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Acórdão 582/2014, de 27 de Novembro

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, na interpretação segundo a qual o auferimento de uma indemnização por danos não patrimoniais deve ser tomada em consideração para efeitos de cancelamento do apoio judiciário concedido no âmbito do próprio processo em que aquela foi decretada

Texto do documento

Acórdão 582/2014

Processo 897/12

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Manuel Pereira Oliveira Faria, melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), da decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Esposende, em 8 de novembro de 2012, que julgou improcedente o recurso interposto da decisão do Instituto de Segurança Social, IP, pela qual se cancelou o apoio judiciário que previamente havia sido concedido ao recorrente.

2 - Instado pelo Relator a aperfeiçoar o requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 75.º-A, n.º 2 e 6, da LTC, o recorrente fê-lo do seguinte jeito:

«[...]

1 - O Recorrente veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional da douta decisão de 08/11/2012, proferida pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende no âmbito do processo 1372/06.9TBEPS-B, ao abrigo da alínea b) do n.º 1, do artigo 70.º da Lei 28/82 de 15 de novembro,

2 - Pretendendo que seja apreciada a inconstitucionalidade do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) da Lei 34/3004, de 29 de julho, o qual preceitua que a proteção jurídica é cancelada caso o requerente ou o respetivo agregado familiar adquirir meios suficientes para poder dispensá-la.

3 - No entender do Recorrente, o cancelamento do apoio judiciário em consequência do recebimento de uma indemnização por danos não patrimoniais no âmbito do processo para o qual foi requerida a proteção jurídica consubstancia uma interpretação inconstitucional da referida norma, por violação do princípio da garantia do acesso ao direito e aos tribunais, na parte em que o mesmo assegura os meios de assistência judiciária em caso de insuficiência de meios económicos - artigo 20.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa.

4 - O Recorrente suscitou a inconstitucionalidade da aludida norma na impugnação judicial por si deduzida

[...]»

3 - A decisão recorrida, proferida pelo Tribunal Judicial de Esposende (fls. 41), tem o seguinte teor:

«[...]

Manuel Pereira Oliveira Faria impugnou judicialmente a decisão do ISS, IP na qual se decidiu cancelar o concedido benefício do apoio judiciário.

O fundamento do cancelamento foi o facto do recorrente ter adquirido capacidade financeira superveniente, nomeadamente por ter recebido - conjuntamente com a sua mulher - uma indemnização no valor de (euro)75000, 00.

Cumpre apreciar.

Prescreve o artigo 10.º, n.º 1, alínea a) da Lei 34/2004 de 29 de julho, na redação dada pela Lei 47/2007 de 28 de agosto (Lei do Apoio Judiciário) que a proteção jurídica é cancelada, quer na sua totalidade quer relativamente a alguma das modalidades: a) Se o requerente ou o respetivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la.

Este normativo não pode deixar de ser concatenado com aqueles a que se reportam os artigos 6.º, 7.º, 8.º, 8.º-A e 8.º-B da lei de Apoio Judiciário e anexo à Lei 47/2007, de 28 de agosto.

Quer isto dizer que a apreciação da aquisição de meios suficientes para poder ser dispensada a proteção jurídica não pode ser baseada numa qualquer ilação, mas tem de. legal e constitucionalmente, de ser fundamentada na lei, na norma positivada.

Ora, a decisão que se impugna baseia-se - fundamenta-se, quanto aos factos - no facto do recorrente ter recebido, conjuntamente com a sua mulher, uma indemnização de (euro)75000,00.

Isto posto, concatenando o valor da indemnização recebida com os critérios legais referentes à atribuição do benefício do apoio judiciário conclui-se que tal valor implica que o recorrente não possa beneficiar de tal prerrogativa.

E, se assim é, não merece censura a decisão recorrida.

Termos em que se decide julgar improcedente o recurso.

[...]»

4 - Notificado para o efeito, o recorrente produziu as seguintes alegações:

«[...]

A)

Objeto de recurso

Vem o presente recurso da seguinte decisão:

"Manuel Pereira Oliveira Faria, impugnou judicialmente a decisão do ISS, IP na qual se decidiu cancelar o concedido benefício do apoio judiciário.

O fundamento do cancelamento foi o facto do recorrente ter adquirido capacidade financeira superveniente, nomeadamente por ter recebido - conjuntamente com a sua mulher - uma indemnização no valor de (euro) 75.000,00.

