Acórdão 395/93
Processo 488/91
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O Procurador-Geral da República vem, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.os 1, alínea a), e 2, alínea e), da Constituição, requerer que este Tribunal aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de todas as normas do Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 121, de 25 de Maio de 1988, uma vez que - diz - o referido diploma legal é organicamente inconstitucional, por violação dos artigos 229.º, alínea b), segunda parte, e 234.º da Constituição, na versão de 1982.
Fundamenta o seu pedido, em síntese, do modo seguinte:
a) A regulamentação das leis gerais emanadas dos órgãos de soberania (salvo quando estes reservem para si o próprio poder de as regulamentar) compete, em exclusivo, às assembleias regionais, que devem fazer tal regulamentação de forma exaustiva;
b) Aos governos regionais apenas compete regulamentar a legislação regional - o que vale por dizer que lhes cabe regulamentar tão-só os decretos legislativos regionais produzidos pelas assembleias (legislativas) regionais, no uso da sua competência legislativa própria (isto é, produzidos sobre matérias de interesse específico para as Regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania);
c) Ora, o Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, aqui sub iudicio, visou regulamentar o Decreto Legislativo Regional 1/88/A, de 12 de Janeiro, que é, ele próprio, um diploma regional regulamentar - recte, regulamentar do Decreto-Lei 132/80, de 17 de Maio, que é uma lei geral emanada por um órgão de soberania (no caso, pelo Governo).
2 - O Presidente do Governo Regional dos Açores, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nada veio dizer.
3 - Cumpre, então, decidir.
II - Fundamentos
4 - O Decreto-Lei 132/80, de 17 de Maio (alterado, posteriormente, pelo Decreto-Lei 125/84, de 26 de Abril), veio definir «os princípios gerais delimitadores da estrutura dos serviços sociais do ensino superior». Contendo as respectivas «bases fundamentais», constitui ele «o quadro normativo que há-de nortear a sua organização» (cf. preâmbulo).
No artigo 1.º, n.º 1, deste decreto-lei definem-se os serviços sociais do ensino superior como «pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa e financeira», funcionando junto de cada universidade, instituto universitário ou outro estabelecimento de ensino superior.
Os serviços sociais «têm por fim promover a execução da política de acção social escolar no âmbito do ensino superior» (cf. artigo 2.º, n.º 1), para o que concederão bolsas de estudo, subsídios de estudo e empréstimos, proporão a concessão de isenção ou de redução de propinas, promoverão a criação, manutenção e funcionamento de residências e refeitórios, desenvolverão actividades de informação e procuradoria e outras que se enquadrem nos fins gerais da acção social escolar (cf. artigo 3.º) - o que vale por dizer que se enquadrem no objectivo de conceder «auxílios económicos aos estudantes carecidos de recursos» e de prestar «outros serviços aos estudantes em geral» (cf. artigo 2.º, n.º 2).
Os diferentes serviços sociais [entre eles, contam-se os Serviços Sociais da Universidade dos Açores: cf. artigo 1.º, n.º 2, alínea i), na redacção do citado Decreto-Lei 125/84] têm os seguintes órgãos: um presidente, um conselho geral e um conselho administrativo (cf. artigo 11.º).
O presidente de cada serviço social será o reitor ou director do respectivo estabelecimento de ensino (cf. artigo 12.º). Compete-lhe «dirigir superiormente os serviços sociais, orientar e coordenar as suas actividades» (cf. artigo 13.º, n.º 1), para o que será coadjuvado por um vice-presidente (cf. artigo 13.º, n.º 3).
O conselho geral é um órgão consultivo, composto pelos presidente e vice-presidente respectivos, pelo administrador do estabelecimento de ensino superior em causa, por três representantes do órgão colegial que coordene as actividades das várias escolas do respectivo estabelecimento de ensino, por dois representantes dos estudantes bolseiros dos serviços sociais e por dois representantes das associações de estudantes (cf. artigo 15.º, na redacção do Decreto-Lei 125/84).
