Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2019
Processo 13/17.3T8PTB.G1-A.S1
Recurso extraordinário de fixação de jurisprudência
Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. A arguida Gintegral - Gestão Ambiental, S. A., ao abrigo do disposto no art. 437.º, n.º 5, do Código de Processo Penal (CPP), vem interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.09.2017, transitado em julgado a 14.05.2018 (cf. certidão a fls. 24), que considerou, ao abrigo do disposto no art. 75.º, do Decreto-Lei 433/82, de 27.10 (e posteriores alterações; doravante "RGCO"), que "não tendo sido colocada ao tribunal recorrido a questão [porque não invocada na impugnação judicial], esta Relação está impedida de se pronunciar sobre a mesma".
Considera a recorrente que esta decisão está em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação do Guimarães, de 04.04.2016, onde se considerou que, relativamente a "uma questão que não foi colocada na impugnação judicial", o disposto no art. 75.º, do RGCO (1), "permite que a decisão do recurso altere a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido desta, com o único limite decorrente da proibição da reformatio in pejus".
2. Em conferência, por acórdão de 15.11.2018, foi decidido que o recurso devia prosseguir por se verificar a necessária oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, em situações factuais idênticas, e no domínio da mesma legislação.
3. Após o cumprimento do disposto no art. 442.º, n.º 1, do CPP, a recorrente (Gintegral - Gestão Ambiental, S. A.) e o Ministério Público apresentaram as alegações.
3.1. A recorrente concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
«1 - Está em causa, no presente recurso, a interpretação e aplicação de forma contraditória da norma contida na alínea a) do n.º 2 do artigo 75 do Dec. Lei 433/82, de 27-10, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei 244/95, de 14-09 e pela Lei 109/2001, de 24-12 (Regime Jurídico das Contraordenações ou R.G.C.O.);
2 - Os doutos Acórdãos recorrido e fundamento consagraram soluções diferentes para a mesma questão de direito, qual seja a de saber se no âmbito específico dos processos de contraordenação e, em face da possibilidade de alteração da decisão recorrida sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da mesma prevista no artigo 75.º, n.º 2, alínea a) do RGCO, está vedado ao Tribunal da Relação o conhecimento de questões que não tenham sido submetidas à apreciação do tribunal recorrido (questões novas;
3 - A divergência está, pois, na interpretação e no alcance do citado normativo que dispõe que nos processos de contraordenação a decisão de recurso poderá "alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72-A";
4 - A redação do citado normativo não sofreu qualquer modificação no intervalo da prolação de qualquer dos Arestos (recorrido e fundamento) que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida;
5 - Ambos os doutos Arestos em confronto foram prolatados pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, em recurso de decisão proferida em Primeira Instância, no âmbito e na sequência de recursos jurisdicionais de decisão da autoridade administrativa proferida em processos de contraordenação, cujo regime legal se encontra fixado pelo identificado R.G.C.O.;
6 - Salvo melhor entendimento, a posição sustentada no douto Acórdão recorrido, segundo o qual o regime legal vigente não permite ao Tribunal de recurso o conhecimento de questões não suscitadas e analisadas na decisão proferida em primeira instância (questões novas), não poderá proceder no domínio dos processos de contraordenação;
7 - O entendimento subjacente ao douto Acórdão recorrido não leva em consideração e olvida-se da particularidade do regime jurídico instituído relativo à impugnação de decisões administrativas proferidas no âmbito do processo de contraordenação, que constitui um direito próprio (direito contraordenacional), um sistema autónomo que tem as suas regras próprias e as suas excepções;
8 - E em face à particularidade do citado normativo (artigo 75", n" 2, alínea a.), impunha-se que o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães tivesse tomado conhecimento da questão suscitada em sede de recurso, relativa à invalidade do exame pericial junto aos autos (e demais questões conexas), por inobservância das normas técnicas e procedimentos fixados na Portaria 200/2002, de 05 de marco, diploma que fixou um conjunto de procedimentos regras rígidas de recolha, selagem e confiança das amostras, com que o legislador quis estabelecer uma "cadeia de custódia" (Chain of custody), de forma a garantir, quer a qualidade de amostragem, quer a impossibilidade de troca de amostras, quer a possibilidade de o arguido se defender mediante o recurso a um sistema de contraprova;
9 - Por não ter sido minimamente respeitada nos presentes autos a "cadeia de custódia", foi irremediavelmente posto em causa todo o processo definido pelo legislador para garantir o valor probatório da amostra recolhida, assim como, ficou comprometido, de forma absolutamente inaceitável, o direito de defesa da arguida;
10 - Por força do disposto no artigo 75.º, n.º 2, alínea a) do R.G.C.O., não podia o douto Acórdão recorrido deixar de analisar e decidir todas as questões que lhe foram colocadas pela arguida/recorrente, com o fundamento de que se tratavam de questões novas;
11 - Diversamente, o entendimento vertido no douto Acórdão fundamento, segundo o qual no âmbito específico dos processos de contraordenação e ao contrário do que sucede nos demais recursos de decisões penais, nada obsta a que o Tribunal de recurso tome conhecimento de questões não analisadas no tribunal recorrido é, salvo melhor opinião, a única interpretação compatível com a particularidade instituída pela alínea a) do n.º 2 do artigo 75.º do R.G.C.O., pois acaso estivesse na intenção do legislador não fazer tal diferenciação, teria omitido esta concreta disposição no R.G.C.O.;
12 - O artigo 75.º, n.º 2, alínea a) do R.G.C.O. constitui uma disposição específica do processo contraordenacional, sem paralelo no processo penal (ou civil) que, não só afasta de forma clara e expressa a jurisprudência dominante em vigor no âmbito do processo penal e que o douto Acórdão recorrido invoca para não conhecer das questões suscitadas pela Recorrente, como deixa claro que, com o limite constante do artigo 72.º-A do RGCO (proibição de reformatio "in pejus"), o Tribunal Superior não está impedido de conhecer de questões que não foram apreciadas na decisão recorrida;
13 - Através do citado normativo o legislador manifestou a sua vontade de forma expressa e bem percetível de que, em processos de contraordenação, o Tribunal Superior não está adstrito ao conteúdo da decisão recorrida, inexistindo qualquer impedimento legal a conhecimento de qualquer questão nova, fixando desta forma um regime diferente do que vigora no processo penal e civil no que diz respeito ao objecto do recurso para tribunal superior;
14 - Acaso não estivesse na intenção do legislador operar uma distinção entre o regime vigente no domínio do processo penal (e civil) e o aplicável nos processos de contraordenação, não teria incluído no R.G.C.O. uma norma com o conteúdo da alínea a) do n.º 2 do artigo 75.º;
15 - O entendimento subjacente ao douto Acórdão fundamento está igualmente na esteira da melhor doutrina que o próprio cuida de citar, no caso, a inserta na obra "Contraordenações, anotações ao regime geral", 6ª Ed, da autoria dos Exmos Senhores Drs. Simas Santos e Lopes de Sousa, que a pag. 580-581 e perante o disposto no artigo 75ª do RGCO referem:
Esta jurisprudência, porém, parece não se dever aplicar nos processos de contraordenações, em face da possibilidade de alteração da decisão recorrida sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão, consagrada no art. 75.º, n.º 2, alínea a), do R.G.C.O.
