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Acórdão 360/2016, de 4 de Janeiro

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Sumário

Não julga inconstitucional interpretação normativa retirada dos artigos 383.º a 386.º do Código dos Valores Mobiliários (processo de averiguações promovido pela CMVM) e interpretação normativa retirada dos artigos 116.º e 120.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, 361.º do Código dos Valores Mobiliários, 41.º e 54.º do Regime Geral das Contraordenações, e 126.º e 261.º do Código de Processo Penal (supervisão dos Reguladores, dever de colaboração e prova em processo sancionatório)

Texto do documento

Acórdão 360/2016

Processo 563/2015

2.ª Secção

Relator: Cons.ª Ana Guerra Martins

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1 - Nos presentes autos vindos da 8.ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, em que são recorrentes Filipe de Jesus Pinhal, Jorge Manuel Jardim Gonçalves e António Manuel Seabra Melo Rodrigues e recorrido o Ministério Público, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), foram interpostos três recursos, respetivamente em 10 de março de 2015 (fls. 16 667 e 16 668), em 18 de março de 2015 (fls. 16 719 a 16 743), e em 20 de maio de 2015 (fls. 16 780 a 16783), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de fevereiro de 2015 (fls. 16 300 a 16 651), que decidiu julgar não providos todos os recursos.

Quanto ao primeiro e último recorrentes, o Tribunal proferiu, em 12 de novembro de 2015 (fls. 16825 a 16843), a Decisão Sumária n.º 710/2015 que foi por ambos objeto de reclamação que este Tribunal indeferiu através do Acórdão 265/2016, de 4 de maio de 2016. Relativamente ao segundo recorrente, o Tribunal proferiu, também em 12 de novembro de 2016 (fls. 16813 a 16824), despacho no qual, por um lado, decidiu não conhecer de quatro das seis questões de constitucionalidade suscitadas por não se encontrarem verificados todos os pressupostos processuais exigidos pelo artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional e, por outro lado, mandou alegar quanto às restantes duas questões de constitucionalidade, tendo, no entanto, o recorrente sido alertado para a possibilidade de não conhecimento das mesmas, em virtude de o preenchimento dos requisitos da normatividade e da ratio decidendi se afigurar duvidoso.

2 - Notificado para o efeito, o recorrente produziu as suas alegações, em 17 de dezembro de 2015 (fls. 16946 a 16998), tendo concluído o seguinte:

"Conclusões:

1 - Os artºs 383.º a 386.º do CdVM, ao permitirem que a CMVM, obtido o conhecimento de factos que possam vir a ser qualificados como crime contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, possa instaurar e promover um processo de averiguações, para apurar a possível existência da notícia de um crime contra o mercado de valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de qualquer processo formalmente organizado, são inconstitucionais, por violação dos artºs 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, e 219.º, da CRP. Por maioria de razão,

2 - A norma extraída dos artºs 383.º a 386.º do CdVM e dos artºs 48.º e 262.º do CPP, interpretada no sentido de que, após instaurado processo de inquérito penal, a CMVM pode, por sua própria iniciativa, promover averiguações para apurar a possível existência da notícia de um crime pertencente ao âmbito temático do inquérito em curso, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de qualquer processo formalmente organizado, é, em tal interpretação, inconstitucional, por violação dos artºs 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, e 219.º, da CRP.

3 - Pelos motivos invocados, a interpretação apontada também viola o artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP, e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

4 - Com efeito, trata-se de uma interpretação que briga com o Estatuto do Ministério Público, fundado na defesa imparcial da legalidade democrática e dos direitos à privacidade dos cidadãos.

5 - A permissão de existência de "pré-inquéritos" ou de "para-inquéritos", tramitados à revelia de qualquer processo formalmente organizado, e com aplicação dos princípios e regras de direito processual penal, durante um período indeterminado de tempo, viola o direito ao processo equitativo e as garantias de defesa dos cidadãos em matéria sancionatória. A possibilidade de utilização dos elementos probatórios assim recolhidos, no quadro de um processo penal, briga, frontalmente, com o artigo 32.º, n.º 8, da CRP.

6 - A norma extraída dos artºs 116.º e 120.º do RGICSF, artigo 361.º do CdVM, artºs 41.º e 54.º do RGCO, e artºs 126.º e 261.º do CPP, interpretada no sentido de que, após notícia do ilícito e fora do quadro de um processo sancionatório formalmente organizado, os Reguladores podem intimar os supervisionados visados a fornecer documentação, sob cominação de sanção por incumprimento do dever de colaboração, podendo essa documentação assim obtida ser utilizada como prova contra o visado/Arguido e/ou outros, em processos sancionatórios futuros, é, em tal interpretação, inconstitucional, por violação dos artºs 2.º, 3.º, 13.º, 16.º, 18.º, 20.º, n.º 4, 29.º, 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, da CRP.

