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Acórdão 7/97, de 9 de Abril

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Sumário

A cláusula modal a que se refere o artigo 963º do Código Civil (aprovado pelo Dec-Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966), abrange todos os casos em que é imposto ao donatário o dever de efectuar uma prestação, quer seja suportada pelas forças do bem doado, quer o seja pelos restantes bens do seu património. (Proc. n.º 87674 - 1ª Secção).

Texto do documento

Acórdão 7/97
Processo 87674 - 1.ª Secção. - Acordam, em plenário, os juízes que compõem as secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:

João Carlos Ruas de Brito Fontes e mulher, Maria da Graça de Noronha de Sant'Anna e Vasconcelos Brito Fontes, recorrentes na revista n.º 86047 da 2.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, onde figurava como recorrida Maria de Fátima de Magalhães Guedes de Queiroz, representada por Mariana Brandão de Melo Magalhães, não se conformaram com o acórdão aí proferido em 2 de Março de 1995 e dele interpuseram este recurso para o tribunal pleno, ao abrigo do disposto nos artigos 763.º e seguintes do Código de Processo Civil, invocando achar-se em oposição, relativamente à mesma questão fundamental de direito, com o decidido no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido em 3 de Maio de 1990 na revista n.º 77920 da 1.ª Secção.

Opuseram-se à procedência do recurso os recorridos, que defenderam não existir a referida oposição; no entanto, a existência desta, ocorrida no domínio da mesma legislação, foi reconhecida já no acórdão preliminar proferido a fls. 41 e seguintes.

Seguidamente as partes alegaram - opinando os recorrentes no sentido da emissão de assento estabelecendo a natureza modal da cláusula que é centro da controvérsia e a recorrida em sentido oposto - e houve parecer do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto no sentido de que se uniformizasse a jurisprudência nos seguintes termos:

«1 - A doação pura, feita a pessoa que não tem capacidade para contratar, produz efeitos independentemente de aceitação, em tudo que aproveite ao donatário.

2 - É uma doação pura a que contém uma cláusula de reserva segundo a qual um doador estabelece a favor de terceiro o direito a receber vitaliciamente as rendas ilíquidas do bem doado, ficando os encargos daí resultantes a cargo desse terceiro.»

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir - com a ressalva de que, tal como já foi dito no acórdão preliminar, este recurso, dado o disposto no artigo 17.º, n.º 3, do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, se destina à resolução, em concreto, do conflito existente, ficando também a valer como uniformização de jurisprudência, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo mesmo decreto-lei.

Não sofre dúvidas, de facto, a existência da oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito. Ambos os acórdãos - recorrido e fundamento - debruçaram-se sobre a mesma cláusula inserta numa escritura outorgada em 9 de Janeiro de 1970 pela qual foi feita uma doação por Tristão José Guedes de Queiroz a sua filha Maria de Fátima de Magalhães Guedes de Queiroz e divergiram sobre se essa cláusula continha um encargo modal - ideia abraçada pelo acórdão fundamento - ou se, pelo contrário, era uma obrigação pura por a prestação que nela se impugna à donatária assumir, antes, a natureza de uma reserva - orientação seguida pelo acórdão recorrido.

Assim, não havendo divergências sobre aquilo que foi o objectivo do doador ao estipular a mencionada cláusula, a divergência registada naqueles acórdãos não respeita tanto à interpretação da cláusula - como pretendeu a recorrida ao responder neste recurso - como, ao contrário, à sua qualificação jurídica, que, consoante o entendimento adoptado, se reconduziu num caso, e noutro não, à previsão do artigo 963.º do Código Civil - ao qual pertencerão as disposições legais que doravante vierem a ser mencionadas sem outra indicação -, estando em jogo, essencialmente, a interpretação deste normativo.

O presente recurso emerge de acção declarativa pela qual a ora recorrida pediu a condenação dos ora recorrentes a reconhecerem que havia caducado o arrendamento do 5.º andar direito do prédio urbano sito na Avenida de 5 de Outubro, 12 a 12-G, em Lisboa, e entregarem-lho imediatamente, devendo ainda pagar-lhe a indemnização de 500000$00 mais 50000$00 mensais desde Agosto de 1985 até efectiva entrega. E, sendo a acção contestada no sentido da sua improcedência, houve ainda reconvenção em que foi pedida a quantia de 5150000$00 a título de indemnização por benfeitorias.

