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Acórdão 133/2010, de 18 de Maio

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Sumário

Decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 345.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, conjugada com os artigos 133.º, 126.º e 344.º, quando interpretados no sentido de permitir a valoração das declarações de um arguido em desfavor do co-arguido que entenda não prestar declarações sobre o objecto do processo. (Proc. nº 678/09)

Texto do documento

Acórdão 133/2010

Processo 678/09

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Manuel José Lopes da Silva, condenado na pena de 4 anos de prisão, suspensa por igual período, pela prática de vários crimes (explosão, detenção de arma proibida, detenção ilegal de arma de fogo e detenção de munições proibidas), recorre do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Junho de 2009, que confirmou a decisão do tribunal de 1.ª instância, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da

Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC).

Pretende que se aprecie a constitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 345.º , conjugado com os artigos 133.º, 126.º e 344.º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de permitir a valoração das declarações de um arguido em desfavor do co-arguido que, ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do mesmo Código, entenda não prestar declarações sobre o objecto do processo.

2 - Prosseguindo o processo para alegações, o recorrente conclui nos termos seguintes:

"1) O artigo 32.º da Constituição da República consagra as garantias do processo criminal e o artigo 203.º da lei Fundamental consagra a independência dos tribunais.

2) O n.º 1 do artigo 32.º da CRP consagra uma cláusula geral que aglutina e abrange todas as garantias de defesa, mormente as constantes do artigo 61.º do CPP.

3) O n.º 8 do artigo 32.º da CRP proíbe também a utilização de provas obtidas "mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas

telecomunicações."

4) O direito ao silêncio dos arguidos no que tange aos factos pelos quais estão acusados é um direito "fundamental" de todo e qualquer acusado que não pode ser

afectado por qualquer forma.

5) Os arguidos e co-arguidos não podem depor como testemunhas no âmbito de um processo criminal (cf. alínea a) do n.º 1 do artigo 133.º do CPP), reconhecendo assim a lei ordinária a inexistente credibilidade das referidas declarações.

6) O n.º 4 do artigo 345.º, conj. com os artigos 133.º, 126.º e 344.º, todos do CPP, conj. com os n.os l e 8 do artigo 32.º e artigo 203.º, ambos da CRP, impede a valoração das declarações de co-arguido quando as mesmas são objectivamente prejudiciais ao co-arguido que, no uso do direito que a Constituição e a lei garantem, se

remeteu ao silêncio.

7) As instâncias valoraram as declarações do co-arguido Pedro Miguel em prejuízo do co-arguido Manuel José, que legalmente se remeteu ao silêncio.

8) É inconstitucional toda e qualquer interpretação que permita valorar as declarações de um co-arguido para efeitos de incriminação de outros co-arguidos que, no uso do direito previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP e no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, se recusem a prestar declarações sobre o objecto do processo.

Inconstitucionalidade que expressamente se reitera e invoca para todos os legais e

devidos efeitos.

9) A entender-se de forma contrária, estar-se-á a pressionar/coagir o arguido que se remeteu ao silêncio a falar sobre os factos pelos quais está acusado e esta situação não deixa de estar proibida pelo n.º 8 do artigo 32.º da CRP e pelo próprio artigo 126.º do

CPP.

Face ao exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente declarar-se inconstitucional a interpretação que as instâncias realizaram do n.º 4 do artigo 345.º, conj. com os artigos 133.º, 126.º e 344.º, todos do CPP, na medida em que valoraram as declarações de um co-arguido em prejuízo do recorrente que se remeteu ao silêncio, e consequentemente, ordenar-se a baixa do processo para prolação de nova decisão na qual não se valoram as referidas declarações."

O Ministério Público sustenta o seguinte:

"25.º

Por todo o exposto, e na linha do anteriormente decidido por este Tribunal Constitucional, cuja jurisprudência se julga de manter, crê-se de negar provimento ao

presente recurso.