7 - Pelos motivos invocados, a interpretação apontada viola também o artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP, e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

8 - Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Jurisprudência do TEDH, o seguinte:

"A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos direitos do Homem fornece, hoje, um lastro jurisprudencial de interconstitucionalidade em sede de direitos fundamentais que, progressivamente, se vai incorporando na densificação normativa e decisória jurisprudencial dos programas constitucionais e das normas e princípios consagradores dos direitos fundamentais [...]."

9 - Trata-se, assim, de uma norma que viola frontalmente o artigo 6.º da CEDH, aplicável ex vi artigo 16.º da CRP, tal como tem vindo a ser densificado pela jurisprudência do TEDH, de onde decorre a proibição de uso de meios coercivos para obtenção de informação suscetível de incriminar a pessoa do visado em processo sancionatório pendente ou antecipável [...].

10 - Tal norma viola, igualmente, os artºs 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, 29.º, 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10 da CRP, porquanto briga com (i) a ideia de Estado Direito Democrático, cuja atividade se subordina à Constituição e à lei, (ii) o princípio da presunção de inocência, (iii) a tutela jurisdicional efetiva, (iv) o processo equitativo, (v) as garantias de defesa, (vi) o princípio do acusatório, do contraditório, da lealdade e legalidade processuais, (vii) e o princípio da proibição de não autoinculpação em processo sancionatório.

11 - Trata-se, também, de uma interpretação que viola o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, por pressupor e implicar um tratamento desigual, injustificado e desnecessário, dos Arguidos, em matéria de mercado dos valores mobiliários e sistema financeiro, sem paralelo noutros processos de natureza sancionatória.

12 - Por fim, é uma interpretação que viola o artigo 18.º, n.os 1 e 2, da CRP, uma vez que atenta contra o núcleo essencial do processo leal e equitativo e da proibição de não autoincriminação, em favor do Regular funcionamento dos Mercados e do Sistema Financeiro, e fá-lo sem que estes últimos sejam alvo de qualquer compressão, violando o princípio da concordância prática. Esta disposição mostra-se também corrompida, atenta a desnecessidade de recurso aos ditos meios para instruir, investigar e decidir processos contraordenacionais e penais.

13 - Declarando as inconstitucionalidades indicadas nas precedentes conclusões 2 e 6, farão Vossas Excelências"

3 - Notificado para o efeito, em 2 de fevereiro de 2016 (fls. 17005 a 17024), veio o Ministério Público apresentar as suas contra-alegações, de onde se retiram as seguintes conclusões:

"3. CONCLUSÃO

Primeira questão de constitucionalidade

1 - A interpretação dos artigos 383.º a 386.º do CVM, no sentido de permitir que, obtido o conhecimento de factos suscetíveis de ser qualificados como crimes contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, a CMVM possa instaurar e promover um processo de averiguações para apurar a possível existência, da notícia de um crime, sem a fixação expressa de um limite temporal, não viola qualquer das normas constitucionais indicadas pelo recorrente, maxime os artigo 32.º, nºs 1 e 5 e 219.º da Constituição, não sendo, por isso inconstitucional.

Segunda questão de inconstitucionalidade.

2 - Porque a interpretação questionada não foi aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, não deverá conhecer-se, nesta parte, do objeto do recurso.

3 - A possibilidade de serem usados como prova em processo criminal os documentos que a CMVM e o Banco de Portugal obtiverem no exercício das suas funções de supervisão ao abrigo dos deveres de cooperação, cujo incumprimento é sancionável (artigos 358.º, 360.º, 361.º e 381.º do CVM e 116.º e 120.º do RGICFS), não viola nenhuma das normas constitucionais que o recorrente refere, não se verificando, consequentemente, qualquer inconstitucionalidade.

4 - Pelo exposto, a conhecer de mérito quanto às duas questões, deve ser negado provimento ao recurso."

Posto isto, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

A) Delimitação das questões a apreciar

4 - Nos autos ora em apreciação discute-se a constitucionalidade de duas interpretações normativas (e apenas duas), a saber:

(i) a questão da alegada interpretação normativa retirada dos artigos 383.º a 386.º do Código dos Valores Mobiliários («CVM»), com o sentido de permitir "que, obtido o conhecimento de factos suscetíveis de ser qualificados como crimes contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, a CMVM possa instaurar e promover um processo de averiguações para apurar a possível existência, da notícia de um crime, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de um processo formalmente organizado, (.) por violação dos art.s 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, e 32.º n.os 1, 5,8 e 10, e 219.º, da CRP"; e

(ii) a questão da alegada interpretação normativa retirada "dos artigos 116.º e 120.º do RGICSF, artigos 361.º do CdVM, artigos 41.º e 54.º do RGCO, e artigos 126.º e 261.º, do CPP", com o "sentido de que, após notícia do ilícito, os Reguladores podem intimar os supervisionados visados a fornecer documentação, sob cominação de sanção por incumprimento do dever de colaboração, fora do quadro de um processo sancionatório formalmente organizado, podendo essa documentação assim obtida, ser utilizada como prova contra o visado/Arguido e/ou outros, em processos sancionatórios futuros" [...] "por violação dos artigos 2.º, 3.º, 13.º, 16.º, 18.º, 20.º, n.º 4, 29.º, 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, da CRP", bem como do "artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP, e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem".

