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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2/2017, de 16 de Março

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Sumário

«Competindo ao Tribunal Central de Instrução Criminal proceder a actos jurisdicionais no inquérito instaurado no Departamento Central de Investigação Criminal para investigação de crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro (Estatuto do Ministério Público), por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, essa competência não se mantem para proceder à fase de instrução no caso de, na acusação ali deduzida ou no requerimento de abertura de instrução, não serem imputados ao arguido qualquer um daqueles crimes ou não se verificar qualquer dispersão territorial da actividade criminosa.»

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2017

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Paulo António Pereira Cristovão veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º, nº 2, 3, 4 e 5 e artigo 438.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, fundamentando-se na oposição entre o acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa[1] e o acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, em 11 de Novembro de 2015, no Processo 259/11.8TELSB-A.L1-9, indicado como acórdão fundamento. As razões do pedido formulado encontram-se sintetizadas nas conclusões da sua motivação de recurso onde se refere que:

«Resulta manifesta a contradição de julgados entre Acórdãos - já transitados em julgado - do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, que se verifica entre o douto Acórdão recorrido, proferido neste processo 32/14.1JBLSB-P.L1, e o douto acórdão proferido anteriormente, em 11 de Novembro de 2015, no processo 259/11.8TELSB-A.L1-9, decisão jurisdicional que se identifica como fundamento da oposição e que sem prejuízo de mais esclarecida opinião, se tem por verificada, carecendo de decisão que uniformize a jurisprudência.

Devidamente analisados o Acórdão recorrido e, bem assim, o Acórdão fundamento, acima referenciados, verifica-se uma manifesta oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, qual seja:

A de saber se a competência material e funcional do Tribunal Central de Instrução Criminal para proceder à realização da fase de instrução é aferida em face do objecto do processo tal como configurado pela Acusação, ou não, isto é, se é adquirida na fase de inquérito e da instauração do processo e que a mesma se mantém, independentemente de posteriores modificações do objecto do processo, e se arrasta para as fases posteriores do processo, incluindo a fase de instrução, apesar do desaparecimento, na Acusação, dos ilícitos criminais que se inseriam no catálogo descrito no artigo 47.º, n.º 1, do EMP ou artigo 120.º, n.º 1, da LOSJ.

Os factos subjacentes às decisões finais tomadas em ambos os Acórdãos são, também eles, idênticos:

foi requerida a abertura de instrução para Tribunal distinto do Tribunal Central de Instrução Criminal;

em ambos os processos, encerrada a fase de Inquérito, não consta(m) do seu objecto processual nenhum(s) dos crimes previstos no catálogo do artigo 120.º, n.º 1, da LOSJ ou do artigo 47.º, n.º 1, do EMP, o que se reconheceu quer em primeira, quer em segunda instância;

em ambos os processos o Tribunal Central de Instrução Criminal julgou-se material e funcionalmente competente para presidir a requerida fase de instrução, atenta a circunstância de haver praticado actos jurisdicionais no decurso da anterior fase de inquérito;

em ambos os processos foi requerido junto do Tribunal Central de Instrução Criminal que se reconhecesse a nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência do tribunal, nos termos dos artigos 33.º, n.º 1 e 119.º, alínea e), do CPP;

em ambos os processos o Tribunal Central de Instrução Criminal julgou não verificada a nulidade insanável suscitada;

foi desta decisão que, em ambos os processos, foi apresentado o devido recurso, caso subjudice ao Acórdão recorrido e ao Acórdão fundamento.

Ambos os Acórdãos encontram-se proferidos no domínio da mesma legislação - LOFTJ e LOSJ - uma vez que, no intervalo da sua prolação, não ocorreu qualquer modificação legislativa que haja interferido, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida, supra enunciada.

Com efeito, quer no Acórdão recorrido, quer no Acórdão fundamento, foi aplicada a solução normativa decorrente dos artigos 22.º, 23.º e 80.º da LOFTJ, em aplicação conjugada com o artigo 47.º, n.º 1, do EMP, bem como dos artigos 38.º, 39.º e 120.º, n.º 1, da LOSJ e, finalmente, os artigos 10.º e 17.º do CPP. Acórdão recorrido e Acórdão fundamento afirmam, expressamente, que as alterações legislativas verificadas na revogação da LOFTJ e entrada em vigor da LOSJ não suscitaram qualquer influência, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito apresentada.»

Por acórdão proferido em 4 de maio de 2016, foi decidido «julgar verificada a oposição de julgados entre o acórdão recorrido, proferido nestes autos, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 27 de Janeiro de 2016, e o acórdão apresentado como fundamento, proferido igualmente pelo Tribunal da Relação de Lisboa no processo 259/11.8TELSB-A.L1-9, em 11 de Novembro de 2015, ordenando-se o prosseguimento do recurso, nos termos do artigo 441.º do CPP».

Em sede de cumprimento do artigo 442.º, n.º 1, do CPP, o Recorrente apresentou alegações em que formula as seguintes conclusões:

1.º - Impõe-se nos presentes autos a resolução da oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito: a de saber se a competência material e funcional do Tribunal Central de Instrução Criminal para proceder à realização da fase de instrução é aferida em face do objecto do processo tal como configurado pela Acusação, ou não, isto é, se é adquirida na fase de inquérito e da instauração do processo e que a mesma se mantém, independentemente de posteriores modificações do objecto do processo, e se arrasta para as fases posteriores do processo, incluindo a fase de instrução, apesar do desaparecimento, na Acusação, dos ilícitos criminais que se inseriam no catálogo descrito no artigo 47.º, n.º 1, do EMP ou artigo 120.º, n.º 1, da LOSJ.

2.º - Por requerimento apresentado a 14 de Outubro de 2015 junto do TCIC, o Recorrente requereu "nos termos e para os efeitos da aplicação conjugada dos artigos 120.º, n.º 1, da Lei 62/2013, de 26 de agosto e 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, que seja reconhecida a nulidade insanável decorrente do douto Despacho de fls. 12.633 e seguintes, de 2 de Outubro de 2015, que, entre o mais, declara aberta a instrução requerida pelo Arguido, aqui Requerente e que, consequentemente, seja determinada a remessa dos presentes autos ao Tribunal materialmente competente para a realização dessa mesma instrução".

3.º - Por douto Despacho de 21 de Outubro de 2015, de fls. 12.967 e seguintes dos autos principais, o Mm.º JIC do TCIC julgou "improcedente a excepção de competência do tribunal, deduzida pelo arguido", não reconhecendo, portanto, a arguida nulidade insanável, fundamentando a sua decisão na asserção de que "a competência do tribunal é atribuída na fase de inquérito e com a instauração do processo e que a mesma mantém, independentemente de posteriores modificações", concluindo, assim, que "o tribunal material e territorialmente competente para proceder à instrução dos presentes autos, até à eventual remessa do processo para julgamento, é o Tribunal Central de Instrução Criminal".

4.º - Desse mesmo Despacho foi interposto Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, em 19 de Novembro de 2015, tendo-se, a final, requerido "por imperativo constitucional e legal, deverá ser concedido provimento ao presente Recurso, declarando-se a nulidade insanável indeferida pela Decisão recorrida, julgando-se assim o Tribunal Central de Instrução Criminal materialmente incompetente para julgar a fase de instrução dos presentes autos, ordenando-se a remessa dos autos ao tribunal materialmente competente - a Secção de Instrução Criminal de Cascais da Comarca de Lisboa Oeste".

5.º - Na sequência desse Recurso foi proferido douto Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 27 de Janeiro de 2016, Acórdão Recorrido que está na génese dos presentes autos de Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência, o qual sufragou a mesma posição anteriormente assumida pelo Tribunal Central de Instrução Criminal.

6.º - Confrontadas as realidades criminosas elencadas no artigo 120.º, n.º 1, da LOSJ ou artigo 47.º, n.º 1, do EMP, com a Acusação deduzida nos presentes autos, chega-se à conclusão inarredável de nos presentes autos não se configurarem no seu objecto a apreciação de quaisquer crimes ou realidades criminosas previstas nos supra referidos normativos legais.

7.º - O Despacho do Mm.º JIC do TCIC que, nos autos principais, declara aberta a fase de instrução está inquinado pelo vício de nulidade insanável (cfr. artigo 119.º, alínea e), do CPP).

8.º - A manutenção da competência do TCIC, sancionada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, acabou por proteger uma manipulação do processo, sem a qual o TCIC, porventura, nunca teria intervindo nos presentes autos.

9.º - A solução acolhida no Acórdão recorrido, trazida do douto Despacho recorrido do TCIC, de que "a competência do tribunal é atribuída na fase de inquérito e com a instauração do processo e que a mesma se mantém, independentemente de posteriores modificações" do objecto do processo, permite ao Ministério Público decidir qual o Tribunal competente para julgar a fase de instrução, independentemente do que a lei determina a esse propósito, bastando, para esse desiderato, delimitar o objecto embrionário do processo na investigação de crimes que permitam a intervenção de um concreto Tribunal, inclusivamente recorrendo a notícias do crime anónimas e insusceptíveis de qualquer controlo, como sucedeu nos presentes autos.

10.º - O princípio do juiz natural é uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais.

11.º - Se a Constituição limita a discricionariedade do legislador na instituição de tribunais com competência exclusiva, é legítimo considerar, à luz dos princípios nela inscritos, que a discricionariedade judicial na interpretação e aplicação de normas de atribuição de competência aos tribunais assim instituídos também deve ser tida por limitada.

12.º - Ao atribuir ao TCIC competência para realizar a fase de instrução apenas porque este era competente para a prática dos actos jurisdicionais no inquérito, a norma aplicada pelo Acórdão recorrido desconsidera a ratio da distribuição de competências legalmente estabelecida.

