria a consulta directa no caso de qualquer alteração dos limites geográficos. E, enfim, é desse «tortuoso» processo lógico que deriva a inconstitucionalidade do artigo 11.º, n.º 1.

Efectivamente, não é o artigo 256.º, n.º 1, da Constituição que é violado. Não abrangendo tal norma constitucional as alterações geográficas das regiões, ela nem sequer seria violável: uma norma legal não pode violar uma norma constitucional que não prevê a matéria de que trata. Mas, então, só se poderá violar um princípio derivado do artigo 256.º, n.º 1, que exigiria a consulta directa nos casos de quaisquer alterações territoriais.

A partir deste ponto, o acórdão introduz um discurso jurídico cuja legitimação jurídico-constitucional é de difícil apreensão, tendo em conta os cânones da interpretação jurídica. Com efeito, a maioria do Tribunal rejeita qualquer subsídio sistemático de regulamentação da matéria da alteração dos limites das regiões, nomeadamente o artigo 164.º, alínea n), da Constituição [em articulação com o artigo 115.º, n.º 4, alínea d), da Constituição], e prefere, em matéria directamente conexa com a estrutura dos poderes constitucionais e o regime político, apelar a um vago princípio referendário. Ora, se o apelo a princípios insuficientemente positivados é defensável em sede de direitos fundamentais e, sobretudo, ao nível da sua promoção, já no capítulo dos poderes constitucionais dos órgãos de soberania e do regime político o apelo a tais princípios pode assumir a dimensão de revisão constitucional «subliminar».

Por fim, a corroborar que esse pretenso princípio constitucional não é invocável, está o facto de o seu conteúdo preciso não ter sido alcançado pela maioria do Tribunal. No acórdão, apenas se reconhece que haverá casos em que seria exigível consulta regional e nacional para alterar limites regionais e outros casos em que não é esclarecido se bastará uma consulta regional. O princípio da consulta directa com fundamento na qual se inconstitucionaliza um preceito que o não exclui não tem, afinal, um conteúdo preciso nem revela plenamente a sua racionalidade. O acórdão invoca um princípio que não permite decidir quais os casos que justificam a repetição do processo global do artigo 256.º, n.º 1, e quais os casos que apenas exigiriam uma consulta regional.

Na opinião que expendi no memorando que, como relatora vencida, apresentei sugeri que o artigo 256.º, n.º 1, apenas seria violado quando uma alteração territorial implicasse uma alteração essencial do modelo de regionalização e do mapa regional. Só nesse caso o artigo 11.º, n.º 1 (se pudesse ter tão vasto alcance), conduziria à inconstitucionalidade, por violação do artigo 256.º, n.º 1. Com efeito, só em situações em que as alterações possam ser interpretadas como repetição do processo constitutivo das regiões será defensável a aplicação por analogia do artigo 256.º, n.º 1.

Nunca se poderá extrair do artigo 256.º, n.º 1, como imperativo constitucional, uma sua aplicação parcial (que conduzirá a um mero referendo regional para alterações limitadas e correctivas dos limites geográficos). Por outro lado, a tese de que qualquer alteração mínima de limites geográficos subordinada ao princípio da contiguidade conduz a uma aplicação por analogia do artigo 256.º, n.º 1, terá de levar à conclusão de que se deverá repetir todo o processo previsto no artigo 256.º, n.º 1, da Constituição (referendo nacional e regional).

Por fim, acrescentarei que não está em causa no pronunciamento sobre a inconstitucionalidade, mesmo em fiscalização preventiva, qual a melhor solução legislativa, entre as várias compatíveis com a Constituição, mas apenas quais as soluções legislativas inconstitucionais. Ora, nesse âmbito, parece-me que existirão apenas duas soluções jurídicas: aplicação analógica do artigo 256.º, n.º 1, para situações de recriação e reinstituição das regiões em consequência de alterações do modelo; recurso às soluções constitucionalmente previstas nos artigos 164.º, alínea n), 166.º, n.º 2, e 255.º da Constituição para a alteração dos limites das autarquias (que se aplica às regiões por força do artigo 236.º da Constituição), isto é, inclusão na competência da Assembleia da República em matéria de reserva de lei orgânica.

Toda e qualquer outra solução, nomeadamente a utilização de referendos regionais para ratificar alterações não reconstitutivas do modelo de regionalização, afronta as competências constitucionalmente atribuídas aos vários órgãos de soberania, nomeadamente as que explicitamente são consagradas no artigo 164.º, alínea n), em conjugação com o artigo 115.º, n.º 4, alínea d), da Constituição. - Maria Fernanda Palma.


Declaração de voto
1 - Votei vencido quanto à declaração de inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 11.º do decreto 190/VII, por entender que este preceito, ao remeter para «os termos constitucionais» o processo de alteração dos limites geográficos das regiões administrativas, com a única especificação de que tal processo «inclua a audição das respectivas assembleias municipais e das assembleias regionais das regiões envolvidas», não exclui, mas antes implica, consultas populares semelhantes às previstas no artigo 256.º da Constituição.