Na 1.ª instância foi proferido saneador-sentença em que se julgou improcedente a acção, com absolvição dos reús do pedido, e estar prejudicado o pedido reconvencional; a decisão assentou em que, carecendo a doação do prédio a favor da autora de ser aceite pela sua representante legal com autorização do tribunal, e não tendo isso sucedido, aquela doação não produziu quaisquer efeitos.

A Relação alterou o decidido, o que foi confirmado pelo acórdão agora recorrido.

A factualidade para tanto considerada foi a seguinte:
1) Por escritura pública de 9 de Janeiro de 1970 Tristão José Guedes de Queiroz, reservando para si o usufruto vitalício, doou à ora recorrida Maria de Fátima a nua-propriedade do prédio urbano sito na Avenida de 5 de Outubro, 12 a 12-G, em Lisboa;

2) Clausulou-se que se o doador falecesse primeiro que sua mulher, Mariana Brandão de Magalhães Guedes de Queiroz, a donatária teria de entregar a esta, a título de renda vitalícia, o rendimento total e ilíquido do prédio;

3) Por sentença de 11 de Julho de 1970 foi decretada definitivamente a interdição da donatária e nomeada tutora a aludida Mariana, sua mãe;

4) Por sentença de 14 de Dezembro de 1972 foi decretado o divórcio entre os referidos Mariana e Tristão;

5) Por acordo de 25 de Agosto de 1975 o referido Tristão deu de arrendamento ao ora recorrente o 5.º andar direito do mesmo prédio;

6) Não foi pedida autorização judicial para aceitação da doação;
7) A tutora, por procuração notarial de 24 de Outubro de 1984, constitui mandatária Maria Helena Brandão de Mello Magalhães de Sttau Monteiro Vinhas Santos, conferindo-lhe os poderes legais que tem como tutora e de livre e geral administração.

Importa tomar conhecimento da cláusula em referência, aposta na escritura de doação pela qual o doador doou à sua filha o prédio urbano situado na Avenida de 5 de Outubro, 12, em Lisboa, reservando para si o usufruto vitalício do mesmo.

Dela consta que a doação era feita nos seguintes termos:
«[...] com a cláusula modal de que, na hipótese de ele falecer primeiro que sua mulher, a donatária sua filha Maria de Fátima, a título de renda vitalícia, terá de entregar a sua mãe, e enquanto ela for viva, o rendimento total e ilíquido do prédio cuja raiz acaba de ser doada, cujos encargos nessa hipótese ficarão a cargo da segunda outorgante. Se a representante legal de sua filha Maria de Fátima for sua aludida mãe, esta cobrará os mesmos rendimentos como bens seus para todos os efeitos legais. Sobrevivendo ele a sua mulher, a liberalidade agora feita a favor de sua filha Maria de Fátima prevalecerá como doação pura. Sua filha Maria de Fátima, devido a certa anomalia psíquica, não está em situação jurídica de aceitar a doação da raiz do prédio da Avenida de 5 de Outubro, 12 a 12-G, tornejando para a Avenida da Praia da Vitória, 77 e 79, desta cidade de Lisboa, e em face da cláusula modal que ele doador estipulou é agora inaplicável o n.º 2 do artigo 951.º do Código Civil, por isso, a autorização para a aceitação da doação vai ser solicitada ao tribunal competente nos termos dos artigos 139.º e 140.º do Código Civil.»

A circunstância de esta cláusula haver sido, expressamente, autoqualificada de modal não resolve, como é evidente, a questão, sabido, como é, que o tribunal é livre no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - artigo 664.º do Código de Processo Civil.

Importa, pois, apurar o que é uma doação com cláusula modal e o que são as reservas apostas a uma doação, afigurando-se útil, a este propósito, fazer um breve panorama dos mecanismos legais contidos no Código Civil e com reflexo no conteúdo deste contrato.

I - A doação é definida no artigo 940.º como «o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberdade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente».

Ao falar na doação de uma coisa, a lei não está a fazer mais do que mencionar, simplificadamente, a disposição gratuita de um determinado direito real - o de propriedade - sobre essa coisa, a par da possibilidade de doação de outros direitos pertencentes ao doador.