Com efeito, como se procurou salientar ao longo das presentes alegações, no caso dos presentes autos, o que está em causa é o facto de um dos arguidos ter proferido declarações, em prejuízo de outros co-arguidos.

No entanto, o mesmo arguido não se recusou a responder, posteriormente, a qualquer questão que lhe tivesse sido colocada, quer pelos Juízes que conduziram o julgamento, quer pelo Ministério Público, quer pelos próprios advogados dos restantes

co-arguidos.

26.º

Não há, assim, aqui, ao contrário do alegado pelo recorrente, nenhuma violação de qualquer das garantias de defesa em processo penal, consagradas no artigo 32.º da Constituição da República, tendo-se preservado o due process of law.

Com efeito, os restantes arguidos tiveram sempre o poder de contraditar toda a prova contra si produzida no processo (crossexamination), tendo, no entanto, preferido manter-se em silêncio, o que é um direito que, naturalmente, lhes assiste.

Não há, pois, nos presentes autos, muito pelo contrário, nenhuma violação do princípio

do contraditório.

27.º

Por outro lado, também se não atingiu, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa dos restantes co-arguidos, que, se entenderam de se remeter ao silêncio sobre o objecto do processo, o fizeram livre e

esclarecidamente.

E salvaguardou-se, acima de tudo, o imperativo da realização da justiça material, característica indelével de um Estado de Direito Democrático.

28.º

Por todas as razões invocadas, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá, no

âmbito do presente recurso:

a) Não julgar inconstitucional a interpretação do n.º 4 do artigo 345.º, conjugado com os arts. 133.º, 126.º e 344.º, todos do Código do Processo Penal, no sentido de permitir valorar as declarações de um co-arguido, para efeitos de incriminação de outros co-arguidos que, no uso do direito previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal, não prestem declarações sobre o objecto do processo;

b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita."

3 - O acórdão recorrido é, na parte que mais directamente interessa ao presente

recurso, do seguinte teor:

"[...]

Os recorrentes Manuel José e Pedro Silva alegam que as declarações do co-arguido Pedro Alves remetem para duas problemáticas: a delimitação do impedimento do co-arguido depor como testemunha; e o problema da valoração do conhecimento

probatório do co-arguido.

Quanto à primeira das questões, defendem que o art. 133.º, n.º l do C.P.P. impede de depor como testemunhas o arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, porquanto existe incompatibilidade entre a posição do arguido, que dispõe de um direito ao silêncio, e a testemunha, que presta juramento e está obrigada a responder às perguntas formuladas com verdade.

No que tange ao segundo tema, face ao acórdão 525/97 do T.C., o n.º 4 do artigo 345.º do C.P.P, aditado pela Lei 48/2007, de 29/8, veio eleger expressamente uma nova proibição de prova: as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido. A segunda parte do n.º 4 do art. 345.º do C.P.P. apenas servirá para reforçar o disposto na alínea a) do n.º 3 do art. 344.º do mesmo Código.

É inconstitucional a interpretação que permita valorar as declarações de um co-arguido para efeitos de incriminação de outros co-arguidos que, no uso do direito previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP, não prestem declarações sobre o objecto do

processo.

A admitir-se a posição contrária estar-se-ia de forma indirecta a pressionar os co-arguidos que optaram pelo silêncio a responder a perguntas objecto do processo, o que é defeso pelo n.º 1 do art. 126.º do Código de Processo Penal.

Vejamos.

Tal como se menciona na fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, a posição do STJ, pode considerar-se uniforme no sentido da possibilidade de valoração das declarações do co-arguido contra outro co-arguido, quer em face do Código de Processo Penal vigente à data dos factos, quer perante a nova redacção introduzida ao mesmo Código pela Lei 48/2007, de 29/8. - cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 4 de Maio de 1994, in CJ., ASTJ, ano II, 2.º, pág. 201, de 17 de Outubro de 1996, in BMJ n.º 460, pág. 399 e de 12 de Março de 2008, in CJ., ASTJ, ano XVI,

1.º, pág. 255.

