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Acórdão do Tribunal Constitucional 348/2025, de 28 de Maio

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Sumário

Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 44.º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares relativos a mais-valias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma «presunção inilidível».

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/2025

Processo 650/24

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I-RELATÓRIO

1-O REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro, doravante “LTC”), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação pelo Plenário da constitucionalidade da norma constante do artigo 44.º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, quando interpretada no sentido de que

«

para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a maisvalias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma “presunção inilidível”

»

.

2-De forma a legitimar o seu pedido, alega o requerente que tais normas foram julgadas inconstitucionais, em mais de três casos concretos, nomeadamente nos Acórdãos n.os 211/2017, 488/2021 e 110/2024, o que permite ter por verificado o pressuposto previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, já que todas as referidas decisões transitaram em julgado.

Para o que ora releva, são os seguintes os termos do requerimento:

“O representante do Ministério Público neste Tribunal vem, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), expor e requerer o seguinte:

1.º

O Acórdão 211/2017 da 3.ª Secção deste Tribunal, julgou inconstitucional “a norma contida no artigo 44.º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a maisvalias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma

«

presunção inilidível

»

[...]”.

2.º

Este juízo de inconstitucionalidade foi, posteriormente, reafirmado pelos Acórdãos n.os 488/2021 e 110/2024, da 2.ª Secção deste Tribunal Constitucional.

3.º

Todas as decisões mencionadas transitaram em julgado.

4.º

Assim, em face do disposto no artigo 82.º da LTC, estão reunidas as condições para que o Tribunal Constitucional organize processo-a tramitar nos termos da fiscalização abstracta e sucessiva da constitucionalidade-, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade das normas supra-identificadas.”

3-Notificado para responder, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos, anexando, para o caso de ser útil à apreciação a desenvolver, uma nota técnica sobre os trabalhos preparatórios elaborada pelos serviços de apoio à Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças, informando, ainda, que a integralidade dos referidos trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da Lei 82-E/2014, de 31 de dezembro, se encontram disponíveis na página do Parlamento na Internet.

4-Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos previstos no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu. IIFUNDAMENTAÇÃO A) Pressupostos de cognição

5-O artigo 281.º, n.º 3, da Constituição estatui que o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas por ele julgadas inconstitucionais ou ilegais, em três casos concretos. O artigo 82.º da LTC, por seu turno, atribui ao Ministério Público legitimidade para requerer a apreciação abstrata da constitucionalidade ou legalidade de normas julgadas inconstitucionais ou ilegais pelo Tribunal em três casos concretos.

Não se levantam, nesta sede, quaisquer dúvidas sobre a legitimidade ativa do representante do Ministério Público. De igual modo, verifica-se que o pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade formulado nos presentes autos tem por base os três casos concretos legalmente exigidos. O requerente invoca três decisões proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, correspondendo a primeira ao Acórdão 211/2017, que julgou “inconstitucional a norma contida no artigo 44.º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a maisvalias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma

«

presunção inilidível

»

, por violação do princípio da capacidade contributiva ínsito nos artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da Constituição da República Portuguesa”

; o sentido decisório deste aresto foi reiterado nos Acórdãos n.os 488/2021 e 110/2024, de igual forma invocados no pedido.

Nestes termos, é inequívoca a verificação das condições necessárias para a apreciação da citada norma em sede de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade.

B) Mérito 6-A norma que integra o pedido consta do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), aprovado pelo Decreto Lei 442-A/88, de 30 de novembro, republicado pela Lei 82-E/2014, de 31 de dezembro, e tem o seguinte teor:

Artigo 44.º

Valor de realização 1-Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização:

a) No caso de troca, o valor atribuído no contrato aos bens ou direitos recebidos, ou o valor de mercado, quando aquele não exista ou este for superior, acrescidos ou diminuídos, um ou outro, da importância em dinheiro a receber ou a pagar;

b) No caso de expropriação, o valor da indemnização;

(...)

f) Nos demais casos, o valor da respetiva contraprestação.

2-Nos casos das alíneas a), b) e f) do número anterior, tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que devessem ser, caso fosse devida.