O conselho administrativo é constituído pelo presidente dos serviços sociais, pelo vice-presidente dos mesmos serviços, por uma pessoa de reconhecida competência designada pelo Ministro da Educação e pelo responsável pelos serviços de administração (cf. artigo 18.º).
Os diferentes serviços sociais, para o desempenho das suas funções, disporão de serviços operativos (alojamento, alimentação e bolsas e empréstimos) e de serviços de apoio (administração e aprovisionamento), cuja «estrutura e regulamentação» serão fixadas no regulamento respectivo, «tendo em consideração o volume de serviços a prestar» (cf. artigo 21.º, n.os 1, 2, 3 e 4). Este regulamento pode extiguir ou criar alguns desses serviços (cf. artigo 21.º, n.º 4, na redacção do Decreto-Lei 125/84).
Os serviços sociais podem ainda dispor de serviços de infantário, jardins-de-infância, secções de textos, livraria e material escolar e outros que venham a ser criados (cf. artigo 24.º, na redacção do Decreto-Lei 125/84).
Será também no regulamento de cada um dos serviços sociais que se fixará o respectivo quadro de pessoal, que incluirá pessoal dirigente, pessoal técnico superior, pessoal técnico, pessoal técnico-profissional e ou técnico-administrativo e pessoal operário e ou auxiliar (cf. artigo 34.º).
O regulamento de cada serviço social consta de decreto regulamentar, que devia ser publicado no prazo de 120 dias a contar da data da entrada em vigor do Decreto-Lei 132/80 (cf. artigo 39.º, n.º 1). E, para esse efeito, cada um dos serviços sociais ficou obrigado a apresentar o respectivo projecto de decreto regulamentar no prazo de 90 dias contados da mesma data (prazo reduzido a 60 dias pelo Decreto-Lei 125/84), ao Conselho de Acção Social do Ensino Superior, que é o órgão de que fazem parte todos os presidentes e vice-presidentes dos serviços sociais do ensino superior, o presidente do Instituto de Acção Social Escolar, um representante da Secretaria de Estado do Ensino Superior e um representante das associações de estudantes de cada estabelecimento de ensino superior (cf. artigo 6.º, na redacção do Decreto-Lei 125/84).
O regulamento de cada serviço social contém, designadamente: a estrutura dos serviços e a competência das diferentes unidades que os integram; a estrutura e a dinâmica das carreiras profissionais do respectivo pessoal; as condições de provimento dos lugares do pessoal dirigente; o regime jurídico aplicável ao pessoal dos serviços sociais, e as regras de transição do pessoal que prestasse serviço nos serviços sociais à data da entrada em vigor do citado Decreto-Lei 132/80 (cf. artigos 39.º e 1.º do Decreto-Lei 125/84).
Significa isto - como se assinala no preâmbulo do Decreto-Lei 132/80 - que a reforma dos serviços sociais do ensino superior, iniciada com a publicação deste decreto-lei, só ficou «completa com a publicação dos diplomas regulamentares de cada um dos serviços sociais, para elaboração dos quais se pretendeu atribuir a cada um destes um papel activo, predominante e responsável».
5 - O Decreto-Lei 132/80, de 17 de Maio (maxime, o seu artigo 39.º), na Região Autónoma dos Açores, foi interpretado (se bem ou mal é questão que aqui não tem de decidir-se) no sentido de que o Governo não reservou para si o respectivo poder regulamentar.
Assim é que a Assembleia Regional dos Açores veio, ao abrigo da alínea b) do artigo 229.º da Constituição (redacção de 1982), «dar execução» àquele artigo 39.º e, assim, «regulamentar a orgânica e funcionamento dos Serviços Sociais da Universidade dos Açores», editando, para o efeito, o Decreto Legislativo Regional 1/88/A, de 12 de Janeiro (cf. o respectivo preâmbulo).
Os Serviços Sociais da Universidade dos Açores são, neste Decreto Legislativo Regional 1/88/A, «uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa e financeira» (cf. artigo 1.º). E têm os órgãos e serviços previstos no Decreto-Lei 132/80, alterado pelo Decreto-Lei 125/84 (cf. artigo 3.º).
