Acórdão 11/96
Processo 86153. - Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
O Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) interpôs recurso para o tribunal pleno do Acórdão de 21 de Outubro de 1993, proferido no recurso de revista n.º 81634, 2.ª Secção, invocando oposição com o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 1993.
Decidida que foi a existência da alegada oposição, prosseguiu o recurso seus regulares termos.
O recorrente, nas suas alegações, defende, em conclusão, que todos os créditos que tenham sido constituídos antes de 15 de Junho de 1986 gozam de preferência sobre os créditos a que se reporta a Lei 17/86, de 14 de Junho.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto acompanha a posição do recorrente, propondo assento com a seguinte redacção:
«A salvaguarda legal consagrada na última parte do n.º 2 do artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho, abrange os créditos privilegiados constituídos antes da sua entrada em vigor, independentemente da data em que é declarada a falência do devedor.»
Corridos os vistos, cumpre decidir, já que nada há a dizer contra a decisão que declarou verificada a existência de oposição entre os dois aludidos acórdãos recorrido e fundamento.
Como se constata da análise dos dois arestos, e no que importa para a definição do conflito em causa, em ambos os acórdãos proferidos em processo de falência está questionada a graduação decorrente do concurso entre créditos resultantes de apoios financeiros concedidos pelo recorrente IEFP e créditos emergentes de contrato individual de trabalho, qualquer deles gozando de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário, conforme o disposto, respectivamente, no artigo 7.º, alíneas a) e b), do Decreto-Lei 437/78, de 28 de Dezembro, e no artigo 12.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei 17/86, de 14 de Junho.
E, como bem diz o Ministério Público, graduação concorrencial essa influenciada, no entanto, pelo disposto no artigo 12.º, n.º 2, da dita Lei 17/86, quando, relativamente à preferência dos créditos dos trabalhadores, estatui que esta opera, mas «sem prejuízo, contudo, dos privilégios anteriormente constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei».
Na interpretação e aplicação da evidenciada salvaguarda legal, enquanto o douto acórdão recorrido a entendeu como pressupondo a exigência de reclamação de créditos privilegiados e ali ressalvados antes da entrada em vigor da citada lei (15 de Junho de 1986), ou, no mínimo, em processo de falência, a declaração desta antes dessa data, por sua vez o douto acórdão fundamento reportou tal salvaguarda à data da constituição dos créditos objecto de privilégio, ou seja, independentemente da posterior localização no tempo da respectiva localização ou, pelo menos, do decretamento da falência, circunstâncias que para o efeito, implicitamente, julgou irrelevantes.
Daí que desse entendimento divergente, e não obstante, em ambos os casos, não só a constituição dos créditos do IEFP antecedera a data da entrada em vigor da Lei 17/86, como também as declarações de falência dos processos subjacentes e, consequentemente, as reclamações desses créditos serem posteriores a esse momento, enquanto o acórdão recorrido concedeu preferência na graduação aos créditos dos trabalhadores sobre os créditos do IEFP, ao invés, no acórdão fundamento estes prevaleceram sobre aqueles.
Sintetizando ainda mais, dir-se-á que a questão fulcral reside no sentido a dar à expressão constante da parte final do n.º 2 do artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho («sem prejuízo, contudo, dos privilégios anteriormente constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei»):
Se, conforme se fez no acórdão recorrido, com ela pretendeu o legislador marcar uma fase processual, forçosamente ocorrida em momento temporal anterior a 14 de Junho de 1986, a que os créditos anteriormente constituídos tenham de reportar-se;
Ou se, ao contrário, com ela se visou tão-só melhor explicitar o sentido e alcance da lei, sem o intuito de prejudicar o momento efectivamente relevante que é o da constituição do crédito e inerente privilégio.
Ora, põe-se aqui, como é óbvio, um problema de interpretação da lei, valendo para a sua solução os bem conhecidos princípios do artigo 9.º do Código Civil.
Estabelece-se, com efeito, neste preceito legal que:
1) A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema judicial, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada;
2) Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não contenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa;
3) Na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e só sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Como primeira nota a este propósito o dizer-se aqui que não colhe o argumento de pura matriz literal baseado numa ligação última da expressão «com direito a ser graduados» com a expressão que imediatamente a antecede, «privilégios anteriormente constituídos», condicionando-a na amplitude da sua carga insupressiva, sob pena de então ter de se concluir que ela não tem qualquer sentido útil, destituída que está de qualquer significado, pois deixa por explicar a existência de uma vírgula a separar tais contíguas expressões, que bem pode ter como função o ser explicativa e reforçadora da ideia, porventura redundante, de que a salvaguarda é dirigida aos créditos privilegiados e não a quaisquer outros.
Tal significa, além do mais, que não nos podemos quedar pela consideração deste único elemento, impondo-se que se tenha em conta a ratio legis, isto é, se procure determinar o sentido da norma em função da própria razão de ser dela ou do seu sentido prático.
É sabido que, como diz Engish, (Introdução ao Pensamento Jurídico, 2.ª ed., p. 112), «o preceito da lei deve, na dúvida, ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura».