7-A Lei 82-E/2014, acima mencionada, aditou a este preceito legal os n.os 5 a 7, com relevância para a apreciação dos autos, cujo teor é o seguinte:

“5-O disposto no n.º 2 não é aplicável se for feita prova de que o valor de realização foi inferior ao ali previsto.

6-A prova referida no número anterior deve ser efetuada de acordo com o procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC, com as necessárias adaptações.

7-Nos casos em que são efetuados ajustamentos, positivos ou negativos, ao valor de realização, e se à data em que for conhecido o valor definitivo tiver decorrido o prazo para a entrega da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 57.º, deve o sujeito passivo proceder à entrega de declaração de substituição durante o mês de janeiro do ano seguinte”.

Tendo em conta esta alteração, e em face do teor destes novos preceitos, que a interpretação normativa ora em crise parece ser, hoje, inadmissível, à luz do mais elementar processo de hermenêutica jurídica, uma vez que fica definitiva e indubitavelmente vedada a possibilidade de o n.º 2 do artigo em causa ser lido como consagrando uma presunção inilidível. Todavia, a realidade é que chegaram a este Tribunal, em data recente, casos concretos em que a interpretação normativa impugnada continua a ser recusada com fundamento em inconstitucionalidade.

8-O juízo de inconstitucionalidade cuja generalização se visa com os presentes autos começou por ser formulado no Acórdão 211/2017, cujos fundamentos encontram eco na jurisprudência subsequente, que é, aliás, uniforme no sentido desse mesmo juízo. O parâmetro jurídicoconstitucional que lhe serve de base reconduz-se, em todas as decisões que aqui relevam, ao princípio da capacidade contributiva, ínsito no artigo 103.º da Constituição, enquanto refração do princípio da igualdade.

Neste sentido, assinala SÉRGIO VASQUES que

«

a capacidade contributiva é o critério de repartição para o qual aponta inequivocamente o princípio da igualdade logo que o projetamos sobre o domínio dos impostos, razão pela qual o princípio da capacidade contributiva não carece de consagração constitucional explícita, bastando, para o fundamentar nesta área do sistema, o princípio geral de igualdade acolhido pelo artigo 13.º da Constituição

»

(cf. S. VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 295).

Também FILIPE DE VASCONCELOS FERNANDES refere que

«

[...] tratando-se o princípio da capacidade contributiva de uma emanação da igualdade no plano fiscalpelo que, mais uma vez, se poderá continuar a derivar do artigo 13.º da CRPdele decorre que deverá a lei fiscal tratar de forma igual e uniforme os factos que exprimem ou revelam a mesma capacidade contributiva e de modo diferenciado aqueles que a exprimem de diferente forma, assegurando que tal suceda na medida da respetiva diferença

»

. Em consequência,

«

não basta, por isso, que exista um tratamento igual de factos relevantes à luz da mesma capacidade contributiva revelada, mas também que aqueles factos ou indícios que sejam reveladores de uma capacidade contributiva distinta sejam tratados diferentemente e na medida dessa mesma diferença

»

(cf. F. Vasconcelos FERNANDES, Direito Fiscal ConstitucionalIntrodução e Princípios Fundamentais, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 165).

ANA PAULA DOURADO assinala, igualmente, que

«

nos impostos, o princípio da igualdade é concretizado pelo princípio da capacidade contributiva, pressuposto e critério de tributação. O princípio da capacidade contributiva é um princípio de justiça fiscal e contém a medida de comparabilidade entre o objeto de tributação, por um lado, e a medida de comparabilidade entre os sujeitos passivos, por outro lado. As duas medidas estão relacionadas. O objeto de tributação deve permitir uma correta comparabilidade entre sujeitos (todos devem pagar impostos segundo o mesmo critério)

»

. Consequentemente, adverte ainda a mesma autora que

«

a tributação do universo de todos os sujeitos passivos segundo o princípio da igualdade implica que o objeto de tributação deve ser adequado a revelar essa capacidade contributiva, sob pena de arbitrariedade e discriminação

»

(cf. A. DOURADO, Direito Fiscal, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pp. 229-230).