13.º - Ao neutralizar o vínculo de dependência entre a verificação dos pressupostos exigidos no artigo 80.º, n.º 1, da LOFTJ, ou 120.º, n.º 1, da LOSJ, e a atribuição da competência ao TCIC para proceder à instrução e decidir a pronúncia, bastando-se com a prévia atribuição ao TCIC da competência para praticar os actos jurisdicionais no inquérito para lhe somar a competência para realizar a instrução, a norma aplicada pelo Acórdão recorrido subestima a distinção legalmente assumida, na definição das competências do juiz de instrução criminal, entre as competências funcionais relativas à realização da instrução e a competência para praticar os actos jurisdicionais do inquérito.

14.º - A norma de competência em causa, aplicada pelo Acórdão recorrido, mais não é do que a negação da regra de competência legal.

15.º - A norma aplicada pelo Tribunal a quo assenta em preceitos normativos que não permitem a predefinição do tribunal competente segundo características gerais e abstractas, antes atribuindo competência ao TCIC, através de uma definição individual (e, portanto, arbitrária), que põe em perigo o direito do Recorrente a uma justiça penal independente e compromete a sua confiança nos tribunais - o que se considera bastante para que o princípio do juiz natural se tenha por ofendido.

16.º - É materialmente inconstitucional a interpretação dos artigos 22.º, 23.º e 80.º da LOFTJ, em aplicação conjugada com o artigo 47.º, n.º 1, do EMP, bem como dos artigos 38.º, 39.º e 120.º, n.º 1, da LOSJ e, finalmente, os artigos 10.º e 17.º do CPP, no sentido de que, apenas porque na fase de Inquérito o Tribunal Central de Instrução Criminal reconheceu a sua competência para a prática de actos jurisdicionais nessa fase, deva essa competência estender-se à fase de Instrução, mesmo que não verificados os necessários pressupostos para o efeito, legal e previamente fixados, por se violar, assim, e nomeadamente, o artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.

Termina as suas conclusões indicando o sentido em que deve ser fixada jurisprudência e, nomeadamente, que:

Padece do vício de nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, ao mesmo tempo que configura a aplicação de norma violadora do princípio do juiz natural (cfr. artigo 32.º, n.º 9, da Constituição), o despacho do Juiz de Instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal que declare aberta a fase de instrução, mesmo que no processo e contra o Arguido não haja sido deduzida acusação por qualquer dos crimes do catálogo do n.º 1 do artigo 47.º do Estatuto do Ministério Público ou do artigo 120.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário.»

O Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça apresentou alegações em que formula as seguintes conclusões:

1. A Lei 3/99, de 13.01 [LOFTJ] e a Lei 62/2013, de 26.08 [LOSJ], prevêem, de entre os tribunais judiciais de 1ª instância, o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), como o competente para apreciar certas causas.

2. Tanto o artigo 80.º da LOFTJ, como o actual artigo 120.º LOSJ, são normas atribuidoras de competência em razão da matéria, ou seja, determinam qual o tribunal que, segundo a sua espécie, deve conhecer de um certo caso penal.

3. O TCIC é o único tribunal de competência especializada ao qual a lei atribui aquelas competências não havendo qualquer outro que, verificados aqueles pressupostos, com ele concorra.

4. Existe uma correlação directa entre as competências do TCIC e do DCIAP já que a competência do primeiro está umbilicalmente ligada à competência do DCIAP sendo legítimo concluir serem comuns as razões que estiveram subjacentes à criação de ambos.

5. A fixação do objecto do processo resulta da vinculação temática e do princípio do acusatório, mas não pode ter como finalidade a fixação da competência material do tribunal.

6. A competência de um tribunal não pode ser volátil, determinada por factores, causas, ou condições que possam variar em função da actividade, mais ou menos correta, dos sujeitos processuais.

7. As regras processuais de fixação ou de repartição de competências pelos tribunais tem na sua base princípios essenciais de interesse público, como a determinação ex ante do tribunal que há-de julgar uma causa penal.

8. O estabelecimento de tais regras de competência subordinam-se a critérios de boa administração da justiça, tal como o princípio da especialização, e o reconhecimento da vantagem de reservar a certos tribunais o conhecimento de causas específicas, quer pela dimensão das matérias, quer pela especificidade das normas que as integram.

9. Do artigo 22.º da LOFTJ e do artigo 38.º da LOSJ resulta que a competência do tribunal fixa-se no momento em que a acção é proposta.

10. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita à acção penal, tem vindo a entender que a acção é proposta no momento em que o inquérito é instaurado.

11. Consequentemente, instaurado um inquérito no DCIAP e constituindo a notícia do crime o momento da propositura da acção, é com base no objecto da investigação que se fixa a competência material do TCIC.

12. Não havendo qualquer norma que preveja uma alteração ou modificação de competência do TCIC, essa competência arrasta-se para a fase de instrução.

13. Porque o artigo 80.º é uma norma que fixa casos especiais de competência em função das apontadas razões, o legislador pretendeu que os processos que se iniciam naquele TCIC, em função das suas especificidades, ali se mantenham até ao momento em que fique definida a situação processual do arguido, ou seja, saber se vai ou não ser submetido a julgamento, e porque factos, e crimes.

Conclui propondo que seja fixada jurisprudência no seguinte sentido:

Competindo ao Tribunal Central de Instrução Criminal proceder a actos jurisdicionais no inquérito instaurado para investigação de crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei 47/86, de 15.10, por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei 3/99, de 13.01 [actualmente, matéria regulada no n.º 1 do artigo 120.º, da Lei 62/2013, de 26.08], essa competência mantém-se para proceder à fase de instrução no caso de, no final do inquérito, na acusação deduzida pelo Ministério Público, não serem imputados ao arguido quaisquer dos referidos crimes, ou não se verifique qualquer dispersão territorial da actividade criminosa.

Os autos tiveram os vistos legais.

*

Cumpre decidir

I

A questão para cuja resolução é convocado este Supremo Tribunal de Justiça foca-se na manutenção da competência do Tribunal Central de Instrução Criminal para proceder à fase de instrução no caso de, em sede de requerimento de abertura de instrução (RAI) ou de acusação, não serem imputados ao arguido quaisquer dos crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei 47/86, de 15 de Outubro (Lei Orgânica do Ministério Público) [2] não obstante esse mesmo tribunal ter sido convocado para praticar actos jurisdicionais em sede de inquérito .

Sobre esta matéria são antagónicas as posições defendidas pelo acórdão recorrido, proferido nos presentes autos, e pelo acórdão fundamento, emitido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 11 de Novembro de 2015, os quais esgrimem com as seguintes linhas argumentativas:

Acórdão recorrido:

É com o início do processo - com a aquisição da notícia do crime e, portanto, com o início da fase de inquérito, - que se fixa a competência do TCIC, e que esta se mantém para a fase de instrução, independentemente da configuração dada ao objecto do processo pela acusação.

Considera-se aí que a intervenção no inquérito quer do DCIAP, quer do juiz do TCIC, tendo em conta os crimes em investigação e que «a actividade delituosa se estendia a mais do que um distrito judicial», se encontram legitimadas por força dos artigos 47.º, n.º 1, do EMP e 80.º, n.º 1, da LOFTJ, pelo que não existem dúvidas de que «esta competência inicialmente fixada se arrasta para as fases posteriores do processo incluindo a própria competência para a instrução, apesar do desaparecimento na acusação dos ilícitos criminais que se inseriam no elenco descrito nos normativos relativos à competência do DCIAP e do TCIC já referidos».

Esta conclusão é retirada da leitura articulada dos artigos 10.º e 17.º, do CPP, 25.º e 26.º, da LOFTJ (atuais arts. 38.º e 39.º, da LOSJ), 47.º do EMP e 32.º, n.º 9, da Constituição da República.

Com efeito, lê-se no acórdão recorrido:

«Dispõe o artigo 10º do C.P.P, que "A competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária".

Durante o inquérito a competência do JIC para intervir no inquérito só está definida em termos de reserva de jurisdição (arts. 17.º, 268.º e 269.º do CPP), não havendo qualquer norma que defina a competência do JIC no inquérito, sendo que a norma do art. 288.º, n.º 2, do CPP, referente à competência do JIC para a instrução, apenas refere que as regras de competência relativas ao Tribunal são correspondentemente aplicáveis ao juiz de instrução».

Relativamente ao juiz de instrução, considera o acórdão recorrido, «haverá a referir o artº 17º do mesmo diploma [CPP] que dispõe que compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código.

Nada mais se referindo quanto à competência em causa serão às leis de organização judiciária que teremos pois que recorrer para apreciar a questão suscitada».

Após invocação dos artigos 25.º e 26.ºda LOFTJ (a que correspondem os artigos 38º e 39.º da LOSJ), lê-se no acórdão recorrido:

«O estabelecido pelo legislador com os preceitos em causa não é mais do que a conversão em lei do normativo constitucional vertido no artº 32º da CRP, segundo o qual "nenhuma causa pode ser subtraída ao Tribunal cuja competência esteja fixada em Lei anterior".

Como tal a conclusão a retirar será de que a competência fixa-se à data da propositura da acção, sendo que, instaurado o processo em Tribunal competente, essa competência não lhe pode ser retirada ainda que ocorram alterações de facto ou de direito, salvo nos casos especialmente previstos na Lei.

Consequentemente, conclui que a competência do TCIC foi legalmente fixada nos termos da lei em vigor.

Na perspectiva do acórdão fundamento considera-se que a competência do TCIC para julgar a fase de instrução depende da configuração dada pela acusação ao objecto do processo, sendo irrelevante para a fixação do tribunal competente para julgar a fase de instrução, o facto de o TCIC ter intervindo no inquérito, através da prática de actos sujeitos a reserva de jurisdição.

Considera, assim, que com a consolidação do objecto do processo pela acusação - ou pelo requerimento de abertura de instrução, conforme os casos - desaparecendo os ilícitos (algum ou alguns dos identificados no artigo 47.º, n.º 1, do EMP ou no artigo 120.º, n.º 1, da LOSJ) que legitimaram uma intervenção inicial do TCIC na fase de inquérito, falece um dos pressupostos cumulativos da competência do TCIC para proceder à requerida instrução.