Importa ainda salientar, por um lado, que o recorrente, nas suas alegações, acaba por fazer várias considerações que têm que ver com questões de legalidade (e não de constitucionalidade), as quais escapam ao crivo do Tribunal Constitucional.

Com efeito, a título de exemplo, quando o recorrente afirma que "a ideia de que a CMVM teria estado mais de 7 meses a recolher prova em sede de «averiguações preliminares», no quadro dos artºs 383.º e 385.º, do CdVM, não tem o menor respaldo na lei e viola as competências e estatuto do Ministério Público, constitucionalmente consagrado (vide artigo 219.º da CRP)" (fl. 16965), que "tendo o Ministério Público concluído pela existência de «notícia do crime», ordenando a abertura de inquérito, em 21 de dezembro de 2007, não tem qualquer sentido defender-se que os atos praticados pela CMVM, após essa data, e durante um ano (ou, pelo menos, durante sete meses, cf. despacho de fls. 52 dos autos), o foram ao abrigo dos artºs 383.º e 385.º do CdVM" (fl. 16966), que "o processamento de uma investigação secreta e desleal, como a que ocorreu nos processos movidos pelo BdP e pela CMVM, violou, como se disse, as garantias de defesa do arguido BCP (cf. artºs 20.º, n.º 4, 32.º, n.os 1, 2, 5, 8 e 10, da CRP), o que inquina toda a fase de investigação de nulidade absoluta, insanável, invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso" (fl. 16983), ou que "a prova que foi recolhida antes e após a abertura formal daqueles processos de contraordenação íntegra o conceito de prova de valoração proibida, o que gera a respetiva nulidade insanável, nos termos dos artºs 126.º e 122.º, n.º 1, do CPP, aplicáveis ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, bem como das ulteriores provas obtidas por seu intermédio o que faz cair por terra os referidos processos contraordenacionais" (fls. 16992 e 16993), está, em boa verdade, a referir-se a questões de mera legalidade, que não vão ser apreciadas nos presentes autos, por falta de competência deste Tribunal.

Por outro lado, o recorrente também acaba por enunciar outras questões de constitucionalidade além das duas relativamente às quais a Relatora o mandou notificar para produzir alegações, as quais não devem igualmente ser consideradas por este Tribunal. Com efeito, o objeto do recurso de constitucionalidade é fixado no requerimento inicial apresentado pelo próprio recorrente, não devendo ser modificado posteriormente, a menos que se proceda à sua restrição.

Mais concretamente, as interpretações normativas adicionais que o recorrente enunciou nas conclusões das suas alegações, nomeadamente, de que "[a] permissão de existência de "pré-inquéritos" ou de "para-inquéritos", tramitados à revelia de qualquer processo formalmente organizado, e com aplicação dos princípios e regras de direito processual penal, durante um período indeterminado de tempo, viola o direito ao processo equitativo e as garantias de defesa dos cidadãos em matéria sancionatória. A possibilidade de utilização dos elementos probatórios assim recolhidos, no quadro de um processo penal, briga, frontalmente, com o artigo 32.º, n.º 8, da CRP" (fl. 16996) e que "[a] norma extraída dos artºs 116.º e 120.º do RGICSF, artigo 361.º do CdVM, artºs 41.º e 54.º do RGCO, e artºs 126.º e 261.º do CPP, [com o] sentido de que, após notícia do ilícito e fora do quadro de um processo sancionatório formalmente organizado, os Reguladores podem intimar os supervisionados visados a fornecer documentação, sob cominação de sanção por incumprimento do dever de colaboração, podendo essa documentação assim obtida ser utilizada como prova contra o visado/Arguido e/ou outros, em processos sancionatórios futuros, é, em tal interpretação, inconstitucional, por violação dos artºs 2.º, 3.º, 13.º, 16.º, 18.º, 20.º, n.º 4, 29.º, 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, da CRP" (fls. 16996 e 16997), não fazem parte do objeto do recurso de constitucionalidade em apreciação nos presentes autos, pelo que não devem ser conhecidas.