Cumpre apreciar.

Prescreve o artigo 10.º, n.º 1, alínea a) da Lei 34/2004 de 29 de julho, na redação dada pela Lei 47/2007 de 28 de agosto (Lei do Apoio Judiciário) que a proteção jurídica é cancelada, quer na sua totalidade quer relativamente a alguma das modalidades: a) Se o requerente ou o respetivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la.

Este normativo não pode deixar de ser concatenado com aqueles a que se reportam os artigos 6.º, 7.º, 8.º 8.º-A e 8.º-B da lei do Apoio Judiciário e anexo à Lei 47/2007 de 28 de agosto.

Quer isto dizer que a apreciação da aquisição de meios suficientes para poder ser dispensada a proteção jurídica não pode ser baseada numa qualquer ilação, mas tem de, legal e constitucionalmente, de ser fundamentada na lei, na norma positivada.

Ora, a decisão que se impugna baseia-se - fundamenta-se, quanto aos factos - no facto do recorrente ter recebido, conjuntamente com a sua mulher, uma indemnização de (euro) 75.000, 00.

Isto posto, concatenando o valor da indemnização recebida com os critérios legais referentes à atribuição do benefício do apoio judiciário conclui-se que tal valor implica que o recorrente não possa beneficiar de tal prerrogativa.

E, se assim é, não merece censura a decisão recorrida.

Termos em que se decide julgar improcedente o recurso."

B)

ENTENDIMENTO DO RECORRENTE

O Recorrente, conjuntamente com a sua esposa, recebeu uma indemnização no valor de 75.000 euros no âmbito do processo 1372/06.9TBEPS, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende.

Tal indemnização foi devida em consequência de acidente de viação que vitimou mortalmente o filho do Recorrente, Cirilo Manuel Brito de Faria.

No processo em causa, o Recorrente e a sua esposa beneficiavam de apoio judiciário na modalidade de dispensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo.

De acordo com a conta de custas elaborada no aludido processo, as custas devidas pelo Recorrente e sua esposa ascendiam a 12.164,60 euros, quantia que os mesmos não pagaram por beneficiarem de apoio judiciário.

A Segurança Social decidiu porém cancelar tal benefício, de acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) da Lei 34/2004 de 29 de Julho, decisão que foi mantida pelo Tribunal Judicial de Esposende, em sede de impugnação judicial.

Ora, no entender do Recorrente, o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) da Lei 34/3004, de 29 de julho não pode ser aplicável aos casos em que o beneficiário de proteção jurídica adquiriu meios em consequência do processo para o qual foi concedido o apoio judiciário.

Salvo melhor opinião, não faz sentido que parte substancial da indemnização que o Recorrente e a esposa receberam em consequência da morte do seu filho - equivalente a mais de 16 % do valor recebido - seja destinada ao pagamento de custas judiciais.

Com efeito, o cancelamento da proteção jurídica determina uma redução significativa e injusta do direito à indemnização que foi reconhecido ao Recorrente e à esposa.

Havia sido concedido ao Recorrente e a esposa o benefício de apoio judiciário pelo facto de os mesmos serem comprovadamente pessoas carenciadas.

O Recorrente e a esposa perderam um filho e, em consequência dessa perda, receberam uma indemnização por danos não patrimoniais.

Tal indemnização não é suscetível de reparar os terríveis danos sofridos pelo Recorrente e pela sua esposa, tendo uma finalidade meramente compensatória.

Ora, atento o elevado valor das custas a pagar, tal finalidade compensatória dos danos sofridos pelo Recorrente e pela esposa é seriamente posta em causa pelo cancelamento do apoio judiciário.

Neste sentido, entende o Recorrente que o cancelamento do apoio judiciário em consequência do recebimento de uma indemnização por danos não patrimoniais no âmbito do processo para o qual foi requerida a proteção jurídica consubstancia uma interpretação inconstitucional do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) da Lei 34/3004, de 29 de julho, por violação do princípio da garantia do acesso ao direito e aos tribunais, na parte em que o mesmo assegura os meios de assistência judiciária em caso de insuficiência de meios económicos - artigo 20.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, apesar de recebida uma indemnização - a qual visou compensar a perda de um filho -, o Requerente e a sua esposa não deixaram de ser pessoas carenciadas, auferindo parcos rendimentos, pelo que lhes assiste o direito aos meios de assistência judiciária.