Como salienta o Prof. Castanheira Neves (Metodologia Jurídica, Problemas Fundamentais, p. 84), «o problema jurídico-normativo da interpretação não é o de determinar a significação, ainda que significação jurídica, que exprimam as leis ou quaisquer normas jurídicas, mas o de obter dessas leis ou normas um critério prático normativo adequado de decisão dos casos concretos (como critério-hipótese exigido, por um lado, e a submeter, por outro lado, ao discurso normativamente problemático do juízo decisório desses casos).
Uma boa interpretação da lei não é aquela que, numa pura perspectiva hermenêutico-exegética, determina correctamente o sentido textual da norma; é antes aquela que, numa perspectiva prático-normativa, utiliza bem a norma como critério de justa decisão do problema concreto».
Há, pois, que surpreender, em derradeira análise, uma interpretação do segmento normativo em que se contém a excepção legal que, sem esquecer, por um lado, a justa ponderação dos interesses em jogo, e, por outro, a certeza do direito, se identifique com uma solução compatível com a letra e o espírito da lei.
E nesta conformidade temos desde logo que acentuar que a circunstância de um direito de crédito na altura da sua constituição ter automaticamente associado, por força da lei, um privilégio creditório é sua qualidade intrínseca, bem pouco ou nada tem a ver, por lhe serem alheias, com a eventualidade da sua reclamação, verificação ou graduação em processo de falência.
Isso quer dizer que se tem de afastar a solução adoptada no acórdão recorrido, na medida em que marca num momento temporal injustificado para o serem ou não privilegiados os créditos em questão e como tal considerados na competente graduação.
E não se pode olvidar, no concernente à certeza do direito, a confusão que gera tal solução, pois, tendo ela excluído como momento relevante o da constituição do crédito e inerente privilégio, deparam-se-nos quatro momentos jurídico-processualmente relevantes, todos eles sustentáveis, e que se podem, enfim, escolher: o da sentença de declaração de falência, o da reclamação do crédito, o da sua verificação e o da sentença da sua graduação.
Mas, para além disto (e como até o próprio acórdão recorrido não deixa de lembrar), não se afigura justo que, no confronto entre um crédito derivado do financiamento de um projecto (de promoção e manutenção de postos de trabalho) e os créditos dos beneficiários desse projecto, o primeiro seja preterido nas relações entre si.
E, assim, os créditos do recorrente IEFP, resultantes de apoios financeiros para acções de manutenção e promoção do emprego, concedidos em data muito anterior à da entrada em vigor da Lei 17/86 e gozando, por essa razão, de privilégio mobiliário e imobiliário, por força do artigo 7.º, alíneas a) e b), do Decreto-Lei 437/78, de 28 de Dezembro, estão cobertos pela salvaguarda legal da parte final do n.º 2 do artigo 12.º da Lei 17/86, por preencherem o respectivo requisito temporal.
Esta é, sem sombra de dúvida, a solução, desde logo por melhor proteger as fundadas expectativas do credor, expectativas essas reforçadas no caso sub judice, atenta a natureza e finalidade dos créditos concedidos.
Como refere o Prof. Castanheira Neves («O actual problema metodológico da interpretação jurídica», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117.º, p. 193), «o legislador não usa palavras e exprime enunciados que terão, porventura, um sentido linguístico-gramatical comum apenas para comunicar (digamos literalmente) em sentido comum, quer antes prescrever uma intenção jurídica através dessas palavras e desses enunciados».
A exigência da interpretação jurídica tem fundamento normativo e o que a faz imprescindível é o acto normativo da utilização metodológica (metodológico-normativa) de um critério jurídico no juízo decisório de um concreto problema normativo-jurídico.
Ou seja, o que se pretende com ela não é compreender, conhecer a norma em si, mas obter dela ou através dela o critério exigido pela problemática e adequada decisão justificativa do caso.
O que significa evidentemente que é o caso, e não a norma, o prius problemático-intencional e metódico (v. Prof. Castanheira Neves, Revista, cit., ano 118.º, p. 258).
Ora, sendo assim, e tendo em conta uma interpretação teleológica actual e razoável (cf. Engish, ob. cit.), há que ter como boa, no caso sub judice, não a solução do acórdão recorrido, mas a solução oposta, encontrada no acórdão fundamento.
Pelo exposto se concede provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, e se uniformiza a jurisprudência nos seguintes termos:
A salvaguarda legal consagrada na última parte do n.º 2 do artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho, abrange os créditos privilegiados constituídos antes da sua entrada em vigor, independentemente da data em que é declarada a falência do devedor.
Sem custas.
Lisboa, 15 do Outubro de 1996. - João Fernandes Magalhães - Pereira da Graça - Manuel José de Almeida e Silva - Figueiredo de Sousa - César Marques - Sá Couto - Aragão Seia - Pais de Sousa - Roger Lopes - Martins da Costa - Herculano de Lima - Costa Soares - Machado Soares - Miranda Gusmão - Cardona Ferreira - Mário Cancela - Sampaio da Nóvoa - Costa Marques - Nascimento Costa - Lopes Pinto - Joaquim de Matos - Sousa Inês - Ramiro Vidigal - Metello de Nápoles.