2 - O facto de a norma do n.º 1 do artigo 11.º ser uma norma de procedimento não implica, ao contrário do que diz o acórdão, que, «se nada mais é referido pelo legislador, o procedimento por ele adoptado esgota-se em si mesmo e, por isso, não é defensável que no mesmo algo mais possa caber». Desde logo, mesmo que fosse boa a doutrina, e não é, ela não teria aplicação no caso, porque o legislador refere algo mais, pelo menos três vezes. Em primeiro lugar, diz que o procedimento que prescreve para a alteração dos limites das regiões terá lugar «nos termos constitucionais»; ora, esta remissão só pode referir a outros trâmites o iter procedimental, além do que «prescreve» como conteúdo de futura lei orgânica (isto é, de lei do mesmo nível hierárquico, pelo que a norma procedimental não é uma verdadeira norma prescritiva, mas uma declaração de intenção legislativa, um programa), que é a audição das assembleias municipais e regionais envolvidas, já que este trâmite não é previsto na Constituição. Em segundo lugar, usa o advérbio «designadamente», implicando que a referida audição é apenas uma das exigências que a lei orgânica necessária para a alteração «fará» quanto ao modo de efectivação da alteração (aliás, a própria referência à lei orgânica implica uma remissão para disposições procedimentais da Constituição, que o n.º 1 não descreve). Em terceiro lugar, refere que tal lei assegurará que o processo «inclua» a audição, o que implica que o processo não consiste apenas na audição, mas inclui outros trâmites.

Aliás, o próprio acórdão (supra n.º 2) admite que o procedimento da criação legal das regiões administrativas «não tenha de constar de um só acto normativo» e «possa ser levado a cabo faseadamente», nomeadamente «o estabelecimento das diferenciações, que porventura implique uma diversidade de regimes delas decorrentes». Ora, se o procedimento da criação, no que toca a diferenciação de regime, não tem de constar de um só acto normativo, porque terá de constar de um só acto normativo o procedimento de alteração dos limites geográficos?

Acresce que é a própria Constituição que contém normas de procedimento que não descrevem tudo o que cabe no procedimento que regulam. Assim, o procedimento de criação de regiões administrativas não está previsto exaustivamente pela norma do artigo 255.º da Constituição, mas esta norma tem de ser integrada com as dos artigos 166.º, n.º 2, 168.º, n.º 5, 239.º, n.º 3, e 298.º da Constituição.

Só que a doutrina do acórdão sobre normas de procedimento também não é boa, porque nada no conceito, nem no regime legal, das normas de procedimento necessita que o procedimento que adoptam se esgote em si mesmo, de modo que nada mais nele possa caber. Basta atentar nas normas de procedimento por excelência, que são as do processo civil, para verificar que, em quase todos os trâmites do processo, os sujeitos processuais têm várias possibilidades de acção - pense-se por exemplo na desistência da instância ou do pedido, que são possíveis até ao trânsito em julgado da sentença -, algumas das quais não estão descritas na norma que descreve o trâmite, nem no conjunto de normas em que essa norma imediatamente se insere.

Apenas num sentido as normas de procedimento ou de processo se esgotam em si mesmas: enquanto tais apenas visam situações jurídicas processuais, que determinam os actos em cada momento admissíveis no processo, não visam, alteram ou extinguem relações jurídicas. Esta é a essência da teoria das normas processuais de James Goldschmidt (Der Prozess als Rechtslage, 1925, reimp., 1962, especialmente pp. 227 e segs.). Mas a crítica (assim, sobretudo, Eberhardt Schmidt, Lehrkommentar zur Strafprozessordnung und zum Gerichtsverfassungsgesetz, I, 2.ª ed., 1964, pp. 57 e segs.) logo observou que os mesmos preceitos, que contêm tais normas, atribuem ou negam direitos e obrigações dos sujeitos processuais, que possibilitam uma análise jurídico-material do processo como um conjunto de relações jurídicas (reguladas por «normas jurídicas», na terminologia de Goldschmidt). Ora, é esta análise «ao nível do direito material do Estado» (Goldschmidt) que interessa ao direito constitucional. É assim que o próprio acórdão se ocupa da questão de saber se a norma de procedimento «permite» a omissão da consulta popular, ou se antes «não quis», isto é, proíbe, a mesma consulta, abandonando a perspectiva isolada que se esgota em si mesma, das normas procedimentais ou processuais. Mas é claro que em qualquer das perspectivas, se uma norma regula apenas um acto de um processo que integra vários outros actos, não exclui por isso, antes implica ou pressupõe, outras normas que têm por objecto outros actos do mesmo processo. Relativamente a estes outros actos, que não são seu objecto, a primeira norma não dispõe sobre a sua admissibilidade nem, como «norma jurídica», os proíbe ou permite. Para concluir que o n.º 1 do artigo 11.º proíbe uma consulta popular, o acórdão tem de pressupor uma outra norma geral, segundo a qual, se há uma norma de procedimento, nada mais pode caber nesse procedimento além do que nela se prevê, norma geral que eu tenho por inexistente. E de modo semelhante, para eu concluir o contrário, tenho de entender que a Constituição contém outra norma, para que remete o n.º 1 do artigo 11.º através das palavras «nos termos da Constituição», e que comanda uma consulta popular. Assim se compreende, talvez, a equivocidade do acórdão, ao dizer uma vezes que o n.º 1 do artigo 11.º «permite» a omissão da consulta popular - quando o considera isoladamente -, outras que proíbe («não quis») a mesma consulta - quando o considera conjugadamente com a pretensa norma exclusiva de mais trâmites, como argumento pela inconstitucionalidade.