Como, em rigor, o conteúdo da doação não é a coisa doada, simples objecto do contrato, mas antes o conjunto dos poderes sobre ela que são em concreto transmitidos - ou, para quem preferir outra terminologia, a coisa será o objecto mediato e os efeitos jurídicos serão o objecto imediato -, logo se constata que a disposição assim feita não tem de referir-se, irrestrita e definitivamente, à totalidade da mesma ou dos poderes nesse direito contidos, antes podendo esse direito de propriedade ser objecto de restrição.

Só que esta restrição pode assumir formas muito diversas.
II - Umas vezes a restrição à propriedade plena ocorre através da criação de um regime especial de revogabilidade, como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., p. 284.º É, desde logo, o caso de reserva do direito de dispor de coisa determinada - artigo 959.º; e paredes meias com ela estará também a cláusula de reversão - artigo 960.º - onde haverá antes um caso de caducidade da doação; mas um e outro, em rigor, não limitam, no plano teórico, a extensão dos poderes do donatário sobre a coisa doada, não o vinculando a qualquer comportamento, activo ou omissivo, nem o impedindo, designadamente, de dela dispor e apenas sujeitando o seu posterior adquirente aos efeitos de uma ou outra.

III - Prevê ainda a lei, no artigo 959.º, a possibilidade de o doador reservar para si o direito a certa quantia sobre os bens doados.

Aqui a reserva não afecta o conteúdo jurídico da doação, mas apenas o seu valor económico, restringido na medida correspondente ao montante que vier a ser exigido - cf. Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem.

Ao contrário do caso referido em II, não estamos já perante uma forma de revogação parcial da doação; esta, no tocante à titularidade do direito doado, não é afectada, embora exista a possibilidade de o doador, no plano do seu valor económico, vir a tirar ao donatário parte do que lhe dera.

Também aqui se não vislumbra a vinculação do donatário a qualquer comportamento, activo ou omissivo; apenas está sujeito a que o doador lhe exija aquela quantia, sendo só no momento dessa exigência que fica vinculado ao seu pagamento. É, antes da efectiva constituição do vínculo obrigacional de pagar essa quantia, um sujeito passivo de um direito potestativo - cf. Antunes Varela, anotação ao Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 1968 publicada na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 102.º, p. 41.

IV - Outras vezes prevê a lei a possibilidade de os poderes inerentes ao direito de propriedade serem pelo doador transmitidos ao donatário com limitações que lhes dão uma extensão inferior à que tinham no património daquele; estas limitações podem referir-se a qualquer das faculdades - de uso, de fruição e de disposição, como refere o artigo 1303.º - inerentes ao direito de propriedade.

Mas aqui duas modalidades se verificam na lei.
Numa delas, a limitação dos poderes - no caso, poderes de disposição - imposta ao donatário é feita pela via da sua drástica restrição, mas sem a correlativa atribuição dos mesmos a outra pessoa; é o que se passa com a substituição fideicomissária - artigos 962.º, 2290.º, n.º 1, e 2291.º

Na outra modalidade, existe uma limitação do conteúdo dos poderes que, quanto ao uso e à fruição da coisa, passam para a titularidade do donatário; é disso exemplo a reserva de usufruto - artigo 958.º -, tratada expressamente pela lei a propósito da doação; mas, embora omitida nesta mesma sede legal própria da doação, é ainda segura a possibilidade de reserva do direito de uso ou do direito de habitação, por força dos artigos 1485.º e 1440.º - cf. Antunes Varela, p. 38. Tais limitações não levam a que se entenda que não há, verdadeiramente, a doação da coisa; sendo elas, por natureza, tendencialmente temporárias, a transmissão final do direito de propriedade sobre a coisa doada tem a sua causa jurídica na doação visto que esta contém em si a virtualidade de fazer expandir até à propriedade plena o direito imediatamente adquirido pelo donatário, dada a prevísivel extinção a prazo dos direitos reservados - artigos 1476.º, n.º 1, alínea a), e 1485.º

A reserva de usufruto - olhada, não enquanto um poder do doador, mas enquanto resultado do respectivo - consiste numa amputação feita aos poderes constitutivos do direito doado. O seu titular fica sendo o doador, ou o terceiro a quem ele os destine.

Todas estas restrições ao direito adquirido pelo donatário - sejam as que se limitam a restringir os seus poderes, sejam as que são acompanhadas pela atribuição da respectiva titularidade a outra pessoa - também o não vinculam, porém, a qualquer comportamento, activo ou omissivo, no plano do exercício dos seus direitos.