Também a maioria da doutrina nacional aponta no mesmo sentido - cf. designadamente, Dr. Medina de Seica, "O Conhecimento Probatório do Co-Arguido", in Coimbra Editora, Stvdia Ivridica 42; Prof.ª Teresa Beleza, in Rev. MP, Ano 19.º, n.º 74, 39 e segs.; Prof. Germano Marques da Silva, in Processo Penal, II, 2002, pág. 191 e segs;

Prof. Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código de Processo Penal"; e parecer do Prof. Figueiredo Dias, que terá sido junto ao processo mencionado na

fundamentação da sentença.

O Tribunal da Relação de Coimbra integra-se convictamente nesta posição, pelas

razões sucintas que se passam a expor.

O artigo 125.º do Código de Processo Penal consagra entre nós o princípio da legalidade, nos termos do qual «São admissíveis as provas que não forem proibidas por

lei.».

Entre os meios de prova que o Livro III do Código de Processo Penal autonomiza encontram-se, entre outros, a prova testemunhal (artigos 128.º a 139.º) e as declarações do arguido (artigos 140.º a 145.º).

Nem naquele Livro III, nem em outro local do C.P.P., a lei proíbe as declarações dos co-arguidos como meio de prova, sendo mesmo admitida a sua valoração e relevância ao permitir-se a acareação entre co-arguidos, no art. 146.º, n.º 1, deste Código.

O art. 133.º, n.º 1 do Código de Processo Penal estatui, designadamente, que estão impedidos de depor como testemunhas «a) O arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade».

Resulta deste preceito que não pode depor como testemunha a pessoa que no processo foi constituída como arguida, quer quanto a factos que lhe são imputados a si em exclusivo, quer quanto a factos que são imputados a si e aos seus co-arguidos, o mesmo acontecendo relativamente a processos conexos.

O que visa este preceito é a protecção do próprio arguido, como tal constituído, que assim fica excluído da obrigação de depor como testemunha se como tal for indicado, e liberto ainda dos deveres de prestação de depoimento e de o fazer com verdade sob

pena de ser sancionado criminalmente.

O conteúdo deste preceito, de modo algum, nega a possibilidade de valoração das declarações de um arguido contra o seu co-arguido.

Também o art. 344.º, n.º 3, alínea a) do Código de Processo Penal, que os arguidos invocam na defesa do seu ponto de vista e que estatui que se exceptuam do regime do n.º 2 - efeitos da confissão integral e sem reservas - os casos em que «houver co-arguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles», não afasta todo e qualquer valor probatório das declarações de um arguido

contra o seu co-arguido.

Apenas afasta a força probatória pleníssima da confissão integral e sem reservas e, assim, «existindo co-arguidos que não confessaram integralmente e sem reservas, as declarações de um arguido constituem um meio de prova válido, a apreciar livremente pelo tribunal - acórdão STJ, de 19 de Dezembro de 1996, CJ, ASTJ, ano v, 3.º, pág.

214.

A invocação pelos recorrentes do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 524/97 - por lapso mencionam o n.º 525/97 - e do n.º 4 do artigo 345.º do C.P.P, aditado pela Lei 48/2007, de 29/8, situa-se já noutro plano: a das limitações a introduzir na prova feita por um co-arguido contra outro co-arguido.

O acórdão 524/97, do Tribunal Constitucional, decidiu «Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída com referência aos artigos 133.º, 343.º e 345.º do Código de Processo Penal, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio.».

O que estava ali em causa é o exercício do contraditório pelo co-arguido que se remeteu ao silêncio em relação àquele que pretendeu colaborar com o Tribunal.

O n.º 4, do artigo 345.º do C.P.P, aditado pela Lei 48/2007, de 29/8, ao passar a estatuir que «Não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.os 1 e 2», mais não consagrou que a jurisprudência acórdão 524/97 do Tribunal Constitucional.