3 - O segundo argumento invocado no acórdão é o de que «não seria perfeitamente compreensível a razão de a audição das assembleias municipais e das assembleias regionais das regiões envolvidas no processo de alteração nela previsto houvesse de pressupor a realização de uma consulta directa para auscultação da vontade dos cidadãos». A razão é bem compreensível num referendo proposto pela maioria parlamentar: é garantir uma resposta positiva ao referendo. Já foi de certo essa razão que esteve na base da consulta pública sobre a regionalização, que incluiu a audição de associações nacionais representativas das autarquias e dos representantes das áreas metropolitanas, procurando recolher parecer «do maior número possível de assembleias municipais e desejavelmente de todas elas» (cf. Assembleia da República, Consulta Pública sobre a Regionalização, 1997). Ora, a consulta foi decidida pela Assembleia da República, não obstante devesse haver consulta popular e politicamente porque a ia haver. É sabido que a Constituição procurou evitar que o referendo legislativo fosse utilizado como «contrapoder da oposição» (assim o caracteriza Jochen Frohwein, «Les référendums - Aspects de Droit comparé», La participation directe du citoyen à la vie politique et administrative, dir. Francis Delferée, 1986, p. 103), exigindo a participação da Assembleia da República, mesmo no referendo de iniciativa popular do n.º 2 do artigo 115.º

É, portanto, inteiramente compreensível e conforme com o espírito da Constituição que a Assembleia da República faça proceder as suas deliberações sobre a regionalização, que ficarão dependentes de consulta popular, da audição das autarquias envolvidas.

4 - Demonstrado que o n.º 1 do artigo 11.º do projecto não exclui uma consulta popular, falta demonstrar que a implica, por força da remissão para «os termos da Constituição». Será que a Constituição impõe uma consulta popular, em matéria de alteração dos limites geográficos de uma região? Quais o conteúdo e os limites de imposição constitucional? Como estou aqui de acordo no essencial com a maioria do Tribunal, limitar-me-ei a focar alguns pontos em que, em minha opinião pessoal, o Tribunal deveria ter dito mais ou deveria ter dito diferentemente.

5 - No pressuposto, que tenho por errado, de que o n.º 1 do artigo 11.º proíbe uma consulta popular em caso de alteração dos limites geográficos de uma região, o acórdão conclui pela sua inconstitucionalidade, por violação de um princípio que se deduz dos artigos 255.º e 256.º da Constituição, princípio que impõe a obrigatoriedade de uma consulta popular nessa hipótese. Se o princípio tem este conteúdo normativo, então também seria violado se o n.º 1 do artigo 11.º apenas permitisse a omissão de consulta. Abstraindo agora da interpretação do n.º 1 do artigo 11.º, importa aqui a doutrina da obrigatoriedade da consulta. Como se deduz ela dos artigos 255.º e 256.º?

O artigo 256.º, n.º 1, faz depender a aprovação da lei de instituição de cada região administrativa e, mais genericamente, a instituição em concreto de cada uma, da lei de criação simultânea das regiões administrativas a que se refere o artigo 255.º da Constituição e, ainda, do voto favorável da maioria dos cidadãos eleitores, em consulta directa de âmbito nacional sobre a instituição em concreto das regiões, bem como do voto favorável da maioria dos cidadãos eleitores da área de cada região administrativa, em consulta directa sobre a instituição em concreto da região correspondente a essa área. Embora este preceito se refira à instituição de cada região e não à alteração dos limites geográficos de uma região já instituída, pode deduzir-se dele que a alteração dos limites da área de uma região deve depender do voto favorável dos eleitores da área novamente delimitada sempre que os novos limites impliquem uma alteração da identidade da região. A fixação de novos limites territoriais equivale então à instituição de uma outra região.

O território não é o único, mas é certamente o elemento estrutural das regiões determinante para a sua identidade, pois é ele que permite identificar aquela parte do povo que é o substrato societário da pessoa colectiva que é a região como autarquia local (artigos 235.º, n.º 2, e 236.º, n.º 1, da Constituição). Em contraposição, o estatuto jurídico, que é também um elemento essencial da autarquia, só tem os elementos identificadores que resultam das referências territoriais das suas normas (sobre sujeitos, poderes, âmbito de validade especial das normas, etc.). Abstraindo destes elementos os estatutos jurídicos das várias regiões que derivam da Constituição, da Lei 56/91 e que derivariam do decreto 190/VII, uma vez transformado em lei, seriam idênticos (artigo 255.º da Constituição). Do mesmo modo, poderá alterar-se o regime ou estatuto jurídico do conjunto das regiões e ou de alguma delas sem prejuízo da identidade de cada uma. Por outro lado, é certo que não é qualquer alteração dos limites territoriais - como seja a alteração da área de um dos municípios que integram a região -, como não é qualquer alteração das pessoas do povo da região - por mortes, nascimentos, mudanças de residência, por exemplo - que afecta a identidade da região. E a razão é a de que nada no direito nos indica que tais modificações do território ou da população relevem para a identidade de uma região. Mas a alteração dos critérios que estão na base da definição legal do território da região, como conjunto dos territórios dos municípios que a integram, não pode deixar de afectar a própria identidade da região. Com efeito, os limites geográficos de cada área regional não são definidos através dos acidentes da geografia física mas da designação dos municípios agregados (artigos 3.º a 10.º do decreto 190/VII).