V - Autonomamente, a lei veio também prever, como espécie diferente de restrição da liberalidade feita, o modo, ou cláusula modal, que se verifica quando a doação seja onerada com encargos - artigo 963.º Aqui o donatário fica obrigado a um determinado comportamento, que pode ser no interesse do doador, ou de terceiro, ou do próprio beneficiário - cf. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pp. 393 e 396, e Mota Pinto, Teoria Geral da Relação Jurídica, p. 454. Sendo a favor do doador ou de terceiro, este comportamento pode corresponder ao conteúdo de uma obrigação que fica a cargo do donatário, a qual, aliás, não tem necessariamente natureza patrimonial, na linha do previsto no artigo 398.º, n.º 2 - cf., neste sentido, Manuel de Andrade, op. cit. e vol. cit., p. 397, e Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. e vol. cit., pp. 289-290. Pode, porém, não haver uma verdadeira obrigação em sentido técnico, mas um simples dever jurídico, quando aquele que pode exigir o seu cumprimento não é titular de um correspondente direito de crédito - cf., ainda, Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. e vol. cit., p. 292, exemplificando a situação com os encargos com missas ou sufrágios em memória do doador falecido.

Só à doação com cláusula modal, e não à doação pura com reservas, de que seja beneficiário um menor, se refere a necessidade de autorização do tribunal para a sua aceitação pelos pais enquanto seus representantes - artigo 1889.º, n.º 1, alínea l) -, o que vale também para o caso de interdito sob tutela exercida por um dos seus progenitores - artigo 144.º

O que bem se compreende.
Na verdade, na doação com reserva fica-se desde logo sabendo o conteúdo da atribuição patrimonial feita ao donatário e dela não resulta para ele qualquer vínculo que a onere.

Mas na doação com cláusula modal este vínculo existe, sendo possível, em função do seu conteúdo concreto e das circunstâncias, que a mesma se torne inconveniente para os seus interesses.

Se a cláusula acima transcrita tem a natureza de modal, era de todo cabida a previsão, inserta no seu final, de pedido de autorização para que a doação pudesse ser aceite.

Se tiver antes a natureza jurídica de uma reserva, tal pedido, assim como a sua previsão na cláusula, seria excrescente e desnecessário.

Prosseguindo o esforço de caracterização e diferenciação das duas figuras em presença, mostra-se útil salientar os seguintes aspectos.

Não pode dizer-se, como diz a recorrida, que é indiferente constar da doação o que nela se lê - a atribuição indirecta, à mãe da donatária, das rendas do prédio - ou constar antes uma outra maneira de atingir o mesmo resultado final - a reserva directa dessas rendas para a mesma beneficiária.

É que na primeira destas alternativas sempre corre por conta da donatária o risco dos valores recebidos como rendas antes de ser feita a sua entrega à beneficiária das mesmas.

E importa perceber a razão pela qual o doador concebeu daquela maneira a forma de entrega das rendas à mãe da donatária, a par da hipótese, também prevista, de as mesmas serem cobradas directamente pela mesma.

Já no acórdão fundamento se disse, com razão, que esta segunda modalidade assentava em que a mãe da donatária, se fosse sua tutora, teria por lei direito ao usufruto dos bens da última, nos termos conjugados dos artigos 144.º e 1893.º, n.º 1 - ambos na sua redacção inicial, vigente à data da doação.

E o doador terá tido a percepção de que, fora desta situação de tutela, não poderia instituir por via de reserva a atribuição directa das rendas nos mesmos termos, havendo que recorrer à cláusula modal.

Que o não podia, efectivamente, fazer ver-se-á a seguir.
As hipóteses de reserva que a lei prevê enquanto tal são, como vimos, a instituição de um regime especial da revogabilidade da doação ou de redução do seu valor, ou, de modo diverso, a cisão dos poderes inerentes ao direito de propriedade.

Em qualquer dos casos, o doador reserva direitos que pode exercer por si só, sem necessidade de qualquer colaboração ou cooperação por parte do donatário.

Na última categoria citada, que é a da cisão dos poderes inerentes ao direito de propriedade, encontram-se previstas na lei só as duas espécies já mencionadas - a reserva de usufruto, por um lado, a reserva do direito de uso ou de paralelo direito de habitação, por outro -, mas há que curar da possibilidade de outras serem criadas pela vontade das partes.