Em conclusão, o Tribunal apenas apreciará as duas questões de constitucionalidade acima enunciadas, que, por uma questão de clareza, serão tratadas seguidamente de forma autónoma.

B) Primeira questão de constitucionalidade suscitada

5 - A primeira questão colocada pelo recorrente consiste em saber se a interpretação normativa retirada dos artigos 383.º a 386.º do CVM, no sentido de permitir "que, obtido o conhecimento de factos suscetíveis de ser qualificados como crimes contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, a CMVM possa instaurar e promover um processo de averiguações para apurar a possível existência, da notícia de um crime, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de um processo formalmente organizado", contraria os artigos 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, 32.º n.os 1, 5, 8 e 10, e 219.º, todos da Constituição da República Portuguesa («CRP»).

A resposta a esta questão depende, em primeiro lugar, da clarificação do regime jurídico que resulta dos artigos 383.º a 386.º do CVM referentes à temática do processo de averiguações preliminares pela CMVM.

Nos termos do artigo 383.º do CVM, "obtido o conhecimento de factos que possam vir a ser qualificados como crime contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, pode o Conselho Diretivo da CMVM determinar a abertura de um processo de averiguações preliminares" (n.º 1), as quais "compreendem o conjunto de diligências necessárias para apurar a possível existência da notícia de um crime contra o mercado de valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros" (n.º 2).

Por sua vez, no n.º 1 do artigo 385.º do CVM constam as prerrogativas da CMVM no âmbito do processo de averiguações preliminares, de entre as quais se devem destacar a possibilidade de "[s]olicitar a quaisquer pessoas ou entidades todos os esclarecimentos, informações, documentos, independentemente da natureza do seu suporte, objetos e elementos necessários para confirmar ou negar a suspeita de crime contra o mercado de valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros" (alínea a)).

É ainda de salientar que as diligências que se possam traduzir em restrições de direitos, têm de ser autorizadas pela autoridade judiciária competente, seja o Ministério Público ou o juiz competente, conforme os casos (cf. n.os 4 a 8 do artigo 385.º do CVM).

Por fim, de acordo com o disposto no artigo 386.º do CVM, "[c]oncluído o processo de averiguações preliminares e obtida a notícia de um crime, o conselho diretivo da CMVM remete os elementos relevantes à autoridade judiciária competente."

O processo das averiguações preliminares situa-se entre a prevenção e a supervisão levada a cabo por entidades administrativas e o início da investigação criminal, tendo origem na existência de um desfasamento entre as respostas existentes para atalhar a criminalidade tradicional e as necessárias para enfrentar a criminalidade económica e financeira coloca novos e complexos desafios.

É pois neste contexto que devem ser enquadradas as autoridades administrativas, como a CMVM, cujas «atribuições e competências legais interferem, entre outros aspetos, com a forma como se conhecem esses factos e se recolhe prova sobre os mesmos, sem que tais entidades sejam, em regra, consideradas órgãos de polícia criminal» (cf. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Novo Regime dos Crimes e Contraordenações no Código dos Valores Mobiliários, Coimbra: Almedina, 2000, pp. 103 ss).

Não obstante a investigação criminal estar a cargo da autoridade judiciária (o Ministério Público) - bem como dos órgãos de polícia criminal que investigam os factos no terreno -, a verdade é que este não tem, em regra, contacto direto com as fontes da criminalidade económica. Enfim, «não se pode deixar de reconhecer que vários setores sócio-económicos estão em primeira linha confiados por lei a autoridades administrativas que, por essa razão, possuem uma capacidade de intervenção no terreno, um conjunto de meios e urna experiência que os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias em regra não têm» (cf. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Novo Regime ..., pp. 103 ss).

O processo das averiguações preliminares constitui, portanto, uma «especialidade da criminalidade económica e financeira» (cf. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "A Supervisão no Novo Código dos Valores Mobiliários", in Cadernos do Mercado dos Valores Mobiliários, n.º 7, p. 102). De facto, este tipo de criminalidade, como é o caso dos crimes contra o mercado, não é composta por ilícitos facilmente identificáveis. Pelo contrário, requer «uma análise de aspetos jurídico-económicos, nomeadamente o cruzamento de dados contabilísticos e financeiros, para além de conceitos técnicos que integram o tipo de ilícito e que reclamam a intervenção de uma autoridade especializada numa tarefa redutora da complexidade» (cf. Bruno Vinga Santiago, "O regime das averiguações preliminares no Código dos Valores Mobiliários de 1999", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, A 11, n.º 4, 2011, p. 605).

Note-se ainda que a figura das averiguações preliminares se enquadra na categoria mais ampla da supervisão, matéria que se encontra disciplinada no capítulo II do título VII do CVM, sendo notória a sua relação forte com a supervisão prudencial, que está consagrada no artigo 363.º do CVM.