A função identificadora dos municípios na constituição da região é especialmente relevante para o efeito da definição do corpo eleitoral consultado, a que se referem os n.os 1 e 2 do artigo 256.º O corpo eleitoral de cada região é concebido no decreto 120/VII como a agregação dos corpos eleitorais dos vários municípios que constituem cada região e que intervêm separadamente na modificação dos limites geográficos da região através da prévia consulta das respectivas assembleias municipais, eleitas separadamente pelos corpos eleitorais de cada município. Segundo os artigos 14.º e 22.º da Lei 56/91, o corpo eleitoral da região elege directamente parte da assembleia regional e indirectamente, através de um colégio eleitoral constituído pelos membros das assembleias municipais da mesma área designados por eleição directa, a parte restante. E a mesma concepção estava explícita na anterior redacção do n.º 1 do artigo 256.º da Constituição, que exigia para a instituição em concreto o voto favorável «da maioria das assembleias municipais que representem a maior parte da população da área regional».

Ora, do que se trata, quando se questiona a extensão do princípio da democracia directa nas regiões administrativas, é de saber em que hipóteses intervém o conjunto dos cidadãos eleitores dessa autarquia num referendo, ou seja, quando o corpo eleitoral se torna corpo referendário. É, com efeito, através do corpo eleitoral que o «povo» da autarquia, a comunidade regional, exerce directamente o poder local, nomeadamente pelo sufrágio e pelo referendo (cf. o artigo 10.º da Constituição). O n.º 1 do artigo 256.º exige para a instituição em concreto de cada região uma dupla legitimação: a resultante da intervenção da Assembleia da República (aprovando a lei orgânica da criação antes e a lei de instituição depois da consulta popular) e a intervenção directa do corpo eleitoral nacional (aprovando a instituição em concreto do conjunto das regiões) e do corpo eleitoral de cada região (aprovando a instituição em concreto dessa região). Se há uma alteração dos municípios integrados numa região, a região em concreto resultante deixou de estar legitimada pelo corpo eleitoral que lhe corresponde. Tal legitimação só lhe pode advir do voto favorável do correspondente corpo eleitoral, agora diferentemente constituído.

Nem se diga, assim como a pessoa colectiva que é a região administrativa, uma vez constituída, não deixa de ser o mesmo centro de imputação de direitos e obrigações apesar das alterações da área regional, sem prejuízo de eventual sucessão ou fusão de regiões, também o corpo eleitoral não deixa de ser juridicamente o mesmo quando muda de composição. Não é assim. O Estado Português não deixou de ser o mesmo, quando o seu povo deixou de ser também constituído pelo das «províncias ultramarinas» tornadas Estados independentes. Mas o povo português deixou de ser o mesmo, tanto de facto como de direito e analogamente quanto às regiões.

É claro que a Constituição poderia ter querido que as regiões administrativas tivessem uma legitimação referendária no momento da sua instituição e ter dispensado essa forma de legitimação em modificações posteriores da sua base identitária. O problema político da instituição é diferente do das modificações posteriores, que não necessitariam da mesma sinergia de vontades. Esta última tese é falsa: a crise de legitimação pode ser maior na modificação do que na origem. Seria preciso uma indicação clara da Constituição contra a prevalência do argumento de identidade de razão e tal indicação não existe.

6 - Do argumento antecedente deduz-se a obrigatoriedade constitucional de uma consulta popular relativa a cada área regional que resulte alterada pela inclusão ou exclusão de um ou mais municípios. Não se deduz também a obrigatoriedade de uma consulta popular de alcance nacional, porque o corpo eleitoral da consulta nacional não é alterado pela modificação territorial de algumas regiões.

A consulta de alcance nacional tem um significado profundamente diferente. Não se trata aí do exercício do poder local directamente pelo corpo eleitoral da região, como forma de participação na instituição da própria região, mas do exercício directo do poder político pelo povo, através da participação por referendo do corpo eleitoral nacional num processo legislativo, em que a pronúncia favorável da maioria dos cidadãos eleitores participantes é condição de eficácia dos referendos regionais (n.º 2 do artigo 256.º) e da aprovação da lei de instituição de cada região pela Assembleia da República (n.º 1 do artigo 256.º). Assim sendo, é claro que a situação de aplicação da norma constitucional que comanda condicionalmente a realização da consulta nacional, que é a situação do estabelecimento do sistema regional com a primeira instituição das regiões, não se repete cada vez que está em causa uma modificação de área regional. Faz todo o sentido que a Constituição trate aquela situação como irrepetível, para o efeito da exigência da consulta de alcance nacional, e que se interprete a restrição do texto constitucional à hipótese da inicial instituição das regiões como intencional.

Na verdade, se bem se compreende que se faça depender a eficácia da vontade local de instituir uma região de uma maioria nacional a favor da instituição do sistema das regiões administrativas, já o mesmo não vale para fazer depender a modificação territorial de regiões determinadas de uma maioria nacional. Enquanto na primeira hipótese se faz depender uma vontade local sobre matéria local de uma vontade nacional sobre matéria nacional, na segunda hipótese faz-se depender uma vontade local de uma vontade nacional sobre matéria local. Na primeira hipótese há prevalência do poder político de âmbito nacional sobre o poder local, compatibilizando a autodeterminação autárquica com a política nacional, na segunda há interferência de uma entidade externa à autarquia ou às autarquias envolvidas numa decisão própria do poder autárquico, anulando a audodeterminação autárquica.

