Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Nos presentes autos em que é recorrente Cruz & Companhia, Lda. e recorrida a Fazenda Pública, foi interposto recurso de acórdão proferido pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em 06 de Maio de 2009 (fls. 391 a 394) para apreciação da constitucionalidade da «norma contida no art. 152º do CPTA, aplicável ex vi art. 2º do CPPT, na dimensão normativa encontrada pelo despacho de fls 343 e confirmada pelo douto acórdão de 06 de Maio de 2009, segundo o qual é inadmissível o recurso interposto por oposição de acórdãos entre um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (acórdão recorrido) e um Acórdão do Tribunal Central Administrativo (acórdão fundamento)» (fls. 402).2 - Notificada para tal pela Relatora, a recorrente produziu alegações, das quais
constam as seguintes conclusões:
«1 - A norma contida no art. 152º do CPTA, aplicável ex vi art. 2.º do CPPT, na dimensão normativa encontrada pelo despacho de fl. 343 e confirmada pelo douto acórdão de 06 de Maio de 2009, segundo o qual é inadmissível o recurso interposto por oposição de acórdãos entre um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (acórdão recorrido) e um Acórdão do Tribunal Central Administrativo (acórdãofundamento) é inconstitucional.
2 - A inconstitucionalidade da citada norma extraída do art. 152.ºdo CPTA, aplicável ex vi art. 2.º do CPPT resulta do facto da mesma consubstanciar uma violação dos mais elementares direitos e garantias que a Constituição confere à ora recorrente.3 - Com efeito, no caso em apreço, o acórdão fundamento foi proferido em última instância pelo Tribunal Central Administrativo Norte, dado que, para além da questão de direito, foram suscitadas questões de facto.
4 - O Acórdão recorrido, por sua vez, não obstante versar sobre a mesma questão de direito, foi proferido pelo STA, dado que o respectivo recurso se fundamenta
exclusivamente em matéria de direito.
5 - Atendendo que no contencioso tributário, o legislador estabeleceu apenas um grau de recurso ordinário (conferindo ao TCA competência para apreciar, em ultima instância, questões de direito) e tendo em conta que os recursos para uniformização de jurisprudência têm por finalidade permitir que situações iguais recebam o mesmo tratamento jurisprudencial, dúvidas não podem subsistir que o legislador quis atribuir aos acórdãos proferidos pelo TCA, em sede de recurso, a mesma dignidade queconfere aos acórdãos proferidos pelo STA.
6 - O que significa que não existe razão legal para diferenciar, no contexto específico do contencioso tributário, os acórdãos anteriormente proferidos pelo TCA em relação aos acórdãos proferidos posteriormente pelo STA, sobre a mesma matéria.7 - Estamos, assim, perante uma situação que coloca a ora recorrente numa situação de desigualdade de tratamento, pois perante a mesma questão suscitada, foram proferidas duas soluções diferentes, não podendo a recorrente utilizar o único meio que a lei lhe confere para que a decisão ora recorrida possa vir ser alterada no sentido da jurisprudência assente no acórdão fundamento.
8 - Consubstancia assim uma violação do princípio da igualdade, previsto e tutelado no art. 13º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
9 - Consubstancia também uma violação ao direito e tutela jurisdicional efectiva, previsto e tutelado no art. 20. º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais ara defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.» (fls. 432 e 433) 3 - A Fazenda Pública apresentou as seguintes contra-alegações:
«Não tem, porém, razão a recorrente, como abaixo, mais de espaço, deixaremos
provado.
Antes de mais porque a norma que no nosso sistema jurídico faz luz sobre a técnica interpretativa - o artigo 9.º do Código Civil - dispõe que "não pode porém ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso". Ora o dispositivo posto em crise pela presente recurso, o n.º 1 do artigo 152.º do CPTA,dispõe:
"As partes e o Ministério Público podem dirigir ao Supremo Tribunal Administrativo, no prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do acórdão impugnado, pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência, quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição.a) Entre acórdão do Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo Tribunal ou pelo Supremo Tribunal Administrativo;
b) Entre dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo."