O Decreto Legislativo Regional 1/88/A, de 12 de Janeiro, é, pois, um diploma regulamentar de uma lei geral emanada de um órgão de soberania - no caso, do Decreto-Lei 132/80, de 17 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei 125/84, de 26 de Abril, editados ambos pelo Governo.
6 - Não obstante o referido Decreto Legislativo Regional 1/88/A, de 12 de Janeiro, ser um diploma regulamentar - e não legislação regional -, o Governo Regional dos Açores editou, entretanto, o Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, de 25 de Maio, de cujo preâmbulo consta o seguinte:
Aprovado que foi, pela Assembleia Regional dos Açores, o Decreto Legislativo Regional 1/88/A, de 12 de Janeiro, que aprova a Lei Orgânica dos Serviços Sociais da Universidade dos Açores, cumpre agora ao Governo Regional regulamentá-lo, de molde a dar-lhe execução.
Serão, então, inconstitucionais as normas deste Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, por violação das disposições conjugadas dos artigos 229.º, alínea b), segunda parte, e 234.º da Constituição da República, na versão de 1982?
A resposta é - adianta-se já - afirmativa.
7 - No momento em que o dito Decreto Regulamentar Regional 21/88/A foi editado, as Regiões Autónomas podiam «regulamentar a legislação regional e as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania» que não reservassem para estes o respectivo poder regulamentar [cf. alínea b) do artigo 229.º da Constituição, na versão de 1982]. Quando se tratasse de regulamentar estas «leis gerais emanadas dos órgãos de soberania», a competência pertencia, exclusivamente, às assembleias regionais.
Dispunha, com efeito, o artigo 234.º (versão de 1982):
É da exclusiva competência da assembleia regional o exercício das atribuições referidas [...] na segunda parte da alínea b) [...] do artigo 229.º [...]
Aos governos regionais competia, por isso, tão-somente, a regulamentação da legislação regional [ou seja, da legislação editada pelas assembleias regionais, ao abrigo da alínea a) do referido artigo 229.º - a saber: da legislação sobre «matérias de interesse específico para as Regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania»].
Dizendo de outro modo: os governos regionais só tinham competência regulamentar quanto aos decretos legislativos regionais que fossem expressão do poder legislativo regional e que, por isso (conjuntamente com as leis e com os decretos-leis: cf. artigo 115.º, n.º 1, na redacção de 1982), fossem actos legislativos.
A este propósito, escreviam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 1985, p. 229, anotação IX):
A competência regulamentar [alínea b)] abrange duas coisas distintas: uma é a competência para regulamentar as próprias leis regionais, e pertence, nos termos gerais, ao governo regional; outra é a competência para regulamentar as «leis gerais da República» (ou qualquer outra lei da República que seja aplicável a uma Região Autónoma) que não reservem para o Governo da República essa competência, e pertence à assembleia regional (artigo 234.º).
E, mais adiante, acrescentam:
Os regulamentos regionais revestem necessariamente a forma de decreto regulamentar regional quando se trate de regulamentos de leis gerais da República (da competência exclusiva da assembleia regional); quanto aos regulamentos do governo regional - que só podem ter por objecto a regulamentação das leis regionais -, podem revestir também a forma de decreto regulamentar regional (se se verificarem os respectivos requisitos: cf. artigo 115.º, alínea b), ou qualquer das formas correntes de regulamento (portaria, despacho genérico, resolução, etc.).
8 - O diploma normativo que o Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, de 25 de Maio, aqui sub iudicio, disse vir regulamentar é - recorde-se - o Decreto Legislativo Regional 1/88/A, de 12 de Janeiro, que, contudo, não é uma lei regional.
O Decreto Legislativo Regional 1/88/A - pese, embora o qualificativo de «legislativo» - é, com efeito, e como se disse já, um regulamento regional, pois foi editado ao abrigo da alínea b) do artigo 229.º da Constituição - e não da sua alínea a) - e visou, precisamente, regulamentar o Decreto-Lei 132/80, de 17 de Maio (alterado, entretanto, pelo Decreto-Lei 125/84, de 26 de Abril).