Os direitos reais, nas diversas modalidades previstas na lei, consistem em diversos conjuntos de poderes que se reconduzem, na sua globalidade, àqueles que compõem o direito de propriedade - poderes de usar, de fruir e de dispor.

Quando não estão todos reunidos na titularidade da mesma pessoa surgem os direitos reais menores. Sempre que ocorre, nestes termos, a cisão ou o desmembramento do direito de propriedade, os poderes dele retirados ficam na titularidade de uma outra pessoa, que não o proprietário, sendo essa pessoa quem os exerce por direito próprio; nesta situação, porém, estes poderes conservam a sua natureza, dando corpo a um outro direito real.

Mas aqui surge a relevância do princípio segundo o qual só têm a natureza de reais os direitos que a lei prevê como tais; a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou das figuras parcelares deste direito só pode ter lugar nos casos previstos na lei, como preceitua o artigo 1306.º - cf. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., vol. III, pp. 84-87.

Mais ainda: as restrições resultantes de negócio jurídico que não estejam nestas condições têm natureza obrigacional.

Daí que este tipo de reserva - definida nos termos acima feitos: «A reserva de usufruto - olhada, não enquanto um poder do doador, mas enquanto resultado do respectivo exercício - consiste numa amputação feita aos poderes constitutivos do direito doado. O seu titular fica sendo o doador, ou terceiro a quem ele os destine.» - necessariamente envolva a constituição de um direito real menor, que terá de ser um dos que acima se indicaram como esgotando o leque das alternativas que a lei concebe.

Isto conduz à conclusão segundo a qual o que consta da cláusula inserta na doação quanto ao rendimento a produzir pelo prédio não pode constituir uma reserva, mas antes uma cláusula modal.

Por um lado, não é atribuído a nenhuma outra pessoa o poder de receber, através do seu exercício directo sobre o prédio, o rendimento por ele produzido; é à donatária que é imposta a obrigação de o entregar à sua mãe, que o receberia, pois, com a sua intermediação.

Por outro lado, o poder de receber o rendimento de um prédio não constitui, desacompanhado de qualquer outro, o conteúdo típico de um direito real menor. Ele não se confunde, designadamente, com o usufruto, já que este é, de acordo com o artigo 1439.º, o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, embora sem alterar a sua forma ou substância. Este poder pleno de gozo inclui ainda, para além daquele poder de receber o rendimento, o poder de diversificar as formas de fruição, de contribuir para o aumento do rendimento e ainda, se conveniente e cabido, de pôr termo ao arrendamento que sobre o prédio vigore e, até, de se passar a usá-lo, em vez de optar pela sua frutificação - o que, no caso em exame, nunca poderia verificar-se.

Finalmente, não constitui, obviamente, um direito potestativo, que é insusceptível de ser violado - a sujeição que o caracteriza dispensa, para a sua efectivação prática, a colaboração ou a vontade do seu sujeito passivo; há um autêntico direito de crédito que pode ser satisfeito, ou não - tudo dependendo de a donatária entregar as rendas ou deixar de o fazer, sendo certo que, tal como igualmente se disse atrás, e tratando-se, como é o caso, de uma dívida de valor, sempre correria «por conta da donatária o risco dos valores recebidos como rendas antes de ser feita a sua entrega à beneficiária das mesmas».

Por isso a qualificação de cláusula modal que a esta estipulação foi expressamente dada na escritura de doação mostra-se perfeitamente adequada à mesma.

O fim pretendido pelo doador - garantir à mãe da donatária o recebimento das rendas ilíquidas do prédio doado, nos termos em que o fez - poderia ter sido atingido pela instituição, a favor da mesma, do usufruto sucessivo sobre o prédio, de âmbito mais largo do que esse simples recebimento; não tendo optado por este caminho, restava-lhe, pelas razões sobreditas, torná-la uma simples credora das respectivas importâncias.

Assim caracterizadas a cláusula modal e a reserva aposta a uma doação, logo se infere que a existência do modo, ou cláusula modal, não pressupõe, pois, que o encargo imposto ao donatário seja satisfeito à custa de outros bens do donatário, e não do bem doado - no que divergimos do acórdão recorrido. Abrange qualquer destas hipóteses.