A indemnização recebida, dada a sua finalidade, não pode determinar o cancelamento da proteção jurídica concedida aos beneficiários.

Face ao exposto, deve ser declarada a inconstitucionalidade invocada.

CONCLUSÕES:

a) O Recorrente, conjuntamente com a sua esposa, recebeu uma indemnização no valor de 75.000 euros no âmbito do processo 1372/06.9ThEPS, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende, sendo que as custas devidas ascendem a 12.164,60 euros.

b) O disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) da Lei 34/3004, de 29 de julho não pode ser aplicável aos casos em que o beneficiário de proteção jurídica adquiriu meios em consequência do processo para o qual foi concedido o apoio judiciário.

c) O cancelamento da proteção jurídica determina uma redução significativa e injusta do direito à indemnização que foi reconhecido ao Recorrente e à esposa.

d) Atento o elevado valor das custas a pagar, a finalidade compensatória subjacente à indemnização recebida pelo Recorrente e pela esposa é seriamente posta em causa pelo cancelamento do apoio judiciário.

e) O cancelamento do apoio judiciário em consequência do recebimento de uma indemnização por danos não patrimoniais no âmbito do processo para o qual foi requerida a proteção jurídica consubstancia uma interpretação inconstitucional do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) da Lei 34/3004, de 29 de julho, por violação do princípio da garantia do acesso ao direito e aos tribunais, na parte em que o mesmo assegura os meios de assistência judiciária em caso de insuficiência de meios económicos - artigo 20.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa.

f) Face ao exposto, deve ser declarada a inconstitucionalidade invocada.

[...]»

O recorrido - Instituto de Segurança Social, I. P. (Centro Distrital de Braga) - não contra-alegou.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

5 - Incide o presente recurso de constitucionalidade sobre a norma constante do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), da Lei 34/2004, de 29 de julho, com as alterações produzidas pela Lei 47/2007, de 28 de agosto, na parte em que com base na mesma se procede ao cancelamento do apoio judiciário em consequência do auferimento de uma indemnização por danos não patrimoniais no âmbito do processo para o qual foi requerida a proteção jurídica. Tal norma tem a seguinte redação:

«[...]

Artigo 10.º

Cancelamento da proteção jurídica

1 - A proteção jurídica é cancelada, quer na sua totalidade quer relativamente a alguma das suas modalidades:

a) Se o requerente ou o respetivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la;

[...]»

Sustenta o recorrente que a interpretação normativa sufragada pela decisão recorrida viola o princípio da garantia do acesso ao direito e aos tribunais, na parte em que o mesmo assegura os meios de assistência judiciária em caso de insuficiência de meios económicos, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa.

Assim, nos termos em que vem colocada, a questão de constitucionalidade a apreciar pelo Tribunal Constitucional pode formular-se do seguinte modo: é inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º da CRP, a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, quando interpretada no sentido segundo o qual deve ser tomada em consideração, para efeitos de cancelamento do benefício de apoio judiciário, o recebimento de uma indemnização por danos não patrimoniais, quando tal indemnização tenha sido atribuída no âmbito do mesmo processo em que fora concedido o referido apoio?

6 - O princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da CRP, tem sido amplamente densificado pela jurisprudência do Tribunal. No caso concreto, é convocada uma particular dimensão desse princípio - segundo a qual a insuficiência de meios económicos não deve impedir o acesso de todos à justiça e ao Direito - que tem sido, ela própria, objeto de interpretação constante. Conforme se disse, por exemplo, nos Acórdãos n.os 495/96, 245/97 e 363/07, da Constituição não decorre que o legislador ordinário esteja vinculado a erigir um sistema de justiça ao qual todos os cidadãos possam aceder de forma gratuita. O vínculo constitucional é outro, e consubstancia-se no dever [que impende sobre o legislador] de instituir um sistema que impeça que "os litigantes carecidos de meios económicos para a demanda se não vejam, por esse facto, impedidos de defender em juízo os seus direitos, nem tão-pouco sejam colocados em situação de inferioridade perante a contraparte com capacidade económica" (Acórdãos n.os 433/87 e 127/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