Por fim, defendem os recorrentes que a admitir-se a valoração das declarações de um co-arguido contra o outro co-arguido esta seria uma forma indirecta a pressionar os co-arguidos que optaram pelo silêncio a responder a perguntas objecto do processo, o que é defeso pelo n.º 1 do art. 126.º do Código de Processo Penal. Seria assim inconstitucional a interpretação que permita valorar as declarações de um co-arguido para efeitos de incriminação de outros co-arguidos que, no uso do direito previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP, não prestem declarações sobre o objecto do

processo.

Cremos que também nesta parte não assiste razão aos recorrentes.

Atento o disposto no art. 61.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, o arguido goza do direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que dele forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles

prestar.

O direito ao silêncio - que não pode ser quebrado por qualquer das formas previstas no art. 126.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, sob pena das provas assim obtidas serem nulas, não podendo ser utilizadas -, não pode repercutir-se na prova obtida e produzida através de meio legal, em termos de impedir a sua valoração quando demonstre a responsabilização criminal do arguido.

Não só as declarações de co-arguido contra outro co-arguido, como qualquer outro meio de prova produzida em audiência de julgamento, colocam o co-arguido não declarante, que se remeteu ao silêncio, na situação de exercer ou não o contraditório.

A produção da prova em audiência de julgamento, designadamente através de prestação de declarações de co-arguido contra outro co-arguido, não é uma forma indirecta a pressionar os co-arguidos que optaram pelo silêncio a responder a perguntas objecto do processo, mas sim a forma de realização de justiça própria de um Estado de

Direito Democrático.

Ainda no âmbito das limitações às declarações de co-arguido contra outro co-arguido, a doutrina e jurisprudência citadas estão de acordo em que a apreciação do valor probatório daquelas declarações exige especiais cautelas porquanto o declarante pode agir impulsionado por interesse em se desculpar mediante a incriminação do co-arguido

se resta em silêncio ou por outro motivo.

A doutrina citada e a jurisprudência maioritária exige que a sentença não alicerce os factos provados exclusivamente nas declarações de co-arguido contra outro co-arguido; é necessária uma corroboração probatória das declarações de co-arguido

contra outro co-arguido.

Já o citado acórdão do STJ de 12 de Março de 2008 defende que «dizer em abstracto e genericamente que o depoimento do co-arguido só é válido se for acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras de produção de prova sem qualquer

apoio na letra ou no espírito da lei.».

Este Tribunal da Relação entende, tal como o Tribunal a quo, que a doutrina da corroboração deve aqui desempenhar um papel, pois não estando o co-arguido sujeito a juramento, nem ao dever de verdade com cominação de sanção criminal, deve exigir-se alguma prova no sentido da comprovação das declarações do co-arguido.

Com esta interpretação acabada de enunciar entendemos que não se viola nenhuma das normas processuais penais invocadas pelos recorrentes nas conclusões da motivação, nem qualquer norma constitucional - sendo aqui de anotar que os recorrentes não alegam em concreto uma norma da Constituição que teria sido violada pelo Tribunal a

quo.

No caso em apreciação os arguidos/recorrentes quiseram exercer e exerceram o direito ao silêncio relativamente aos factos da explosão em causa que lhe eram imputados.

Por sua vez, o co-arguido Pedro Alves prestou declarações em que envolveu os co-arguidos na viagem e acontecimentos da noite em causa - nos termos que se irão

apurar.

O co-arguido Pedro Alves não se recusou, porém, a responder às perguntas formuladas pelos Juízes, nem suscitadas pelo Ministério Público ou pelos advogados presentes, designadamente dos co-arguidos ora recorrentes.

Deste modo, improcede esta questão."

[...]."

