Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Joaquim Neto de Moura apresentou denúncia contra José António Martinho da Silva, Júlio Manuel Martins dos Santos, Nelson Miguel da Conceição Pinto, Sara Margarida de Oliveira Ribeiro, João Augusto Caçadas Pereira, Vera Pólvora e Hélder Filipe de Oliveira Bastos, pela prática de factos que, no seu entender, integrariam a prática pelos denunciados, em coautoria, de um crime de sequestro agravado, previsto e punido pelo artigo 158.º n.os 1 e 2, alínea g), do Código Penal.
Teve lugar inquérito, findo o qual foi proferida decisão de arquivamento, por se considerar ter sido recolhida prova bastante da não existência de crime.
O Denunciante apresentou reclamação hierárquica desta decisão, não tendo tal reclamação sido atendida.
O Denunciante requereu então a sua constituição como assistente e a abertura de instrução, requerimentos que foram indeferidos por despacho de 9 de janeiro de 2014, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Loures, com fundamento em extemporaneidade.
Recorreu então o Denunciante desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 23 de abril de 2014, negou provimento ao recurso.
Inconformado, o Denunciante recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«Joaquim Neto de Moura, não se conformando com o acórdão que, negando provimento ao recurso que interpôs, confirmou a decisão da primeira instância, dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LTC), sendo certo que aquela decisão não admite já recurso ordinário.
Tem legitimidade para tal e está em tempo (artigos 72.º, n.º 1, al. b), e 2 e 75.º, n.º 1, da LTC).
São as normas dos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Inconstitucionalidade que suscitou na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação, como evidencia o teor das conclusões 17.ª e 18.ª dessa peça processual.
O recorrente considera que a interpretação do normativo dos citados artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente, ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução, ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito, integralmente acolhida no acórdão recorrido, é inconstitucional porque claramente violadora da garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
São essas normas, na referida dimensão interpretativa, que pretende ver declaradas inconstitucionais.
[...]»
O Recorrente apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:
«1.ª - O recorrente insurge-se contra o acórdão da Relação de Lisboa (3.ª Secção) proferido nestes autos com data de 23.04.2014, o qual, desprezando doutrina pacífica em sentido oposto e os argumentos que alinhou no sentido da sua inconstitucionalidade, acolheu o entendimento de que decorre dos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que a intervenção hierárquica e a abertura de instrução são faculdades de exercício alternativo, pelo que, solicitada aquela intervenção, ficará sempre precludida a possibilidade de requerer a abertura de instrução para sindicar judicialmente a decisão de não acusar proferida pelo Ministério Público, assim negando provimento ao recurso.
2.ª - A afirmação de que tal interpretação normativa não viola a garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva prevista no artigo 20.º, n.º 1, da CRP porque "a lei permite que seja requerido a abertura de instrução para controlo, pelo JIC, da decisão de arquivamento do MP",parte do pressuposto, manifestamente errado, de que o assistente. ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, pode sempre, em qualquer circunstância, requerer, de imediato, a abertura de instrução para sindicar judicialmente a decisão de arquivamento do Ministério Público.
3.ª - Sendo o inquérito uma fase processual teleologicamente vinculada a uma decisão sobre o exercício da ação penal, na economia do modelo de processo instituído no nosso Código, constitui uma fase essencial e verdadeiramente conformadora do processo penal.
4.ª - Por isso é fundamental um efetivo controlo jurisdicional dessa decisão, seja para evitar a submissão a julgamento de pessoas contra as quais foi deduzida uma acusação infundada, seja para sindicar, verdadeiramente, o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
5.ª - Esse controlo tem de ser feito por entidade diferente daquela que dirige essa fase de investigação, pois confiar a uma única entidade o poder absoluto (porque insindicável por qualquer outra entidade autónoma e independente) de decidir não investigar determinados factos criminosos, de não identificar o seu autor e de não recolher os meios de prova necessários à apreciação a realizar sobre a submissão do feito a julgamento é, no fundo, atribuir-lhe o poder de não realizar justiça.