Na mesma linha, ensina CASALTA NABAIS que

«

[...] enquanto critério da tributação, a capacidade contributiva rejeita que o conjunto dos impostos (o sistema fiscal) e cada um dos impostos de per si tenham por base qualquer outro critério, seja ao nível das respetivas normas, seja ao nível dos correspondentes resultados

»

. De tal sorte que

«

[...] constituindo a ratio ou a causa da tributação, este princípio afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que, na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto

»

. E, se dúvidas restassem, acrescenta ainda o autor:

«

daqui decorre, seja a ilegitimidade constitucional das presunções absolutas de tributação e das chamadas sanções impróprias, seja a necessidade duma válvula de escape para obstar a situações de grave iniquidade no caso da tributação assente em ficções [...]

»

(cf. CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2023 (reimp.), p. 156).

Quanto à jurisprudência constitucional, desde há décadas se orienta na mesma linha, lembrando que “a generalidade do dever de pagar impostos significa o seu carácter universal (não discriminatório), e a uniformidade (igualdade) significa que a repartição dos impostos pelos cidadãos há de obedecer a um critério idêntico para todos”, sendo esse critério o da capacidade contributiva, que implica que “os contribuintes com a mesma capacidade contributiva devem pagar o mesmo imposto (igualdade horizontal) e os contribuintes com diferente capacidade contributiva devem pagar diferentes (qualitativa e/ou quantitativamente) impostos (igualdade vertical)” (cf. Acórdão 348/97).

9-Voltando ao Acórdão 211/2017, explica-se, em primeiro lugar, nesse aresto, que “por regra, as presunções legais estabelecem uma verdade presumida (não provada) que poderá vir a ser infirmada mediante prova em contráriopresunções ilidíveis ou presunções iuris tantum. Já as presunções iuris et de iure não admitem prova em contrário, sendo assim também chamadas de presunções inilidíveis ou absolutas”

; o Acórdão citado lembra ainda que a regra em matéria de incidência tributária é, nos termos do artigo 73.º da Lei Geral Tributária, a possibilidade de prova em contrário.

Todavia, o objeto então em causa, de que nos ocupamos também nos presentes autos, consiste numa interpretação normativa da norma contida no artigo 44.º, n.º 2, do CIRS, nos termos da qual tal disposição consubstancia uma presunção inilidível. Tendo em consideração tal ponto de partida, esclarece-se, pois, seguidamente, no Acórdão que temos vindo a citar:

“Ora, ao ser afastada a possibilidade de prova em contrário, as presunções inilidíveis aproximam-se da figura das ficções legais, através das quais o facto ficcionado é definitivamente fixado sem que se considere sequer a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa. A este propósito, pode assinalar-se que a doutrina fiscal dedica alguma atenção à comparação entre as duas figuras, seja na afirmação da sua diferença (assim JOÃO SÉRGIO RIBEIRO entende que numa presunção é necessário que entre o facto base ou facto conhecido e o facto presumido exista uma relação lógica de probabilidade, o que não acontece no caso das ficções, em que a verdade jurídica é assumida pelo legislador, independentemente da sua correspondência à verdade real, cf., do Autor, Tributação Presuntiva do RendimentoUm Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável, Almedina, Coimbra, 2014 (reimpressão da edição de 2010), p. 408), seja no esbatimento dessa diferença (assim, ANA PAULA DOURADO, pese embora entenda que o juízo de probabilidade caracteriza as presunções-mesmo as que não admitem contraprova,-sendo alheio às ficções, integra o recurso às presunções e às ficções no âmbito mais vasto das técnicas de tipificação legal, cf. O Princípio da Legalidade FiscalTipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, Almedina, Coimbra, 2007, em especial, pp. 602-606 e pp. 612-622).

No caso vertente, da formulação da norma em causa retira-se tão só que o valor de referência para efeitos de apuramento dos ganhos obtidos com a realização da venda corresponde ao valor de avaliação do imóvel para efeitos de liquidação do imposto municipal sobre as transações onerosas (IMT), ou seja ao valor patrimonial tributário apurado nos termos do CIMI, sempre que este seja superior ao valor da contraprestação constante da escritura (ou outro documento) da compra e venda”.

10-Assim enquadrada a questão, destacam-se alguns segmentos argumentativos do Acórdão 211/2017, atinentes, designadamente, ao confronto da norma questionada com o parâmetro constitucional relevante, acima já densificado:

“19-Tivemos oportunidade de enquadrar constitucionalmente o princípio da capacidade contributiva (cf. supra, 17.2), enquanto concretização do princípio da igualdade (fiscal) e expressão de outros valores fundantes da Constituição fiscal (plasmados nos artigos 103.º e 104.º, CRP), não alheios à ideia de realização da justiça fiscal, pese embora o princípio não encontre formulação expressa na Constituição portuguesa.