II - Fundamentos

4 - Está em apreciação neste recurso a constitucionalidade da norma que permite a valoração das declarações de um arguido em desfavor de outro arguido que, no mesmo processo, tenha optado por não prestar declarações sobre os factos de que é acusado.

O recorrente pretende que o Tribunal decida que o aproveitamento de declarações de um arguido para dar como provados factos desfavoráveis a um co-arguido (por um mesmo crime ou por um crime conexo) viola o disposto nos n.os 1 e 8 do artigo 32.º e

no artigo 203.º da Constituição.

O acórdão recorrido dá boa nota do estado da questão da relevância probatória das declarações de um arguido como meio de prova de factos desfavoráveis ao co-arguido no nosso direito processual penal. Como aí se refere, a jurisprudência e a generalidade da doutrina dão resposta afirmativa à questão de saber se as declarações de um arguido podem ser valoradas como meio de prova de factos desfavoráveis a outro arguido (cf., por mais recente, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Novembro de 2009, P. 97/06.0JRLSB.S1). É minoritário o entendimento de que as declarações de um arguido apenas pode ser fundamento de condenação para si, não devendo servir para condenar o co-arguido (Rodrigo Santiago, "Reflexões sobre as «declarações do arguido» como meio de prova no Código de Processo Penal de 1987"

in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1994, 27-62).

Sem recusar a admissibilidade e a idoneidade probatória de tal meio de prova, de acordo com a regra da não taxatividade ou não tipicidade dos meios de prova (artigo 125.º do CPP), deparam-se, contudo, entendimentos diferenciados quanto ao seu modo de valoração, ou seja, quanto à aplicação do princípio da livre apreciação a este

tipo de prova.

Não tem faltado quem sustente que a prova por essa via obtida, padece de uma debilidade congénita. Sustenta-se que, ainda que não se trate de um meio de prova em abstracto proibido, é uma prova de diminuída credibilidade, que merece reservas e cuidados muito especiais de admissibilidade e valoração (p. ex. Teresa Beleza, "«Tão amigos que nós éramos»: o valor probatório do depoimento do co-arguido no processo penal português"). À genérica subordinação da prova por declarações do co-arguido ao princípio da livre apreciação pelo julgador, opor-se-iam por um lado, "as variadas e turvas razões" que podem mover um arguido a declarar a comprometer outros, e que podem ir desde o desejo de vingança até à satisfação de vê-los arrastados para a sua mesma desgraça, do afastamento da própria responsabilidade até à esperança de uma pena reduzida pela colaboração. A estas razões intrínsecas de suspeição relativamente a esse meio de prova acrescenta-se o que pode considerar-se uma razão extrínseca: a circunstância de o arguido declarante não estar sujeito a juramento e ao constrangimento para falar verdade inerente à ameaça penal para as falsas declarações.

Por força disso, tem-se subordinado a valoração das declarações desfavoráveis do co-arguido a várias cautelas, uma das quais é a chamada técnica da corroboração perfilhada pelo acórdão recorrido. Na falta de dois meios de prova independentes tendo por objecto a demonstração da existência ou inexistência do mesmo facto ("verificação cruzada"), exigem-se elementos que, embora não tendo por objecto o conteúdo da declaração probatória, consintam a verificação da sua veracidade (elementi di riscontro). Trata-se de adquirir por outro meio a prova de factos que, embora não coincidindo com aquele cuja demonstração está directamente em causa, permite deduzir que o sujeito que afirmou a realidade deste outro facto disse sobre ele a verdade. Nesta orientação, as declarações do co-arguido só podem fundamentar a prova de um facto criminalmente relevante quando existe "alguma prova adicional a tornar provável que a história do co-arguido é verdadeira e que é razoavelmente seguro decidir com base nas suas declarações", como se diz no acórdão recorrido Não importa qualificar esta exigência acrescida para saber se ela significa um desvio (qualitativo) ao princípio da livre apreciação da prova ou se, afinal, não é senão a concretização de regras de experiência para a correcta realização da livre apreciação, em ordem a que esta se não apresente como arbítrio do julgador, antes consubstancie o resultado de uma actividade susceptível de se credenciar racionalmente perante o auditório de pessoas prudentes, experientes das coisas da vida e de recta intenção.