6.ª - Não é a intervenção hierárquica provocada pela reclamação que garante a tutela jurisdicional efetiva do ofendido, mas sim o controlo do despacho do Ministério Público efetuado pelo juiz de instrução.
7.ª - Tem prevalecido o entendimento de que a instrução não é um "complemento do inquérito" ou "suplemento autónomo de investigação", é, apenas, um mecanismo de controlo, com uma finalidade bem definida: a de "Comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem à decisão de levar, ou não, o caso a julgamento.
8.ª - A fase de investigação por excelência é o inquérito que, nos termos do artigo 262.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal "compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas".
9.ª - Contrariamente ao que acontecia no Código de Processo Penal de 1929, em que a instrução contraditória tinha por fim, além do mais, "esclarecer e completar" a prova obtida na fase de investigação (a instrução preparatória, no processo de querela), a filosofia subjacente ao atual Código de Processo Penal é a de que a instrução é um momento processual de comprovação, um mecanismo de controlo judicial da decisão final tomada no inquérito, não visando completar, ampliar ou prolongar o inquérito, ou, muito menos, realizar outra investigação dos factos, agora pelo juiz de instrução, diferente da do Ministério Público.
10.ª - Por isso está firmado, na doutrina como na jurisprudência, o entendimento de que, detetada deficiência/insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público, por terem sido omitidas diligências de prova consideradas essenciais (uma perícia, um exame, etc.) a via adequada de reagir contra o arquivamento é a suscitação da intervenção hierárquica, em ordem ao prosseguimento do inquérito (cfr, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 08.10.2002, da Relação de Coimbra, de 12.07.2006e da Relação de Évora, de 06.11.2012, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
11.ª - Se no inquérito se apurar a existência de crime, mas, por deficiência da investigação, não se souber quem foi(ram) o(s) seu(s) agente(s) e o Ministério Público arquivar o inquérito, o denunciante/assistente, não se conformando, terá de requerer a intervenção hierárquica, pois é, ainda, uniforme o entendimento de que, à semelhança do que sucede com a acusação, que tem de ser deduzida contra pessoa identificada ou, pelo menos, identificável, por força da estrutura acusatória do processo, não é admissível um requerimento de abertura de instrução contra desconhecidos ou incertos (cf. acórdãos da Relação de Évora, de 12.06.2012, de 15.11.2011e de 13.05.2014, www.dgsi.pt).
12.ª - Se o imediato superior hierárquico do autor do despacho de arquivamento desatender a reclamação, confirmando o despacho de arquivamento, o denunciante/assistente, de acordo com a peregrina tese sufragada no acórdão recorrido, não pode requerer a abertura de instrução porque ao suscitar a intervenção hierárquica renuncia ao controlo judicial, pelo JIC, da decisão do Ministério Público.
13.ª - O que é dizer que, se o ofendido reagir contra a decisão de arquivamento do inquérito respeitando rigorosamente as regras e os critérios legais, o resultado pode ser a impossibilidade de confrontar judicialmente essa decisão.
14.ª - É de tal modo evidente que tal entendimento leva a resultados iníquos que não se vê como negar que tal interpretação dos preceitos legais em causa viola, frontalmente, a garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
15.ª - Nessa interpretação, se o Ministério Público, por incúria, incompetência ou falta de objetividade, arquiva o inquérito, o ofendido que, procedendo de acordo com os cânones legais, suscitou a intervenção hierárquica, pode ver o seu caso injustificadamente findo, sem que se faça justiça e sem nada poder fazer contra isso.
16.ª - Como anotam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vo1. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 415), "o significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo deforma materialmente adequada a uma tutela judicial efetiva".
17.ª - Ora, como se crê ter ficado demonstrado, aquela interpretação (que tem prevalecido na jurisprudência) não tutela o legítimo interesse do ofendido/assistente na submissão a julgamento e na condenação daquele que praticou um crime que o afetou, pois conduz a que um inquérito possa ser encerrado pelo Ministério Público sem que o interessado possa submeter a sindicância judicial o despacho de arquivamento, assim se negando expressão à garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP).