Afirma-se nesse acórdão:

«A competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições do Código de Processo Penal e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária (art. 10.º do CPP), e, como com clareza explica o Senhor Conselheiro Henriques Gaspar [em anotação ao art. 10.º do Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, págs. 53-54 e, anteriormente, no acórdão do STJ de 21-06-2006, Proc. n.º 1573/06, in www.dgsi.pt.], "determina-se em razão da natureza das causas e, em certas circunstâncias muito contadas, também da qualidade das pessoas, e, ao mesmo tempo, de acordo com a repartição própria da predefinição das regras sobre competência territorial.

Para respeitar princípios essenciais tem de ser estabelecida uma organização dos tribunais, que deve ir ao ponto de regular o âmbito de actuação de cada tribunal, de modo a que o julgamento de cada concreto caso penal seja deferido a um único tribunal - concretização e determinação da competência do tribunal em matéria penal.

A competência material pode estar, porém, ordenada e delimitada no que respeita ao desenvolvimento do processo dentro de cada instância, mediante competências diversas conforme as fases da promoção e desenvolvimento processual: é o que se designa por competência funcional. No processo penal, designadamente, as diversas fases do processo (ou os actos normativamente delimitados) estão referidas as competências funcionais diversificadas: o inquérito; a instrução; o julgamento, estas sem possibilidade de cumulação funcional do juiz (artigo 40º do CPP)".(...)na aferição da competência do Tribunal para proceder à realização da instrução terá de atender-se, assim, no caso subjudice, ao objecto do processo, tal como definido pelo requerimento de abertura da instrução, constituído como acusação alternativa - tal como se teria de atender ao objecto do processo fixado pela acusação do MP, se a mesma existisse (quer para aferição da competência para a realização da instrução, quer, a ela não havendo lugar, para a do Tribunal de julgamento) e se terá, oportunamente, de atender a um eventual despacho de pronúncia para determinação da competência do Tribunal de julgamento).

Ora, os ilícitos que no RAI vêm imputados aos arguidos são os de prevaricação, violação de regras de execução orçamental e abuso de poderes, nenhum dos quais faz parte do elenco do n.º 1 do art. 47.º da Lei 47/86, de 15/10, na redacção introduzida pela Lei 60/98, de 27-08.

Falece, assim, desde logo, um dos pressupostos (cumulativos) da especial competência do TCIC para proceder à requerida instrução, pelo que a competência para o efeito caberá à Secção de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira.

A violação das regras de competência do Tribunal constitui nulidade insanável, e a declaração de incompetência implica a remessa do processo para o Tribunal competente, de acordo com o disposto nos arts. 119.º, al. e), e 33.º, n.º 1, do CPP».

Parametrizados os termos em que as decisões em conflito analisaram o tema da presente uniformização importa agora que nos detenhamos sobre o mesmo.

Assim,

II

A Jurisdição é um poder do Estado que compreende a função exercida por todos os tribunais englobados numa única esfera de actuação (principio da unidade de jurisdição) [3].Tal função (a jurisdição), que pertence ao conjunto dos tribunais previstos na Constituição e na lei, está distribuída entre os vários tribunais de acordo com regras, e critérios, que definem para cada tribunal os limites, ou o âmbito, da sua jurisdição, isto é, a competência, a qual se reparte pelos tribunais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território - artigo 37º, nº 1 da LOS].

Partindo do pressuposto de que a competência de um tribunal é a medida, ou âmbito, da sua jurisdição importa agora que analisemos a forma como a mesma pode ser definida ou, por outras palavras, quais os instrumentos, ou critérios, de competência que devem ser utilizados.

No que concerne refere Figueiredo Dias que, na repartição das causas penais pelas diferentes espécies de tribunais, se oferecem ao legislador vários métodos ou vias de procedimento. O primeiro de tais procedimentos consubstancia-se no método de determinação abstracta da competência, através do qual se faz decorrer a competência material imediatamente, ou incondicionalmente, da lei. O legislador, utilizando este método, poderá alcançar a finalidade proposta ainda por duas vias diferentes: ou dá a cada tribunal competência para o conhecimento e decisão de certos tipos de crime ou, não curando do singular tipo de crime, dá a cada tribunal competência para o conhecimento e decisão de crimes a que corresponda, em abstracto, uma pena até um certo máximo.

O outro critério essencial centra-se no denominado método da determinação concreta da competência, segundo o qual não haverá que atender directamente ao tipo de crime ou à pena máxima que lhe seja aplicável, mas ao crime, tal como é de esperar que venha a ser definido concretamente na sentença ou à pena que previsivelmente lhe virá a ser aplicada. Neste sistema, a cada tribunal singular é concedida uma margem de competência para aplicação concreta de certas penas relativamente a um juízo de prognose sobre a pena esperada.[4]

A propósito destas formas de determinação Gomes Canotilho e Vital Moreira apontam desde logo a ilegitimidade constitucional do chamado método concreto de determinação da competência. Na verdade, referem os mesmos Autores, um tal método implica a atribuição de uma dimensão de indeterminação na fixação da competência judicial, dependente de uma apreciação discricionária do MP (que é a entidade acusadora), que não se afigura de fácil compatibilização com o sentido clássico do princípio da fixação da competência por lei anterior.[5]

É assim lógico, tal como refere Figueiredo Dias, a opção do direito processual penal português vigente seguindo por regra - abstraindo, é claro, daqueles limites relativos ao princípio do juiz natural e que se reflectem na determinação de toda e qualquer espécie de competência-critérios de determinação abstracta da competência material, seja o da espécie de tipo legal de crime em causa, o da gravidade da infracção indiciada pelo máximo da pena aplicável, ou mesmo o de uma certa combinação destes dois critérios.

III

Assumida a necessidade da existência de critérios de determinação abstracta da competência importa referir que a mesma pode ser definida, seguindo Moreno Catena[6], como a distribuição que o legislador efectua entre os distintos órgão jurisdicionais integrados na ordem penal. Distribuição que pode ser alcançada ou concretizada com base em três critérios a) maior ou menor gravidade do facto criminoso, b) a natureza especial do seu objecto - rationae materiae e c) a qualidade do arguido - ratione personae. De acordo com Aragoneses Martinez[7], o primeiro critério define a distribuição de competência em função do tipo de crime e sentença; o segundo ignora a gravidade do delito, ou não atende só à mesma, mas, essencialmente, à natureza do crime; já o terceiro define a distribuição da competência em razão da função que desempenham algum tipo de agentes, provocando a alteração dos critérios comuns.

Igualmente Henriques Gaspar[8] se pronuncia sobre o mesmo tema referindo que a competência material dos tribunais, estabelecida em razão da natureza dos casos submetidos a julgamento, pressupõe um pré-ordenamento de organização: a competência dos tribunais em razão da matéria é fixada por amplo princípio de inclusão, competindo aos tribunais judiciais o conhecimento das causas que não sejam atribuídas a outra ordem de jurisdição (artigo 40º da LOSJ), devolvendo-se às normas de processo a definição e a atribuição de competência aos diversos tribunais em função da natureza das causas, ou em situações muito específicas, da qualidade das pessoas.

A competência em matéria penal, tal como está definida e estabelecida nas leis de processo e de organização dos tribunais, delimita a medida da jurisdição em matéria penal dos diversos tribunais, isto é, de cada um dos tribunais. A delimitação é estabelecida na lei de organização em função de critérios objectivos e prefixados, tanto segundo normas de distribuição territorial - competência em razão de território, como, dentro desta, por conformação organizatória dos tribunais em tribunais de competência territorial alargada e tribunais de comarca (23 comarcas) - artigo 33º da LOS].

As regras sobre a competência em matéria penal têm uma finalidade essencial que preside e tem de conformar a organização: permitir determinar ex ante o tribunal que há-de decidir uma causa penal, respeitando o princípio do juiz natural, com dimensão constitucional na formulação do artigo 32º, nº 9, da Constituição, evitando-se o risco de manipulação da competência, e especialmente que a acusação possa escolher o tribunal que lhe parecer mais favorável.

A competência material de cada tribunal em questões penais está regulada no CPP, e subsidiariamente nas leis de organização judiciária, e determina-se em razão da natureza das causas e, em certas circunstâncias muito contadas, também da qualidade das pessoas, e, ao mesmo tempo, de acordo com a repartição própria da predefinição das regras sobre competência territorial [9].

Existirão, nesta sequência, três critérios para determinar tal atribuição: o objectivo, o funcional e o territorial, sendo que a conjugação dos mesmos dá lugar a outros tantos tipos de competência. Importa, assim, precisar que a distinção de critérios para a delimitação da competência do tribunal abrange a competência em razão da fase do processo (competência funcional); b. A competência em razão da espécie ou gravidade do crime, ou então da qualidade do arguido (competência material); c. A competência em razão do lugar (competência territorial).

No que concerne à competência funcional, o ponto a destacar é que têm de intervir no processo pelo menos dois juízes, um para a fase de investigação e outro para a fase de julgamento, só assim se podendo garantir o princípio da independência judicial. Nessa conformidade, o art. 40.º determina que "[n]enhum juiz pode intervir num julgamento [relativo] a processo em que tiver: a) [aplicado medida de coacção [ou] - [p]residido a debate instrutório". Quanto à competência material, é de referir que a mesma se desdobra por duas vertentes, a competência em razão da hierarquia do tribunal e a competência em razão da estrutura do tribunal.[10]

A competência material pode estar, porém, ordenada e delimitada no que respeita ao desenvolvimento do processo dentro de cada instância, mediante competências diversas conforme as fases da promoção e desenvolvimento processual: é o que se designa por competência funcional. No processo penal, designadamente, as diversas fases do processo (ou os actos normativamente delimitados) estão referidas a competências funcionais diversificadas: o inquérito; a instrução; o julgamento, estas sem possibilidade de cumulação funcional do juiz (artigo 40º do CPP[11] É exactamente esse o caso do juiz de instrução ao qual compete, nos termos do artigo 17 do Código de Processo Penal, proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código.

