Acórdão 4/95
Processo 47 407 - 3.ª Secção
Acordam, em plenário, os conselheiros da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I
O presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência surge quando o ilustre representante do Ministério Público neste Supremo Tribunal, confrontando o acórdão desta mesma jurisdição em 22 de Junho de 1994, proferido no processo 45983, com aqueloutro que foi prolatado no processo 45100, se deu conta de que, enquanto o primeiro fora no sentido da admissibilidade da alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal dos factos operada, que havia tido lugar na 1.ª instância, o segundo seguiu entendimento adverso, isto é, o de que, em via de recurso, não poderia o tribunal a quo alterar a qualificação jurídica que dos factos havia sido feita no tribunal a quo e que por estes tinham sido captados.
Acrescentou o magistrado recorrente que as confrontadas decisões - acórdãos -, para além da evidente contradição que nelas se descobria, tinham tido lugar no domínio da mesma legislação, qual seja a do Código de Processo Penal.
A legitimidade do mesmo magistrado era indiscutível, além do mais, face ao estatuído no artigo 437.°, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Admitido o recurso em causa, foi julgado em conferência não apenas a concorrência de todos os pressupostos requeridos pelo artigo 438.°, n.º 1, da citada lei processual como ainda reconhecida a tempestividade do recurso e que tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento já haviam transitado em julgado.
E tão evidente é a verificação de todo o requisitório exigido para a admissibilidade do presente recurso para fixação obrigatória de jurisprudência que, neste momento, o plenário o reafirma una voce, nos precisos termos em que o mesmo foi dado como existente no acórdão a fl. 46, proferido em conferência.
II
Como já se anteviu, a questão a decidir resume-se tão-somente à de saber se o tribunal penal para que se recorre, máxime o Supremo Tribunal de Justiça, poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior.
A resposta, adianta-se, já não poderá deixar de ser afirmativa, face às múltiplas razões que adiante se irão alinhar.
III
Como é sabido, o actual Código de Processo Penal, no seu artigo 1.°, alínea f), define alteração substancial dos factos como aquela que tem por efeito imputar ao arguido um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicadas, indicando, depois, o artigo 359.° daquele mesmo repositório legal como proceder quando se verificar semelhante alteração, a qual, em princípio, não poderá ser tomada em linha de conta para efeitos de condenação do arguido, a menos que haja concordância entre Ministério Público e acusado no prosseguimento da acção penal, melhor dizendo, do julgamento, e a alteração não interfira na comparência do tribunal.
Na hipótese de a alteração com que se topa não ser essencial, rege o artigo 358.° do Código de Processo Penal.
Não se vislumbra, no entanto, interesse na exegese dos conceitos em causa, uma vez que os mesmos se reportam a alteração substancial dos factos e que o que está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objecto da impugnação.
IV
Mais pertinente será uma mirada sobre o teor do "Assento" n.º 2/93 deste Supremo Tribunal, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 10 de Março de 1993, que fixou a seguinte jurisprudência obrigatória:
Para os fins dos artigos 1.°, alínea f), 120.°, 284.°, n.º 1, 303.°, n.º 3, 309.°, n.º 2, 359.°, n.os 1 e 2, e 379.°, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia a simples alteração da respectiva qualidade jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.
Contudo, forçoso é reconhecê-lo, ainda aqui não é possível encontrar argumentação decisiva para a solução da problemática que se intenta resolver, isto não obstante se reconhecer que o citado "assento" é fortemente inspirado pela ideia de que, mais do que uma justiça meramente formal, o que importa é a recta justiça material, guardados que sejam certos limites legais inultrapassáveis pelo querer do próprio legislador, como quando não é fácil encontrar adequada justificação para eles.
Tanto é assim que no artigo 2.° da Lei 38/87, de 23 de Dezembro - a chamada "Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais" -, se dispõe, por inspiração constitucional - cf. artigo 205.°, n.º 2, da Constituição da República - que "compete aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos" e a verdade é que a posição assumida no acórdão fundamento é essencialmente dirigida à defesa dos direitos dos arguidos e a função dos tribunais é garantir a defesa de todos os interesses legítimos cuja tutela e protecção lhes seja suscitada, sejam quais forem os respectivos titulares.
A este propósito mais se dirá adiante.
V
É inaceitável que o julgador seja mero espectador em grande parte naqueles casos em que, não estando em debate uma qualificação jurídica errada dos factos ou até uma medida de uma pena indevida, ele se deva pronunciar tão-só sobre as questões suscitadas no recurso e que não tenham a ver com tal circunstancialismo.