Resulta daqui que, na relação da vontade com a titularidade dos interesses, as vontades não valem por igual. A minha vontade relativamente ao meu interesse prevalece justamente sobre a vontade da maioria. Um modo de garantir juridicamente a prevalência de uma vontade individual ou colectiva relativamente a certos interesses é definir uma esfera de autonomia da vontade, isto é, uma esfera de interesses regulada exclusivamente pela vontade do respectivo titular. Em matéria de poder local está excluída a exclusividade, porque os interesses, quando não os órgãos que sobre eles dispõem, sobrepõem-se: os interesses de cada município são muitas vezes também interesses da região e os representantes municipais integram órgãos da região. Ainda assim, o princípio da solidariedade (artigo 6.º da Constituição) procura garantir a autonomia possível em função da proximidade dos interesses. Compreende-se, assim, que a vontade dos corpos eleitorais das regiões envolvidas numa alteração de áreas regionais prevaleça sobre a vontade do corpo eleitoral nacional ou exclua a intervenção deste.

7 - Na lógica destes princípios poderia pensar-se como conforme com o espírito da Constituição uma especial qualificação do voto do corpo eleitoral do município ou dos municípios envolvidos numa modificação de áreas regionais relativamente ao dos corpos eleitorais das regiões. Em caso paralelo, da modificação das áreas dos Estados federados da República Federal da Alemanha, dispõe o artigo 29.º, secção 3, da Grundgesetz que a decisão popular a favor da formação de um Estado (Land) novo ou com novos limites «não se efectiva, quando no território de um dos Estados federados envolvidos uma maioria recusa a alteração; a recusa não é, porém, considerada quando numa parte do território, cuja pertença ao Estado envolvido se deve alterar, uma maioria de dois terços concorda com a alteração, a não ser que na área total do Estado envolvido uma maioria de dois terços recusa a alteração». O exemplo alemão é ilustrativo da problemática que venho expondo e da dificuldade que se levanta quando diversos corpos referendários se pronunciam, porventura diferentemente, sobre a mesma questão. Mas a solução alemã não é importável sem alteração da Constituição, que não prevê esta espécie de referendo municipal (cf. artigos 10.º e 240.º).

Para alteração dos limites geográficos terá de haver, portanto, voto favorável da maioria dos cidadãos eleitores de todas as regiões envolvidas, depois da prévia alteração correspondente da lei orgânica de criação, ambas como condição da aprovação da alteração da lei de instituição de cada região envolvida. A entrada em vigor da modificação da lei de criação teria de ficar também dependente do resultado da consulta. O acórdão prefere um procedimento mais simples, dispensando a alteração da lei ou leis de instituição, mas não vejo com que base constitucional admite uma consulta referendária que não é integrada num processo legislativo, antes se opõe a ele, ratificando ou revogando uma lei orgânica (contra o n.º 6 do artigo 112.º da Constituição).

8 - Demonstrado que a obrigatoriedade condicional de uma consulta de alcance nacional, na hipótese de uma alteração da área regional, não deriva das mesmas razões que fundamentam a única consulta nacional prevista no artigo 356.º, resta averiguar se ela não resultará de outra linha argumentativa com base constitucional. Tal seria o argumento baseado na força do referendo, na vinculatividade do resultado do referendo. Da força do referendo, isto é, da eficácia que a Constituição atribui ao referendo, há que distinguir a força da lei referendada, que está na base de outro argumento, de que tratarei depois. Quando o acórdão, a propósito da «vinculação dirigida ao legislador ordinário do resultado referendário», fala da «força de lei material positiva» e de «força de lei material negativa» está a confundir duas linhas argumentativas diferentes. A Constituição não dá ao referendo força de lei e proíbe que lhe seja dada (artigo 112.º, n.os 1 e 6).

Quanto aos efeitos da consulta directa de alcance nacional prevista no artigo 256.º, a Constituição faz depender da pronúncia favorável da maioria dos cidadãos eleitores participantes em relação à pergunta sobre a instituição em concreto das regiões administrativas a aprovação da lei de instituição de cada uma delas (n.os 1 e 2). Se a mesma maioria não se pronunciar favoravelmente, as respostas às perguntas que tenham tido lugar relativas a cada região não produzirão efeitos (n.º 2).

Isto significa que uma pronúncia que preencha os requisitos referidos - o voto favorável da maioria dos cidadãos eleitores participantes - é uma condição da aprovação da lei ou leis de instituição em concreto. Não significa que de tal pronúncia resulte uma vinculação do legislador ordinário à aprovação de qualquer lei de instituição. Essa aprovação não é, desde logo, obrigatória e é mesmo proibida, se não for acompanhada do voto favorável da maioria dos cidadãos eleitores da região, relativamente à pergunta relativa a essa região. Mas mesmo quando este segundo voto seja favorável da forma indicada, continue a Assembleia da República a ser livre de aprovar ou não a lei de instituição, em vista do teor do artigo 256.º E compreende-se que assim seja. Suponhamos que apenas 20% dos eleitores se pronunciaram. É compreensível que a Assembleia considere não se verificarem então as condições políticas que garantam o sucesso da regionalização e não queira aprovar a instituição em concreto. A vinculação do legislador ordinário seria tanto mais injustificada, quanto, em geral, se o número de votantes não for superior a metade dos eleitores inscritos, os referendos não têm efeito vinculativo (n.º 11 do artigo 115.º a contrario). Apenas no caso de o número de votantes ser superior a metade dos eleitores inscritos nas duas consultas, de âmbito nacional e regional, e a resposta em ambas favorável, é que se poderia extrair um argumento a favor da obrigatoriedade da aprovação, tirado da remissão do n.º 3 do artigo 256.º para o regime decorrente do artigo 115.º Mas mesmo esse argumento só valeria se se verificasse o pressuposto da normalmente previsível coincidência nessa hipótese entre a votação nacional e as votações regionais. Se um número importante de regiões vota contra a instituição em concreto, deveria entender-se que o legislador nacional seria livre de avançar ou não com o processo da regionalização, justificando-se a «adaptação» do regime decorrente do artigo 115.º pelo ideal da criação e subsequente instituição em simultâneo de todas as regiões, que se deduz do artigo 255.º, e pelos óbvios inconvenientes de uma regionalização suportada apenas pelas regiões mais populosas.