Nem é diferente o sentido com que o conceito do modo tem sido, de um modo geral, entendido.

E até em sentido contrário houve desvios, pois já se entendeu que só há modo quando as prestações impostas ao donatário, como diminuição da atribuição patrimonial gratuita que lhe é feita, têm um objecto contido, real ou implicitamente, naquela atribuição; é o caso de Oertmann, citado em Antunes Varela, Ensaio sobre o Conceito do Modo, p. 227.

E é este ilustre mestre que rebate de seguida este entendimento, até concluir, mais adiante - fls. 232 e 233-, do seguinte modo:

«1.º Há doação onerosa - e não negócio a título oneroso ou negócio misto com doação - sempre que a prestação imposta ao beneficiário da atribuição patrimonial (com os caracteres objectivos próprios da atribuição donativa) constitua uma simples limitação ou restrição dela.

2.º Constituem meras limitações ou restrições da atribuição patrimonial recebida:

a) As prestações de conteúdo económico cujo objecto deva sair, segundo a intenção dos contraentes, das forças da própria atribuição;

b) As prestações de conteúdo económico (tanto de dare como de facere ou non facere) que representem - ou sejam queridas pelos interessados como - uma restrição de qualquer ordem à vantagem patrimonial proporcionada, em princípio, pela doação;

c) As prestações de conteúdo moral que sejam impostas como um dever ou um ónus jurídico ao beneficiário da atribuição.»

E no mesmo sentido opina o mesmo autor já na vigência do Código Civil de 1966 - cf. Antunes Varela, Revista citada, pp. 39-40, onde, designadamente, se lê: «Doação com encargos tanto é [...] aquela em que o donatário se compromete a dar ao doador ou a terceiro, durante certo prazo, uma quota-parte dos rendimentos da coisa ou soma doada, como aquela em que o donatário de um prédio urbano se obriga a pagar as dívidas do doador, a mandar rezar umas tantas missas por alma deste ou a distribuir todos os anos certo bodo pelos pobres da freguesia.»

Mais do que um interveniente neste recurso invocou os ensinamentos deste ilustre mestre expostos na anotação de onde foi extraída a passagem acabada de transcrever, designadamente na parte em que salientou o carácter real da reserva aposta a uma doação, mas sem que se tivesse procurado demonstrar a sua inaplicabilidade ao caso ora em apreço.

E, a nosso ver, tal inaplicabilidade não existe.
A ideia de uma doação com reserva exprime uma restrição de ordem jurídica ao direito que é doado. O direito, durante o período de tempo em que a reserva vigorar, é diferente e menos amplo do que era quando se achava na esfera jurídica do doador; está, por assim dizer, amputado de alguns dos poderes que o integravam.

Que a reserva, fora dos casos do artigo 959.º, envolve necessariamente o carácter real do direito reservado resulta do facto de o direito de propriedade só poder ser cindido através da constituição de um direito real menor.

Se da pretendida «reserva» resulta antes um direito de crédito, isso quer dizer que os poderes reais inerentes ao que é doado ficam na titularidade do donatário; o direito deste será um direito de propriedade plena, do qual nada foi reservado. Haverá uma restrição de ordem económica, mas não de ordem jurídica.

E o direito de crédito em causa, não podendo, então, ser uma reserva, tem de integrar um encargo.

Assim, a orientação seguida pelo acórdão recorrido - aliás idêntica à seguida no já referido Acórdão de 6 de Fevereiro de 1968 e também à que foi adoptada no Acórdão de 3 de Março de 1988, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 375, p. 375 - é de rejeitar, sendo antes de optar pelo entendimento expresso no acórdão fundamento, publicado também no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 397, p. 448.

Neste último sentido se uniformizará, pois, a jurisprudência.
Não se emitirá esta uniformização quanto à matéria incluída no ponto I da conclusão do parecer do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto porque os acórdãos em oposição não exprimiram, quando a ela, qualquer divergência.

Pelo exposto se julga procedente o recurso e se revoga o acórdão recorrido, bem como o por ele confirmado acórdão da Relação, para que fique a subsistir a decisão do Sr. Juiz da 1.ª Instância, com custas a cargo da autora, ora recorrida, nas instâncias e neste Supremo Tribunal.