Como também não é indispensável decidir se a existência de elementos de corroboração das declarações de um arguido desfavoráveis a outro, face às garantias constitucionais do processo penal, constitui complemento integrador sine qua non da sua atendibilidade. No caso, o entendimento normativo adoptado foi o de que "... a doutrina da corroboração deve aqui desempenhar um papel, pois não estando o co-arguido sujeito a juramento, nem ao dever de verdade com cominação de sanção criminal, deve exigir-se alguma prova no sentido da comprovação das declarações do co-arguido", pelo que é sobre ele que vai exercer-se o juízo de conformidade

constitucional.

5 - Como o Ministério Público põe em evidência, a jurisprudência do Tribunal a propósito de outras variantes do problema do conhecimento probatório do co-arguido conduz a uma resposta seguramente negativa à pretensão do recorrente.

No acórdão 524/97, disponível, como os demais citados em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República, a norma extraída com referência aos artigos 133.º, 343.º e 345.º do Código de Processo Penal, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no

exercício do direito ao silêncio.

Não se negou valor probatório às declarações do co-arguido. O que motivou o julgamento de inconstitucionalidade foi a violação do contraditório, não a falta ou deficiência de aptidão probatória de tais declarações. Apenas se afastaram em função do seu modo de produção, considerando-se contrário às garantias do arguido em processo penal que o arguido não possa contraditar toda a prova contra si produzida, como sucede quando o co-arguido se recusa a responder, no exercício do seu direito ao silêncio, às perguntas que a defesa do arguido prejudicado pelas suas declarações anteriores entende colocar-lhe. Note-se que a redacção do n.º 4 do artigo 345.º do Código, introduzido pela Lei 48/2007, reflecte já este julgamento e foi este que foi

aplicado ao caso.

Embora essa não fosse a questão directamente colocada, está pressuposta na resposta dada no acórdão 524/97 a possibilidade de valoração das declarações do co-arguido, desde que respeitado o contraditório. Ora, a hipótese que no presente recurso se aprecia distancia-se daquela, precisamente, quanto ao aspecto que motivou o julgamento de inconstitucionalidade. Não integra a dimensão normativa em apreciação que o co-arguido que prestou as declarações desfavoráveis se tenha recusado a responder às perguntas formuladas pelo defensor do arguido prejudicado.

Também do acórdão 304/2004 só pode retirar-se argumento contrário à pretensão

do recorrente.

Neste acórdão começa por reconhecer-se que a superação de um modelo inquisitorial do processo e a consagração basilar do processo penal de estrutura acusatória, tem subjacente a ideia da existência de limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal. Limites que, no tocante à aquisição dos factos penalmente relevantes, se traduzem no conceito e regime das proibições de prova. Costa Andrade, citando Gössel, afirma que "às proibições de prova cabe a importante tarefa de "prevenir que o imperativo da realização da justiça material que dimana do Estado de Direito redunde precisamente no seu contrário". [...] "É que, precisa GÖSSEL "do princípio do Estado de Direito decorre o dever de averiguar a verdade e, ao mesmo tempo, a delimitação dessa averiguação"" (cf. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra

Editora, 1992, págs. 117 a 119).

E continua o acórdão:

"Segundo Medina de Seiça, a norma constante do artigo 133.º do CPP - impedimento para depor como testemunha - representa "uma das regras que caracterizam em maior medida a actual disciplina da prova testemunhal" e "constitui o vértice da concepção global sobre a função ou posição processual que ao co-arguido se deve reconhecer no quadro do direito probatório" (cf. ob., cit., pág. 17).

A consagração de um impedimento em sede de obtenção/produção de prova implica forçosamente uma limitação à aquisição de material probatório.

