Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 1/2017
Acórdão do STA de 17 de novembro de 2016, no Processo 408/16
Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1 - Relatório
Ministério da Administração Interna - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras vem interpor recurso para uniformização de jurisprudência, ao abrigo do disposto no artigo 152.º, n.º 1, alínea a) do CPTA.
Em alegações formula as seguintes conclusões:
1.ª
Os processos de impugnação judicial de recusa de admissibilidade do pedido de proteção internacional configuram, nos termos da legislação aplicável, processos gratuitos (cf. Artigo 84.º da citada lei de Asilo).
2.ª
Inversamente, o Douto Acórdão de que ora se recorre (transitado em julgado em 05 do corrente mês) assim não entende, omitindo in toto a Lei 26/2014 de 5 de Maio e concluindo que, a legislação nacional não prevê, atualmente, uma isenção de custas para os processos de asilo e de proteção subsidiária, mas tão só a concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
3.ª
O ora recorrente, em total discordância, mas, uma vez vinculado àquele, pugna na senda dos vereditos supra aludidos (in artigos 8.º e 9.º), que aplicam, sem reservas, o referido preceito legal. - "Sem custas - artigo 84.º da Lei 27/2008, de 30/6" - Sic - STA in Recursos n.º 63/2015 (Proc. n.º 11440 e n.º 1331/14 Proc. n.º 10821/14, do TCA Sul).
4.ª
Entendimento que, aliás, tem sido seguido transversalmente pelos tribunais administrativos de primeira instância.
5.ª
A contradição verificada, mina, por outro lado, o entendimento do recorrente sobre o procedimento a seguir nas diferentes fases administrativas sob a sua esfera, porquanto, o citado artigo 84.º não distingue a fase administrativa da fase judicial, fazendo assim crer, que o entendimento quanto a esta matéria é igual, quer estejamos na fase administrativa, quer na fase de contencioso.
6.ª
Por outro lado, a estatuída prerrogativa, não é também excecionada, na fase judicial, consoante se trate da Administração, ou do requerente de asilo.
7.ª
Aliás, pese embora a alteração ocorrida em 2014 (Lei 26/2014), no que concerne a esta temática, não se verifica qualquer mudança.
8.ª
Acresce, que o invocado 75/2000, de 9 de Maio, 35 781, de 5 de Agosto de 1946 e 108/2006, de 8 de Junho.">Decreto-Lei 34/2008, de 26.02, sendo uma lei de caráter geral, não prevalece sobre o diploma de asilo, contido na Lei 27/2008, não só, por um lado, em face da já arguida especialidade deste, mas outrossim, face à impossibilidade temporal, pois sendo anterior à Lei 26/2014, não pode cominar esse efeito (revogação).
9.ª
Em suma, imperioso se mostra, quanto a esta matéria, pelas razões aqui alegadas, a necessidade de uniformizar a jurisprudência.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 146.º, n.º 1 do CPTA, não tendo sido emitido parecer.
Por despacho da relatora proferido em 11.05.2016, foi o recorrente convidado a indicar apenas um acórdão fundamento. O que fez em 19.05.2016, indicando, como acórdão fundamento, o acórdão proferido neste STA no processo 1331/14, em 05.02.2015.
Cumpre decidir.
2 - Os Factos
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido de 16.12.2015, pelo TCAS, do seguinte teor:
1) A petição inicial da presente acção foi remetida ao TAC de Lisboa por telecópia em 30.04.2015, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual A ... impugna a decisão do Director Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de não admissibilidade de asilo e protecção subsidiária, proferida em 27.04.2015, e solicita a sua invalidação, bem como a concessão de asilo ou, assim não se entendendo, a protecção subsidiária, nos termos do artigo 7.º da Lei 27/2008, de 30/6.
2) Em 20.5.2015 foi proferida decisão final, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a qual julgou totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, absolveu a entidade demandada do pedido.
3) Em 8.6.2015, A ... remeteu ao TAC de Lisboa, por telecópia, requerimento de interposição de recurso - e respectivas alegações - da decisão descrita em 2).
4) Em 31.7.2015 foi proferido, neste TCA Sul, acórdão que apreciou esse recurso jurisdicional e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual se consignou designadamente o seguinte:
«Do exposto resulta que procede a nulidade processual invocada, pois falta a notificação a dar a conhecer à recorrente que o processo administrativo tinha sido junto a esta acção, pelo que deverá ser anulada a sentença recorrida (cf. artigo 195.º n.º 2, do CPC de 2013), bem como ordenada a baixa dos autos ao TAC de Lisboa para aí se proceder a essa notificação e, decorrido que seja o prazo do contraditório (e após decisão de eventuais requerimentos que sejam apresentados na sequência de tal notificação), à prolação de nova sentença.