A solução em processo penal não pode - não deve - distanciar-se da que foi adoptada em processo civil e que se encontra condensada no artigo 664.° do Código desta última forma de processo nos termos seguintes:
O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, salvo o que vai disposto nos artigos 514.° e 665.°
Nas duas formas de processo pode dizer-se, como José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil, vol. V, p. 92), que o citado artigo define a relação entre a actividade do juiz e a actividade das partes no tocante aos materiais do conhecimento; e define-a assim: "pelo que respeita ao direito, a acção do juiz é livre; pelo que respeita aos factos, a sua acção está vinculada".
Daí que, desde o direito romano, se mostrem consagradas - e respeitadas - as máximas jura novit cura e da mihi facta, dabo tibi jus.
Claro que, no actual processo penal, o respeito pela proibição da reformatio in pejus não consente uma agravação da pena nos casos que se explicitam no respectivo Código, embora seja bem mais razoável o sistema que vigorava nesta área no domínio do Código de 1929 - artigo 667.° -, que consentia uma justiça bem mais real do que a imposta pelo actual artigo 409.° do Código de Processo vigente.
Do mesmo modo, não se poderá ultrapassar a limitação do recurso nos casos em que este é permitido - artigo 403.° -, embora se tenha de aceitar que a parte não impugnada contém erros que são autênticas denegações de justiça.
E se o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo - artigo 8.°, n.º 2, do Código Civil -, tal não impede que o aplicador do direito não possa - nem deva - denunciar os defeitos da lei que conduzem ou podem conduzir a uma denegação da justiça que, como se disse, é função sua promover.
Vem a propósito reproduzir o pensamento do Prof. Beleza dos Santos, já citado pelo Exmo. Procurador-Geral-Adjunto no seu douto parecer, quando aquele extraordinário jurista considerou ser "injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo mesmo juiz que pronunciou" e que seria "exorbitante e injustificado" que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente.
VI
É de acentuar que os factos a que, em processo penal, o juiz está vinculado são os da acusação (ou pronúncia), os da defesa e os que resultem da discussão da acusação e tenham a virtualidade de diminuir ou a ilicitude de todos os demais enunciados nas várias alíneas do artigo 368.° do Código de Processo Penal.
E não só, já que há que ajuntar àqueles os factos notórios, tal como o artigo 514.° do Código de Processo Civil os define, e que não só não carecem de prova como, contra o que os ilustres juristas sustentam (p. e., Eduardo Correia, RDES, t. XIV, n.os 1 e 2, p. 18, Cavaleiro de Ferreira, Curso II, p. 269, e Castanheira Neves, Sumários, p. 45), não precisam de ser alegados, já que se tem como inadmissível que o juiz não se possa servir para decidir de factos que são do conhecimento geral, assim podendo ficar impedido de administrar uma verdadeira justiça - o suum cuique dare -, tal como é seu dever - cf. artigo 1.° da Lei Orgânica dos Tribunais. A entender-se de outro modo, ficar-se-ia por entender por que é que o julgador pode conhecer oficiosamente do erro notório da prova e dela retirar as naturais consequências - cf. artigos 412.°, n.º 2, alínea c), e 426.° do Código de Processo Penal, na escassa medida em que lhe é consentido intervir na matéria de facto, e já não pode tomar conhecimento da mesma espécie de factos para o efeito da qualificação jurídica da situação jurídica sub judice.
VII
Por tudo quanto ficou exposto e sem necessidade de ajuntar outras considerações, fixa-se como obrigatória para os tribunais judiciais a seguinte jurisprudência:
O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus.
Consequentemente, confirma-se o acórdão recorrido.
Não é devida tributação.
Lisboa, 7 de Junho de 1995. - José Henriques Ferreira Vidigal - Pedro Elmano Figueiredo Marçal -António Alves Teixeira do Carmo - António Sousa Guedes - Manuel Luís de Sá Ferreira - José Joaquim da Costa Figueirinhas - José Moura Nunes da Cruz - Humberto Carlos Amado Gomes - Manuel António Lopes Rocha - José Sarmento da Silva Reis - João Fernando Fernandes de Magalhães - Herculano Moreira de Lima - Eduardo Júlio Vaz dos Santos - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira -Rui Manuel Brandão Lopes Pinto - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira - Vítor Manuel Ferreira da Rocha.