É através do instituto do apoio judiciário que se cumpre o princípio constitucional segundo o qual ninguém pode ser privado do acesso à justiça por insuficiência de meios económicos. Na modelação deste instituto goza o legislador ordinário de ampla margem de liberdade de conformação, desde que o regime por si definido corresponda a uma densificação do conceito constitucional de "insuficiência de meios económicos" que se mostre apta a assegurar às pessoas uma proteção suficiente (sobre este ponto, vejam-se os Acórdãos n.º 467/91, 98/04 e 53/09). Ora, no contexto desta necessária densificação, é perfeitamente razoável que o estado de "insuficiência de meios económicos" seja avaliado e certificado - através de critérios e procedimentos que o legislador definirá - tendo em conta a situação patrimonial do requerente [do benefício do apoio judiciário] na fase preparatória ou inicial do processo judicial; como parece igualmente razoável que essa avaliação inicial venha a ser revista, e o benefício de apoio judiciário eventualmente cancelado, caso se verifique que, no decurso do processo e por factos supervenientes de origem vária, o património do requerente registou melhorias tais que tornaram dispensável o benefício inicialmente concedido. É esta a solução que decorre da redação literal do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), da Lei 34/2009, de 29 de julho, segundo a qual - recorde-se - a proteção jurídica é cancelada, quer na sua totalidade quer relativamente a alguma das suas modalidades [.] se o requerente ou o respetivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la. Nenhuma razão há para considerá-la contrária ao disposto no n.º 1 do artigo 20.º da CRP.

7 - Porém, e como já se viu, é particular a dimensão que a norma adquiriu no caso concreto, por força da interpretação que dela fez o tribunal a quo.

O recorrente nos presentes autos litigou como benefício de apoio judiciário na modalidade de isenção do pagamento das custas e outros encargos com o processo. Fê-lo em consequência da avaliação do seu património a que, nos termos da lei, procederam os serviços competentes; mas fê-lo também com o intuito de obter por via judicial uma indemnização por danos não patrimoniais que certa ação de outrem lhe havia causado, tendo o tribunal - no âmbito do mesmo processo em que o recorrente beneficiara de apoio judiciário - reconhecido a sua pretensão. Interpretando o preceito legal cujo teor há pouco se transcreveu, entendeu a decisão recorrida que o recebimento da indemnização consubstanciava ela própria uma forma de "aquisição" de "meios suficientes para poder dispensar a [proteção jurídica]". Em consequência deste entendimento, os serviços competentes procederam ao cancelamento do benefício de apoio judiciário de que inicialmente gozara o recorrente.

8 - Semelhante interpretação - há que notá-lo desde já - não era admissível à luz de lei anterior.

Na verdade, o artigo 54.º da Lei 30-E/2000, de 20 de dezembro, dispunha do seguinte modo:

«Artigo 54.º

1 - Caso se verifique que o requerente do apoio judiciário possuía à data do pedido ou que adquiriu no decurso da causa ou após esta finda meios suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento haja sido dispensado, é instaurada ação para cobrança das respetivas importâncias

[...]

5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável quando em virtude da causa venha a ser fixada ao requerente indemnização para o ressarcir de danos causados.»

Tendo, porém, a Lei 30-E/2000 sido revogada pela Lei 34/2004, de 29 de julho, e não resultando do redação do seu artigo 10.º, atrás transcrito, que a fixação judicial de indemnização para o ressarcimento de danos causados não deva ser considerada como "incremento patrimonial" para efeitos de cessação do benefício de apoio judiciário, resta saber se a exclusão da mesma, para tais efeitos, não será imposta pela própria Constituição, ficando portanto vedada, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 20.º da CRP, a interpretação feita pelo tribunal a quo no presente caso.

9 - Não parece, porém, que o princípio constitucional possa ser interpretado de forma a dele se retirar semelhante proibição.