E uniformiza-se a jurisprudência nos seguintes termos:
A cláusula modal a que se refere o artigo 963.º do Código Civil abrange todos os casos em que é imposto ao donatário o dever de efectuar uma prestação, quer seja suportada pelas forças do bem doado, quer o seja pelos restantes bens do seu património.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 1997. - Ribeiro Coelho - Tomé de Carvalho - Silva Paixão - Martins da Costa (vencido, nos termos da declaração que junta) - Torres Paulo - Figueiredo de Sousa - Machado Soares - Aragão Seia - Fernando Fabião (vencido nos termos da declaração de voto do Sr. Conselheiro Martins da Costa) - Roger Lopes - Lopes Pinto - Fernandess Magalhães - Costa Soares - Sousa Inês (vencido nos termos da declaração de voto que junta) - Cardona Ferreira - Mário Cancela - Sampaio da Nóvoa - Ramiro Vidigal - Pereira da Graça - Nascimento Costa (vencido - segue declaração de voto) - Pais de Sousa - Costa Marques - Almeida e Silva.


Declaração de voto
Entendo que, em rigor, os acórdãos em conflito não contêm soluções opostas sobre a mesma questão fundamental de direito: essa oposição respeitaria, segundo a alegação dos recorrentes, a interpretação dos conceitos de doação pura e de doação modal ou com encargos, previstos nos artigos 951.º e 963.º do Código Civil, mas, nesse ponto, a fundamentação jurídica dos acórdãos é essencialmente idêntica; a divergência, entre eles, incide antes sobre a interpretação da cláusula estabelecida na doação para a hipótese de o doador falecer primeiro que sua mulher; no acórdão fundamento ela foi interpretada como impondo à donatária «o encargo de entregar a sua mãe [...] o rendimento total e ilíquido do prédio», ficando assim a donatária «vinculada ao cumprimento de uma prestação», enquanto o acórdão recorrido considerou que «a donatária não ficou adstrita a nenhum dever de prestar, não ficou obrigada a qualquer prestação, não assumiu o dever de pagar fosse o que fosse».

Dessa diferente interpretação da cláusula da doação é que veio a concluir-se por diversa qualificação jurídica: no primeiro caso, por doação modal, e, no segundo, por doação com reserva das rendas ilíquidas a favor da mulher do doador; assim, para ser admissível o recurso em causa, teria de se alegar que aquelas diversas interpretações se basearam em aplicação oposta de certa norma jurídica, mas isso não se alegou e, de resto, tal interpretação foi feita nos acórdãos como simples matéria de facto.

Foi esta, aliás, a solução adoptada em caso totalmente idêntico que correu termos na 1.ª Secção e em que intervim como relator.

Por outro lado, afigura-se-me que, a conhecer-se do objecto do recurso, seria de confirmar o acórdão recorrido.

A interpretação nele feita sobre a cláusula da doação apresenta-se como a mais razoável, em face dos seus termos e, em particular, dos interesses por ela visados, que eram a protecção da donatária, filha incapaz do devedor, e da circunstância de os encargos com o prédio deverem ser suportados pela mãe e tutora da donatária.

De harmonia com essa interpretação, teria havido uma simples reserva das rendas a favor da mãe da donatária, e não a imposição de um encargo à própria donatária, ou seja, uma doação pura, não dependente de aceitação. - José Martins da Costa.


Declaração de voto
1 - Nos termos do agora revogado artigo 763.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, para se verificar fundamento de recurso para o tribunal pleno é necessário que os dois acórdãos em confronto, alegadamente em oposição, hajam julgado idênticas questões de direito, estabelecendo expressamente doutrina contrária com base nos mesmos preceitos legais (ver nota *).

Não é o caso.
Em ambos os acórdãos em confronto, expressa ou implicitamente, se interpretou o disposto nos artigos 958.º e 963.º do Código Civil em termos coincidentes.

A diferença das soluções a que os dois acórdãos chegaram resulta, isso sim, da divergência na interpretação do sentido da declaração negocial do doador, nos termos do disposto nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil.

A divergência de decisões acerca da interpretação de uma determinada declaração negocial não é fundamento de recurso para o tribunal pleno.

2 - Em ambos os acórdãos em confronto entendeu-se, expressa ou implicitamente, o seguinte:

Na doação modal constituiu-se um vínculo de natureza obrigacional em que é sujeito activo o beneficiário (o próprio doador ou terceiro) e sujeito passivo o donatário. Nesta modalidade o donatário assume contratualmente uma obrigação de prestar (artigo 963.º do Código Civil).