A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cf. neste sentido, Costa Andrade, ob.

cit., pág. 121).

A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão do

privilégio contra a auto-incriminação.

O alargamento do impedimento - alargamento do direito do arguido ao silêncio - ao próprio co-arguido arranca desta mesma matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão do direito de defesa, entendida como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a defender-se, sem que, através do testemunho sobre facto de outro, ele comprometa sua própria posição processual, auto-incriminando-se (cf. neste sentido, Medina de Seiça, ob. cit., págs. 36 e 37).

A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à "colaboração forçada" na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma

investigação.

O modelo do testemunho consentido, previsto no artigo 133.º, n.º 2 do CPP, pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do co-arguido a um processo em que ele não se encontra a responder, sem eliminar a garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime ao constrangimento

característico da prova testemunhal.

Ao cometer ao co-arguido a decisão sobre o exercício concreto da protecção, o impedimento deixa de ser absoluto e passa a relativo (ainda neste sentido Costa Andrade, ob. cit. pág. 121 e Medina de Seiça ob. cit. pág. 123) [...] 5 - O que se deixa dito permite-nos agora abordar, directamente, e com a limitação dos poderes de cognição deste Tribunal (no caso, aceitando que o co-arguido não deixara ainda de ser arguido, pelo mesmo crime, em processo separado e que não consentiu, expressamente, em depor como testemunha), a questão de constitucionalidade em causa: saber se a admissão e valoração do referido meio de prova contra o arguido no processo em que é prestado o depoimento, tal como resulta da interpretação feita pelo acórdão recorrido da norma do artigo 132.º n.º 2 do CPP,

ofende a Constituição.

E, desde logo, a de saber se se verifica a violação do artigo 32.º n.º 1 da CRP.

Ora, o Tribunal entende que a norma que estabelece o assinalado impedimento relativo visa, exclusivamente a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não auto-incriminar.

Para assim concluir o Tribunal tem, antes do mais, em conta que o impedimento cessa no caso de o co-arguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer forma por que o procedimento criminal se pode extinguir.

E, por outro lado, faz relevar o facto de o consentimento expresso do mesmo co-arguido ser suficiente para a legalidade deste meio de prova.

O que significa, por outras palavras, que o arguido, no processo onde o depoimento é prestado nada pode opor, no estrito plano do direito infraconstitucional e verificado o consentimento expresso do depoente, à inquirição do co-arguido como testemunha.

Mas, sendo assim - como é - não pode, desde logo, conceber-se que a eventual ofensa do disposto no artigo 133.º n.º 2 do CPP, por o co-arguido não ter expressado o seu consentimento - implique a violação das garantias de defesa, constitucionalmente asseguradas, do arguido que está a ser julgado no processo onde o depoimento é

prestado."

Aqui, como no acórdão 181/2005, entendeu-se que as cautelas de que se rodeia a admissibilidade do depoimento do co-arguido são impostas pela protecção dos direitos e da posição processual do arguido chamado a prestá-lo e não daquele contra o qual é

valorado.

Com efeito, no acórdão 181/2005, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional o artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não exigir consentimento para o depoimento, como testemunha, de anterior co-arguido cujo processo, tendo sido separado, foi já objecto de decisão transitada em julgado.

Entendeu-se não ser incompatível com as garantias processuais penais o entendimento de que o n.º 2 do artigo 133.º do Código de Processo Penal visa exclusivamente a protecção dos direitos de defesa do co-arguido em processo penal (designadamente, no processo separado), garantindo o seu direito de se não auto-incriminar.

6 - Como nestes acórdãos se põe em evidência, o arguido, cada arguido, é senhor da decisão, que deve ser inteiramente livre e esclarecida, de prestar ou não prestar declarações. E isso quer os factos lhe sejam imputados apenas a si, quer respeitem também a outros arguidos. Cada arguido decide, como melhor lhe convier, se presta ou não declarações. E se as prestar serão valoradas, quanto a todos os factos sobre que versem, de acordo com o princípio da liberdade objectiva do juízo de prova.