O que a Constituição seguramente proíbe é que a qualquer pessoa seja negada a obtenção de uma decisão justa, num processo equitativo, por motivos de insuficiência económica; mas a proteção constitucional é conferida ao direito a obter uma decisão justa e equitativa para a tutela de qualquer posição jurídica subjetiva (fixada a nível constitucional ou infraconstitucional) de que a pessoa seja titular. O âmbito da garantia constitucional, assim delimitado, não varia de acordo com a particular natureza da concreta posição jurídica subjetiva que em cada caso se queira fazer valer em juízo. Deste modo, o facto de, no presente processo, estar em causa a titularidade do direito à reparação de danos não patrimoniais causados por ação lesiva de outrem não imprime à situação dos autos uma singularidade tal que obrigue a uma interpretação diversa - e porventura mais ampla - do que seja a proibição constitucional da negação do acesso à justiça por insuficiência de meios económicos. É certo que o princípio nemine laederem, que fundamenta o instituto da responsabilidade civil, já foi tido pelo Tribunal como um princípio constitucional não escrito, do qual o artigo 22.º é uma particular refração (Acórdão 25/2010: "[o] princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, tem ínsito um princípio jurídico fundamental, historicamente objetivado e claramente enraizado na consciência jurídica geral, segundo o qual todo e qualquer autor de ato ilícito gerador de danos para terceiros se constitui na obrigação de ressarcir o prejuízo que causou"). Contudo, nem este último dado, expressivo da particular dimensão constitucional de que se reveste a situação dos autos, justifica que se altere a interpretação constante que se tem feito da garantia contida no n.º 1 do artigo 20.º da CRP, de modo a ampliar, em função da "norma do caso", o seu âmbito de proteção.

Na verdade - há que recordá-lo - o recorrente litigou com benefício de apoio judiciário na modalidade de isenção de pagamento de custas e outros encargos no processo. Com fundamento em insuficiência económica, foi-lhe concedida a possibilidade de instaurar e prosseguir um processo judicial, sem a obrigação de pagar as custas a ele associadas, obtendo por essa forma uma decisão judicial que obrigou a contraparte ao pagamento de uma indemnização.

Recebida pelo recorrente a indemnização, no efetivo exercício de um direito, não está constitucionalmente vedado ao legislador reapreciar a sua situação patrimonial para efeitos de cancelamento ou manutenção do benefício do apoio judiciário. Aliás, qualquer pessoa que haja litigado sem tal benefício e recebido idêntica indemnização (para mais, fungível, por cumprida em dinheiro), verá o seu património diminuído no mesmo exato montante das custas (e demais encargos) do processo. Ou seja, quando não se encontrem numa situação de insuficiência económica (no quadro dos critérios legais que definem o que deve entender-se por tal insuficiência), os demais titulares de um direito à indemnização serão obrigados a pagar os custos do processo judicial que lhes sejam imputáveis, com a consequente diminuição do respetivo património.

A "discriminação positiva" que a lei confere a quem não tenha meios económicos suficientes para suportar os encargos com a lide judicial - discriminação esta exigida pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva - visa garantir que todos possam acorrer aos tribunais para defesa dos seus direitos. Mas do mesmo princípio não decorre que tal discriminação se prolongue para além da decisão final que julgue definitivamente do direito de que se é titular e em função da particular natureza que este último assume. Ao legislador será lícito excluir (como já o fez) que o recebimento de uma indemnização por danos, decidido no próprio processo em que foi concedido ao requerente benefício de apoio judiciário, possa ser tido como "incremento patrimonial" para efeitos da alteração da situação de benefício. Contudo, não sendo esta solução constitucionalmente imposta, nenhum motivo existe para que se censure a interpretação feita, in casu, da norma contida no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), da Lei 34/2004, de 29 de julho.

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos o Tribunal decide:

a) não julgar inconstitucional a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei 47/2007, de 28 de agosto, na interpretação segundo a qual o auferimento de uma indemnização por danos não patrimoniais deve ser tomada em consideração para efeitos de cancelamento do apoio judiciário concedido no âmbito do próprio processo em que aquela foi decretada;

b) não conceder provimento ao recurso;

c) condenar o recorrente em custas, fixadas em vinte e cinco (25) unidades de conta da taxa de justiça.

Lisboa, 17 de setembro de 2014. - Maria Lúcia Amaral - Maria de Fátima Mata-Mouros - José Cunha Barbosa (vencido, nos termos da declaração que junto) - Joaquim de Sousa Ribeiro.

Declaração de voto

Vencido nos termos e pelos fundamentos que se expõem de seguida.

