Acórdão 189/85
Processo 52/84
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Presidente da Assembleia da República requereu que se declarasse a inconstitucionalidade do artigo 16.º do Decreto-Lei 67/84, de 24 de Fevereiro.
Alega que aquela disposição atribui aos Ministros das Finanças e do Plano, da Agricultura, Florestas e Alimentação e do Comércio e Turismo competência para determinar por portaria conjunta as medidas adequadas ao restabelecimento do equilíbrio do mercado, suspendendo, se for caso disso, total ou parcialmente, por prazo não superior a 3 meses, a execução das normas constantes do mesmo decreto-lei. Ora o n.º 5 do artigo 115.º da Constituição preceitua que «nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos».
A faculdade de suspensão prevista no artigo 16.º citado, permitida por simples portaria, viola frontalmente o preceito constitucional referido, na medida em que se faculta a um acto de natureza diferente do legislativo suspender normas de um decreto-lei. Por estes fundamentos, requer que seja declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 16.º do Decreto-Lei 67/84, de 24 de Fevereiro. Atentos os fundamentos que se referem, entendeu-se que o pedido se reporta tão-só à parte do preceito que permite a suspensão do diploma por portaria.
Tudo visto.
II - O artigo 16.º do decreto-lei em apreço permite que o Governo, através de um regulamento, suspenda as normas de um decreto-lei. Tal regulamento integra-se no tipo dos chamados «regulamentos delegados».
Podem classificar-se os regulamentos delegados em:
a) Integrativos;
b) Modificativos;
c) Suspensivos;
d) Revogatórios.
O Prof. Afonso Queiró refere-se expressamente apenas a regulamentos integrativos, modificativos e revogatórios [v. Lições de Direito Administrativo (lições policopiadas), vol. I, Coimbra, 1976, p. 428]. Nada obsta, porém, a que se adite um novo tipo, correspondente aos regulamentos suspensivos.
Os do primeiro tipo são praeter legem; os restantes, contra legem. Os regulamentos delegados integrativos visam preencher eventuais lacunas de uma lei, por determinação dela própria. Os modificativos vêm, por habilitação da lei, introduzir-lhe alterações. Os suspensivos vêm sempre, por expressa determinação da lei, suspender a sua aplicação total ou parcialmente. Finalmente, os revogatórios vêm, também por habilitação da lei, derrogá-la total ou parcialmente.
Com a técnica dos regulamentos delegados gera-se como que uma autodeslegalização. A própria lei que disciplina certo domínio da vida vem rebaixar-se e determinar que a matéria sobre que ela incide possa afinal vir a ser regulada por um acto normativo de dignidade formal inferior.
A autodeslegalização não deve confundir-se com a heterodeslegalização. Esta última opera por efeito de uma outra lei, diferente daquela cujo objecto passa a poder ser tratado por acto normativo de dignidade formal inferior.
Alguns autores falam também de delegação por deslegalização quando certas matérias reservadas à lei são, por lei posterior, rebaixadas à natureza de matéria regulamentar, permitindo-se assim que essas matérias sejam disciplinadas por regulamentos do Executivo (Canotilho, Direito Constitucional, 3.ª ed., p. 640).
Tradicionalmente sustentava-se que não repugnava aceitar que, no domínio das matérias estranhas à reserva de lei, o legislador pudesse permitir que a respectiva regulamentação coubesse à Administração, sob a forma de regulamentos independentes, «para a boa execução das leis», e ainda que igualmente não repugnava admitir que o Parlamento ou o Executivo (entre nós a Assembleia da República ou o Governo), ocupando-se, como lhes é lícito, dessas matérias, delegassem na Administração a modificação ou a revogação de todas ou de algumas disposições legais por eles editadas. E não repugnava, porque a Administração podia, se não tivesse sido a intervenção precedente do legislador, ela mesma, ter-se ocupado de regulamentar ex novo tais matérias. Nada se oporia, pois, constitucionalmente, a que a lei, ou um decreto-lei, em casos destes, pudesse deixar à Administração a possibilidade de alterar ou derrogar certo ou certos preceitos legislativos em vigor (v. Queiró, ob. cit., p. 426). Seriam os regulamentos modificativos e os regulamentos derrogatórios.
No entanto, a Constituição foi revista em 1982, sendo então aditado o n.º 5 do artigo 115.º Desse número consta: «Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.»
Daí não ser lícito continuar a defender-se a doutrina que há pouco referimos.
Até à revisão constitucional de 1982 poderia entender-se que o Parlamento ou o Executivo legislador pudessem deslegalizar certas matérias que não devessem assumir necessariamente a forma de lei. Teríamos, assim, a legitimidade de regulamentos delegados autorizados praeter ou até contra legem. Mas, no seu actual artigo 115.º, n.º 5, aditado pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, a Constituição eliminou a legitimidade de tais regulamentos (v. Queiró, «Teoria dos regulamentos», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, n.os 1, 2, 3 e 4, p. 11).
Não restam dúvidas de que um decreto-lei tem uma natureza diferente de um regulamento. Este último não é um acto legislativo e, na hierarquia das fontes de direito, ocupa uma posição inferior à do decreto-lei.
A leitura dos debates da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC) conduz-nos a pensar que se estabeleceu algo que corresponde a uma preocupação de ordenação e de resolução de problemas práticos que surgiram e que deviam ser evitados: a regra de que nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos (v. Revisão Constitucional e Democracia, de Jorge Miranda, p. 100).
O referido preceito, na parte em que admite a suspensão por via de portaria ministerial da execução de normas do diploma a que pertence, cai, assim, indiscutivelmente sob a alçada da proibição constitucional.
A inconstitucionalidade da parte final do artigo 16.º do Decreto-Lei 67/84 não oferece quaisquer dúvidas.
Nestes termos se declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 16.º do Decreto-Lei 67/84, de 24 de Fevereiro, na parte em que permite que os Ministros das Finanças e do Plano, da Agricultura, Florestas e Alimentação e do Comércio e Turismo suspendam por portaria conjunta, total ou parcialmente, por prazo não superior a 3 meses, a execução das normas constantes do mesmo decreto-lei.
Lisboa, 29 de Outubro de 1985. - José Martins da Fonseca (relator) - Vital Moreira - António Luís Correia da Costa Mesquita - José Manuel Cardoso da Costa - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento - Mário Afonso - Mário de Brito - Raul Mateus - Luís Nunes de Almeida - José Magalhães Godinho - Armando Manuel Marques Guedes.