A competência material do juiz de instrução consubstancia-se na sua intervenção em fases processuais perfeitamente determinadas e, nomeadamente, o inquérito e a instrução. No inquérito, são as competências definidas nos artigos 268º e 269º: actos a praticar pelo juiz de instrução e autorização prévia do juiz de instrução para outros actos do inquérito; na instrução, o juiz de instrução preside e dirige a respectiva fase processual, nos termos dos artigos 286º a 308º, preside ao debate instrutório e profere decisão de pronúncia ou de não pronúncia.

No caso concreto, que convoca a figura do juiz do Tribunal Central de Investigação Criminal encontramo-nos perante um caso especial de competência funcional tal como é definido no artigo 120º da LOS.

IV

Dotados dos instrumentos legais necessários para a determinação da competência, os quais se consubstanciam nas normas adjectivas penais e na lei de organização judiciária, subsiste uma questão que, em última análise, é aquela que constitui a chave dos presentes autos, ou seja, determinar qual é o momento que determina a fixação da competência

Na lógica do acórdão recorrido, e procurando sintetizar o itinerário argumentativo, nos termos do artigo 22.º da LOFTJ (artigos 38.º LOSJ), a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, sendo igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.

E, segundo o artigo 23.º do mesmo diploma (artigo 39.º da LOSJ), nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

Estas disposições constituem concretização da norma contida no artigo 32º, n.º 9, da Constituição da República, no âmbito das garantias em processo criminal, segundo a qual «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior», consagrando o princípio do «juiz natural» ou do «juiz legal», cuja densificação já foi feita.

A fixação da competência no momento em que a acção se propõe e a irrelevância, como regra, das modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente constitui. Como também já se assinalou, a tradução do princípio da perpetuatio jurisdictionis ou perpetuatio fori, no sentido de que a competência do tribunal se fixa com o momento da propositura da acção e que, se o tribunal é competente nesse momento, ele manter-se-á assim até final. Nesta perspectiva, este princípio encontra-se também ao serviço de uma boa administração da justiça e da economia processual pois assegura a continuidade do trabalho judiciário que se mantém incólume relativamente às vicissitudes (de facto e de direito) que possam ocorrer.

Na perspectiva da decisão recorrida a equação da questão da competência parte, assim, duma aquisição com sede no artigo 32º da Constituição e que se indexa à afirmação do princípio do juiz natural. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira[12], o mesmo consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime. Adiantam ainda que a escolha do tribunal competente deve resultar de critérios objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos, sendo que juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância mas, identicamente, todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional, referem ainda, vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais colectivos.

O princípio do juiz legal implica, ainda, na visão dos mesmos Autores várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial).

Dentro das exigências necessárias para dar corpo ao referido princípio, assinala, ainda, Figueiredo Dias a necessidade de evidenciar que, no plano da fonte, só a lei pode instituir o juiz e fixar-lhe a competência, acrescentando-se, no plano temporal, a afirmação de um princípio de irretroactividade: a fixação do juiz e da sua competência tem de ser feita por uma lei vigente ao tempo em que foi praticado o facto criminoso que será objecto do processo.

O princípio do juiz natural é uma das faces que assume o princípio da legalidade no processo penal que, nas palavras de Figueiredo Dias, preserva um dos fundamentos essenciais do Estado de Direito ao colocar a justiça penal a coberto de suspeitas e de tentações de parcialidade e arbítrio. Se fosse possível aos órgãos públicos encarregados do procedimento penal apreciar da «conveniência» do seu exercício e omiti-lo por «inoportuno», avolumar-se-ia o perigo do aparecimento de influências externas, da ordem mais diversa, na administração da justiça penal e, mesmo quando tais influências não lograssem impor-se, o perigo de diminuir (ou desaparecer) a confiança da comunidade na incondicional objectividade daquela administração[13].

V

Na perspectiva do acórdão recorrido sendo a notícia do crime o momento em que se fixa a competência do processo criminal, ou seja o momento da propositura da "acção", invocando-se o artigo 38 da LOSJ [14], aquela competência terá que abranger toda a sua plenitude, independentemente das fases processuais que ocorram, abrangendo a do juiz de instrução. e qualquer desaforamento traduzir-se-á numa ofensa do princípio do juiz natural.

A interpretação em causa emerge duma consideração ampla do conceito de "acção", inscrito no normativo citado, em sentido amplo, fazendo coincidir, sem qualquer distinção, os diversos tipos de procedimento judicial, nomeadamente a acção penal e a acção cível.

Todavia, estamos em crer que tal interpretação está afastada da diferente substância da acção cível e da acção penal. Efectivamente, como refere Figueiredo Dias O processo penal, na perspectiva jurídica que assume - outras serão as suas perspectivas ética, sociológica, política, cultural, etc. -, surge como uma regulamentação disciplinadora da investigação e esclarecimento de um crime concreto, que permite a aplicação de uma consequência jurídica a quem, com a sua conduta, tenha realizado um tipo de crime. Nesta medida constitui ele, de um ponto de vista formal, um «procedimento» público que se desenrola desde a primeira actuação oficial tendente àquela investigação e esclarecimento até à obtenção de uma sentença com força de caso julgado ou até que se execute a reacção criminal a que o arguido foi condenado. Tomado o conceito de relação jurídica no sentido acima apontado, há-de pelo menos reconhecer-se que ele não pode ser aceite nos termos em que cabe ao processo civil.

Neste deparamos com um processo ao qual é essencial a existência, por um lado de uma discussão entre as partes titulares dos interesses contrapostos que no processo se encontram concretamente em jogo, por outro lado, e consequentemente, de duas partes em posições jurídicas tendencialmente iguais que discutem a causa perante o tribunal. Ao processo penal, como acabamos de ver, nem é essencial a existência de um diferendo entre MP e arguido, nem estes se encontram na mesma posição jurídica perante o tribunal.

O reconhecimento desta diferença irrecusável leva alguns autores a considerar que a relação jurídica processual é abinitio, em processo civil triangular ou trilateral, em processo penal angular ou bilateral.

O conceito de relação jurídica processual penal terá então, ao menos, o efeito útil de dar a entender, com nitidez, que com o início do processo penal se estabelecem necessariamente relações jurídicas entre o Estado e todos os diversos sujeitos processuais-se bem que a posição jurídica destes seja a mais diversa e diferenciada e que dali nascem para estes direitos e deveres processuais... o processo penal tem de conceber-se como «uma consequência do aparecimento e da consolidação da ideia do Estado-de-direito como ideia de garantia para as liberdades do cidadão e de limitação da intervenção estadual, no pressuposto de que o Estado deve reconhecer os direitos invioláveis da pessoa». [15]

Mas, sendo assim, é evidente a especifica conformação que assume o objecto do processo penal que, nas palavras de Castanheira Neves, tem a sua solução justa na equilibrada ponderação entre o interesse público da aplicação do direito criminal (e da eficaz perseguição e condenação dos delitos cometidos) e o direito incondicional do réu a uma defesa eficaz e ao respeito pela sua personalidade moral, do mesmo modo a solução válida do em todos os pontos em que ele releve traduza também um justo equilíbrio entre este direito e aquele interesse[16]

Não tem razoabilidade dogmática a equiparação do processo civil e do processo penal e dos respectivos procedimentos para efeito de subsunção ao citado normativo do artigo 38 da LOSJ.

VI

Subsiste, então, a questão inicialmente formulada de qual o momento em relação ao qual se devem parametrizar os critérios de competência em processo penal.

Estamos em crer que tal questão está intimamente ligada à fisionomia própria da acção penal e traz, naturalmente, à colação a questão da destrinça entre objecto do inquérito e objecto do processo. Analisando a relevância de tal matéria na apreciação dos presentes autos, diremos que, como refere Figueiredo Dias[17].é a acusação que define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado. É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade.

Por seu turno, o artigo 262º do Código de Processo Penal, pronunciando-se sobre a finalidade e âmbito do inquérito, dispõe que o mesmo compreende o conjunto de diligências, em ordem à decisão sobre a acusação, que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes, a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas. Como refere Maia Costa[18], a investigação deverá ser dirigida estritamente para a descoberta da verdade material, qualquer que ela seja, devendo, assim, ser orientada para a recolha de todas as provas pertinentes, quer à comprovação da notícia do crime e da responsabilidade do eventualmente denunciado, quer à demonstração da sua inocência.

O inquérito não é dirigido contra o arguido, embora este seja naturalmente, e a partir do momento da sua constituição, alvo da investigação. Mas ele pode apresentar meios de prova no inquérito, que terão de ser investigados - a não ser que sejam manifestamente impertinente ou dilatórios -, podendo contribuir assim para o esclarecimento do caso. A investigação produzida no inquérito é, pois, orientada exclusivamente pelo princípio da verdade material, constituindo a autonomia do MP, titular do inquérito, garantia institucional da realização desse princípio.

Para Dá Mesquita[19] estamos perante um actividade de natureza teleologicamente vinculada que, findo o inquérito, habilitará o Ministério Público a decidir-se, no final, pela acusação ou pelo arquivamento.

Mas, nesta lógica, é evidente que a actividade do detentor da acção penal não assume uma valência espartilhada por quaisquer outros limites que não os derivados da notícia do crime e da necessidade de indagar dos seus fundamentos numa procura da verdade material que o habilitará ao proferimento de uma decisão final no terminus do inquérito. Não existe, nestes termos, qualquer impedimento a que, dentro de tais limites, o resultado da actividade do titular da acção penal assuma uma configuração diversa que é imposta pela própria dinâmica do inquérito.

Atento o exposto, e procurando responder à interpelação feita sobre a valorização e alteração de factos imputados ao arguido em diferentes momentos processuais, dir-se-á que, nada obstando à sua existência, não se pode escamotear a circunstância de a mesma trazer à colação a decantada questão da competência para os actos judiciais do inquérito. No que concerne, importa referir que, durante a fase de inquérito e nos termos do art. 264.º do CPP, só está definida a competência territorial do MP. Isto sendo, naturalmente, possível a transmissão dos autos para outro MP (com consequente alteração da competência territorial do MP) nos termos do art. 266.º do CPP. A competência do juiz, na fase de inquérito, para a prática de actos jurisdicionais apenas está definida em termos de reserva de jurisdição (art. 17.º, 268.º e 269.º do CPP).