18.ª - Se é certo que a atuação do Ministério Público tem de obedecer a critérios de estrita objetividade (artigo 53.º, n.º 1, do CPP), na prática, nem sempre assim acontece (este caso é exemplo disso mesmo) e, como adverte o Professor Figueiredo Dias, o poder que lhe advém da autonomia de que goza (e tem consagração constitucional) não pode tornar-se "num poder autárquico anticonstitucional" ("Autonomia do Ministério Público e seu dever de prestar contas à comunidade: um equilíbrio difícil", Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), 2007, Fasc. n.º 4, 196 e segs.).
19.ª - Daí que só um efetivo controlo jurisdicional da decisão de abstenção de acusação pelo Ministério seja capaz de satisfazer as crescentes e legítimas exigências comunitárias de transparência no exercício da ação penal, exigências que são postergadas pela interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se pretende seja declarada.
Pelas razões que expõe, pretende o recorrente que se declare a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, se o assistente ou o denunciante/ofendido com a faculdade de se constituir assistente, reagir contra a decisão de arquivamento do inquérito suscitando a intervenção hierárquica, assim respeitando rigorosamente as regras e os critérios legais, vê sempre, em quaisquer circunstâncias, precludida a possibilidade de requerer a abertura de instrução para sindicar judicialmente a decisão de não acusar proferida pelo Ministério Público, por manifesta violação da garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Assim decidindo, V.as Ex.as farão, como sempre, JUSTIÇA»
O Ministério Público apresentou contra-alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«[...]
37 - O presente recurso de constitucionalidade foi interposto por Joaquim Neto de Moura, em 8 de maio de 2014, ao "abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LTC)", sustentando aquele que "[...] a interpretação do normativo dos [...] artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente, ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução, ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito, integralmente acolhida no acórdão recorrido, é inconstitucional porque claramente violadora da garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP)".
38 - Este recurso é interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 23 de abril de 2014, que negou provimento ao recurso interposto da decisão proferida pelo 2.º Juízo Criminal de Loures, em 9 de janeiro de 2014.
39 - O impugnante, não configurando, minimamente, o seu entendimento sobre o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, defende, ainda assim, que a interpretação normativa aplicada pelo tribunal "a quo" os viola, violando o disposto no n.º 1, do artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, ao impedir que seja requerida a abertura de instrução, ao assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, que reclamou hierarquicamente da decisão do Ministério Público, de arquivamento de inquérito.
40 - Contudo, a interpretação normativa dos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, a que procedeu o tribunal "a quo", não impede o acesso do assistente, ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, ao tribunal, com o intuito de obter uma decisão jurisdicional que aprecie o veredicto de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
41 - Ou seja, a suscitação da intervenção jurisdicional é sempre admitida, sofrendo, apenas, uma limitação legal, resultante da ação voluntária do assistente, ou denunciante com a faculdade de se constituir assistente, que opte por provocar a intervenção do imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público autor da decisão de arquivamento, ao invés da do juiz de instrução.
42 - No caso vertente, resulta evidente, que o direito de acesso, do assistente, ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, ao órgão independente e imparcial - tribunal - instando-o a sindicar a decisão de não acusação proferida pelo Ministério Público, se encontra assegurado legalmente, constituindo a compressão do seu exercício a mera consagração dos princípios da racionalidade e da segurança jurídica.
43 - Acresce que, numa outra perspetiva relevante, também ela analisada, oportunamente, pelo Tribunal Constitucional, por exemplo nos seus Acórdãos n.os 27/2001 e 636/11, o direito processual do assistente, ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, a requerer a abertura de instrução, não pode deixar de contender com os direitos de defesa dos eventuais suspeitos ou arguidos, que veem tais direitos restringidos, na medida inversa à da extensão das faculdades atribuídas aos primeiros.