É neste princípio que a sentença recorrida funda a sua decisão de não aplicação da norma contida no artigo 44.º, n.º 2, do CIRSinterpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível ou absoluta em matéria de apuramento das maisvalias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis (tomando por referência o VPT do imóvel quando superior ao valor da contraprestação devida pela compra)-por inconstitucionalidade.

Ocorrendo a transação onerosa (no caso, uma compra e venda) de um bem imóvel, a maisvalia sujeita a tributação (seja na totalidade, seja numa determinada percentagem) corresponde à diferença entre o valor da aquisição do imóvel e o valor de realização da venda do mesmo, ou seja o ganho obtido pela diferença dos dois valores.

Assim, quanto à definição do valor de realização de uma transação onerosa de bens imóveis, dispõe o artigo 44.º, n.º 1, alínea f), do CIRS que corresponderá o mesmo ao valor da contraprestação, ou seja, ao preço, sendo que-e segundo o n.º 2 do mesmo artigo-

«

tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que devessem ser, caso fosse devida.

»

O valor patrimonial tributário (os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre as transações onerosas de imóveis) a que se refere o artigo 44.º, n.º 2, do IRS, constitui, deste modo, um valor padrão escolhido como referência pelo legislador, a ser tido em conta desde que superior ao valor declarado na transação do imóvel em causa, sendo assim, por um lado, o pressuposto legal para a aplicação de um método de apuramento da matéria coletável não baseado na declaração do contribuinte e assumindo também, por outro lado, a finalidade de passar a ser considerado como o valor sobre o qual incide a tributação (no apuramento dos ganhos), definindo a medida da matéria coletável, pelo que constitui, do mesmo passo, uma norma de incidência tributária.

O Juiz a quo qualificou a normação em causa como uma presunção inilidível ou absoluta, na medida em que, em face do apuramento da matéria sujeita a tributação com base no VPT do imóvel (porque superior ao valor da contraprestação), não seria facultado ao contribuinte uma forma de demonstrar que o valor de realização da transação onerosa do imóvel era efetivamente o valor da contraprestação (preço) constante da escritura pública (ou documento similar) de compra e venda.

Temos, assim, que o legislador, em sede de tributação de rendimentos pessoais (IRS), para a determinação da matéria sujeita a tributação como maisvalias decorrentes da alienação onerosa de um bem imóvel, consagrou um regime de fixação presuntiva de rendimentos:

perante a alienação onerosa de um imóvel, em face de qualquer disparidade entre o valor declarado (como o valor da contraprestação devida pela aquisição do bem) e o valor patrimonial tributário do imóvel (VPT) que se traduza na inferioridade daquele valor quando confrontado com este, a lei presume que o valor de realização do negócio é o valor patrimonial do imóvel, segundo avaliação feita nos moldes e para os efeitos da tributação do património (IMI e IMT). Isto, sem que possa o contribuinte ilidir a presunção estabelecida.

Nestes termos-e assim interpretada a norma constante do artigo 44.º, n.º 2, do CIRSentende a sentença recorrida ocorrer a infração do princípio da capacidade contributiva.

[...]

21-A norma contida no artigo 44.º, n.º 2 do CIRS, ao tomar por referência o VPT do imóvel, tem, como já se disse, a dupla finalidade de servir de pressuposto à sua aplicação e de determinarcom base naquele mesmo valor-a matéria sujeita a tributação como maisvalias. Recorde-se que a referência ou pressuposto relevante para o apuramento dos rendimentos (presumidos) obtidos com a alienação do imóvel parte da verificação de uma disparidade entre os valores da transação (a contraprestação) e da avaliação do imóvel para fixação do seu valor patrimonial tributárioesta feita de acordo com o regime fixado no Código do Imposto Municipal sobre os Imóveis (CIMI, em especial, o artigo 38.º), servindo também o efeito de determinar a base coletável do Imposto Municipal sobre as Transações Onerosas (IMT). Com efeito, em matéria de impostos sobre o patrimónioestáticos (IMI) ou dinâmicos (IMT)-, a base coletável é (ou pode ser) determinada a partir da avaliação do imóvel para efeitos de determinação do seu valor patrimonial tributável (VPT), uma técnica de

«

acertamento

» que procura responder às exigências de procedimentos tributários de massas, fazendo prevalecer critérios unitários previamente fixados pelo legislador, cujo resultado pode não coincidir com o valor de mercado do bem avaliado.