Daqui decorre, numa primeira leitura, que a oposição relevante para o efeito de interposição de recurso para uniformização de jurisprudência é a que se verifica entre um acórdão do TCA e outro anteriormente proferido - e transitado em julgado - pelo mesmo tribunal ou pelo STA; ou entre um acórdão do STA e outro anteriormente proferido - e transitado, repetimos - pelo mesmo STA.
É tão claro e explícito o sentido da norma posta em crise que o sentido defendido pela Recorrente é manifestamente contra legem. Claro que será mesmo por isso que ela vem agora pôr a questão da sua pretensa inconstitucionalidade.
Vejamos pois se ela se verifica.
II - Assaca a Recorrente, ao sentido interpretativo dado pelo STA à norma posta em crise, dois vícios geradores de inconstitucionalidade:
i) Violação do princípio da igualdade e
ii) Violação do direito a tutela jurisdicional efectiva Quanto à violação do princípio da igualdade é óbvio que ele se não verifica. Se alguma desigualdade de tratamento se pode divisar no caso dos autos ela não se verifica entre cidadãos mas sim entre coisas - acórdãos - que são efectivamente desiguais na medida em que provêm de entidades distintas, os distintos tribunais que os proferiram. Ora a norma constitucional que consagra o princípio da igualdade não o refere a coisas mas a cidadãos. Ou pretenderá a Recorrente que a interpretação por ela atacada só é feita no seu caso e que outros recorrentes em situação semelhante são tratados diferentemente, beneficiando do sentido interpretativo que a recorrente defende presentemente? Se tal acontecesse, ocorreria violação do princípio da igualdade. Mas a Recorrente não invoca tal e muito menos faz a respectiva prova. Não se verifica, consequentemente, violação do princípio da igualdade ou qualquer descriminação da recorrente em razão dos critérios enunciados no n.º 2 do mesmo artigo 13.º da CRP.Quanto à violação do direito a tutela jurisdicional efectiva, igualmente se não verifica.
Na verdade o acesso à tutela jurisdicional efectiva é mediatizado pelo conjunto dos meios que o sistema jurídico põe à disposição dos cidadãos. Ora o sentido interpretativo extraído pelo tribunal, no acórdão recorrido, da norma posta em crise não inibiu a Recorrente de utilizar vários meios jurisdicionais de tutela dos seus direitos.
Não pode, porém o sistema jurídico facultar aos cidadãos um recurso ilimitado de tais
meios.
Foi, aliás, a necessidade de racionalizar a utilização de tais meios que levou o legislador a organizar os tribunais hierarquicamente, fixando competências diferenciadas para tribunais de nível diferente, Ora é consabido que o STA é o tribunal de fecho do conjunto do TAFs. E foi para não sobrecarregar o STA que foram criados os TCAs.Daí que estes julguem os recursos que envolvam apreciação da matéria de facto, reservando-se ao STA o julgamento dos recursos que envolvem apenas matéria de direito. A redução dos recursos a duas instâncias não visou tornar iguais os TCAs e o STA mas agilizar a justiça e torná-la acessível a todos os cidadãos, O que vinha sendo problemático com a acumulação de processos no STA.
Nem, pois, o facto de TCAs e STA julgarem em última instância faz deles tribunais iguais e de idêntico nível de decisão, nem a manutenção da relação de hierarquia entre eles implica qualquer inibição de uso de meios de tutela jurisdicional à Recorrente.» (fls.