Face à procedência desta questão fica prejudicado o conhecimento das restantes questões também suscitadas pela recorrente.
As custas ficam a cargo da parte vencida a final, já que a isenção prevista no artigo 84.º, da Lei 27/2008, de 30/6, foi revogada pelo artigo 25.º, n.º 1, do DL n.º 34/2008, de 26/2 (e sem prejuízo, no que à recorrente diz respeito, da decisão proferida pela Segurança Social relativamente ao pedido de apoio judiciário que formulou, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo).
III - Decisão
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:
I - Conceder provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência:
a) Anular a sentença recorrida.
b) Ordenar a baixa dos autos ao TAC de Lisboa, a fim de aí proferida nova sentença, depois de realizada a notificação acima descrita.
II - Custas pela parte vencida a final.»
3 - O Direito
3.1 - Pressupostos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência
No processo que deu origem ao presente recurso para uniformização de jurisprudência A ... intentou no TAC de Lisboa acção de impugnação da decisão do Director Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de não admissibilidade de asilo e protecção subsidiária, proferida em 27.04.2015, solicitando a sua invalidação, bem como a concessão do asilo ou, assim não se entendendo, da protecção subsidiária, nos termos do artigo 7.º, da Lei 27/2008, de 30/6.
Por sentença de 20.05.2015, o TAC de Lisboa julgou a acção improcedente.
Interposto recurso desta decisão veio o TCAS a anulá-la, por acórdão de 31.07.2015, determinando a baixa dos autos.
Mais se decidindo que as custas do processo ficariam a cargo da parte vencida a final.
O MAI pediu a reforma daquele acórdão quanto a custas, vindo a ser proferido o acórdão recorrido, datado de 16.12.2015, que indeferiu esse pedido de reforma, «mantendo o acórdão proferido em 31.7.2015, no segmento em que determinou que as custas ficam a cargo da parte vencida a final».
O acórdão fundamento foi proferido por este Supremo Tribunal Administrativo, em 05.02.2015, no processo 1331/14.
Ambos os acórdãos transitaram em julgado.
Após o trânsito vem o Recorrido MAI interpor o presente recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos do artigo 152.º do CPTA, invocando existir uma contradição entre o acórdão impugnado do TCAS proferido em 16.12.2015, e o acórdão do STA, de 05.02.2015, no processo 1331/14.
O recurso para uniformização de jurisprudência, previsto no artigo 152.º, n.º 1, alínea a) do CPTA, tem como requisitos de admissão, no que agora interessa, que exista contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, entre acórdão do TCA e outro acórdão anterior do STA, proferidos ambos no mesmo quadro legal. E que se verifique o trânsito em julgado, quer do acórdão recorrido, quer do acórdão fundamento.
No caso em apreço verifica-se que o acórdão fundamento foi proferido neste STA em 05.02.2015 e o acórdão recorrido no TCAS em 16.12.2015 e que ambos transitaram em julgado.
No acórdão recorrido entendeu-se serem devidas custas nos processos em que está em causa a concessão do direito de asilo ou protecção subsidiário, previstos na Lei 27/2008, de 30/6, por se haver entendido que «a isenção prevista no artigo 84.º, da Lei 27/2008, de 30/6, foi revogada pelo artigo 25.º, n.º 1, do DL 34/2008, de 26/2».
Já no acórdão fundamento, proferido em processo da mesma natureza, quanto a custas a decisão foi a seguinte:
«Sem custas - artigo 84.º da Lei 27/2008, de 30.06».
A questão fundamental de direito é a de saber se são, ou não devidas custas nos processos a que respeita a Lei 27/2008, face ao que dispõe o artigo 84.º desse diploma, que o acórdão recorrido considera revogado, e o acórdão fundamento aplicou, considerando não serem devidas custas.
Há, pois, contradição entre os dois acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito, devendo, consequentemente, ser admitido o presente recurso para uniformização de jurisprudência.
3.2 - Do Mérito
A questão de direito que cumpre apreciar e decidir no presente recurso para uniformização de jurisprudência é a de saber se o artigo 84.º da Lei 27/2008, de 30/6 se mantém, ou não, em vigor.
O artigo 84.º da Lei 27/2008 previa na sua redacção originária que os processos de concessão ou de perda de direito de asilo ou de protecção subsidiária fossem gratuitos quer na sua fase administrativa quer na judicial.
Entendeu o acórdão recorrido que este preceito teria sido revogado face ao que se encontra disposto nos artigo 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, ambos do DL n.º 34/2008, de 26/2 (que aprovou o Regulamento das Custas Processuais [doravante RCP]), que revogou as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, e não previstas nesse diploma.