Com efeito, a razão de ser da supervisão pública encontra-se no facto de os mercados de valores mobiliários serem «um segmento importante do sistema financeiro e permitirem a legítima realização de interesses públicos e privados». Ora, o mercado «constitui um bem económico em si mesmo e está numa interação permanente com o sistema financeiro e com a economia em geral». E os agentes que nele se movem «interferem diretamente com o património dos investidores, com o valor dos ativos das empresas admitidos à negociação, com a visibilidade económica dos emitentes, com as cotações - que funcionam como preço público de referência para inúmeras decisões jurídicas e económicas - e com as condições de funcionamento do próprio mercado» (cf. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "Supervisão do mercado, legalidade da prova e direito de defesa em processos de contraordenação", in AAVV, Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Lisboa: Almedina/CMVM, 2009, p. 71).

Assim se explica a tutela constitucional conferida pelo legislador constituinte aos mercados (cf. alínea f) do artigo 81.º da CRP). Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, «as atividades financeiras estão naturalmente vocacionadas para um denso sistema de regulação e supervisão pública, não somente para prevenir riscos sistémicos que abalam a confiança no sistema (crashes bolsistas, falências bancárias, etc.)», e, bem assim, para suprir as «falhas de mercado próprias deste setor, nomeadamente assimetria entre os aforradores, investidores, instituições e empresas» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 1081).

Do exposto decorre ainda que a supervisão implica a tomada de medidas de natureza preventiva e precaucionista, no âmbito da atividade de gestão de riscos, com o fim de evitar vários tipos de perigos e, em última análise, os chamados riscos sistémicos, o que encontra, por sua vez, a sua justificação no mais amplo dever de proteção policial de direitos fundamentais (sobre isto, cf. Jorge Silva Sampaio, O dever de proteção policial de direitos, liberdades e garantias, Coimbra: Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2012, pp. 45 ss).

Em face da complexidade da criminalidade financeira e económica, processos como os de abuso de informação e/ou manipulação de mercado são normalmente detetados no âmbito do exercício de poderes de supervisão e de acompanhamento dos mercados pelas autoridades administrativas competentes na matéria, como a CMVM. Contudo, como é bom de ver, «o envio destes factos para a autoridade judiciária competente apenas tem sentido na medida em que correspondam a uma notícia do crime que justifique a abertura de inquérito», razão pela qual «os factos têm de ser tratados e compreendidos à luz de análises técnicas que atribuam desde o início consistência jurídico-económica aos factos que se irão subsumir aos tipos de crime». Tendo em conta que os factos em causa nestas áreas nem sequer sugerem de forma inequívoca e imediata a presença de ilicitude, o próprio conceito de notícia do crime fica, em grande medida, dependente de valorações técnicas. E é justamente por esta razão que as averiguações preliminares aparecem no CVM «como uma fase facultativa dos procedimentos de supervisão, destinada a aprofundar a factualidade e a leitura técnica dos elementos recolhidos sobre crimes contra o mercado de valores mobiliários» (cf. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Novo..., cit., pp. 104 e 105).

Por tudo isto, a atividade de supervisão preventiva (e a respetiva autoridade de supervisão, a CMVM) deve ser - e é - articulada e harmonizada com a investigação criminal de natureza repressiva (e os competentes órgãos de polícia criminal e autoridades judiciárias).

O que encontra também a sua justificação, por um lado, na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos perante intromissões abusivas da administração, e, por outro lado, na eficiência e economia de meios que permita o aproveitamento do trabalho realizado ainda em sede administrativa - o contrário implicaria uma «duplicação inútil de provas, conduzindo eventualmente a resultados contraditórios entre si» (neste sentido, cf. Bruno Vinga Santiago, "O regime...", cit., p. 608; Nuno Sá Gomes, "O processo penal fiscal de averiguações como condição de procedibilidade dos atos de inquérito do Ministério Público, relativos a crimes fiscais não aduaneiros", in Ciência e Técnica Fiscal, Centro de Estudos Fiscais, Boletim da DGCI, pp. 9 ss; Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Novo..., cit., pp. 103 e 104).

É por isto que Augusto Silva Dias, autor amplamente citado nas alegações do recorrente, afirma, ainda que a propósito da relação dos deveres de cooperação no plano tributário, que «[a] separação normativa e fáctica dos processos inspetivo e sancionatório é a solução de política legislativa que, em nosso entender, melhor compatibiliza a necessidade do cumprimento dos deveres de cooperação com a salvaguarda [do princípio do nemo tenetur se ipsum accusare]. Tal solução garante ao particular que as informações por si prestadas em observância daqueles deveres apenas serão usadas para a regularização da sua situação tributária mas já não para efeitos sancionatório» (cf. Augusto Silva Dias, "Têm os deveres de cooperação do art. 7.º e ss. do DL n.º 29/2008, de 25 de fevereiro, implicações processuais penais ou contraordenacionais?", in Maria Fernanda Palma/ Augusto Silva Dias/ Paulo Sousa Mendes (Coords.), Direito Penal Económico e Financeiro - Conferências do Curso Pós-Graduado de Aperfeiçoamento, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, pp. 436 e 437).