Quem tem o domínio da acção penal, na fase de inquérito[20], é o MP, sendo que a competência territorial do Ministério Público se pode ir modificando consoante os resultados da investigação. A investigação é dinâmica e os factos vão apresentando contornos diversos, podendo estes implicar alteração do MP competente e, consequentemente, alteração do JIC competente para a prática de actos jurisdicionais.

Cabe ao MP apresentar o processo ao Juiz para a prática dos actos jurisdicionais e é nesse momento - isto é, quando é chamado a intervir para a prática de tal acto jurisdicional - que importa ao Juiz verificar se é competente para o efeito. Durante a fase de inquérito, entendemos, pois, que não se fixa a competência do Tribunal. Com o que não tem aqui aplicação o art. 38.º da LOSJ (Lei 62/2013, de 26-08) em virtude de o objecto do processo ainda se encontrar em formação.

Quando o Juiz é chamado a praticar actos jurisdicionais, na fase de inquérito (da qual não tem o dominium), o mesmo aprecia a sua competência para a prática daquele acto naquele momento (momento processualmente relevante). Trata-se, pois, de uma competência em aberto.

Assim sendo, o Juiz, durante a fase de inquérito e quando é chamado a intervir para a prática de actos jurisdicionais, avalia a sua competência em razão da matéria e verifica se tem competência para intervir naquele acto. Tal competência é aferida em relação àquele momento concreto e não em relação a qualquer outro

Quando o objecto do processo se fixa- com a acusação ou requerimento de abertura de instrução-é que o Tribunal (Juiz) está em condições de aferir a sua competência e, a partir de então, a mesma fixa-se para futuro - art. 38.º da LOSJ.

Conclui-se, assim que na aferição da competência do Tribunal para proceder à realização da instrução terá de atender-se ao objecto do processo, tal como se encontra definido pela acusação ou pelo requerimento de abertura da instrução, constituído como acusação alternativa. Se, em função de tal requerimento, não se encontram elencados os pressupostos de atribuição de competência do TCIC é lógica a conclusão de que o mesmo não é o tribunal competente para a mesma instrução.

VII

Por último, mas não em último, importa referir que o recorrente indica o sentido da fixação de jurisprudência no sentido de que "Padece do vício de nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, ao mesmo tempo que configura a aplicação de norma violadora do princípio do juiz natural (cfr. artigo 32.º, n.º 9, da Constituição), o despacho do Juiz de Instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal que declare aberta a fase de instrução, mesmo que no processo e contra o Arguido não haja sido deduzida acusação por qualquer dos crimes do catálogo do n.º 1 do artigo 47.º do Estatuto do Ministério Público ou do artigo 120.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário."

A pretensão do requerente no que concerne a este segmento não tem fundamento legal. Na verdade, nos termos do artigo 33º, nº 2 do Código de Processo Penal, declarada a incompetência de um tribunal, o processo será remetido para o tribunal competente. E este anula os actos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo, ordenando, ademais, a repetição dos actos necessários para conhecer da causa.

Como se refere no Código de Processo Penal dos Magistrados do Ministério Publico do Distrito Judicial do Porto declarada a incompetência do tribunal, o processo deve ser remetido para o tribunal competente, o qual: (a) Anula os actos que não se teriam praticado se perante aquele tivesse corrido o processo; e (b) Ordena a repetição dos actos necessários para conhecer da causa (art. 33.º, nº 1). Adiantam ainda os Autores daquele Comentário que o critério de justiça material consentâneo com os princípios da economia processual e do máximo aproveitamento dos actos processuais em processo penal leva a que só se anulem ou se repitam actos indispensáveis para adequar o processo à tramitação que ele teria face às razões específicas de competência do tribunal que vai conhecer de causa.

Temos, assim, que a declaração de incompetência não determina a nulidade do processo, mas tão-só dos actos que se não teriam sido praticados se o processo tivesse corrido perante o tribunal competente. É o tribunal competente que declara quais os actos que são nulos e que ordena a repetição dos actos necessários para conhecer da causa, caso estes existam. Estamos perante uma situação de conservação dos actos imperfeitos que se consubstancia no reconhecimento da capacidade para provocar os efeitos correspondentes aos actos válidos, mediante a sua coligação com outros factos sucessivos, que vêm suprir ou tornar irrelevantes as deficiências cometidas.

Estabelece João Conde Correia, nesta vertente, que a conservação dos actos inválidos abarca todas aquelas situações em que o ordenamento jurídico tolera de tal forma que, apesar de persistir o vexame do pecado cometido, o acto torna-se inatacável e estável nas suas consequências prático-jurídicas.

Tais fenómenos, embora integrem aquele sentido amplo das causas de sanação e manifestem a tendência inata para a perpetuação dos efeitos produzidos pelos actos processuais penais inválidos, são distintos. A conservação dos actos inválidos pressupõe a mera consolidação das consequências do acto defeituoso. A sanação stricto sensu consiste na sobrevivência do acto, condicionada pela remoção sucessiva do vício que o afecta. Naquele caso, o acto resiste incólume apesar da sua imperfeição. Neste caso, convalesce, superando com sucesso, essa mesma imperfeição.

Integram o conceito de conservação todos os actos inválidos em que: pelo decurso do processo; pelo comportamento dos sujeitos processuais; ou pela realização da finalidade perseguida pela norma jurídica violada o ordenamento jurídico aceita a manutenção dos efeitos prático-juridicos produzidos[21].

Tal entendimento é tanto mais de sufragar quanto é certo que, no caso vertente, os autos, após a interposição do presente recurso, que não tem efeito suspensivo-artigo 438 nº3 do Código de Processo Penal, seguiram o seu curso normal e processualmente adequado.[22]

Termos em que se acorda no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o presente recurso extraordinário, revogando-se o acórdão recorrido, e fixar jurisprudência nos seguintes termos:

«Competindo ao Tribunal Central de Instrução Criminal proceder a actos jurisdicionais no inquérito instaurado no Departamento Central de Investigação Criminal para investigação de crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei 47/86, de 15 de Outubro (Estatuto do Ministério Público), por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13 de Janeiro, essa competência não se mantem para proceder à fase de instrução no caso de, na acusação ali deduzida ou no requerimento de abertura de instrução, não serem imputados ao arguido qualquer um daqueles crimes ou não se verificar qualquer dispersão territorial da actividade criminosa.»

Em consequência, determina-se que, oportunamente, o processo seja remetido ao Tribunal da Relação de Lisboa para que seja proferida nova decisão em conformidade com a jurisprudência fixada (artigo 445.º do CPP).

Não é devida taxa de justiça - artigo 513.º, n.º 1, do CPP.

Cumpra-se, oportunamente, o disposto no artigo 444.º n.º 1, do CPP.

[1] O qual julgou improcedente o recurso apresentado pelo Recorrente que tinha por objecto o despacho do Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal, de 21 de Outubro de 2015, que indeferiu o requerimento no qual se pugnava pelo reconhecimento da nulidade insanável daquele despacho que declarou aberta a fase de instrução, por violação das regras de competência material do tribunal de instrução criminal

[2] Na redacção conferida pela Lei 60/98, de 27 de agosto, diploma que alterou ainda a designação daquele diploma para «Estatuto do Ministério Público» (EMP), por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei 3/99, de 13 de Janeiro [actualmente, matéria regulada no n.º 1 do art. 120.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei 62/2013, de 26 de agosto]

[3]Conf Victor Fairen Guillen "Doctrina General del Derecho Procesal" Libreria Bosch Barcelona 1990, pag 247

[4] Direito Processual Penal I Volume Coimbra Editora Coimbra 1974 pag 311 e seg

[5] Constituição da Republica Portuguesa Anotada Coimbra Editora Coimbra 2007 pag 512 e seg

[6] Moreno Catena: Derecho Procesal, 1. II , p. 104.

[7] Aragoneses Martínez: Derecho Procesal Penal, Centro de Estudios Ramón Areces, Madrid, 1996, pp.

[8] Código de Processo Penal Comentado; António H. Gaspar; Santos Cabral; Maia Costa; Oliveira Mendes; Pereira Madeira; Henriques da Graça Edições Almedina 2016 Coimbra pag 48 e seg

[9] Ibidem Código de Processo Penal Comentado.

[10] Conforme Paulo de Sousa Mendes Lições de Direito Processual Penal Almedina Coimbra 2014 pag 110

[11] Ibidem Código de Processo Penal Comentado.

[12] Ibidem pag 517 e seg

[13] Ibidem, pag 321 e seg

[14] Artigo 38.º nº1 - A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

[15] Ibidem pag. 298 e seg.

[16] Sumários de Processo Criminal pag 198

[17] Direito Processual Penal Edição Policopiada da Secção de textos da Faculdade de Direito de Coimbra pag 103

[18] Código de Processo Penal Comentado; António H. Gaspar; Santos Cabral; Maia Costa; Oliveira Mendes; Pereira Madeira; Henriques da Graça Edições Almedina pag 951

[19] Processo Penal, Prova e Sistema Judiciário pag. 215

[20] Sobre a natureza de inquérito importa recordar as palavras de Anabela Rodrigues "O novo Código de Processo Penal-O inquérito no novo Código de Processo Penal pag 65" Ao pretender resolver a situação, um novo Código de Processo Penal só podia fazer do inquérito a fase normal e usual de efectuar a investigação de um crime, a cargo do Ministério Público, que assim retoma em plenitude a sua função tradicional de domínio da investigação criminal pré-judicial, no que passa a ser assistido por órgãos de polícia criminal; e da instrução uma fase facultativa, que só terá lugar se o arguido ou o assistente a requererem, da competência de um juiz de instrução, ao qual caberá decidir sobre o bem fundado da decisão de acusação ou de não-acusação (emitindo despacho de pronúncia ou de não-pronúncia).

[21] Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais, Coimbra Editora, pag. 199, pag.129 e seg.