Por outro lado, se a pronúncia da maioria dos votantes na consulta nacional for negativa, deduz-se do n.º 2 do artigo 256.º uma proibição da aprovação das leis de instituição, seja qual for a percentagem dos votantes no número dos eleitores (assim, Jorge Lacão, Constituição da República Portuguesa, Prefácio e Anotações, 1977, p. 138).

Pode ainda questionar-se se, no caso de resposta negativa do eleitorado, há uma proibição de renovação da consulta na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia da República, que se deduziria do n.º 10 do artigo 115.º A Lei 56/91 previa (artigo 13.º, n.º 5) nova consulta não referendária no prazo de um ano, «não se obtendo as deliberações necessárias para a instituição concreta da região», revelando não considerar valerem aqui razões análogas às que determinam o prazo do n.º 10 do artigo 115.º O referido artigo 13.º, n.º 5, foi revogado pela revisão constitucional de 1997, mas por prever outro tipo de consulta não directa, não por a Assembleia ter outro entendimento quanto à aplicabilidade do prazo do n.º 10 do artigo 115.º Não é necessário decidir aqui a questão.

Além dos efeitos referidos, nenhuma outra força tem a resposta à consulta de âmbito nacional, a não ser que se defenda, contra a Constituição, que qualquer deliberação do povo em referendo tem um valor constituinte originário. A tese é indefensável relativamente a referendos que se integram num processo legislativo e que não pretendem outra legitimidade nem outro efeito do que o que lhe são dados pela Constituição e pelas leis que os autorizam. O exercício do poder político pelo povo pode ter lugar «nas formas previstas na Constituição» (artigo 10.º), aceitando implicitamente os limites que dela derivam para os efeitos desse exercício. Não tem, portanto, como o rei Midas, o efeito de transformar em ouro constituinte qualquer referendo de âmbito nacional. Quando em França o Conseil Constitutionnel se declarou incompetente, com base nas disposições restritivas da sua fiscalização de constitucionalidade às leis votadas pelo Parlamento, para julgar de conformidade à Constituição da lei referendária de 6 de Novembro de 1962, que introduziu a eleição do Presidente da República pelo sufrágio universal, e disse que «as leis adoptadas pelo povo em consequência de um referendo são a expressão directa da soberania nacional (cf. Louis Favoureu, Loïc Philip, Les grands décisions du Conseil Constitutionnel, 5.ª ed., 1989, p. 171), referia-se a um referendo que, independentemente da sua constitucionalidade, disputada pelo Senado, tinha a pretensão de ser o exercício originário de um poder materialmente constituinte. Foi o receio de um aproveitamento de tipo «gaullista» do instituto do referendo, por parte do PSD ou do CDS, em ordem a obter pelo referendo o que não se alcançava na revisão constitucional, que explica historicamente a recusa do instituto na revisão de 1982 [cf., nomeadamente, Diário da Assembleia da República de 6 de Janeiro de 1982, pp. 740-(3) e segs.] e as cautelas que acompanham a sua introdução na revisão de 1989 e se mantiveram na de 1997.

Da vinculatividade do referendo como forma de democracia directa nenhum argumento se obtém para fazer depender a alteração por lei orgânica dos limites territoriais das regiões já instituídas de novo referendo de âmbito nacional.

9 - Resta, finalmente, averiguar se da forma de aprovação da lei ou leis de instituição em concreto referendadas algum argumento se retira no sentido da sua irrevogabilidade ou da irrevogabilidade da lei ou leis de criação que estiveram na sua base, a não ser por lei igualmente referendada. Coloca-se aqui a questão de saber se «a lei pós-referendária», na expressão de Jorge Miranda (Funções, Órgãos e Actos do Estado, 1990, p. 310), é uma lei de valor reforçado, ou se, pelo menos, o são as leis de instituição em concreto das regiões e as próprias leis orgânicas de criação das regiões depois de, dir-se-á, indirectamente referendadas através do referendo das leis de instituição. Esta última tese do referendo indirecto pode reformular-se, concebendo as leis de instituição como parte do processo de entrada em vigor da própria lei orgânica de criação. A questão, porém, não é da escolha apropriada de conceitos para um regime que se conhece, a questão é precisamente a de saber o regime de hierarquia de leis e de vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade que caracterizam as leis de valor reforçado se aplica mutatis mutandis às leis pós-referendárias.

Nada impede que uma lei aprovada de certa forma seja alterada por outra lei com processo de formação diferente, se isso for autorizado pela Constituição ou pela própria lei a alterar. Isto no pressuposto, bem entendido, de que se respeitam as proibições de delegação de competência legislativa do n.º 6 do artigo 112.º da Constituição.