A virtualidade da referência tomada pelo legislador no artigo 44.º, n.º 2, do CIRS, parte do pressuposto de que aquele VPT é tendencialmente inferior ao valor de mercado dos bens imóveis, sendo, assim, também tendencialmente inferior ao valor pelo qual o bem é transacionado. Deste modo, sugere que qualquer transação onerosa de bens imóveis terá por valor mínimo o VPT do imóvel. Ora, tal pressuposto não se verifica sempre ou não se verifica necessariamente, tendo em conta quer as variações dos preços de compra e venda praticados no mercado imobiliário (sendo este fortemente condicionado pela conjuntura económica, seja em períodos de crise, seja em períodos de expansão, a que acresce a sujeição a distorções várias decorrentes de outros fatores relevantes, designadamente, financeiros e fiscais), quer a variação do próprio regime de avaliação patrimonial dos imóveis para efeitos fiscais e da sua aplicação (seja pela atualização dos VPT, seja pela alteração dos critérios legalmente definidos para a fixação do VPT, seja ainda pelos processos generalizados de avaliação ou reavaliação de imóveis, como é exemplo a determinação, pela Lei 60-A/2011, de 30 de novembro, da avaliação geral e imediata dos prédios que ainda não tinham sido avaliados com base nos critérios do CIMI, entretanto levada a cabo pela Administração Fiscal).

Contudo, não cabendo nesta sede ajuizar da bondade do critério (ou pressuposto) escolhido pelo legislador, certo é que, servindo o mesmo de norma de incidência tributária, determinando e quantificando a matéria tributável de forma diversa da que resultaria da declaração do contribuinte, cumpre ajuizar da técnica utilizada para o apuramento do rendimento sujeito a tributação, tendo em conta a interpretação feita pelo Juiz da causa do artigo 44.º, n.º 2, do CIRS no sentido de que, na determinação da matéria sujeita ao imposto sobre o rendimento, estabelece uma presunção inilidível ou absoluta, fazendo prevalecer o VPT do imóvel sobre o valor correspondente à contraprestação devida pela compra do imóvel (quando inferior àquele).

22-[...]

O princípio da capacidade contributiva, enquanto

«

princípio geral da imposição segundo a capacidade contributiva de cada um

»

(Acórdão 211/2003), exige que o legislador fiscal configure as obrigações dos contribuintes a partir de factos tributários que fundem a capacidade de suportar o encargo correspondente. Afirmou o Acórdão 348/97 que

«

a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto

»

.

O primeiro fundamento deste princípio é encontrado no princípio da igualdade (artigo 13.º, CRP), de modo a que a distribuição dos encargos tributários seja feita de acordo com a capacidade de cada um, isto é, exigindo-se um critério idêntico para todos os cidadãos na repartição de impostos e sendo esse critério o da capacidade contributiva (assim, no citado Acórdão 348/97 e, mais recentemente, nos Acórdãos n.os 695/2014 e 590/2015). A capacidade contributiva é, assim, a medida da diferença.

E, a partir da sua articulação com os demais princípios materiais da Constituição fiscalem particular o artigo 103.º da CRPpodemos retirar do princípio da capacidade contributiva, ao pressupor uma repartição justa dos encargos de acordo com a capacidade de cada um, a resposta à demanda constitucional de

«

uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza

»

(artigo 103.º, n.º 1), a que não deixa de se referir o Acórdão 211/2003-e, bem assim, vêlo concretizado no princípio de a tributação dever incidir sobre o

«

rendimento real

» dos contribuintes (artigo 104.º, n.º 2), caso se admitisse que a disposição constitucional em causa tem um leque de destinatários mais vasto que o da sua letra e tomando-se por seguro, como faz JOSÉ CASALTA NABAIS, que este preceito constitucional
«

mais não é do que uma concretização, uma explicitação dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade fiscal

»

(Direito Fiscal, cit., p. 171).