44 - Em resumo, admitindo a interpretação normativa contestada o direito (opcional) de acesso do assistente, ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, à intervenção de um órgão jurisdicional fiscalizador da decisão de arquivamento do inquérito proferida pelo Ministério Público, não constitui a limitação do exercício desse direito aos casos em que não foi suscitada a intervenção do superior hierárquico do magistrado autor da decisão - porque compatível com os direitos dos arguidos, proporcional e contida na margem de livre regulação do legislador -, violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, plasmados, para além do mais, no n.º 1, do artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa.
45 - Em face do exposto, deverá o Tribunal Constitucional decidir pela não inconstitucionalidade da interpretação normativa resultante do disposto, conjugadamente, nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, e, consequentemente, negar provimento ao presente recurso."
Fundamentação
O Recorrente pretende ver sindicada a constitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, «segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente, ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução, ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito». Segundo o Recorrente, tal interpretação normativa é inconstitucional porque violadora da garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva, consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Vejamos, antes de mais, o teor dos preceitos, cuja interpretação é questionada.
O artigo 278.º do Código de Processo Penal (na redação dada pela Lei 48/2007, de 29 de agosto) dispõe:
«Artigo 278.º
Intervenção hierárquica
1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento.
2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.»
Por sua vez, o artigo 287.º, n.º 1, alínea b), sob a epígrafe «Requerimento para abertura da instrução», estabelece o seguinte:
«1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
[...]
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.»
O Recorrente defendeu no processo que o artigo 278.º do Código de Processo Penal veda aos interessados que, em simultâneo, lancem mão da intervenção hierárquica e da abertura da instrução, mas não obsta ao uso sucessivo desses dois instrumentos processuais de controlo da decisão de encerramento do inquérito. Assim, o Recorrente sustentou a possibilidade de requerer a abertura da instrução com fundamento na errada apreciação dos indícios probatórios efetuada pelo Ministério Público depois de provocada a intervenção hierárquica com fundamento em omissão ou insuficiência da investigação como a única interpretação das referidas normas que se afigura lógia e coerente e que garante ao ofendido a tutela jurisdicional efetiva do seu direito.
A decisão recorrida entendeu, no entanto, que uma vez suscitada a intervenção hierárquica por via da reclamação, nos termos do artigo 278.º do Código de Processo Penal, não é possível, sucessivamente, ser requerida a abertura da instrução. De acordo com a referida decisão, se o assistente ou denunciante com a faculdade de se constituir assistente optar por suscitar a aludida intervenção hierárquica renuncia, em definitivo, à possibilidade de requerer a abertura de instrução. Daí que, no entender da decisão recorrida, o termo inicial do prazo para requerer a abertura da instrução coincida com a notificação do despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito, prazo esse que não se interrompe quando é suscitada a intervenção hierárquica. Consequentemente, por terem sido apresentados quando já havia decorrido o prazo de 20 dias previsto para o efeito, contado desde a data da notificação do despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito, foram considerados extemporâneos os requerimentos para constituição de assistente e para abertura de instrução.
O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional da norma do artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, precisamente em situações em que estavam em causa interpretações normativas relativas ao início do prazo para o assistente requerer a abertura da instrução nestas situações.
Assim, no Acórdão 501/2005 (acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes acórdãos que adiante se referem sem outra menção) este Tribunal não julgou inconstitucional «a norma do n.º 1 do artigo 287.º do CPP, quando interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias para o assistente requerer a abertura da instrução se conta da notificação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e não da notificação do despacho que, em intervenção hierárquica, o confirme», tendo concluído que tal interpretação normativa não violava o n.º 7 do artigo 32.º, nem o n.º 4, do artigo 20.º, da Constituição.
Posteriormente, no Acórdão 539/05, o Tribunal Constitucional veio reiterar a jurisprudência do Acórdão 501/05 e pronunciou-se novamente no sentido de não julgar inconstitucional «a norma do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias para o assistente requerer a abertura da instrução se conta da notificação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e não da notificação do despacho que, em intervenção hierárquica, o confirme».