[22] Tal entendimento é reforçado quando se encontra em causa uma questão de organização do sistema judiciário e não de afectação de direitos ou de garantias processuais

Supremo Tribunal de Justiça, 1 de Fevereiro de 2017. - José António Henriques dos Santos Cabral (Relator - voto vencido em conformidade com a declaração do Exmo. Conselheiro Manuel Matos) - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura - António Pires Henriques da Graça (juntando declaração de vencido) - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Isabel Celeste Alves Pais Martins (vencida - conforme declaração de voto do primeiro Relator, Exmo. Conselheiro Manuel Matos) - Manuel Joaquim Braz - Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira - Nuno de Melo Gomes da Silva (vencido nos termos da declaração do Sr. Conselheiro Manuel Augusto de Matos) - Francisco Manuel Caetano - Manuel Pereira Augusto de Matos (vencido, nos termos da declaração que junto) - Rosa Maria Oliveira Tching (Vencida em conformidade com a declaração do Exmo. Senhor Conselheiro Manuel Matos) - José Vaz dos Santos Carvalho (vencido nos termos da declaração que junto) - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).

Vencido, tendo em conta o seguinte:

O arº 10º do Código de Processo Penal (CPP), refere: "A competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária."

Porém:

O CPP não define a competência material do Tribunal Central de Instrução Criminal

O CPP, apenas define a competência (funcional) do juiz de instrução, no sentido de que: "Compete ao juiz de instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento nos termos previstos neste Código "artº 17º .

*

A questão, objecto do presente recurso de fixação de jurisprudência, não incide sobre a competência territorial, nem sobre competência funcional do juiz de instrução, mas sim, sobre a competência material de um tribunal de competência territorial alargada,

Há, por isso, que pesquisar a Lei de Organização do Sistema Judiciário - Lei 62/2013, de 26/08, com a alteração da Lei 40-A/2016, de 22/12

De harmonia com o seu artº 37º, nº 1:

"1 - Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território".

O artº 40.º debruça-se sobre a competência em razão da matéria, estabelecendo:

"1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada."

Assim, estabelecidas as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada fica determinada a sua competência, em razão da matéria

*

O Tribunal Central de Instrução Criminal é um tribunal de competência territorial alargada - v. art 86º nº 3, al. e), e tem competência definida nos termos do n.º 1, do artigo 120.º

"Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal ou juízo competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei." - Artigo 39.º (Proibição de desaforamento)

Sendo que, conforme artº 38.º, ao versar sobre a fixação da competência:

"1 - A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa."

O conceito de "ação" para efeito jurídico-processual penal, de determinação da competência material do tribunal, deve ser entendido cum grano salis, - apesar de também se utilizar a expressão "acção penal" - pois que, não é o Ministério Público que define a competência material do Tribunal Central de Instrução Criminal, mas sim os factos criminais indiciários, que legalmente tornam consequente a institucionalização da competência, implicitamente assumida pelo Tribunal, na prática de actos jurisdicionais, ao não excepcioná-la, e, por isso, se retroage ao momento da instauração do inquérito, equivalendo este ao exercício da acção penal.(v. aliás, artº 219.ºda Constituição da República, sobre as funções e estatuto do Ministério Público:

1. Ao Ministério Público compete [...] exercer a acção penal [...].)

*

Por outro lado, se a finalidade e âmbito do inquérito compreende "o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação" - artº 262º, nº 1, do CPP, bem pode acontecer que haja desenvolvimentos de facto ocorridos posteriormente ao início do inquérito, resultantes da investigação, que confluam na competência já definida, e assim, também determinada por conexão, nos termos dos artºs 28º e 29º,do CPP, a implicar unidade e apensação de processos..

Note-se, aliás, que mesmo em caso de separação de processos, a prorrogação da competência por conexão mantém-se para os processos separados, nos termos dos artºs 30º e 31º, do CPP, que podem não referir-se a crimes do catálogo.

Pires da Graça

Vencido como relator pelas razões que sucintamente se enunciam:

A questão presente nas decisões judiciais em conflito é a de saber se, sendo o Tribunal Central de Instrução Criminal o competente para proceder a atos jurisdicionais durante o inquérito com fundamento na investigação de crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei 47/86, de 15 de outubro, na redação conferida pela Lei 60/98, de 27 de agosto - Estatuto do Ministério Público» (EMP), por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei 3/99, de 13 de janeiro [atualmente, matéria regulada no n.º 1 do art. 120.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei 62/2013, de 26 de agosto], essa competência se mantém para proceder à fase de instrução, no caso de na acusação ou no requerimento de abertura de instrução (RAI), não serem imputados ao arguido quaisquer dos referidos crimes, ou não se verificar qualquer dispersão territorial da atividade criminosa.

No projecto apresentado, aderiu-se ao entendimento adotado no acórdão recorrido, tendo-se proposto a uniformização de jurisprudência nos seguintes termos:

Competindo ao Tribunal Central de Instrução Criminal proceder a atos jurisdicionais no inquérito instaurado no Departamento Central de Investigação Criminal para investigação de crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei 47/86, de 15 de outubro (Estatuto do Ministério Público), por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13 de janeiro, essa competência mantém-se para a realização da instrução, ainda que na acusação ali deduzida, ou no requerimento de abertura da instrução aí formulado, não sejam imputados ao arguido qualquer um daqueles crimes, ou não se verifique qualquer dispersão territorial da atividade criminosa.

O Código de Processo Penal (CPP) apresenta um modelo para o processo que assenta na consagração do inquérito dirigido pelo Ministério Público como uma fase inicial, necessária e geral de investigação, propondo, complementarmente, uma instrução da competência do juiz de instrução, que será sempre subsequente, pontual e facultativa.

Na sistemática do CPP, a fase preliminar ou preparatória do processo penal compreende o inquérito (subfase do inquérito) e a instrução (subfase da instrução), devendo ter-se sempre em conta ambas as «fases preliminares».

No modelo do CPP, «a instrução constitui uma fase preliminar do processo, judicial, com estrutura acusatória, mas ainda integrada pelo princípio da investigação, tendo como ato obrigatório e essencial uma audiência informal, oral e contraditória, que visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público de acusar ou não acusar» (ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, "As exigências da investigação no processo penal durante a fase da instrução", ("As exigências da investigação no processo penal durante a fase da instrução", Que Futuro para o Direito Processual Penal?, Coimbra Editora, 2009, p. 89).

O juiz de instrução é, no âmbito do processo penal, e de acordo com o conteúdo material das suas competências que estão enunciadas no artigo 17.º do CPP, a autoridade judiciária competente para proceder à instrução, mas também para proceder à pronúncia e para exercer todas as funções jurisdicionais no inquérito, até à remessa do processo para julgamento.

A instrução tem por finalidade o controlo judicial da atividade investigatória do Ministério Público, de comprovação judicial do encerramento do inquérito perante os termos fixados pela acusação pública, pela acusação particular ou pelo requerimento de abertura da instrução. Assim, a atividade do juiz de instrução encontra-se limitada à partida pela fatualidade em relação à qual foi pedida a instrução, pois, não obstante o juiz investigar autonomamente o caso que lhe é submetido, o âmbito e limites da sua intervenção estão determinados no requerimento para a abertura da instrução. Como prescreve o artigo 288.º, n.º 4, do CPP, o juiz de instrução tem de ter em conta a indicação constante do requerimento de abertura da instrução.

A atuação do juiz de instrução há de nortear-se pelas finalidades já indicadas e dentro das balizas referidas, devendo ter-se em conta, como se assinalou, que, relativamente às diligências probatórias, a regra passará pelo aproveitamento do material recolhido no inquérito.

Na organização judiciária, os tribunais de instrução criminal são tribunais de competência especializada, de 1.ª instância, competindo-lhes, conforme artigo 79.º, n.º 1, da Lei 3/99, de 13 de janeiro (LOFTJ), proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, competência presentemente contemplada no artigo 119.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei 62/2013, de 26 de agosto.

O Tribunal Central de Instrução Criminal foi previsto no artigo 80.º, da Lei 3/99, de 13 de janeiro, preceito que, regendo sobre «casos especiais de competência», veio estabelecer que a competência referida naquele artigo 79.º, n.º 1, quanto aos crimes enunciados no n.º 1 do artigo 47.º da Lei 60/98, de 27 de agosto, cabe a um tribunal central de instrução criminal quando a atividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes distritos judiciais.

O TCIC teve, portanto, a sua origem com a criação, pela Lei 60/98, de 27 de agosto,) de uma estrutura de investigação criminal - o Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP), definido no artigo 46.º, n.º 1, desse diploma como «um órgão de coordenação e de direção da investigação e de prevenção da criminalidade violenta, altamente organizada ou de especial complexidade», competindo-lhe, de acordo com o disposto no artigo 47.º, n.º 1, do mesmo diploma, coordenar a direção da investigação dos crimes aí indicados e dirigir o inquérito e exercer a ação penal relativamente a tais crimes, quando a atividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes distritos judiciais - n.º 3, alínea a), do mesmo preceito.

A razão que presidiu à criação do TCIC e, é claro, às competências que lhe foram legalmente deferidas, revelam a existência de uma correlação direta entre essas competências e as do DCIAP.

Nesta perspetiva, o TCIC constitui a autoridade judiciária que desempenha, em exclusivo, as suas competências em inquérito dirigido pelo Ministério Público no DCIAP, nele exercendo todas as funções jurisdicionais previstas na lei, devendo ser chamado a exercer o controlo judicial do encerramento do inquérito aí determinado.

Para PAULO DÁ MESQUITA, «no que concerne aos atos judiciais do inquérito e à fase da instrução existe uma regra paralela à da competência legal do DCIAP (...) no que concerne à competência do tribunal central de instrução criminal» [sublinhado agora] (Direção do Inquérito e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, p. 218, nota 77).

A competência em matéria penal, enquanto medida da jurisdição em matéria penal de cada um dos tribunais, é delimitada nas leis de processo e de organização judiciária em função de critérios objetivos e predeterminados, segundo normas de distribuição territorial (competência territorial), podendo ainda estar ordenada e delimitada, no que respeita ao desenvolvimento do processo dentro de cada instância, mediante competências diversas conforme as fases da promoção e desenvolvimento processual (competência funcional).