Na verdade, perante esta disposição, parece não poder defender que o objecto do recurso é apenas a decisão recorrida, pois a decisão de recurso, quanto às questões cuja apreciação lhe seja pedida, é independente do conteúdo daquela decisão. (...)
"Sendo assim, a possibilidade de o tribunal de recurso alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos seus termos e sentido, significará que o tribunal de recurso não terá qualquer das limitações referidas.
Por isso, por um lado, o objecto do recurso jurisdicional não estará limitado pelo contendo da decisão recorrida, podendo naquele serem conhecidas questões que não foram apreciadas nesta. (...)"
16 - É também este o entendimento corrente que vem sendo adotado pela nossa melhor jurisprudência, que ao longo dos anos foi sendo chamada a pronunciar-se sobre o tema em análise e de que se destacam: (i) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20/10/2004, no processo 0443488, publicado in www.dgsi.pt; (ii) Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 29-10-2009, no processo 3149/07.5TBLLE.E1, publicado in www.dgsi.pt; (iii) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 24 10-2012, no processo 55/12.5TPPRT.P1, publicado in www.dgsi.pt; Aresto do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 07-07-2010, proferido no processo 0356/10, disponível no site www.dgsi.pt. de que se transcrevem as partes mais relevantes nos itens 38.º a 42.º supra:
17 - O entendimento vertido no douto Acórdão fundamento é, salvo melhor opinião, o único que pode resultar da melhor interpretação da lei;
18 - De acordo com as precedentes conclusões e pelas razões aí expostas, entende a recorrente que o conflito que se suscitou haverá de ser resolvido fixando-se jurisprudência no sentido apontado pelo douto Acórdão fundamento, consignando-se que:
no âmbito específico dos processos de contraordenação e, em face da possibilidade de alteração da decisão recorrida sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da mesma prevista no artigo 75.º, n.º 2, alínea a) do RGCO, o objecto do recurso jurisdicional não está limitado pelo conteúdo da decisão recorrida, podendo o Tribunal Superior, com o limite previsto no artigo 72-A do R.G.C.O., conhecer de questões novas que não foram submetidas à apreciação do Tribunal recorrido.
NESTES TERMOS, e mais de direito aplicáveis que V. Exas melhor e doutamente suprirão:
A - Como forma de pôr fim oposição de julgados deverá, por esse Alto Tribunal, ser fixada jurisprudência no sentido apontado pelo douto Acórdão fundamento, consignando-se que, no âmbito específico dos processos de contraordenação e, em face da possibilidade de alteração da decisão recorrida sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da mesma prevista no artigo 75.º, n.º 2, alínea a) do RGCO, o objecto do recurso jurisdicional não está limitado pelo conteúdo da decisão recorrida, podendo o Tribunal Superior, com o limite previsto no artigo 72-A do R.G.C.O., conhecer de questões novas que não foram submetidas à apreciação do Tribunal recorrido;
B - Em consequência, deve determinar-se que o processo seja remetido ao douto Tribunal da Relação de Guimarães, para que seja proferida nova decisão em conformidade e com observância da jurisprudência assim fixada (artº. 445º do CPP), devendo aquele douto Tribunal passar a conhecer de todas as questões suscitadas pela arguida/recorrente».
3.2. O Ministério Público veio apresentar alegações que concluiu do seguinte modo:
«1. O direito contraordenacional constitui um sistema autónomo que contém em si as suas regras e as suas excepções.
2. No âmbito do processo de contra-ordenação, perante uma decisão da autoridade administrativa, pode o recorrente inconformado interpor impugnação judicial da referida decisão administrativa, a qual dá lugar a um recurso.
3. Em sede recurso, como resulta da leitura do disposto nos artigos 59.º n.º 3 do RGCO e 412.º do CPP [aplicável ex vi artigo 74.º n.º 1 do RGCO], o juiz de 1.ª instância, só pode conhecer das questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal, aquando da apresentação da impugnação.
4. Com efeito, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, ou seja, o âmbito objetivo do recurso encontra-se balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente.
5. Se este o regime dos recurso em primeira instância, no RGCO, em que o juiz só pode conhecer das questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, não faz sentido defender que, pelo contrário, em sede de recurso dessa decisão, o Juiz do tribunal da Relação pode conhecer de questões novas, que só agora lhe são colocadas pelo recorrente.
6. Os recursos são meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais, destinando-se a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior, visando apenas apurar a adequação e legalidade das decisões dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal no momento em que a proferiu, e não meios de obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquela jurisdição.
7. O tribunal de recurso encontra-se limitado pelo âmbito da decisão recorrida e pela motivação e respectivas conclusões de recurso, pelo que só se pode pronunciar sobre questões que já foram objecto da decisão recorrida e que são impugnadas pelo recorrente.
8. O legislador estabeleceu que o tribunal de recurso se pronuncia sobre as questões que lhe são colocadas e que já foram apreciadas na decisão recorrida, mas para conhecer de tais questões o tribunal de recurso não se encontra limitado aos "termos e sentido" da decisão recorrida, podendo apreciar todos os elementos que constam do processo.
9. Foi esta uma das formas que o legislador escolheu para acautelar as garantias de defesa do arguido no âmbito das contra-ordenações.