O Recorrente, nas suas alegações, refere-se expressamente a esta jurisprudência do Tribunal Constitucional, afirmando o seguinte:
«[...] sendo certo que o Tribunal Constitucional já emitiu juízo de constitucionalidade sobre as citadas normas (mais exatamente, da norma do artigo 287.º, n.º 1), fê-lo numa dimensão diferente daquela que aqui se pretende que aprecie.
Com efeito, no acórdão 501/2005, o TC decidiu que a interpretação do artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal segundo a qual o prazo de 20 dias para o assistente requerer a abertura de instrução se conta do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e não da notificação do despacho que, em intervenção hierárquica, o confirme, não viola os n.os 4 e 7 do artigo 32.º da Constituição, juízo de constitucionalidade reafirmado no acórdão 539/2005.
Aqui, pretende-se que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre se a interpretação daquelas normas, acolhida no acórdão recorrido, segundo a qual, requerida a intervenção hierárquica, o assistente, ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente vê, sempre, precludido o direito de requerer a abertura de instrução, ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito, respeita a garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da CRP».
E, fundamentando a alegada desconformidade da interpretação normativa em causa nos autos com o disposto no n.º 1, do artigo 20.º, da Constituição, o Recorrente acrescenta ainda o seguinte:
«Se o imediato superior hierárquico do autor do despacho de arquivamento, por razões que a razão não alcança, como aconteceu no caso em apreço, desatender a reclamação, confirmando o despacho de arquivamento, o denunciante/assistente, de acordo com a peregrina tese sufragada no acórdão recorrido, não pode requerer a abertura de instrução porque ao suscitar a intervenção hierárquica renuncia ao controlo judicial, pelo JIC, da decisão do Ministério Público. Ou seja, se o ofendido reagir contra a decisão de arquivamento do inquérito respeitando rigorosamente as regras e os critérios legais, o resultado pode ser a impossibilidade de confrontar judicialmente essa decisão.
É de tal modo evidente que tal entendimento leva a resultados iníquos que não se vê como negar que tal interpretação dos preceitos legais em causa viola, frontalmente, a garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º n.º 1, da CRP.
[...]
Como anotam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 415), "o significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efetiva".
Ora, aquela interpretação (que tem prevalecido na jurisprudência) não tutela o legítimo interesse do ofendido/assistente na submissão a julgamento e na condenação daquele que praticou um crime que o afetou, pois conduz a que um inquérito possa ser encerrado pelo Ministério Público sem que o interessado possa submeter a sindicância judicial o despacho de arquivamento.»
Em primeiro lugar, importa salientar que, não obstante a interpretação normativa em causa nos presentes autos ter uma formulação diferente da que foi apreciada nos recursos a que respeitam os Acórdãos n.º 501/05 e 539/05, a questão de constitucionalidade é substancialmente idêntica nas três situações.
Em qualquer delas, o que está em causa é a conformidade constitucional do entendimento segundo o qual, no caso de o assistente ou denunciante com a faculdade de se constituir assistente optar por reclamar hierarquicamente do despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito, fica impedido de posteriormente deduzir um pedido de abertura de instrução, seja porque, com o acionamento da reclamação hierárquica precludiu ou verificou-se uma renúncia tácita ao direito de requerer a abertura de instrução, como ocorre com a interpretação normativa sub iudice, seja porque o prazo exigido para o exercício desse direito se esgota durante a efetivação do controle hierárquico, como sucede com as interpretações normativas julgadas não inconstitucionais pelos Acórdãos n.º 501/05 e 539/05.
No Acórdão 501/05 escreveu-se o seguinte a esse respeito:
«[...]