Como se lê no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-10-2004 (Processo 04P1139), «a competência em processo penal - a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal predeterminado em função das regras sobre competência material, funcional e territorial - é, por princípio, unitária, respondendo a exigências precisas de determinação prévia do tribunal competente, para prevenir a manipulação avulsa ou arbitrária de competência em contrário do respeito pelo princípio do juiz natural», podendo o princípio, acrescenta-se, «respeitando ainda exigências mínimas, [...] sofrer adequações, previstas na lei e formadas segundo critérios objetivos, organizando-se um só processo para uma pluralidade de crimes, e assim afastando a competência primária relativamente a alguns dos crimes, desde que entre os vários crimes se verifique uma ligação que torne conveniente para melhor realização da justiça que todos os crimes sejam apreciados conjuntamente».

Em função da fase de inquérito, a competência territorial do Ministério Público é determinada, em regra, pelas disposições processuais sobre a competência territorial do tribunal as quais, por sua vez, são correspondentemente aplicáveis ao juiz de instrução, conforme artigo 288.º, n.º 2, do CPP.

Ou seja, a competência territorial do juiz de instrução para a prática de atos que se compreendem na sua competência material e funcional, está definida pelos critérios que determinam a competência material para a realização do inquérito - artigo 79.º, n.º 1, da Lei 3/99 e artigo 119.º, n.º 1, da Lei 62/2013. Neste ponto, citando JOSÉ MOURAZ LOPES, pode afirmar-se que a orgânica judiciária no âmbito da instrução criminal obedece a lógicas pré-definidas decorrentes do Estatuto do Ministério Público (Garantia Judiciária no Processo Penal - Do Juiz e da Instrução, Coimbra Editora, 2000, p. 98).

Relativamente à competência material, o EMP prevê normas especiais de competência, uma das quais se encontra implicada na situação aqui em apreço: no caso de a atividade criminosa decorrer em mais do que um distrito judicial e se inclua em determinado elenco de crimes, a competência para o inquérito cabe ao DCIAP (artigo 47.º, n.º 3, do EMP). Este regime, por sua vez, tem correspondência na definição da competência material e funcional do TCIC, conforme disposto nos artigos 79.º, n.º 1, e 80.º da LOFTJ e, presentemente, nos artigos 119.º e 120.º da LOSJ.

Nos termos do artigo 22.º da LOFTJ, a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, sendo igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.

E, segundo o artigo 23.º do mesmo diploma (artigo 39.º da LOSJ), nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

Estas disposições traduzem a concretização da norma contida no artigo 32º, n.º 9, da Constituição da República, no âmbito das garantias em processo criminal, segundo a qual «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior», consagrando o princípio do «juiz natural» ou do «juiz legal», cuja densificação já foi feita.

Na lição de GERMANO MARQUES DA SILVA, o princípio do juiz natural ou legal «tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver um caso determinado. As normas, tanto orgânicas como processuais, têm de conter regras que permitam determinar o tribunal que há-de intervir em cada caso em atenção a critérios objetivos» (Curso de Processo Penal, 4ª edição, Lisboa 2000, p. 54).

Trata-se de uma garantia de predeterminação por critérios objetivos do tribunal competente para o julgamento, válida para todos os juízes chamados a participar numa decisão, aí se incluindo o juiz de instrução.

A fixação da competência no momento em que a ação se propõe e a irrelevância, como regra, das modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente constitui também a tradução do princípio da perpetuatio jurisdictionis ou perpetuatio fori, no sentido de que a competência do tribunal se fixa com o momento da propositura da ação e que, se o tribunal é competente nesse momento, ele manter-se-á assim até final. Nesta perspetiva, este princípio encontra-se também ao serviço de uma boa administração da justiça e da economia processual pois assegura a continuidade do trabalho judiciário que se mantém incólume relativamente às vicissitudes (de facto e de direito) que possam ocorrer.

Afirma-se no acórdão recorrido que a competência do TCIC no inquérito pendente no DCIAP se encontra legitimada por força das citadas disposições dos artigos 47.º do EMP e 80.º da LOFTJ (artigo 120.º da LOSJ), e que «esta competência inicialmente fixada se arrasta para as fases posteriores do processo incluindo a própria competência para a instrução, apesar do desaparecimento na acusação dos ilícitos criminais no elenco descrito nos normativos relativos à competência do DCIAP e do TCIC já referidos».

Na situação em exame importa apurar se a competência «inicialmente fixada» do TCIC se arrasta, se é prorrogada, para a fase (ou subfase) da instrução, interessando frisar que o encerramento do inquérito onde foi proferido o despacho do Juiz do TCIC e mantido no acórdão indicado como «acórdão recorrido», na sequência do recurso contra ele interposto ocorreu no DCIAP com a prolação de despacho de acusação. Também a situação examinada no acórdão fundamento teve por base um despacho do Juiz do TCIC que se julgou competente para a prática de atos jurisdicionais na fase da instrução requerida por assistentes na sequência da prolação de despacho de arquivamento pelo Ministério Público em inquérito pendente no DCIAP.

Ou seja, a decisão de encerramento do inquérito foi proferida pelo Ministério Público no DCIAP e, no pleno exercício da sua competência legalmente definida, deduziu, num caso, uma acusação, decidindo-se, no outro caso, pelo arquivamento. Ora, tendo esta decisão proferida em inquérito pendente no DCIAP, é razoável que se sustente competir ao juiz do TCIC o controlo judicial daquelas opções. O inquérito - o processo - mantém-se sob a sua jurisdição e apto ao exercício das suas competências em sede de instrução.

A competência territorial do juiz de instrução para a prática de atos que se compreendem na sua competência material e funcional encontra-se definida pelos critérios que determinam a competência material para a realização do inquérito - artigo 79.º, n.º 1, da Lei 3/99 e artigo 119.º, n.º 1, da Lei 62/2013, pois que, como observa JOSÉ MOURAZ LOPES, a orgânica judiciária no âmbito da instrução criminal obedece a lógicas pré definidas decorrentes do Estatuto do Ministério Público (ob. cit., p. 98)

Considera-se, portanto, que o TCIC mantém a competência para proceder à instrução ainda que na acusação ou no requerimento de abertura da instrução não conste qualquer um dos crimes que integram o catálogo do n.º 1 do artigo 47.º do EMP ou se não verifique a dispersão territorial prevista no n.º 3, alínea a) da mesa disposição.

Para este entendimento, adquirem particular relevo as regras consagradas nos citados artigos 32.º, n.º 9, da Constituição da República, 25.º e 26.º da LOFTJ e os princípios aí subjacentes do juiz natural ou legal e da perpetuatio jurisdicionis.

Estas normas dizem respeito ao momento em que se fixa a lei reguladora da competência, e como tal, a lei reguladora da competência será a que estiver em vigor à data da propositura da acção, sendo que, conforme se julga constituir entendimento sedimentado na jurisprudência, a ação penal deverá considerar-se proposta com a instauração do inquérito.

Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-05-2001, proferido no processo 2129/01 - 3.ª Secção, e de 30-01-2001, proferido no processo 110065, em que estava em causa a determinação do momento relevante para a definição da competência.

Lê-se no acórdão de 09-05-2001:

«Ora, parece à primeira vista estranho que a L.O.F.T.J diga que "a competência se fixa no momento em que a ação se propõe", quando é certo que as questões de incompetência podem colocar-se até ao trânsito em julgado da decisão final (n.º 1 do art.º 32.º do C.P.Penal) ou, tratando-se de incompetência territorial, até ao início do debate instrutório ou do julgamento (n.º 2 desse art.º 32.º).

Contudo, se conjugarmos essa disposição da L.O.F.T.J com o art.º 32.º, n.º 7, da Constituição, facilmente se descortinará que o que se fixa no momento em que a ação se propõe é, não a competência de este ou daquele tribunal, mas a lei reguladora da competência.

Adquirido este princípio, resta descortinar em que momento se deve considerar proposta a "ação" penal, conceito que se adequa mais a processos cíveis do que a processos criminais, pelo que teremos de fazer apelo a algum bom senso, de modo a dar alguma coerência à vida e à existência do processo criminal, tal como hoje está configurado.

Com efeito, num primeiro momento, poder-se-ia ser tentado a dizer que só há "ação" penal no momento em que a acusação é presente ao juiz de julgamento, pois, antes disso, ou há inquérito, que é uma fase processual investigatória, de contornos ainda pouco definidos quanto ao objeto e à pessoa, ou há instrução, que é uma fase de mera comprovação judicial da decisão de acusar ou de não acusar. (...)

Todavia, embora sedutora a hipótese de se configurar a acusação, ou, mais propriamente, a entrada em juízo da acusação, como momento definidor da lei reguladora da competência, essa decisão iria provocar falhas e quebras na unidade do sistema. (...)

Quer isto dizer que, em processo criminal, por razões de coerência processual e por razões de melhor aplicação das garantias constitucionais do juiz natural e de não desaforamento do processo, a "ação" deve considerar-se proposta no momento em que há notícia do crime. É aí que o processo nasce e é então que se começam a colocar as questões de competência. (...)

Em suma: a lei reguladora da competência em processo criminal fixa-se no momento em que há notícia do crime. (...)

Fixada do modo referido a lei reguladora da competência, as modificações de facto que ocorrerem posteriormente são irrelevantes (n.º 1 do art.º 22º da L.O.F.T.J.)»

Também no acórdão da Relação de Lisboa de 30-01-2001 se entendeu que a competência se fixa no momento da instauração do processo, com a aquisição pelo Ministério Público da notícia do crime e instauração do respetivo inquérito (sumário em www.dgsi.pt/jtrl).

No mesmo sentido, a decisão proferida em conflito negativo de competência no mesmo Tribunal, de 09-07-2013, onde se considera, referenciando-se variada jurisprudência, que a ação penal se inicia «no momento em que é dado conhecimento do facto criminoso à autoridade judiciária com competência para exercer a ação penal, ou seja, o Ministério Público, por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia. O que significa que o processo se inicia com a aquisição da notícia do crime, nos termos do art. 241.º e ss CPP, pelo que a partir daí existe inequivocamente uma ação penal».

No Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento perfilhado no acórdão recorrido pode ainda encontrar apoio na decisão de 26-10-2015, proferida pelo Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, na qualidade de então Presidente da 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, proferida no recurso n.º 22/13.IGEGMR-A.S1 (conflito de competência), onde se afirma que:

«Apenas cum grano salis se pode considerar que o inquérito só assume a qualidade de "processo judicial" quando a acusação dá entrada em juízo.

Com efeito, a judicialização do processo não acontece apenas a partir da situação referida, já que o processo anterior - o inquérito e (ou) instrução - não deixam de requerer, como se sabe, esta obrigatoriamente, muitas vezes aquele, a intervenção do juiz, embora pontual, em vários atos processuais, como, por exemplo, o interrogatório de arguido detido, a aplicação de medidas de coação, etc.

Seria, portanto, uma simplificação de todo inaceitável, em face da configuração legal do processo penal, considerar que antes daquele ato inicial do "processo judicial" - entrada da acusação a juízo - só existe o vazio, ou seja, a instauração prévia do inquérito e os atos ali praticados seriam de todo irrelevantes.

Não é assim, e já noutras ocasiões o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente pela pena do ora signatário se pronunciou sobre o assunto, como por exemplo no recurso n.º 176/06.3EAPRT-B.P1.S1, 3.ª sec., com decisão de 5/1/2011, onde se dá nota do valor, por exemplo, da importância determinativa da competência do tribunal reportada ao momento em que a denúncia do facto chega ao conhecimento do Ministério Público.

O que se passa antes da acusação, melhor dizendo, no inquérito, não deixa de ser uma tramitação em processo penal, embora numa fase preliminar ainda, tal como resulta da lei, nomeadamente do art. 48.º do Código respetivo, que legitima o Ministério Público para o promover.

Significa isto, que a ação penal, lato sensu, não vê a luz do dia apenas quando a acusação entra em juízo, pois existe mesmo antes de aquela ser deduzida, e, até, quando ela não sobrevém, como quando o inquérito é arquivado por qualquer motivo, nomeadamente por falta de provas.

Assim sendo, o processo penal no amplo sentido que aqui tem de ser configurado, não surge ex novo no momento da acusação, antes, no exato momento em que a notícia do crime chega ao Ministério Público, iniciando-se então o procedimento criminal respetivo nos termos exatos dos artigos 48.º e 53.º, n.º 2 a), do Código de Processo Penal e do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição.

Até porque, como se sabe, o tribunal onde corre o inquérito também não é escolhido arbitrariamente. A competência territorial para tramitar o processo penal - inquérito incluído - está prefixada objetivamente nos artigos 19.º e seguintes do Código de Processo Penal e tal regime de competência impõe-se "ao tribunal" no sentido mais amplo, aqui se abrangendo, portanto, quer a determinação do agente do Ministério Público a quem compete dirigi-lo, quer a do juiz que, porventura, haverá de julgá-lo.

Aliás, o momento da notícia do crime, que, nalguns casos, determina, só por si, a competência territorial de quem há de intervir no processo - é de tal modo relevante que é erigido em critério insuperável de determinação da competência e assim se impõe mesmo ao próprio juiz no "processo judicial", stricto sensu, tal como emerge, nomeadamente do artigo 21.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal».

No sentido de que o processo penal se inicia com a notícia do crime, nesse momento se fixando a competência do tribunal, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito posteriores, exceto se for suprimido o órgão judiciário a que o processo estava afeto ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse, sendo de considerar o inquérito como um «processo pendente», mencionam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-05-1990 (processo 40795), e de 03-10-1990 (processo 41219), publicados no Boletim do Ministério da Justiça n.os 397, p. 354 e 400, p. 541, respetivamente.

Sendo a notícia do crime o momento em que, em meu entender, se fixa a competência do processo criminal, ou seja o momento da propositura da «ação», tal competência terá que abranger toda a sua plenitude, independentemente das fases processuais que ocorram, abrangendo como é óbvio a do juiz de instrução.

O art. 17.º do CPP (...) dispõe que compete ao juiz de instrução «decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento...», quando, na anterior redação, «referia até à remessa do inquérito para julgamento, alteração legislativa que «só pode querer significar que se pretendeu, no conceito de "processo", abarcar todas as situações que a doutrina, por simplificação ou convicção científica, apresenta somente três (inquérito, instrução e julgamento), mas também (...) abrange já a fase da "Notícia do crime", consubstanciada no auto de notícia por detenção em flagrante delito» (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/04/2011, in www.dgsi.pt).

De facto, o CPP utiliza o termo «processo» no sentido de abranger qualquer das fases que engloba o procedimento concreto, como decorre, designadamente, dos artigos 24.º, 51.º, n.º 1, 53.º, n.os 1 e 2, alínea b), 58.º, n.º 1, alínea a), 62.º, n.º 1, 65.º e 68.º, n.º 1.

Em síntese conclusiva, afirma-se, convocando de novo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-05-2001, que «em processo criminal, por razões de coerência processual e por razões de melhor aplicação das garantias constitucionais do juiz natural e de não desaforamento do processo, a "ação" deve considerar-se proposta no momento em que há notícia do crime. É aí que o processo nasce e é então que se começam a colocar as questões de competência».

A lei reguladora da competência em processo criminal fixa-se no momento em que há notícia do crime, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente são irrelevantes (n.º 1 do art.º 22º da L.O.F.T.J.).

Integrando o inquérito uma fase do processo, com a mesma dignidade da instrução, deve ser considerada proposta a ação para efeitos da definição da competência, quando o inquérito é instaurado.

Ora, nas situações fácticas que geraram a necessidade de uniformização da jurisprudência, no momento em que foi instaurado o inquérito, estavam presentes os requisitos do artigo 47.º da LOMP, aí se fixando, pois, a competência do TCIC.

Assim estando a competência do TCIC fixada desde o início nos termos expostos, com o respeito que merece o entendimento que obteve vencimento, não se descortina fundamento legal que justifique que a mesma lhe seja retirada no momento da realização da instrução ainda que o objeto do processo no momento em que é requerida a instrução não coincida com o objeto primitivo já que foi este, reafirma-se, aquele que determinou a competência daquele tribunal.

A competência do juiz de instrução é unitária e encontra-se legalmente predeterminada, assim se «respondendo a exigências precisas de determinação prévia do tribunal competente, para prevenir a manipulação avulsa ou arbitrária de competência em contrário do respeito pelo princípio do juiz natural» (citou-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-10-2004, proferido no processo 4P1139).

Atuando como «juiz das liberdades» durante o inquérito e competindo-lhe, pontualmente, comprovar a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, afigura-se-nos claro e em perfeita coerência com as normas que definem e predeterminam a sua competência material, funcional e territorial, que caiba ao juiz do TCIC a comprovação judicial da decisão final do Ministério Público no DCIAP em inquérito aí instaurado e tramitado.

Cumpre frisar que o entendimento que se perfilha não afronta o princípio da vinculação temática da instrução ao objeto delimitado pela acusação ou pelo requerimento de abertura da instrução. Estamos aqui perante dois planos ou perspetivas diferentes e autónomos. Na verdade, como salienta o Ministério Público neste Supremo Tribunal nas suas alegações, «uma situação é a fixação do objeto do processo enquanto limite da atividade cognitiva e decisória do tribunal, outra são as regras de estabelecimento de competência material para conhecer de certas matérias, o que não é confundível».

Em face do exposto, negaria provimento ao recurso interposto, mantendo-se o acórdão recorrido, fixando-se jurisprudência nos seguintes termos:

«Competindo ao Tribunal Central de Instrução Criminal proceder a atos jurisdicionais no inquérito instaurado no Departamento Central de Investigação Criminal para investigação de crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei 47/86, de 15 de outubro (Estatuto do Ministério Público), por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13 de janeiro, essa competência mantém-se para a realização da instrução, ainda que na acusação ali deduzida, ou no requerimento de abertura da instrução aí formulado, não sejam imputados ao arguido qualquer um daqueles crimes, ou não se verifique qualquer dispersão territorial da atividade criminosa».

Manuel Augusto de Matos

«Votei vencido nos termos da declaração de voto do Colega Manuel Augusto de Matos, à qual gostava de acrescentar dois breves comentários.

O primeiro tem a ver com o conceito de "competência aberta" do Juiz de Instrução Criminal chamado a intervir na fase de inquérito, a que o Acórdão que fez vencimento apela. Por muito sedutor que tal conceito aparente ser, cria-se assim o juiz com competência material "à la carte", isto é, um juiz "precário", circunstância que é contrária às garantias próprias do processo penal justo e equitativo, de que faz parte o "juiz natural".

O segundo é o de que o acórdão que fez vencimento não leva em conta o disposto no art.º 27.º do CPP que indica que «Se os processos conexos devessem ser da competência de tribunais de diferente hierarquia ou espécie, é competente para todos o tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada», pelo que, no caso concreto, o TCIC é competente, logo que chamado a intervir, para os crimes de catálogo e também para outros crimes que não sendo de catálogo estão com eles conexos, não devendo ser-lhe retirada essa competência original para conhecer de todos os crimes investigados»

Santos Carvalho

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2914637.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1986-10-15 - Lei 47/86 - Assembleia da República

    Aprova a orgânica do Ministério Público.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-27 - Lei 60/98 - Assembleia da República

    Altera a orgânica do Ministério Público, aprovada pela Lei nº 47/86 de 15 de Outubro passando a denominar-se Estatuto, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 1999-01-13 - Lei 3/99 - Assembleia da República

    Aprova a lei de organização e funcionamento dos Tribunais Judiciais.

  • Tem documento Em vigor 2013-08-26 - Lei 62/2013 - Assembleia da República

    Estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário - Lei da Organização do Sistema Judiciário.

  • Tem documento Em vigor 2016-12-22 - Lei 40-A/2016 - Assembleia da República

    Primeira alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto

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