Propõe-se, pois, que o conflito de jurisprudência existente entre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo 13/17.3T8PTB.G1 e, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação Guimarães, no âmbito do recurso com o processo 141/15.0T8VFL.G1, seja resolvido nos seguintes termos:
No processo contra-ordenacional, em sede de recurso, e ao abrigo do disposto no art. 75.ºn.º 2 alínea a) do RGCO, o tribunal da Relação só pode decidir sobre questões já abordadas na decisão prolatada no Tribunal de 1.ª Instância, suscitadas pelo recorrente aquando da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.»
II
1. A decisão, tomada na secção criminal por acórdão de 15.11.2018, sobre a oposição de julgados, não vincula o pleno das secções criminais. Por isso devemos reapreciar a questão.
2.1. No presente caso, o acórdão recorrido foi proferido a 11.09.2017; depois, foi arguida a nulidade da decisão com base no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, no art. 616.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), e arts. 18.º, 20.º, n.º 4 e 31.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP). Foi, então, prolatado acórdão a indeferir a peticionada nulidade a 04.12.2017. No seguimento, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão sumária n.º 197/2018, de 26.03.2018, decidiu "não conhecer do objecto do (...) recurso". De acordo com a certidão junta, o acórdão transitou em julgado a 16.04.2018 (cf. fls. 24).
O requerimento de interposição do recurso para fixação de jurisprudência foi expedido, por via postal, a 14.05.2018, e deu entrada no Tribunal da Relação de Guimarães a 15.05.2018 (cf. fls. 2).
Assim sendo, o recurso foi tempestivamente interposto, no prazo estabelecido no art. 438.º, n.º 1, do CPP.
O acórdão fundamento do Tribunal da Relação de Guimarães, de 04.04.2016, transitou em julgado a 01.02.2017.
Precisemos, agora, qual a questão em discussão.
2.2. Entende o recorrente que existe oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento (o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 04.04.2016, prolatado no âmbito do processo 141/15.0T8VFL.G1 (2), cujo sumário é o seguinte: "O objecto do recurso jurisdicional não está limitado pelo conteúdo da decisão recorrida, podendo ser conhecidas questões que não foram apreciadas na decisão impugnada, com o limite previsto no art. 72.º-A do RGCO."
A questão de direito com soluções opostas é a seguinte:
no processo contraordenacional, em sede de recurso, e ao abrigo do disposto no art. 75.º, n.º 2, al. a), do RGCO, o Tribunal da Relação pode decidir sobre questões não abordadas na decisão prolatada no Tribunal de 1.ª instância porque não alegadas aquando da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa?
2.2.1. O acórdão recorrido decidiu nos seguintes termos:
«A arguida alega que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova decorrente de inidoneidade do exame pericial para comprovar a natureza do produto dos autos, por inobservância das normas técnicas aplicáveis e dos procedimentos fixados na Portaria 200/2002 de 05/03 (...).
Compulsados os autos constatamos que a arguida na sua impugnação da decisão administrativa não invocou a inobservância das normas técnicas e dos procedimentos fixados para a realização do exame pericial.
Ora, constitui jurisprudência uniforme que os recursos ordinários se destinam a examinar decisões proferidas pelo tribunal recorrido e não a apreciar questões novas que não foram colocadas a este tribunal (cf. o Ac. do STJ de 04/12/2008, Proc. 08P2507 e o Ac. da RC de 23/05/2012, disponível em www.dgsi.pt).
Assim sendo, não tendo sido colocada ao tribunal recorrido a questão supra enunciada, esta Relação está impedida de se pronunciar sobre a mesma.»
2.2.2. Em situação paralela, o acórdão fundamento considerou que:
«Vem ainda aqui o recorrente suscitar uma questão que não foi colocada na impugnação judicial e que portanto não se encontra decidida na sentença agora em crise; o arguido vem requerer a suspensão da execução da sanção acessória.
Como é pacificamente aceite, os recursos destinam-se a apurar da correção e da legalidade das decisões que lhe são colocadas à sua consideração, constituindo assim remédios jurídicos. Nessa medida, entende a generalidade da jurisprudência dos tribunais superiores que - exceção feita às questões de conhecimento oficioso - se destinam única e exclusivamente a reapreciar questões que já hajam sido submetidas à apreciação do tribunal recorrido, e não a conhecer de questões novas.
Cremos, no entanto, que este entendimento sendo válido em matéria de processo penal já não o é no âmbito do processo contraordenacional, atendendo ao que se encontra expressamente prevenido na alínea a) do n.º 2 do artigo 75 do RGCO, que permite que a decisão do recurso altere a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido desta, com o único limite decorrente da proibição da reformatio in pejus, tal como consagrada no artigo 72.º-A do mesmo diploma.
De facto, perante aquela norma, "parece não se poder defender que o objeto do recurso é apenas a decisão recorrida, pois a decisão do recurso, quanto às questões cuja apreciação lhe seja pedida, é independente do conteúdo daquela decisão" cf. Simas Santos e Lopes de Sousa, "Contra-ordenações, anotações ao regime geral", 6.ª ed., págs. 580-581, que, no entanto, alertam para o facto de "esta possibilidade de intervenção do tribunal superior (...) reporta-se apenas à alteração da decisão recorrida e não à apreciação da sua validade. Sendo assim, não poderá o tribunal de recurso tomar conhecimento de nulidades que não sejam de conhecimento oficioso, se não for feita a necessária arguição. (...). "Assim o objeto do recurso jurisdicional não está limitado pelo conteúdo da decisão recorrida, podendo ser conhecidas questões que não foram apreciadas na decisão recorrida, com o limite óbvio e já referido do art. 72.º-A do RGCO." (...)
Em face do entendimento expresso passamos então à apreciação desta questão.
A suspensão da execução da sanção acessória ..."».
Na verdade, quer no acórdão recorrido, quer no acórdão fundamento colocou-se o problema de saber se o Tribunal da Relação pode ou não pronunciar-se sobre questões não tratadas na decisão de 1.ª instância (e por isso designadas de "questões novas"), porque não alegadas aquando da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.