Em suma, os poderes da CMVM relativos às averiguações preliminares consubstanciam uma forma específica de supervisão que funciona como um «filtro técnico especializado». E as suas vantagens são consideráveis, uma vez que «permite, desde logo, que a investigação criminal posterior se concentre no essencial e evita que sejam remetidos para investigação criminal elementos sem viabilidade técnica no âmbito dos crimes contra o mercado». O que, por sua vez, significa que esta é «uma solução conforme ao princípio da subsidiariedade da intervenção penal (art. 18.º, n.º 2 da Constituição), que potencia a eficiência da atuação das instâncias de investigação criminal e obsta a que o cidadão seja desnecessariamente constituído arguido num processo criminal à partida votado ao insucesso por razões técnicas.» (cf. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O novo..., cit., p. 106; "A Supervisão...", cit., p. 103).

6 - Após este breve excurso acerca do processo de averiguações preliminares, importa agora analisar as questões de constitucionalidade concretamente colocadas pelo recorrente.

Recorde-se que o recorrente sustenta a violação de inúmeras normas constitucionais - artigos 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4 e 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10 e 219.º da Constituição - com base no facto de o processo das averiguações preliminares ser inicialmente realizado pela CMVM com a consequente subtração ao Ministério Público.

No fundo, segundo o recorrente, a violação dos artigos 2.º, 3.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, da Constituição deve ser articulada com o artigo 219.º da Constituição, porque é a fuga ao Ministério Público que implica a violação das garantias do arguido.

Na verdade o artigo 219.º da CRP relativo às funções e estatuto do Ministério Público determina que ao Ministério Público compete exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade. Em todo o caso, é de salientar, imediatamente, que no final das averiguações preliminares é remetido ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária competente, "a notícia do crime" com os elementos relevantes, momento em que aquele poderá agir plenamente de acordo com as suas competências legais e constitucionais, aplicando-se integralmente as respetivas normas do Código de Processo Penal («CPP»), com a dedução, a final, da acusação, caso se conclua, realizado inquérito, pela existência de indícios suficientes da prática do crime (cf. artigo 283.º do CPP).

Além disso, se alguém for constituído arguido, este terá todos os direitos que o CPP lhe confere enquanto sujeito processual, não se mostrando, por isso, violados os seus direitos de defesa (cf. artigo 32.º, n.º 1, do CRP), pelo que, não se vislumbra, por esta razão, qualquer inconstitucionalidade da interpretação normativa objeto do presente recurso.

Em segundo lugar, vejamos se, tal como o recorrente defende, as averiguações preliminares significariam uma restrição desproporcional do direito ao processo equitativo, do princípio da presunção de inocência, da obrigação de promoção de diligências probatórias, no quadro de processo formalmente instaurado, e da proibição de autoincriminação.

De facto, nas palavras do recorrente, "[a] permissão de existência de «pré-inquéritos» ou de «para-inquéritos», tramitados à revelia de qualquer processo formalmente organizado, e com aplicação dos princípios e regras de direito processual penal, durante um período indeterminado de tempo, viola o direito ao processo equitativo e as garantias de defesa dos cidadãos em matéria sancionatória. A possibilidade de utilização dos elementos probatórios assim recolhidos, no quadro de um processo penal, briga, frontalmente, com o artigo 32.º, n.º 8, da CRP." Contudo, logo de seguida, aquele admite "que o direito ao processo equitativo, o princípio da presunção de inocência, a obrigação de promoção de diligências probatórias, no quadro de processo formalmente instaurado, e em obediência ao artigo 126.º do CPP, bem como a proibição de autoincriminação, não são absolutos. Nenhum direito fundamental, nem mesmo o direito à vida, é absoluto." Termos em que, sempre para o recorrente, ter-se ia que recorrer ao princípio da concordância prática, de forma a não se chegar "a uma solução jurídica que esmague esses direitos em favor do Regular Funcionamento dos Mercados e do Sistema Financeiro" (fl. 16970).

Em suma, para o recorrente, a permissão de um processo de averiguações preliminares implica uma colisão entre, por um lado, o regular funcionamento dos mercados e do sistema financeiro e, por outro lado, o direito ao processo equitativo e as garantias de defesa dos cidadãos em matéria sancionatória, afigurando-se excessiva a restrição a estes últimos bens por as averiguações preliminares serem tramitadas à revelia de qualquer processo formalmente organizado com aplicação dos princípios e regras de direito processual penal, e durante um período indeterminado de tempo.