437 a 440)
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
4 - A questão em apreço nos presentes autos apresenta um carácter inovador, face à precedente jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o recurso de harmonização de jurisprudência, em sede de Direito Processual Administrativo. Assim é, na medida em que o recorrente reputa de inconstitucional uma interpretação normativa do artigo 152.º, n.º 1, do CPTA que exclui a possibilidade de admissão de um recurso para harmonização de jurisprudência quando o "acórdão fundamento" corresponda a uma decisão proferida por um Tribunal Central Administrativo [TCA], em sede de processo tributário - e, portanto, com natureza definitiva em função da insusceptibilidade de recurso - e o "acórdão recorrido" haja sido proferido pelo STA.O preceito legal do qual foi extraída a interpretação normativa ora em apreço determina
o seguinte:
«Artigo 152.º
Recurso para uniformização de jurisprudência 1 - As partes e o Ministério Público podem dirigir ao Supremo Tribunal Administrativo, no prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do acórdão impugnado, pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência, quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição:a) Entre acórdão do Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo Tribunal ou pelo Supremo Tribunal Administrativo;
b) Entre dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo.» Com efeito, do enunciado constante do artigo 152.º, n.º 1 do CPTA parece resultar que um acórdão proferido por um TCA apenas pode constituir "acórdão fundamento"
quando o "acórdão recorrido" haja sido, também ele, proferido por um TCA. Ora, a tramitação processual vertida nos autos recorridos demonstra que o "acórdão recorrido" foi originariamente proferido pela Secção de Contencioso Tributário do STA, em 17 de Dezembro de 2008 (fls. 293 a 295) e posteriormente complementado por acórdão proferido pelo mesmo Tribunal e Secção, em 11 de Fevereiro de 2009 (fls. 324 a 327-verso), a propósito de um pedido de aclaração formulado pelo ora recorrente. Por sua vez, o "acórdão fundamento" corresponde a decisão proferida pelo TCA-Norte, em 18 de Dezembro de 2008, no âmbito do Proc. n.º 1751/06.1BEVIS.
Ora, particularmente, em sede de processo tributário - como é o caso dos autos - o artigo 280.º do Código de Procedimento e Processo Tributário [CPPT] contém um regime especial de interposição de recurso ordinário, limitando a possibilidade da sua interposição para um tribunal de segunda instância e, como tal, tornando como excepção a possibilidade de interposição de recurso para o STA. O preceito legal em
causa estabelece o seguinte:
«Artigo 280.º
Recursos de decisões proferidas em processos judiciais 1 - Das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso, no prazo de 10 dias, a interpor pelo impugnante, recorrente, executado, oponente ou embargante, pelo Ministério Público, pelo representante da Fazenda Pública e por qualquer outro interveniente que no processo fique vencido, para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso, dentro do mesmo prazo, para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo TribunalAdministrativo.»
Face a este último preceito, entende o recorrente que, em processo tributário, sempre que um acórdão proferido por um TCA seja insusceptível recurso para o STA, por não estar em causa matéria exclusivamente relacionada com a aplicação do Direito, aquele primeiro deve ser considerado como definitivo e, como tal, deve ser admitido como possível "acórdão fundamento", para efeitos de interposição de recurso de harmonização de jurisprudência. Porém, mais do que isso, entende ainda o recorrente que a interpretação normativa levada a cabo pelo tribunal "a quo" - que não admite que acórdão proferido por um TCA seja tido por "acórdão fundamento" face a um "acórdão recorrido" proferido pelo STA - se encontra ferida de inconstitucionalidade, por atentar contra o princípio da igualdade (artigo 13.º, da CRP) e contra o direito fundamental de acesso à Justiça (artigo 20.º, n.º 1, da CRP).
Vejamos, então, se assim é.
5 - O recurso para uniformização de jurisprudência instituído pelo n.º 1 do artigo 152.º do CPTA assenta na verificação do trânsito em julgado, quer do "acórdão recorrido"quer do "acórdão fundamento", enquanto pressuposto processual do mesmo (neste sentido, ver Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 5.ª edição, 2004, p. 395;
Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª edição, 2007, p. 883; Teresa Violante, Os recursos jurisdicionais no novo contencioso administrativo, in «O Direito», Ano 139.º, 2007, IV, p. 873) e visa solucionar situações de conflito resultantes de contradições sobre a mesma questão fundamental de Direito entre acórdãos de tribunais superiores, de modo a assegurar o tratamento uniforme de situações substancialmente idênticas (Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, cit., p. 396). Consequentemente, a função deste tipo de recurso não assume uma natureza preventiva, visando apenas a resolução de conflitos entre jurisprudência pré-existente (assim, vide Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, cit., p. 879).