No acórdão recorrido considerou-se que não tendo a arguida, aquando da impugnação judicial, alegado a inobservância das normas técnicas e dos procedimentos fixados para a realização da prova pericial, não pode agora, em sede de recurso, alegar o erro notório na apreciação da prova inerente à decisão de 1.ª instância, pelo que tratando-se de "questão nova" a "Relação está impedida de se pronunciar sobre a mesma".
Pelo contrário, no acórdão fundamento considerou-se que, apesar de aquando da impugnação judicial não ter o recorrente suscitado a questão da suspensão da sanção acessória e por isso não se pronunciou a 1.ª instância sobre este ponto, apesar disso pode o Tribunal da Relação decidir "questões novas", pois o Tribunal de recurso, em sede de processo contraordenacional, pode pronunciar-se sobre questões que não foram apreciadas na decisão recorrida.
2.3. Tendo em conta o exposto, entende-se que quer os requisitos formais, quer os requisitos substanciais de admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência estão preenchidos, nomeadamente, a necessária oposição de julgados dado que têm soluções contrárias para a mesma questão de direito:
no processo contraordenacional, em sede de recurso, o Tribunal da Relação pode decidir sobre questões não abordadas na decisão prolatada no Tribunal de 1.ª instância porque não alegadas aquando da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa?
Analisemos o problema.
3.1. O "processo das contra-ordenações não é uma forma de processo penal, obedece a uma dinâmica própria, que decorre da especificidade do Direito de Mera Ordenação Social e da atribuição às autoridades administrativas dos poderes de impulso processual e sancionatórios típicos deste ilícito". (3)
Se, por um lado, após a fase administrativa, o processo contraordenacional se apresenta com um âmbito distinto do processo administrativo, por outro lado, pese embora a sua especificidade, apresenta-se próximo das regras de processo penal, como aliás o RGCO o evidencia: os princípios de processo penal são subsidiários do regime (cf. art. 41.º, n.º 1, do RGCO). Esta proximidade ocorre logo na fase administrativa, pois, "[n]o processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma" (art. 41.º, n.º 2, do RGCO).
Tendo em conta este afastamento e proximidade simultâneos analisemos a questão que se coloca.
A questão jurídica a resolver é debatida pelo recorrente a partir do disposto no art. 75.º, n.º 2, al. a), do RGCO, integrado no capítulo IV relativo ao "recurso e processo judiciais". Nos termos deste dispositivo determina-se que "[a] decisão do recurso poderá: a) alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72.º-A".
Em matéria contraordenacional existe uma via única de recurso, restrito à matéria de direito, com o regime previsto nos arts. 73.º, 74.º, e 75.º, do RGCO.
A norma citada refere-se expressamente apenas à fase de recurso da decisão prolatada em 1.ª instância.
No seu n.º 1, começa por delimitar os poderes de cognição do tribunal em 2.ª instância - "Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões". Ao identificar expressamente a decisão do Tribunal da Relação (4) como sendo uma decisão prolatada em 2.ª instância, implicitamente caracteriza a decisão decorrente da impugnação judicial como uma decisão em 1.ª instância - o que está em sintonia com o facto de ser esta a primeira decisão prolatada pelos Tribunais.
Para além disto, este mesmo dispositivo determina a irrecorribilidade das decisões (proferidas em recurso) pelo Tribunal da Relação. Ou seja, não há em matéria de contraordenações uma segunda via de recurso, ou uma tripla jurisdição (5).
3.2. A decisão da qual se recorre para a Relação, prolatada em 1.ª instância, constitui a primeira decisão judicial, decorrente de uma impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.
Em sede de 1.ª instância, o Tribunal conhece de toda questão em discussão - "o objecto da sua apreciação não é a decisão administrativa, mas a questão sobre a qual incidiu a decisão administrativa" (6).
O âmbito de cognição deste tribunal é bastante amplo: não se limita a um controlo da legalidade do ato, mas procede a uma apreciação de todo o ato administrativo, uma "apreciação da veracidade e exactidão dos factos (e da sua qualificação)", e também uma apreciação da medida da coima aplicada, considerando-se que o Tribunal tem "poderes de jurisdição plena" (7). Isto é, "são admissíveis, na fase judicial do processo contraordenacional, todos os tipos de pronúncia que incidem sobre o mérito da causa, designadamente a manutenção da decisão administrativa, a sua revogação in totum, por via da absolvição, e a sua modificação, quer da qualificação jurídica quer da sanção" (8). Não se trata, pois, de um mero controlo da legalidade, mas de um pleno poder de conhecimento do mérito da questão, de uma plena jurisdição à semelhança do que ocorre atualmente nos tribunais administrativos (9).
Daqui decorre que a impugnação da decisão da autoridade administrativa não é um verdadeiro recurso. A causa é retirada do âmbito administrativo e entregue a um órgão independente e imparcial, o tribunal. E o tribunal irá decidir do mérito da causa como se fosse a primeira vez - o julgador não estará vinculado, nem limitado pelas questões abordadas na decisão impugnada, nem estará limitado pelas questões que tenham sido suscitadas aquando da impugnação, estando apenas limitado pelo objeto do processo definido pela decisão administrativa. Esta sofre uma transformação - o Ministério Público recebe da autoridade administrativa os autos, e remete-os ao juiz "valendo este ato como acusação" (art. 62.º, n.º 1, do RGCO) (10). Aquela decisão administrativa passa a constituir uma "decisão-acusação", e aquela fase administrativa "transforma-se" em fase instrutória.
Porém, a transformação aparente da decisão da autoridade administrativa numa acusação apenas serve para demonstrar que, a partir da análise dos autos enviados pela entidade administrativa ao MP, este considerou que destes resultam indícios suficientes de se ter verificado a contraordenação e de quem foi que a praticou. E, não deixa de ser uma decisão, que se mantém, se o arguido decidir retirar a impugnação judicial (ou nas palavras da lei "recurso de impugnação" - art. 59.º, n.º 2, do RGCO) até à sentença em 1.ª instância ou até ao despacho referido (cf. art. 71.º, n.º 1, do RGCO), pese embora necessite do acordo do MP, quando esta desistência ocorra depois de ter início a audiência de discussão e julgamento. Mas já uma decisão que deixa de produzir os seus efeitos caso o MP, com o acordo do arguido, retire a acusação até à sentença em 1.ª instância (cf. art. 65.º-A, do RGCO) ou até ao despacho previsto no art. 64.º do RGCO.