De modo algum, a circunstância de as declarações de um dos arguidos poderem ser valoradas contra os demais afecta a livre decisão destes de optarem pelo silêncio. Pode é a estratégia destes revelar-se menos adequada, mas isso é inerente à normal evolução da produção de prova. Pode suceder com esse ou com qualquer outro meio de prova, que os arguidos que exercem o direito ao silêncio acabem por ver-se na necessidade ou conveniência de modificar essa opção face à evolução da produção da prova.

Afirmar isto não significa que não deva o juiz encarar com cautelas adicionais as declarações de um arguido em desfavor de outro. Como diz Medina De Seiça, loc. cit., pág. 206, "apesar de legitimamente valorável e assumir diversas vezes um significado precioso para a descoberta da verdade, constitui uma máxima da experiência (nesse sentido naturalmente fundada) que a informação probatória dos co-arguidos, na parte em que se refere aos outros, há-de rodear-se de particular dúvida". Ora, o acórdão recorrido não perfilhou um entendimento que tenha simplesmente nivelado valorativamente as declarações do co-arguido às declarações de uma testemunha.

Perfilhou, como se disse, a chamada teoria da corroboração, contrastando as declarações do arguido com outros elementos que, mesmo sem versarem directamente sobre os factos por elas narrados, conferiam credibilidade a essa narrativa.

Seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações do co-arguido são meio probatório idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade.

Decisivo é que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas valer não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório, como resulta do acórdão 194/97, mas disso não há suspeita na dimensão normativa em apreciação.

Não pode, pois, dizer-se que tenha sido aplicado um entendimento normativo contrário à garantia do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

7 - Invoca, ainda, o recorrente a violação do artigo 32.º, n.º 8 e do artigo 203.º da

Constituição.

Mas também sem razão.

Com efeito, como se referiu no citado acórdão 304/2004, no âmbito do artigo 32.º, n.º 8 da CRP, só está compreendida a nulidade de determinados meios de obtenção de prova, ali especificados ("tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na visa privada, no domicílio, na correspondência ou nas

comunicações").

Ora, em nenhum destes casos se pode integrar a prestação de declarações por um arguido quando outro ou outros se remeteram ao silêncio e a correspondente valoração dessa declaração como meio de prova dos factos em discussão. O recorrente exerceu, como livremente entendeu, o seu direito ao silêncio. O facto de essa sua estratégia de defesa sair debilitada ou, porventura, não surtir o mesmo efeito que teria se o arguido que prestou declarações tivesse igualmente optado pelo silêncio sobre os factos deixa intacta aquela livre opção do recorrente por não prestar declarações. O arguido tem o direito a não se auto-incriminar; não a que não seja produzida prova contra si ou que os demais arguidos conjuguem com a sua a estratégia de defesa deles. A prestação de declarações pelo seu co-arguido e a sua valoração como demonstração da realidade dos factos que a acusação imputou ao recorrente será um acontecimento desagradável para si, mas não constitui ameaça de um mal dirigido a demovê-lo da atitude que

escolheu assumir.

Finalmente, é manifestamente destituído de fundamento afirmar que a interpretação normativa questionada viole o princípio da independência dos tribunais. É afirmação que os recorrentes não desenvolvem e que, num plano de argumentação racional, é absolutamente estranho à questão que se discute. A circunstância de deverem valorar determinado meio de prova não torna os juízes mais ou menos livres perante quaisquer ordens ou instruções de quaisquer autoridades, nem melindra qualquer dos factores

componentes dessa independência.

III - Decisão

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas custas com 25 (vinte e cinco) UCs de taxa de justiça.

Lisboa, 14/04/2010. - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão.

203244847

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/05/18/plain-274487.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/274487.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

Aviso

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