No presente recurso não se põe em crise a razoabilidade do prazo de 20 dias para o assistente requerer a abertura da instrução, isto é, a suficiência ou a adequação desse lapso de tempo para a tarefa processual que a apresentação do requerimento implica. Também não se discute a idoneidade da notificação prevista nos n.os 3 e 4 do artigo 277.º do Código de Processo Penal, enquanto ato de comunicação, para habilitar o interessado com o conhecimento de que pode exercer a referida faculdade. O que a recorrente questiona é a conformidade constitucional de a essa notificação continuar a ligar-se o efeito de definir o termo inicial do prazo para requerer a instrução naqueles casos em que o interessado tenha optado por provocar a intervenção da estrutura hierárquica do Ministério Público. Ou seja, aquilo que, em último termo, está subjacente à pretensão da recorrente de diferir o termo inicial do prazo para a notificação da decisão confirmativa do despacho de arquivamento é o entendimento de que a proteção constitucional da posição do ofendido em processo penal exige o reconhecimento da faculdade de optar pela via da impugnação hierárquica do despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito previamente a requerer a abertura da instrução e sem perda do prazo respetivo.
Ora, independentemente de saber se a consagração constitucional da intervenção do ofendido em processo penal impunha (como condição necessária) que se levasse a preocupação de lhe conferir voz autónoma logo ao nível da conformação do objeto do processo até ao ponto de lhe ser permitido acusar independentemente (contra ou substancialmente para além) do Ministério Público por crimes públicos (a isso equivale o requerimento de abertura da instrução que venha a culminar na pronúncia do arguido), o que não parece poder negar-se é que tal faculdade realiza a tutela judicial dos seus interesses de modo suficiente e efetivo. Porventura, seria mais cómodo e mais económico para o ofendido que a lei lhe permitisse diferir o início do prazo de apresentação do requerimento para o momento em que se verificasse o insucesso da via hierárquica. Mas, uma vez que o exercício desse direito não está condicionado ao prévio esgotamento (necessário) da via hierárquica, o entendimento de que o prazo para requerer a abertura da instrução se inicia com a notificação do despacho do magistrado subalterno que decide pelo arquivamento do inquérito não pode ser apresentado como restringindo, e muito menos de modo desproporcionado, a tutela judicial dos interesses do ofendido pela via da perseguição criminal do pretenso ofensor. Dificilmente se concebe que uma norma que imediatamente abre o prazo para acesso ao tribunal possa ser acusada de, só por isso, restringir esse acesso.
Por último, para além do que já vai compreendido no que antecede, também se não vislumbra em que aspeto pode ser imputada à referida regra de determinação do termo inicial do prazo desconformidade com a exigência constitucional do "processo equitativo".»
No caso dos autos, o Recorrente entende que a interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida viola a garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, uma vez que se o imediato superior hierárquico do autor do despacho de arquivamento desatender a reclamação, confirmando o despacho de arquivamento, o denunciante não pode requerer a abertura de instrução, pois, ao suscitar a intervenção hierárquica, renuncia ao controlo judicial da decisão do Ministério Público.
É o n.º 7, do artigo 32.º, da Constituição, que assegura especificamente a participação dos ofendidos no processo penal. Esta norma não especifica, porém, o conteúdo desse direito de participação, remetendo para o legislador ordinário tal tarefa.
O Tribunal Constitucional tem sustentado que a lei processual penal não pode privar o ofendido daqueles poderes processuais que se revelem necessários à defesa dos seus interesses, restringindo o direito de intervenção do ofendido de forma desadequada, desnecessária ou arbitrária (v.g. o Acórdão 338/06, em www.tribunalconstitucional.pt), sujeitando, assim, a um juízo de proporcionalidade as limitações que sejam impostas à intervenção da vítima no processo penal.
A solução normativa sindicada não deixa de garantir ao denunciante com a possibilidade de se constituir assistente a faculdade de requerer a abertura da instrução perante o despacho de arquivamento proferido pelo titular do inquérito, estando aberta, desta forma, uma via do controlo jurisdicional da decisão do Ministério Público. O que ela não permite é que, tendo aquele optado pela reclamação hierárquica do despacho de arquivamento, a via jurisdicional permaneça aberta para ser acionada posteriormente, em caso de malogro da reclamação deduzida.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se esta limitação ao direito de participação do ofendido no processo penal é desproporcionada.