Ora aqui deve considerar-se altamente significativo que a Constituição tenha querido separar a lei de criação, que é orgânica, das leis de instituição em concreto, que são comuns, quando, do ponto de vista material, a instituição em concreto não é mais do que o último momento da criação. A intenção que preside à distinção não pode deixar de ser a salvaguarda do princípio de que as leis orgânicas não são referendadas, como resulta conjuntamente dos artigos 115.º, n.º 4, alínea d), 164.º, e especialmente a alínea n), 166.º, n.º 2, e 255.º No caso da lei orgânica do artigo 255.º, o referendo nacional pode equivaler indirectamente a referendar a própria Constituição, na medida em que prevê a existência de regiões administrativas, contra a proibição de referendos em matéria constitucional [alínea a) do n.º 4 do artigo 115.º]. Há que concluir que a Constituição quis que tudo o que é matéria da lei de criação, e não resulta apenas das leis de instituição em concreto, pode ser modificado por lei orgânica sem referendo nacional.

Valem de resto aqui os argumentos que já se referiram quanto à vontade constitucional de separar, relativamente à consulta de âmbito nacional, a instituição das regiões das suas modificações posteriores.

Por outro lado, também não há razão material para exigir novo referendo para mudar uma lei referendada que preveja ela mesma que pode ser mudada sem referendo. - José de Sousa e Brito.


Declaração de voto
Votamos vencidos quanto à alínea c) da conclusão, por entendermos que o n.º 1 do artigo 11.º do diploma em apreço não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade, por duas ordens de razões que passamos sucintamente a expor:

1 - Em primeiro lugar, a norma em questão, como decorre à evidência do seu próprio teor literal, não exclui que o processo de alteração dos limites geográficos das regiões administrativas inclua uma consulta directa aos eleitores, no caso de uma tal consulta ser constitucionalmente exigida.

Com efeito, no acórdão que obteve vencimento, apenas dois argumentos - um de carácter principal, outro meramente adjuvante - são avançados no sentido de justificar o entendimento contrário: por um lado, esse entendimento seria «aquele que melhor se compagina com o facto de a norma em crise ser uma norma de procedimento», pelo que, não se encontrando nela «a previsão da realização de qualquer forma de consulta popular directa, então há-de concluir-se que o órgão legislativo que a editou a não quis», e, por outro lado, «não seria perfeitamente compreensível a razão da audição das assembleias municipais e das assembleias regionais das regiões envolvidas se o processo de alteração nela previsto houvesse de pressupor a realização de uma consulta directa».

A debilidade destes argumentos antolha-se manifesta. Senão, vejamos.
A norma impugnada, ao contrário do que se pretende fazer crer, não regula - nem tinha de regular todo o processo futuro das alterações aos limites geográficos das regiões administrativas: apenas estabelece, como se afigura cristalino, uma especialidade no procedimento tendente à aprovação da necessária lei orgânica e que se traduz na prévia audição das assembleias das autarquias locais interessadas. O que se há-de passar depois da publicação dessa lei orgânica, é algo que o legislador não pretendeu resolver neste momento, até por poder ser política e juridicamente controverso, sendo certo que esse procedimento posterior - concretamente, a consulta directa, se for tida então como constitucionalmente exigível - terá apenas de constar da referida lei orgânica.

É, pois, surpreendente que se queira retirar da natureza procedimental da norma - mas procedimental apenas relativamente à elaboração da lei orgânica o intuito de excluir a possibilidade de uma consulta directa que, em qualquer caso, só poderia ocorrer depois de publicada essa mesma lei orgânica e que, por isso mesmo, se não pretendeu regular neste momento, remetendo-se tão-só para regulamentação futura, a efectuar nos termos constitucionais.

Quanto ao já mencionado argumento adjuvante, não possui ele qualquer verdadeira valia, uma vez que nada tem a ver o processo participativo destinado a permitir que as alterações adoptadas na lei orgânica possam merecer o maior consenso possível com a consulta directa eventualmente necessária para que tais alterações se tornem efectivas. Aliás, para que tal seja «perfeitamente compreensível» basta saber, como é do domínio público, que a aprovação do decreto em apreço foi antecedida de uma audição semelhante, apesar de ser indiscutível a futura realização da consulta directa prevista no artigo 256.º

Assim sendo, nunca a norma em questão podia ser tida por inconstitucional, afinal apenas por dizer singelamente que, no futuro, as alterações aos limites geográficos das regiões se hão-de processar nos termos constitucionais.

2 - No que se refere à questão de saber se as futuras alterações aos limites geográficos das regiões administrativas, após a respectiva instituição em concreto, só podem ocorrer mediante realização de uma consulta directa aos eleitores, a nossa resposta também foi de sentido oposto ao acolhido no acórdão que obteve vencimento.

Com efeito, incluindo-se as regiões administrativas entre as autarquias locais (cf. artigo 236.º, n.º 1, da CRP), e sendo a matéria de «criação, extinção e modificação de autarquias locais e respectivo regime» absolutamente excluída do âmbito do referendo, consoante resulta expressamente do disposto no artigo 115.º, n.º 4, alínea d), quando conjugado com a alínea n) do artigo 164.º, só a existência da regra excepcional do artigo 256.º autoriza - e exige - a realização de uma consulta directa, de tipo referendário, no que se refere à respectiva instituição em concreto, momento que se enquadra ainda no da sua criação.

Só que, como resulta claramente do disposto no artigo 256.º, tal regra excepcional reporta-se exclusivamente à criação das regiões e não já à sua extinção, definição de regime ou modificação territorial. Quer isto dizer que, se no processo de criação das regiões administrativas se há-de inscrever uma consulta referendária, porque tal é imposto por uma regra excepcional, já à respectiva modificação territorial se há-de aplicar a regra geral - que exclui uma tal consulta referendária.

Aliás, a tese sustentada no acórdão que obteve vencimento assenta numa operação que contraria todas as regras clássicas da hermenêutica jurídica.