Ou seja, a decisão da autoridade administrativa, havendo impugnação judicial, vale como acusação pelo Ministério Público (11), mas o seguimento do processo judicial depende ainda da vontade do arguido e/ou do MP, com a concordância de um ou outro respetivamente.
Decidindo o tribunal de 1.ª instância o mérito da causa como se fosse a primeira vez, os seus poderes de cognição são plenos, abarcando as questões de facto e de direito, e com possibilidade de determinação do âmbito de prova a produzir (cf. art. 72.º, n.º 2, do RGCO). Não se limita a analisar a prova trazida pela Administração (12) e eventualmente a proceder a uma renovação para assim evitar o reenvio do processo para a autoridade administrativa, valorando ainda a prova que o impugnante, eventualmente, tenha indicado. O que nos permite afastar o entendimento desta fase de processo como uma fase de recurso. Além de que, o Ministério Público pode "promover a prova de todos os factos que considera relevantes para a decisão" (art. 72.º, n.º 1, do RGCO).
Assim sendo, a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa tem um âmbito alargado a toda a situação sob escrutínio. Não pode, pois, ser classificada como recurso, uma vez que o tribunal de 1.ª instância tem poderes de cognição alargados ao conhecimento do mérito da questão, podendo conhecer de todas as questões que pudesse conhecer (13).
O Tribunal decidirá ex novo com respeito pelo princípio da proibição da reformatio in pejus (14), consagrado no art. 72.º-A, do RGCO (15) - isto é, ainda que em 1.ª instância o Tribunal qualifique, por exemplo, a infração praticada como sendo uma contraordenação mais grave do que a considerada na decisão da autoridade administrativa, não poderá, apesar de uma nova qualificação jurídica, agravar a coima aplicada (proibição extensível aos não recorrentes - "não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes", art. 72.º-A, do RGCO).
E assim também deve ser entendido nos casos em que a proibição da reformatio in pejus, consagrada no art. 72.º-A, do RGCO, esteja afastada. Aliás, esta proibição foi introduzida em "ordem ao reforço dos direitos e garantias dos arguidos" (16), pelo que qualquer regime contraordenacional que, contrariamente ao disposto no art. 72.º-A, do RGCO, determine a não aplicabilidade da proibição da reformatio in pejus (17) poderá gerar um tratamento distinto entre arguidos julgados pela prática de diferentes contraordenações a suscitar questões de conformidade constitucional "atenta a limitação excessiva do direito ao recurso, garantia de defesa aplicável ao processo contra-ordenacional por força do n.º 10 do art. 32.º da CRP" (18)/(19).
De tudo podemos concluir que a fase judicial não constitui uma reapreciação da questão, mas uma primeira apreciação judicial da questão contraordenacional sem limite dos poderes de cognição do juiz (20), que abarcam todo o objeto do processo. A impugnação judicial não constitui "um recurso em sentido próprio, mas de uma fase judicial do processo de contra-ordenação em que o tribunal julga do objecto de uma acusação consistente na decisão administrativa de aplicação da sanção na fase administrativa, com ampla discussão e julgamento da matéria de facto e de direito e de decisão final" (21).
A consideração desta fase judicial como uma fase do processo judicial contraordenacional, afastando qualquer entendimento desta impugnação judicial como um recurso da decisão da autoridade administrativa, irá necessariamente influenciar o entendimento da fase seguinte - a fase de recurso para a Relação da decisão judicial de 1.ª instância.
3.3. Da decisão de 1.ª instância pode recorrer-se para a Relação (nos casos admissíveis nos termos do art. 73.º, do RGCO) que, todavia, conhece apenas de matéria de direito.
De acordo com o estabelecido no art. 74.º, n.º 4, do RGCO, este "recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal". Ou seja, se dúvidas houvesse quanto a aplicação subsidiária das normas de processo penal, por força do disposto no art. 41.º, n.º 1, do RGCO, estas dúvidas logo se dissipam com a expressa remissão das regras quanto a este recurso para as regras do recurso em processo penal.
Assim sendo, nos termos do art. 410.º, n.º 1, do CPP, "o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida", com a limitação inerente ao pedido - isto é, desde que alegadas aquando da interposição do recurso, uma vez que a "motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões (...) em que o recorrente resume as razões do pedido" (cf. art. 412.º, n.º 1, do CPP).
A estas regras acrescenta o RGCO uma outra - o tribunal de recurso pode, na sua decisão, "alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão" desde que cumprido o princípio da proibição da reformatio in pejus, previsto no art. 72.º-A, do RGCO.
Ora, tendo em conta este dispositivo, o tribunal de 2.ª instância não tem simples poderes de cassação, mas verdadeiros poderes de substituição, podendo decidir de outra forma, com outros fundamentos e noutro sentido. Além disto, significa que o tribunal de 2.ª instância pode, a partir da matéria de facto já sedimentada, alterar a qualificação jurídica (22), ou reanalisar a consequência jurídica aplicada (alterando a coima e aplicando ou não sanções acessórias), ou considerar que os factos não integram a prática de qualquer uma contra-ordenação, ou ainda considerar, e porque tem os seus poderes de cognição restritos a matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCO), que se verifica um dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP (23), caso em que, nos termos do art. 75.º, n.º 2, al. b), do RGCO, deverá devolver o processo ao tribunal recorrido (à semelhança do que ocorre no processo penal, por força do disposto no art. 426.º, do CPP).
Ora, ainda que, por absurdo, considerássemos que a impugnação judicial da autoridade administrativa constituiria um primeiro recurso, abrangendo matéria de facto e matéria de direito, ainda que assim fosse, o art. 75.º, n.º 2, al. a), do RGCO vem de forma clara determinar que, aquando do recurso da decisão de 1.ª instância para a Relação, o tribunal não está vinculado, quanto aos fundamento de direito, à decisão recorrida. Isto é, o recurso não é uma simples apreciação da decisão recorrida, mas de toda a questão, não estando vinculado àquela decisão, podendo substituí-la.