A solução interpretativa adotada tem um fundamento racionalmente inteligível, uma vez que atende a outros valores constitucionais que têm de ser salvaguardados, designadamente os direitos de defesa dos eventuais suspeitos ou arguidos, que veem tanto mais prolongada a sua situação processual, quanto mais perdurar no tempo a possibilidade de a decisão de arquivamento do inquérito puder ser alterada.
No sentido da prevalência dos direitos de defesa dos eventuais suspeitos ou arguidos sobre o direito dos ofendidos requererem a instrução já se pronunciou o acórdão 27/2001 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se referiu o seguinte:
«[...]
Ora, nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente - e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação - não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.
...
Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efetivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.
[...]»
A este respeito, importa ainda ter também em atenção o que se diz no Acórdão 636/11 do Tribunal Constitucional (acessível em www.tribunalconstitucional.pt). Neste aresto, o Tribunal salientou que o reconhecimento textual expresso, no n.º 7, do artigo 32.º, da Constituição, introduzido pela quarta lei de revisão constitucional, do direito de o ofendido intervir no processo, nos termos da lei, «não obnubila o lugar central que a Constituição reserva à tutela processual do arguido», acrescentando ainda que:
«As garantias de processo criminal que, no artigo 32.º, a CRP consagra, são essencialmente as garantias da defesa. E como é em torno da tutela destas últimas que o legislador ordinário organiza as regras de processo - procurando a realização do equilíbrio entre as necessidades emergentes dessa tutela e as exigências decorrentes do imperativo de realização da justiça penal -, nelas, o estatuto do assistente não poderá nunca ser equiparável ao estatuto do arguido. Por assim ser, diz o n.º 7 do artigo 32.º que o direito do ofendido a intervir no processo será reconhecido nos termos da lei. Semelhante formulação não é usada pelo texto constitucional quanto ao reconhecimento das garantias de defesa do arguido. Em relação à conformação do estatuto processual do assistente detém, portanto, o legislador ordinário uma margem de liberdade maior do que aquela que a Constituição lhe consente quando se trata de definir o estatuto processual do arguido».
E salienta-se ainda um outro aspeto. É que, refere o Acórdão:
«[...] há que ter em conta que as normas ordinárias relativas a pressupostos processuais se incluem, por via de regra, no âmbito dessa margem de livre conformação. As regras legais que definem estes pressupostos, enquanto condições de admissibilidade, por parte do tribunal, dos atos praticados pelos sujeitos processuais, não podem à partida ser consideradas como agressões ao direito de acesso ao direito (artigo 20.º) e às garantias de processo (artigo 32.º). Pelo contrário: na exata medida em que visam isso mesmo - a regulação, por parte do legislador ordinário, dos termos em que o tribunal admite os atos praticados pelos sujeitos intervenientes no processo - constituem as referidas regras mecanismos de funcionalização do sistema judiciário no seu conjunto, fazendo parte dele enquanto meios necessários para a realização do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo (penal) côngruo. Ponto é que o conteúdo dessas regras se inscreva ainda nas exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, não transformando os pressupostos processuais em encargos excessivos ou desrazoáveis para aqueles a que se destinam».
Estas considerações valem também para o caso concreto, impondo-se concluir que, estando garantida ao assistente ou ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente, nos termos expostos, a possibilidade de requerer a abertura da instrução face a uma decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito criminal, a proibição de o fazer quando opta pela reclamação hierárquica daquela decisão, revelando-se justificada por um fundamento razoável, é uma limitação que não se revela desproporcionada face aos diferentes interesses em jogo, encontrando-se a adoção dessa solução normativa dentro dos poderes do legislador ordinário que lhe são cometidos pelo n.º 7, do artigo 32.º, da Constituição.
Por estas razões não se mostra que a interpretação normativa fiscalizada viole qualquer parâmetro constitucional, designadamente o disposto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 7, da Constituição, devendo o recurso ser julgado improcedente.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 28 de outubro de 2014. - João Cura Mariano - Pedro Machete - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro.
208270938