Na doação com reserva constituiu-se um direito, de natureza real, do próprio doador (ou terceiro beneficiário) sobre a coisa doada. O doador ou o terceiro passa a ser titular de um poder directo e imediato sobre a coisa doada. O donatário adquire um direito real limitado ou menor, mas não assume qualquer obrigação (artigo 958.º do Código Civil).

Uma vez que nos dois acórdãos em confronto se mostra aceite, expressa ou implicitamente, esta doutrina, não há fundamento para o recurso para o tribunal pleno.

Por isto, votei no sentido de se julgar findo o recurso.
3 - Onde se encontra a divergência entre os dois acórdãos é a respeito do sentido da declaração negocial do doador.

No douto acórdão recorrido relevou a circunstância de, logo a seguir à atribuição patrimonial feita a favor de Mariana Brandão de Magalhães Guedes de Queiroz (a terceira beneficiária), se ter identificado objectivamente a coisa doada nos seguintes termos: «do prédio cuja raiz acaba de ser doada», permitindo-me sublinhar «cuja raiz».

Quer dizer - na interpretação da declaração negocial feita no acórdão recorrido - que o objecto da doação não foi a propriedade plena do prédio; foi apenas a sua propriedade, a raiz; o doador reservou para si, primeiro, e para a sua mulher, caso lhe sobrevivesse, depois, o usufruto, como direito real.

Doação com reserva, pois.
Em contrapartida, no douto acórdão fundamento relevaram as circunstâncias de o doador, na sua declaração negocial, ter utilizado a expressão «cláusula modal», dizer que a donatária «terá de entregar» e referiu que essa entrega é «a título de renda vitalícia»; a primeira circunstância assume importância por o texto ter sido redigido por um técnico do direito, a segunda indica tratar-se de um dever de prestar e a terceira inculca o carácter obrigacional do vínculo ao fazer apelo ao contrato mencionado nos artigos 1238.º e seguintes do Código Civil.

Quer dizer - na interpretação da declaração negocial feita pelo douto acórdão fundamento - doação com modo.

O que acontece, repito, é que esta divergência de interpretação da declaração negocial do doador não é fundamento de recurso para o tribunal pleno. - A. de Sousa Inês.

(nota *) Cfr. o Acórdão deste Tribunal de 29 de Outubro de 1992, no Boletim, n.º 420, p. 490.


Declaração de voto
A norma do artigo 951.º, n.º 2, do Código Civil é, ao que supomos, uma singularidade do direito português.

Trata-se de norma provinda do Código de Seabra, que não tem paralelo, segundo apurámos, nos direitos italiano, francês, alemão e espanhol.

É uma norma em boa hora introduzida no direito pátrio.
Visa a protecção dos incapazes.
Sempre que eles saiam beneficiados, o legislador prescinde da aceitação.
No acórdão parte-se de uma construção conceitualista sobre o que seja doação modal para se acabar prejudicando a incapaz, sem que se vislumbrem do outro lado, isto é, da parte contrária, interesses dignos de protecção.

Queremos dizer: a parte contrária limita-se a esgrimir um argumento que tem o único fim de criar dificuldades à incapaz.

Duvidamos mesmo que se deva reconhecer à outra parte legitimidade para invocar uma norma protectora da incapaz.

Sempre que uma solução se afigure injusta ao homem que o juiz é ainda antes de revestir esta qualidade, deve ele sobrestar na sua decisão e duvidar da sua ciência.

Provavelmente, não está a ser bom intérprete (ver nota *).
Neste caso, o erro estará em não se ter na devida conta a ratio legis, elemento maior na interpretação da lei, e os contornos do caso concreto.

Em meu entender, o acórdão recorrido decidiu bem. - Ilídio Gaspar Nascimento Costa.

(nota *) V. as palavras sábias de Vaz Serra, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.º, p. 564.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/80830.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga ao seguinte documento (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1995-12-12 - Decreto-Lei 329-A/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1997-05-03 - Declaração de Rectificação 9/97 - Supremo Tribunal de Justiça

    Declara ter sido rectificado o Acórdão 7/97, processo nº 87674, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, 1ª Série-A,nº 83, de 9 de Abril de 1997.

Aviso

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