Não está vinculado, desde logo, aos termos da decisão recorrida, ou seja, não está vinculado ao seu conteúdo, à sua fundamentação, não está limitado pelas questões decididas em 1.ª instância, podendo apreciar qualquer questão de direito conexionada com o objeto do processo desde que alegada em sede de recurso (24), pese embora não tenha sido apreciada pelo tribunal recorrido. Na verdade, "[c]ontrariamente ao que acontece em processo penal (...) não existe em processo contra-ordenacional qualquer limitação à amplitude com que o tribunal superior pode sindicar e alterar a decisão recorrida." (25)
Assim sendo, se aquando da interposição de recurso se alegou uma insuficiência para a decisão da matéria de facto, ou uma contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou um erro notório na apreciação da prova (verdadeiramente o primeiro momento em que podia alegar estes vícios, uma vez que anteriormente nem sequer havia uma decisão judicial), cabe ao Tribunal da Relação disto conhecer sem que esteja limitado pelos "termos e sentido", leia-se, conteúdo e fundamentação da decisão recorrida(26). E igualmente poderá o tribunal de 2.ª instância conhecer de qualquer questão relativa à aplicação de uma sanção acessória pois, não estando limitado ao sentido da decisão recorrida, poderá decidir sobre a aplicação daquela sanção.
Entende-se, portanto, que a decisão de 1.ª instância constitui uma decisão em si e não uma decisão em sede de recurso, e por isso, tal como referimos, nos termos do art. 410.º, n.º 1, do CPP, ex vi art. 74.º, n.º 4, do RGCO, o "recurso [daquela] pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida" (27), desde que alegadas e desde que constituam questão de direito, não se devendo entender que não possam em sede de recurso existir "questões novas".
Com efeito, enquanto na fase anterior o Tribunal procede a um verdadeiro reexame da questão em discussão, com reavaliação do objeto processual, dando lugar a um novum iudicium, no recurso temos uma impugnação da decisão judicial com possibilidade de o tribunal de recurso poder conhecer de quaisquer questões de que o tribunal a quo pudesse conhecer (com a limitação imposta pelo pedido). Assim sendo, o Tribunal da Relação poderá conhecer de quaisquer questões (sejam ou não "questões novas") em matéria de direito, e ainda quaisquer questões integrantes da chamada revista alargada (cf. art. 410.º, n.º 2, do CPP), bem como quaisquer nulidades que não se considerem sanadas, desde que arguidas ou desde que de conhecimento oficioso (cf. art. 410.º, n.º 3, do CPP).
Considerando que o disposto no art. 75.º, n.º 2, al. a), do RGCO, delimita os poderes de cognição do Tribunal da Relação, atribuindo a este tribunal amplos poderes de substituição em matéria de direito, não podemos concluir, por isso, que exista algum impedimento que obste a que o Tribunal da Relação possa conhecer qualquer questão de direito conexionada com o julgado, ainda que esta não tenha sido debatida em 1.ª instância (28). Na realidade, só no momento em que se recorre da decisão de 1.ª instância para a Relação é que estamos, verdadeiramente, perante um primeiro recurso, tal como ocorre no recurso para a Relação de uma decisão de 1.ª instância em processo penal, ou um recurso de uma decisão de 1.ª instância para o STJ - também nesta última hipótese, para lá da restrição decorrente da limitação da análise a questões de direito, não há qualquer limitação aos poderes de cognição do tribunal. Tal como no processo penal, havendo recurso direto da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça, somente neste momento se podem alegar aqueles vícios, também no processo contraordenacional somente no recurso da decisão de 1.ª instância para a Relação é que se podem colocar pela primeira vez questões relativas a matéria de direito alicerçadas na matéria de facto cristalizada, ou alegar os vícios constantes do art. 410.º, n.º 2, do CPP (ex vi art. 74.º, n.º 4, do RGCO), sendo irrelevante qualquer noção de "questão nova" atenta a amplitude de conhecimento imposta pelo disposto no art. 410.º, n.º 1, do CPP (ex vi art. 74.º, n.º 4, do RGCO).
Aliás, aquando da análise da questão em 1.ª instância, pode haver produção de prova (cf. art. 72.º, do RGCO); assim sendo, apenas em recurso para a Relação poderá ser alegado o erro notório na apreciação de prova ou contradição entre a fundamentação de facto e a decisão, a partir da prova que foi produzida em 1.ª instância, ou da prova que eventualmente já vinha do processo administrativo mas que foi completada por outra prova.
Todavia, estando perante um tribunal cujos poderes de cognição estão limitados à matéria de direito, após a verificação da ocorrência de alguns dos vícios deverão os autos ser remetidos à 1.ª instância, nos termos do art. 426.º, do CPP, por força do disposto no art. 75.º, n.º 3, al. b), do RGCO.
4. Do exposto podemos concluir que:
- a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima não constitui um verdadeiro recurso, mas um reexame do objeto processual com plenos poderes em matéria de facto e de direito, com possibilidade de produção de prova;
- desta decisão judicial poderá haver recurso para a 2.ª instância, cujo objeto está apenas delimitado pelas questões de direito alegadas, podendo o tribunal conhecer de quaisquer questões de direito que a decisão recorrida pudesse ter conhecido, sem que esteja vinculado "aos termos e ao sentido da decisão recorrida", ou seja, sem que esteja vinculado aos fundamentos jurídicos expostos na decisão recorrida, e sem que esteja limitado apenas à análise de questões de direito decididas em sede de 1.ª instância;
- o recurso para a 2.ª instância restrito a matéria de direito, por força do disposto no art. 74.º, n.º 4, do RGCO, pode ter por fundamento qualquer um dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, não havendo qualquer restrição a este conhecimento atendendo a que o tribunal ad quem não está vinculado ao sentido e aos fundamentos da decisão recorrida;
- concluindo-se pela existência de alguns dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, deverá o processo ser devolvido ao tribunal recorrido, nos termos do art. 75.º, n.º 2, al. b), do RGCO;
- em sede de 2.ª instância poderão ainda ser conhecidas as nulidades não sanadas, desde que arguidas ou de conhecimento oficioso, nos termos do art. 410.º, n.º 3, do CPP, ex vi art. 74.º, n.º 4, do RCGO.