Assim, depois de detectar a existência de uma lacuna - que já vimos não ocorrer -, vai preenchê-la através do recurso a um princípio extraído de uma norma reconhecidamente excepcional. Ora, não se vê como tal seja possível, quer porque de uma norma excepcional não é viável pretender extrair um princípio geral, quer porque é vedado ao intérprete proceder à aplicação analógica de uma norma excepcional (cf. artigo 11.º do Código Civil).

Nesta conformidade, o recurso à consulta directa não só não é imposta, como é mesmo proibida pela Constituição, no que se refere à alteração dos limites geográficos das regiões administrativas. - Luís Nunes de Almeida - Armindo Ribeiro Mendes.


Declaração de voto
1 - Votei isoladamente vencido relativamente à alínea b) da decisão, no tocante ao juízo de inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 1.º do decreto em causa n.º 190/VII, por entender que ela não está desconforme com a Constituição, quanto ao que nesta se dispõe nos artigos 255.º e 256.º, e pode ter, pelo contrário, uma leitura compaginável com estes preceitos constitucionais.

A tese redutora do acórdão, na sua essência, é a de que a consulta directa exigida pelo n.º 1 do artigo 256.º (para a «instituição em concreto das regiões administrativas, com aprovação da lei de instituição de cada uma delas») há-de pressupor ou ponderar as diferenciações do regime aplicáveis a cada região e daí que «tenham já de estar desenhadas» à data da consulta directa [e dispensou-se o acórdão de «apreciar os demais argumentos que, pelos requerentes, foram carreados para sustentar o ou os vícios constitucionais de que aquela norma padeceria», pondo à margem uma boa parte da argumentação desenvolvida pelo requerente Presidente da República, sendo, todavia, dada uma resposta proficiente na declaração de voto (n.º I) da Exma. Conselheira Maria Fernanda Palma, que integralmente acompanho].

Só que o acórdão, dando realce ao que chama «procedimento constitucionalmente consagrado» - «procedimento esse que deflui dos artigos 255.º e 256.º da lei fundamental», tal-qualmente acrescenta depois -, não analisa, nem explica, o que são de facto as tais diferenciações quanto ao regime aplicável a cada região administrativa (diferenciações originárias ou meras alterações de pormenor?), que aquele artigo 255.º coloca na disponibilidade e na liberdade de conformação legislativa do legislador ordinário (que pode ou não estabelecê-las - é o que resulta da parte final do artigo 255.º).

E era importante que se apurasse esse dado e se indagasse o sentido normativo do n.º 3 do artigo 1.º, ponto em que o acórdão faz silêncio absoluto.

É que, no plano redutor em que se postou o acórdão, e só ele pode aqui interessar, se é verdade que a Lei de Criação das Regiões Administrativas há-de definir o essencial do regime de todas elas, e ela própria - a lei - não é referendável, também é certo que se o artigo 256.º, n.º 1, exigisse como condição da consulta directa uma pormenorização do regime concreto de cada região, criar-se-ia um sistema legal tão rígido que toda a alteração posterior seria inviável. Uma vez criadas as regiões, toda e qualquer pormenorização do regime desta ou daquela região imporia um voltar ao começo do processo de consulta directa.

Tal rigidez não se infere, todavia, nem da letra do artigo 256.º, n.º 1, que não alude ao processo de alteração do regime geral das regiões, nem da distribuição do poder político entre os diversos órgãos de soberania. Efectivamente, esse sistema rígido diminuiria até os poderes da Assembleia da República quanto às matérias da sua reserva absoluta [artigo 164.º, alínea n)] e afectaria, consequentemente, os próprios poderes de controlo do Presidente da República (artigo 115.º, n.º 1). Em suma, o artigo 256.º, n.º 1, tornar-se-ia uma norma com um alcance na revisão constitucional de 1997 que o elemento histórico da interpretação não lhe permite conceder (cf. actas da Comissão Eventual de Revisão Constitucional, Diário da Assembleia da República, 2.ª série-RC, de 8, 14, 18, 22, 25 e 29 de Maio e 5, 13, 19 e 22 de Junho de 1996, e Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 31 de Julho de 1997).

2 - Votei também vencido relativamente à alínea c) da decisão, no tocante ao juízo de inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 11.º do decreto em causa n.º 190/VII, por entender igualmente que ela não está desconforme com a lei fundamental, nomeadamente «por violação do princípio que emerge dos aludidos artigos 255.º e 256.º da Constituição» (sublinhado nosso).

Neste ponto limito-me, porém, a acompanhar as razões expostas na declaração de voto dos Exmos. Conselheiros Luís Nunes de Almeida e Ribeiro Mendes, onde se retrata a fraqueza da posição da tese do acórdão. - Guilherme da Fonseca.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/89548.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1991-08-13 - Lei 56/91 - Assembleia da República

    Aprova a Lei quadro das regiões administrativas.

  • Tem documento Em vigor 1997-09-20 - Lei Constitucional 1/97 - Assembleia da República

    Aprova a quarta revisão da Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de 1976, e fixa normas para aplicação no tempo de alguns dos preceitos revistos. Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1998-07-30 - Acórdão 532/98 - Tribunal Constitucional

    Decide ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na Resolução da Assembleia da República nº 36-B/98 (de 29 de Junho, publicada em Suplemento ao Diário República IS-A, nº 148, de 30 de Junho) - Proposta de realização de referendo sobre a instituição em concreto das regiões administrativas -. (Proc. nº 757/98)

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