Importa, pois, perceber se, como o recorrente coloca a questão - independentemente da existência, ou não, de restrição dos aludidos direitos - a interpretação normativa em causa viola o princípio da proporcionalidade. Ainda que o recorrente se refira a "concordância prática", o que verdadeiramente quer pôr em causa é o princípio da proporcionalidade porque a ideia da necessidade de harmonização (praktische Konkordanz) que refere, no fundo, traduz-se nos juízos de necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Como se escreveu, entre outros, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 187/2001, de 2 de maio, e n.º 632/2008, de 23 de dezembro (disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/): "o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)."

Vejamos, então, se no caso dos presentes autos algum dos subprincípios da proporcionalidade sai violado.

No que toca ao subprincípio da adequação, não há dúvidas de que a medida restritiva de direitos - a possibilidade de a CMVM proceder a um processo de averiguações preliminares - é um meio apto para a obtenção de factos que possam consubstanciar a notícia de um eventual crime. De facto, a complexidade destas matérias requer conhecimentos técnicos especializados que as permitam compreender cabalmente, pelo que a medida em causa parece, aliás, afigurar-se como o meio mais apto para a prossecução do respetivo fim.

Em relação ao subprincípio da exigibilidade, também aqui é possível afirmar que o procedimento de averiguações preliminares é necessário para a obtenção de factos que possam consubstanciar a notícia de um eventual crime, não se vislumbrando que o legislador disponha de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato.

Com efeito, embora o recorrente considere a atribuição destas competências ao Ministério Público seria menos restritivo para os cidadãos, a verdade é que tal não acontece, uma vez que, como se disse acima, as averiguações preliminares, sendo efetuadas por entidades administrativas especialmente preparadas em termos técnicos, permitem que a investigação criminal posterior se concentre no essencial e aproveite o trabalho realizado ainda em sede administrativa, e evita que sejam remetidos para investigação criminal elementos sem viabilidade técnica no âmbito dos crimes contra o mercado, o que potencia a eficiência e economia de meios da atuação das instâncias de investigação criminal, evitando, por exemplo, a duplicação inútil de provas - que poderia até conduzir a investigação a resultados contraditórios entre si - e obsta a que os cidadãos sejam desnecessariamente constituídos arguidos num processo criminal à partida votado ao insucesso por razões técnicas.

Por fim, no que concerne ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, em face dos fins pretendidos, não se afigura excessivo o recurso a averiguações preliminares prosseguidas por uma entidade administrativa não judiciária, como a CMVM. De facto, é o regular funcionamento dos mercados e do sistema financeiro que justifica a intervenção de entidades administrativas especializadas nos termos previstos.

Por outro lado, também a não fixação de um prazo de duração taxativo para as averiguações preliminares não se afigura em abstrato excessiva, uma vez que apenas em concreto é possível aferir do tempo necessário para fechar o procedimento de averiguações - como é óbvio, quanto mais complexos e quanto mais gravosos forem os efeitos que podem decorrer dos ilícitos detetados, mais tempo será necessário -, e que, nos termos do artigo 383.º, n.º 4, do CVM, as averiguações preliminares são desenvolvidas sem prejuízo dos demais poderes de supervisão da CMVM, que continuam a poder ser exercidos.

Assim, a relação concretamente existente entre a carga coativa decorrente da medida adotada - permissão de averiguações preliminares prosseguidas por uma autoridade administrativa - e o peso específico do ganho de interesse público que com tal medida se visa alcançar - trata-se de uma entidade administrativa tecnicamente especializada que procede à averiguação factual preliminar da existência de crimes no âmbito da complexa e especializada criminalidade económica e financeira, o que até permite, desde logo, distinguir os factos que merecem dar início a processos penais ou não (evitando-se, assim, o início de processos desnecessários, com ganhos tanto para a eficiência da atuação das instâncias de investigação criminal, como para os direitos fundamentais dos eventuais visados) -, bem como pela prevenção de riscos sistémicos, que podem até colocar em causa a solvabilidade dos próprios Estados, e por permitir suprir falhas de mercado próprias do setor, não resultam também dúvidas de que a interpretação normativa em apreciação e a medida que lhe subjaz não violam o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito.

Contrariamente ao afirmado pelo recorrente, a atribuição de competência à CMVM para o processo de averiguações preliminares (e não ao Ministério Público) não viola o princípio da proporcionalidade, nem, em consequência, a implica a violação de qualquer norma constitucional.