Assim sendo, em processo contraordenacional, uma questão relativa a matéria de direito e conexionada com o objeto processual, ainda que não tenha sido debatida em 1.ª instância, poderá ser alegada e decidida em sede de recurso para a 2.ª instância, isto é, no processo contraordenacional, em sede de recurso, o tribunal de 2.ª instância pode decidir sobre questões de direito, ainda que estas não tenham sido objeto da impugnação judicial, competindo-lhe também apreciar os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e as nulidades (não sanada) nos termos do art. 410.º, n.º 3, do CPP.
III
Com base no exposto, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, revogando o acórdão recorrido, decide:
1) fixar a seguinte jurisprudência:
Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa;
2) revogar o acórdão recorrido que deverá ser substituído por outro que aplique a jurisprudência fixada.
Cumpra-se, oportunamente, o disposto no art. 444.º, n.º 1, do CPP.
Não são devidas custas de harmonia com o disposto no art. 513.º, n.º 1 ex vi art. 448.º, ambos do CPP.
(1) Regime Geral das Contraordenações regulado pelo Decreto-Lei n.º433/82, de 27.10 e alterado pelo Decreto-Lei 356/89, de 17.10, pelo Decreto-Lei 244/95, de 14.09, pelo Decreto-Lei 323/2001, de 17.12 e pela Lei 109/2001, de 24.12.
(2) Consultável aqui:
http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/8c808b5176fa217180257f95004b0d47?OpenDocument
(3) Leones Dantas, O Despacho Liminar do Recurso de Impugnação no Processo das Contra-Ordenações, Regime Geral das Contraordenações e as contraordenações administrativas e fiscais, e-book, CEJ, set. 2015, p. 12, consultável aqui http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ Administrativo/Regime_geral_contraordenacoes_contraordenacoes_administrativas_fiscais.pdf
(4) Por facilidade do discurso designaremos ao longo do texto o tribunal de 2.ª instância como sendo o Tribunal da Relação, sabendo, no entanto, que em casos excecionais o recurso será interposto para o Supremo Tribunal de Justiça no caso de decisões das Relações proferidas em 1.ª instância.
(5) O que não se afigura problemático. Basta pensar que o regime dos recursos em processo penal foi inicialmente construído com base numa simples via de recurso, em matéria de facto e de direito, para a Relação (que conhecia das decisões prolatadas em 1.ª instância por um juiz singular); e para o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) recorria-se de todas as decisões de 1.ª instância prolatadas em tribunal coletivo ou em tribunal de júri somente em matéria de direito, com possibilidade de conhecimento dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP (a designada revista alargada).
(6) Maria Borges Campos, Os poderes de cognição e decisão do tribunal na fase de impugnação judicial do processo de contraordenação, Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal, coord. Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, p. 390.
(7) Assim, Joaquim Pedro Formigal Cardoso da Costa, O recurso para os tribunais judiciais da aplicação de coimas pelas autoridades administrativas, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 366 (abril-junho, 1992), p. 59, 64, 67-8.
(8) Maria Borges Campos, ob. cit., p. 390.
(9) Cf. art. 3.º, n.º 1,.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos segundo o qual - "(...) os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação".
(10) Também evidenciando que não se trata de uma acusação do MP, cf. Augusto Silva Dias, Direito das Contra-Ordenações, Coimbra: Almedina, 2018, p. 240 - "A lei não diz que o MP acusa, mas tão-só que aquele acto de envio vale como acusação"; também assim, Alexandra Vilela, O Direito de Mera Ordenação Social, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 469.
(11) Cf. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Lisboa: UCP, 2011, art. 62.º/nm. 6, p. 258.
(12) Nesta parte afastamo-nos das regras do processo penal, uma vez que a prova então recolhida é aproveitada e valorada em sede judicial (contrariamente à prova obtida durante a fase de inquérito no processo penal); por exemplo, caso o juiz entenda que não é necessária audiência de julgamento pode decidir por despacho, nos termos do art. 64.º, n.º 2, do RGCO, aproveitando toda a investigação e prova obtida aquando da fase administrativa (também neste sentido, Leones Dantas, ob. cit. supra, p. 18). O que apresenta uma clara dissemelhança com o que ocorre, em regra, no processo penal, uma vez que em atenção ao princípio da imediação toda a prova tem que ser produzida em audiência de discussão e julgamento, não podendo o juiz de julgamento, em regra, aproveitar a prova produzida na fase de inquérito.
(13) Deve, porém, considerar-se que pese embora não haja limites de cognição no âmbito objetivo, eles existem no âmbito subjetivo, podendo apenas conhecer relativamente ao arguido que impugnou (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., art. 59.º/nm. 21, p. 250),
(14) Sobre a relevância constitucional em matéria de contraordenações desta proibição, mas com uma visão crítica sobre a sua extensão aquando da impugnação judicial, cf. Augusto Silva Dias, ob. cit. supra, p. 248-9 e bibliografia aí citada em sentido contrário. No sentido da aplicação desta proibição quer aquando da impugnação judicial, quer aquando do recurso para a 2.ª instância, cf Oliveira Mendes/Santos Cabral, Notas ao Regimes Geral das Contra-Ordenações e coimas, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 254; também assim, Maria Fernanda Palma/Paulo Otero, Revisão do regime legal do ilícito de mera ordenação social, RFDUL, Vol. XXXVII, 1996, p. 584.
(15) Aditado pelo Decreto-Lei 244/95, de 14.09. Antes da introdução do art. 72.º-A, do RGCO, o disposto no art. 75.º, n.º 2, al. a), do RGCO, na sua versão originária, determinava igualmente que "2 - A decisão do recurso poderá: a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida". Assim sendo, o problema do âmbito de conhecimento pelo Tribunal da Relação, em sede de recurso, de questões novas em matéria de direito mantém-se idêntico.
Contra este aditamento, cf. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade, RPCC, 1997, fasc. 1, p. 86-7 (também in Direito Penal Económico e Europeu. Textos Doutrinários, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 264-5); Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Lisboa: UCP, 2011, pp. 294-295; Alexandra Vilela, ob. cit. supra, p. 485).
(16) Preâmbulo do Decreto-Lei 244/95, de 14.01.
(17) Nalguns regimes específicos em matéria contraordenacional não vigora esta proibição da reformatio in pejus, como acontece em matéria de contraordenações ambientais, atento o disposto no art. 75.º, da Lei 50/2006, de 29.08.