Considerou-se, portanto, que se estaria perante uma isenção de custas, a qual teria deixado de estar contemplada no novo RCP (cf. respectivo artigo 4.º, n.os 1 e 2).
Cita em abono da tese que defende o acórdão deste STA de 18.06.2015, processo 61/15, no qual se sumariou o seguinte: «O artigo 25.º, n.º 1, do DL n.º 34/2008, de 26/2, revogou todas as pretéritas isenções de custas que o RCP não manteve, designadamente a prevista no artigo 48.º, n.º 2, do DL n.º 503/99, de 20/11».
No entanto, a jurisprudência deste acórdão não é aplicável ao caso em apreço, por não estar prevista neste tipo de processos uma isenção de custas (como acontecia na situação tratada no referido aresto).
A Lei 27/2008, foi alterada pela Lei 26/2014, de 5/5, dispondo na sua actual redacção [a aqui aplicável por já então se encontrar em vigor], artigo 84.º, o seguinte:
«Os processos de concessão ou de perda do direito de asilo ou de proteção subsidiária e de expulsão são gratuitos e têm carácter urgente, quer na fase administrativa quer na judicial.»
Ora, quer na actual redacção do citado artigo 84.º da Lei 27/2008, quer na anterior (em tudo semelhantes), o que se prevê é a gratuitidade dos processos respeitante às situações em causa nesta Lei, tanto na sua fase administrativa como judicial, e não uma isenção de custas, pelo que o regime assim contemplado não está abrangido pelo RCP.
O regime previsto no artigo 84.º da Lei 27/2008, por não ser de isenção de custas, mas antes de gratuitidade na tramitação dos processos nela contemplados, teve em conta a especial vulnerabilidade e fragilidade da situação dos respectivos requerentes de asilo, atribuindo-lhe, entre outros, esse direito especial a um processo gratuito (cf. as Directivas n.os 2004/83/CE e 2005/85/CE do Conselho, de 29/4 e 1/12, respectivamente).
E, não há quaisquer dúvidas de que o legislador quis manter esse direito ao processo gratuito, pois deixou intocada na alteração que introduziu com a Lei 26/2014, a norma constante do artigo 84.º da Lei 27/2008, quando poderia tê-la alterado ou suprimido, aplicando-se então aos requerentes de asilo o regime geral da lei de acesso ao direito e aos tribunais (o qual se defendeu ser o aplicável no acórdão recorrido).
E, não pode entender-se que um diploma de carácter geral, como é o RCP, possa ter revogado uma lei especial e posterior - a Lei 27/2008, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei 26/2014.
Ora, se o legislador da lei especial posterior quis configurar, mantendo, um regime de gratuitidade de determinados processos, não ignorando, como não ignorava, certamente, o regime geral quanto a custas estabelecido no RCP, foi porque entendeu que os processos constantes da Lei 27/2008 pela sua especial natureza deviam obedecer a esse regime especial de gratuitidade.
Assim sendo, afigura-se-nos também que essa gratuitidade não pode restringir-se apenas aos requerentes do estatuto de refugiado, mas estende-se, de igual modo, à administração enquanto parte no litígio.
Com efeito, na fase judicial é sabido que há uma parte - a administração - que defende interesses opostos ao do requerente do estatuto de refugiado.
Ora, se o legislador tivesse querido que o processo apenas tivesse carácter gratuito para os requerentes daquele estatuto tê-lo-ia expressado no texto legal. Se o não fez foi porque entendeu ser a solução mais correcta que esse tipo de processo fosse gratuito para os seus intervenientes, requerente de asilo e/ou Administração Pública (cf. artigo 9.º do CC).
Foi o que entendeu, e bem, o acórdão fundamento ao decidir em matéria de custas, não serem devidas, atento o disposto no artigo 84.º da Lei 27/2008.
Pelo exposto, acordam no pleno da Secção do Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e deferindo o pedido de reforma no sentido de não serem devidas custas, atento o disposto no artigo 84.º da Lei 27/2008, de 30/6, fixando-se a seguinte jurisprudência «Os processos de impugnação judicial no âmbito da concessão de asilo ou protecção subsidiária configuram-se, nos termos do artigo 84.º da Lei 27/2008, de 30/6, como processos gratuitos».
Sem custas.
Publique-se (artigo 152.º, n.º 4 do CPTA).
Lisboa, 17 de Novembro de 2016. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Vítor Manuel Gonçalves Gomes - Alberto Acácio de Sá Costa Reis - Jorge Artur Madeira dos Santos - António Bento São Pedro - Carlos Luís Medeiros de Carvalho - José Augusto Araújo Veloso - José Francisco Fonseca da Paz - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano - Ana Paula Soares Leite Martins Portela.