O princípio da capacidade contributiva constitui, pois, como escreve SÉRGIO VASQUES,

«

o pressuposto, o limite e o critério da tributação

»

(cf. Manual de Direito Fiscal, reimpressão, Edições Almedina, S. A., Coimbra, 2015, p. 296). Ora, estas exigências constitucionais não podem deixar de ser observadas nas normas de incidência tributária, configurando-se como princípiosgarantia dos contribuintes. É que, na definição da incidência do imposto, a determinação da matéria coletável constitui um elemento essencial da relação jurídicofiscal, quantificando a obrigação tributária e, assim, a medida do imposto devido. Deste modo, o legislador não pode fixar a medida do imposto sem atender à capacidade revelada pelo seu devedor.

Aqui se revelam as virtualidades do princípio da capacidade contributiva:

«

constituindo a ratio ou a causa da tributação, este princípio afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que [...] erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto. Daqui decorre [...] a ilegitimidade constitucional das presunções absolutas de tributação

»

(JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, cit., pp. 154-155).

[...]

No caso vertente, a fixação da matéria coletável através do recurso a métodos presuntivos, sem possibilidade de ilisão, pelo contribuinte, da presunção estabelecida na lei, terá como consequência possível (e plausível) a tributação de ganhos (mais-valias) não efetivamente auferidos pelo contribuinte.

[...]

Ora, se o ganho fortuito não existir ou, existindo, ficar muito aquém do estimado, a tributação não será devida. Pelo menos, à luz do princípio da capacidade contributiva ínsito na Constituição portuguesa.

Com efeito, as maisvalias decorrentes da transmissão onerosa de direitos reais sobre imóveis correspondem ao ganho obtido com essa transmissão em face do valor da aquisição anterior do mesmo bem. Ao determinar o rendimento tributável por referência a um ganho presuntivo, sem que ao contribuinte seja dada a possibilidade de demonstrar a inexistência da capacidade contributiva que se pretende tributar, incorre a norma constante do artigo 44.º, n.º 2, do CIRSna interpretação desaplicada nos autosem inconstitucionalidade, por ofensa do princípio da capacidade contributiva acima enunciado.

24-Pelo que fica exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade da norma contida no artigo 44.º, n.º 2, do CIRS, na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a maisvalias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma ‘presunção inilidível’.”

11-A jurisprudência subsequente, de que acima se deu nota, não se afastou nem deste juízo de inconstitucionalidade, nem da respetiva fundamentação. Com efeito, nota-se, nos três Acórdãos mencionados (Acórdãos n.os 211/2017, 488/2021 e 110/2024), um entendimento claramente uniforme no que respeita ao juízo de (des)conformidade constitucional das normas ora questionadas. Deste modo, reiterando o sentido daquela jurisprudência, resta proceder à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 44.º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a maisvalias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma

«

presunção inilidível

»

. IIIDECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 44.º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a maisvalias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma

«

presunção inilidível

»

, por violação do princípio da capacidade contributiva ínsito nos artigos 103.º, n.º 1, e 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Sem custas.

A relatora certifica os votos de conformidade do Senhor Conselheiro Carlos Medeiros de Carvalho, que participou na sessão por videoconferência, e do Senhor Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, que não assina por não estar presente. Mariana Canotilho Lisboa, 6 de maio de 2025.-Mariana CanotilhoJoana Fernandes CostaAfonso Patrão-António José da Ascensão RamosJoão Carlos LoureiroJosé Eduardo Figueiredo DiasRui Guerra da FonsecaMaria Benedita UrbanoJosé Teles PereiraDora Lucas NetoJosé João Abrantes.

119101674

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/6190412.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1988-11-30 - Decreto-Lei 442-A/88 - Ministério das Finanças

    Aprova o Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS).

  • Tem documento Em vigor 2011-11-30 - Lei 60-A/2011 - Assembleia da República

    Procede à segunda alteração à Lei do Orçamento do Estado para 2011, aprovada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, altera o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, e o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) e procede à primeira alteração do Decreto-Lei n.º 137/2010, de 28 de Dezembro, que aprova um conjunto de medidas adicionais de redução de despesa com vista à consolidação orçamental prevista no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) para 2010-2013.

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