A interpretação normativa em crise no presente recurso de constitucionalidade parte do pressuposto de que o auferimento de uma indemnização ressarcitória por danos não patrimoniais, porque constitui rendimento, altera positivamente a situação económica do beneficiário de apoio judiciário. Esta é uma opção suspeita, sobretudo se atentarmos a que uma indemnização por danos não patrimoniais não constitui, quando decretada por decisão judicial, rendimento para efeitos de tributação, de acordo com o disposto nos artigos 9.º, n.º 1, alínea b), e 12.º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, dela não advindo para o contribuinte, portanto, qualquer capacidade de gastar. Isto ocorre porque subjacente à indemnização ressarcitória devida em virtude do direito à reparação dos danos, consagrado no artigo 483.º, do Código Civil, está o intuito quer da reintegração da esfera do lesado na situação anterior ao dano, no caso dos danos patrimoniais, quer da atenuação do mal causado pelo dano mediante satisfação de necessidades variadas, no caso dos danos não patrimoniais (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., 2013, p. 604).

Porém, mesmo admitindo que as características específicas de uma compensação devida por danos não patrimoniais - concretamente, o facto de a ela estarem subjacentes danos cujo montante é de difícil cálculo, ou de não lhe ser estranha a "ideia de reprovar ou castigar no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente" (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., 2013, p. 608) - viabilizam a sua imputação no rendimento para efeitos de proteção jurídica, é patente que a norma em crise não logra superar outros obstáculos constitucionalmente relevantes.

Não se nega, claro está, que a melhoria superveniente da situação económica do agente, assim como a sua degradação, podem e devem ter repercussões quanto ao apoio judiciário, nos processos já a decorrer. No entanto, quando o legislador ordinário admite que essa melhoria possa advir de quantias auferidas, em sede de indemnização ou compensação, no âmbito do processo para que foi previamente concedido tal apoio, essa opção colide, desde logo, com o desiderato de garantir a igualdade de oportunidades no acesso à justiça, e, nessa medida, com o princípio do acesso ao direito e aos tribunais.

Atente-se, com efeito, no seguinte.

O direito à reparação dos danos (cf. artigo 483.º, do Código Civil), inclusivamente dos danos não patrimoniais, assume-se, no entender de alguns, como um direito fundamental extraconstitucional, categoria tolerada pelo princípio da cláusula aberta ou da não tipicidade dos direitos fundamentais, vertido no artigo 16.º, n.º 1, da CRP (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., 2012, p. 87). O mesmo é dizer que o Estado - enquanto sujeito passivo desse direito - tem o dever de assegurar condições materiais e jurídicas para que a reparação pelo lesante possa efetivamente ocorrer.

Ora, ao construir o instituto do apoio judiciário nos moldes que agora se contestam, o legislador ordinário obsta ao gozo pleno do direito (fundamental) à reparação dos danos, com isso frustrando a igualdade de oportunidades no acesso à justiça. Pois se é certo que o recorrente pôde aceder à via judiciária em virtude de lhe ter sido concedido apoio judiciário na modalidade de isenção de custas judiciais, certo é que não logrou aí exercer, de forma efetiva, o direito de defender em juízo os seus direitos, sobretudo se tomarmos como ponto de comparação os indivíduos não beneficiários daquele apoio e que se encontram em situação objetivamente idêntica, isto é, hajam também auferido uma indemnização por danos não patrimoniais num dado processo.

Portanto, sem prejuízo da margem de livre conformação de que o legislador dispõe nesta matéria, é mister concluir que a solução normativa vertida na norma em crise impõe um obstáculo ao exercício efetivo, pelo cidadão economicamente carenciado, do direito de defender em juízo os seus direitos. Tal obstáculo, atenta a fundamentalidade e o peso dos direitos que in casu aí se pretendem defender - o direito à reparação de danos não patrimoniais - ascende a uma violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no n.º 1, do artigo 20.º, da CRP. - J. Cunha Barbosa.

208239323

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/3764308.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2000-12-20 - Lei 30-E/2000 - Assembleia da República

    Altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais, atribuindo aos serviços da segurança social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-29 - Lei 34/2004 - Assembleia da República

    Estabelece um novo regime de acesso ao direito e aos tribunais e transpõe parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2003/8/CE (EUR-Lex), do Conselho, de 27 de Janeiro, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-28 - Lei 47/2007 - Assembleia da República

    Altera (primeira alteração) a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais.

  • Tem documento Em vigor 2009-07-14 - Lei 34/2009 - Assembleia da República

    Estabelece o regime jurídico aplicável ao tratamento de dados referentes ao sistema judicial, incluindo os relativos aos meios de resolução alternativa de litígios, e altera (segunda alteração) a Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, que estabelece o estatuto do administrador da insolvência.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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