(18) No sentido de um juízo de inconstitucionalidade, cf. Nuno Brandão, Crimes e Contra-Ordenações da Cisão à Convergência Material, Coimbra: Coimbra Editora, 2016, 875, nota 2975: "A garantia da tutela jurisdicional efectiva só pode considerar-se realmente acautelada quando o acesso ao tribunal não seja na prática desincentivado ou inibido através da derrogação do principio geral da proibição da reformatio in pejus constante do art. do 72.º-A do RGCO, pelo que nos parecem feridas de inconstitucionalidade, por violação do art. 20.º-1 da CRP, disposições legais que permitam uma agravação da responsabilidade contra-ordenacional na fase judicial do processo contra-ordenacional aberta na sequência de impulso do condenado (cf., v. g., os arts. 75.º da LQCA, 416.º-8 do CVM, 222.º-1, f), do RGICSF e 88.º-1 do RJC). A suspeita da inconstitucionalidade será tanto mais fundada quanto mais graves sejam as sanções principais e acessórias envolvidas"; ou ainda Augusto Silva Dias (ob. cit. supra, p. 252): referindo-se às contraordenações ambientais afirma que "a inconstitucionalidade surge, contudo, em nosso entender, quando se trate de contra-ordenações ambientais muito graves e de coimas de montante muito elevado, pois é neste âmbito que a situação adquirirá contornos de um excesso manifesto" (p. 253). Não se trata, porém, de um entendimento unânime. Na verdade, o Tribunal Constitucional considerou não ser inconstitucional o agravamento da coima em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa interposta pelo arguido em sua defesa - cf. acórdão deste Tribunal n.º 141/2019, de 12 de março e, já antes, Acórdão 373/2015 (ambos in www. Tribunalconstitucional.pt).
(19) Talvez numa tentativa de resolver este problema Marta Borges Campos faz, no entanto, uma distinção, quanto aos poderes de cognição do tribunal de 1.ª instância em sede de impugnação judicial, entre o RGCO que prevê a proibição da reformatio in pejus e os regimes especiais onde não está prevista esta proibição, considerando que nestes últimos o tribunal de 1.ª instância está limitado pelo pedido, limitando o controlo judicial da decisão-acusação por força do disposto nos arts. 402.º e 403.º, do CPP, ex vi art. 41.º, n.º 1, do RGCO, ao passo que nos primeiros, em que o princípio da proibição reformatio in pejus vigora, defende que o tribunal de 1.ª instância tem plenos poderes de cognição (ob. cit. supra, passim).
(20) Também no sentido de que o tribunal tem poderes de jurisdição plena, pese embora considere que a "actuação do tribunal deve ser moldada e funcionalizada pelos factos imputados ao arguido e que motivaram a condenação", cf. Augusto Silva Dias, ob. cit. supra, p. 247 e bibliografia aí citada; e no mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., art. 59.º/nm. 21, p. 249, Leones Dantas, Revista do Ministério Público, ano 15, n.º 57 (jan.-mar 1994), p. 71, considerando que não se trata apenas de uma "reapreciação da decisão proferidas pelas autoridades administrativas, mas de um verdadeiro julgamento".
(21) Germano Marques da Silva, Direito Penal Português I (introdução e teoria da lei penal), 3.ª ed., Lisboa: Verbo, 2010, p. 179.
(22) Caso em que deverá cumprir o disposto no art. 424.º, n.º 3, do CPP, ex vi art. 74.º, n.º 3, do RGCO (também assim, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., art. 75.º/ nm. 17, p. 314).
(23) Também no sentido de que o Tribunal de 2.ª instância tem poderes de cognição este âmbito, cf. Oliveira Mendes/Santos Cabral, ob. cit. supra, p. 273, e Augusto Silva Dias, ob. cit. supra, p. 256.
(24) Também no sentido da limitação, dos poderes de cognição, do tribunal de recurso, pelo âmbito objectivo e subjetivo da motivação do recorrente, cf. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., art. 75.º/nm. 12, p. 312.
(25) Oliveira Mendes/Santos Cabral, ob. cit. supra, p. 270.
(26) Neste ponto o tribunal apenas terá uma limitação: constituindo um tribunal que apenas tem poderes de cognição em matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCO), deverá, nos termos do art. 75.º, n.º 2, al. b), do RGCO, devolver o processo à 1.ª instância a única com poderes de cognição em matéria de facto,
(27) Em sentido semelhante, Simas Santos/Lopes de Sousa, Contra-Ordenações. Anotações ao regime Geral, 6.ª ed., Lisboa: Áreas Editora, 2011, p. 580.
(28) Também neste sentido, Simas Santos/Lopes de Sousa, ob. cit., p. 580, afirmando expressamente que "perante esta disposição, parece não se poder defender que o objecto do recurso é apenas a decisão recorrida, pois a decisão do recurso, quanto às questões cuja apreciação lhe seja pedida, é independente do conteúdo daquela decisão. (...). Por isso, por um lado, o objecto do recurso jurisdicional não estará limitado pelo conteúdo da decisão recorrida, podendo naquele serem conhecidas questões que não foram apreciadas nesta.
Por outro lado, o tribunal de recurso poderá decidir questões já decididas pelo tribunal recorrido, em sentido diferente daquele em que foram decididas na decisão recorrida, independentemente de a questão da reapreciação lhe ser colocada pelo recorrente"; porém, admite, nomeadamente, limitações ao conhecimento amplo decorrentes do disposto no art. 403.º, n.º 1, do CPP - cf. p. 583-4.
Supremo Tribunal de Justiça, 23 de maio de 2019. - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira (Relatora) - Nuno de Melo Gomes da Silva - Francisco Manuel Caetano - Manuel Pereira Augusto de Matos - Carlos Manuel Rodrigues de Almeida - José Luís Lopes da Mota - Vinício Augusto Pereira Ribeiro - Maria da Conceição Simão Gomes - Júlio Alberto Carneiro Pereira - António Manuel Clemente Lima - Nuno António Gonçalves - José António Henrique dos Santos Cabral - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Manuel Joaquim Braz - Mário Belo Morgado - António Joaquim Piçarra (Presidente).
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