A designação de «decreto legislativo regional» ficou a dever-se ao facto de ser essa forma que - conforme ao disposto no n.º 1 do artigo 34.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei 9/87, de 26 de Março) - reveste os «regulamentos para adequada execução das leis gerais provindas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar», os quais são da competência, como se viu, da respectiva assembleia (legislativa) regional [cf. alínea i) do n.º 1 do artigo 32.º do dito Estatuto].
Os «regulamentos necessários à execução dos decretos legislativos regionais», cuja elaboração é da competência do Governo Regional [cf. alínea c) do artigo 56.º], esses revestem a forma de decreto regulamentar regional (cf. artigo 57.º, n.º 1, do mesmo Estatuto).
Assim sendo, o Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, de 25 de Maio, indirectamente embora (ou seja: pela interposição do Decreto Legislativo Regional 1/88/A, de 12 de Janeiro), o que veio regulamentar foi o Decreto-Lei 132/80, de 17 de Maio (alterado pelo Decreto-Lei 125/84, de 26 de Abril) - e não o referido Decreto Legislativo Regional 1/88/A, ele também um regulamento regional.
Como o Governo Regional dos Açores só podia regulamentar uma lei regional - e não também, ainda que pela forma indirecta adoptada - uma lei geral emanada de um órgão de soberania, como é o caso do citado Decreto-Lei 132/80, as normas daquele decreto regulamentar regional são, todas elas, inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas dos artigos 229.º, alínea b), segunda parte, e 234.º da Constituição, na versão de 1982.
9 - Havendo-se concluído pela inconstitucionalidade de todas as normas do Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, de 25 de Maio, por violação dos apontados artigos 229.º, alínea b), segunda parte, e 234.º da Constituição, lidos conjugadamente, desnecessário se torna passar à análise do conteúdo de cada um dos seus preceitos, a fim de os confrontar com outras normas ou princípios constitucionais.
Não deixará, porém, de registar-se algo que se colhe numa primeira leitura. É o seguinte: o mencionado decreto regulamentar regional veio prever, inovatoriamente, a possibilidade de alargar o âmbito dos Serviços Sociais da Universidade dos Açores a estabelecimentos de ensino médio ou superior não integrados na Universidade dos Açores (cf. artigo 3.º, n.º 3) e a possibilidade, bem assim, de (quanto ao fornecimento de refeições) alargar esse âmbito aos seus próprios trabalhadores e aos trabalhadores daqueloutros estabelecimentos de ensino médio e superior (cf. artigo 3.º, n.º 4). Para além de que regulamentou a composição do conselho administrativo dos Serviços Sociais em causa (cf. artigo 10.º) e publicou os quadros de pessoal dos mesmos (cf. anexos I e II) - coisas ambas que o Decreto Legislativo Regional 1/88/A, de 12 de Janeiro, não tinha feito.
10 - Como o Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, de 25 de Maio, tem estado a ser executado, produziu ele, decerto, efeitos nas esferas jurídicas dos particulares - efeitos que, assim, podiam ficar sem cobertura legal (cf. o que se disse supra, n.º 9).
Há, por isso, razões de segurança jurídica e de equidade para, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, ressalvar os efeitos entretanto produzidos ou que venham a produzir-se até à data da publicação do presente acórdão no Diário da República.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional:
a) Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de todas as normas do Decreto Regulamentar Regional 21/88/A, de 25 de Maio, por violação das disposições conjugadas dos artigos 229.º, alínea b), segunda parte, e 234.º da Constituição, na versão de 1982;
b) Ao abrigo do disposto no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição - e por razões de segurança jurídica e de equidade -, ressalva os efeitos entretanto produzidos por tais normas e, bem assim, os efeitos que elas venham a produzir até à data da publicação do presente acórdão no Diário da República.
Lisboa, 16 de Junho de 1993. - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - António Vitorino - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra - Maria da Assunção Esteves - Fernando Alves Correia - José de Sousa e Brito - Vítor Nunes de Almeida - Armindo Ribeiro Mendes - José Manuel Cardoso da Costa.