Em conclusão, tendo em conta que se afigura plenamente admissível a atribuição de competência à CMVM para o processo de averiguações preliminares (e não ao Ministério Público), tem de se concluir pela não inconstitucionalidade da interpretação normativa retirada dos artigos 383.º a 386.º do CVM, com o sentido de permitir "que, obtido o conhecimento de factos suscetíveis de ser qualificados como crimes contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, a CMVM possa instaurar e promover um processo de averiguações para apurar a possível existência, da notícia de um crime, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de um processo formalmente organizado".

C) Segunda questão de constitucionalidade suscitada

7 - Em relação à segunda questão de constitucionalidade suscitada, a qual tem a ver com a norma extraída dos artigos 116.º e 120.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras («RGICSF»), 361.º do CVM, 41.º e 54.º do Regime Geral das Contraordenações («RGCO»), e 126.º e 261.º do CPP, interpretada no sentido de que, "após notícia do ilícito, os Reguladores podem intimar os supervisionados visados a fornecer documentação, sob cominação de sanção por incumprimento do dever de colaboração, fora do quadro de um processo sancionatório formalmente organizado, podendo essa documentação assim obtida, ser utilizada como prova contra o visado/Arguido e/ou outros, em processos sancionatórios futuros", sustenta o recorrente que seria contrária aos artigos 2.º, 3.º, 13.º, 16.º, 18.º, 20.º, n.º 4, 29.º, 32.º, n.os 1, 5, 8 e 10, da CRP, e, bem assim, ao artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP, e ao artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Note-se, antes de mais, que a Relatora, no despacho proferido em 12 de novembro de 2015 (fls. 16813 a 16824), alertou o recorrente para a possibilidade de não conhecimento desta questão, em virtude do duvidoso preenchimento dos requisitos da normatividade da questão e da necessária coincidência entre a questão normativa colocada e a ratio decidendi. Apesar de o recorrente, nas suas alegações, nada ter dito sobre este assunto, após ponderação, conclui-se que o conhecimento da questão é suficientemente fundado, na medida em que não se trata de um obter dictum, mas antes se enquadra na ratio decidendi.

Assim sendo, cumpre apreciar a segunda questão colocada pelo recorrente, começando por esclarecer que apresenta duas vertentes distintas - a primeira prende-se com saber se, após a notícia de um ilícito, podem os reguladores continuar a agir como tal, intimando ao fornecimento de documentos, e não apenas no âmbito de um processo sancionatório (contraordenacional); a segunda tem a ver com a questão de saber se o resultado obtido no âmbito da regulação, designadamente em sede de averiguação prévia, pode ser utilizado como prova.

A resposta à primeira vertente desta questão já foi dada na fundamentação da questão anterior, pelo que para aí se remete. Como se diz no artigo 362.º do CVM, a supervisão é contínua, pelo que a pendência de um processo sancionatório não faz sentido que conduza, na prática, a um "afastamento" do regulador. Aliás, o próprio recorrente admite-o nas suas alegações (artigo 34, a fls. 16971).

Quanto à segunda vertente da questão, embora por referência a preceitos diversos, a questão normativa em apreço já foi objeto de decisão no sentido da não inconstitucionalidade por parte deste Tribunal.

Assim, no Acórdão 340/2013, de 17 de junho de 2013, este Tribunal julgou não inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte.

Ora, a fundamentação constante deste Acórdão é totalmente transponível para os presentes autos.

III - Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a) julgar não inconstitucional a interpretação normativa retirada dos artigos 383.º a 386.º do CVM, com o sentido de permitir "que, obtido o conhecimento de factos suscetíveis de ser qualificados como crimes contra o mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros, sem que para tal esteja mandatada pelo Ministério Público, a CMVM possa instaurar e promover um processo de averiguações para apurar a possível existência, da notícia de um crime, sem qualquer limitação temporal, e à revelia de um processo formalmente organizado";

b) julgar não inconstitucional a interpretação normativa retirada dos artigos 116.º e 120.º do RGICSF, 361.º do CVM, 41.º e 54.º do RGCO, e 126.º e 261.º do CPP, com o sentido de que, "após notícia do ilícito, os Reguladores podem intimar os supervisionados visados a fornecer documentação, sob cominação de sanção por incumprimento do dever de colaboração, fora do quadro de um processo sancionatório formalmente organizado, podendo essa documentação assim obtida, ser utilizada como prova contra o visado/Arguido e/ou outros, em processos sancionatórios futuros";

e, em consequência,

c) julgar improcedente o recurso interposto por Jorge Manuel Jardim Gonçalves.

Custas devidas pelo recorrente Jorge Manuel Jardim Gonçalves, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC's, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei 303/98, de 7 de outubro.

Lisboa, 8 de junho de 2016. - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro.

210113321

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2841729.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-12-31 - Decreto-Lei 413/98 - Ministério das Finanças

    Aprova o Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, abreviadamente o regulamento da inspecção tributária.

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