Importa, porém, aferir quais os critérios efectivamente adoptados pelo legislador para assegurar aquele tratamento uniforme de situações idênticas e, deste modo, impedir a subsistência de incongruências e contradições entre acórdãos divergentes.Começando pela letra da lei, pode dela extrair-se que a opção do legislador ordinário se encaminhou no sentido de apenas permitir que o "acórdão fundamento" haja sido proferido por um tribunal situado em instância superior ao do tribunal que proferiu o "acórdão recorrido" ou, pelo menos, que o "acórdão fundamento" haja sido previamente proferido pelo mesmo tribunal que proferiu o "acórdão recorrido" - seja este último um TCA [artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do CPTA] ou o STA [artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do CPTA]. À partida, da letra do preceito legal em causa pode concluir-se que um acórdão proferido por um TCA não pode constituir "acórdão fundamento", quando o "acórdão recorrido" corresponda a decisão proferida pelo STA, tendo, aliás, sido esse o entendimento sufragado pela decisão ora recorrida (em sentido idêntico, ver Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, cit., p. 395; Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cit., p. 881; Teresa Violante, Os recursos jurisdicionais no novo contencioso administrativo, cit., p. 872).
Com efeito, em momento algum do enunciado normativo constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 152.º do CPTA, se pode extrair qualquer elemento literal que autorize a invocação de um acórdão proferido por um TCA - ainda que funcionando como última instância de recurso, como sucede por força do n.º 1 do artigo 280.º do CPPT - como "acórdão fundamento" em recurso de harmonização de jurisprudência interposto contra acórdão proferido pelo STA. Mas configurará tal opção legislativa uma violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) e do direito fundamental de acesso à Justiça (artigo 20.º, n.º 1, da CRP)? 6 - A jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de direito ao recurso jurisdicional - em todos os ramos do Direito Processual - é abundante e já logrou a indispensável sedimentação na jurisprudência dos demais tribunais portugueses e na prática judiciária, constituindo hoje uma garantia da segurança jurídica dos próprios cidadãos, enquanto utilizadores dos mecanismos estatais de Administração da Justiça.
Ora, a propósito de um (eventual) direito fundamental ao recurso, este Tribunal tem reiterado a afirmação de que não existe qualquer imposição constitucional no sentido de garantir várias instâncias de recurso ou, dito de outro modo, de um direito a um terceiro grau de recurso, mesmo em sede de processo penal. Ilustrativo desse entendimento, cita-se, por comodidade de argumentação, o bem recente Acórdão 551/09, desta mesma 3.ª Secção (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
«7 - O Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição se consagra o direito ao recurso em processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas também que a Constituição não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, cabendo na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. E que não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (Cfr., entre muitos, a propósito da anterior redacção da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na peculiar interpretação acima referida do que era a pena aplicável, acórdão 64/2006 (Plenário), publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Maio de 2006). Essa limitação do recurso apresenta-se como "racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o Supremo Tribunal de Justiça com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação" (citado Acórdão
n.º 451/03).»
Esse entendimento é extensível, por maioria de razão ao direito de recurso nos demais ramos do Direito Processual e, em especial no que importa ao presente recurso, em sede de Direito Processual Administrativo e Tributário. Aliás, recentemente, este Tribunal foi confrontado com uma questão que apresenta alguma conexão com a que se aprecia nos presentes autos, qual seja a de determinar se a alínea b) do n.º 1 do artigo 152.º do CPTA suporta uma interpretação que impeça que um acórdão proferido por Secção de Contencioso Administrativo do STA constitua "acórdão fundamento" de acórdão proferido pelo mesmo Tribunal Superior, mas, desta feita, pela respectiva Secção de Contencioso Tributário. A esse propósito, este Tribunal já teve oportunidade de afastar a inconstitucionalidade de tal interpretação normativa, por duas vezes (cf. Acórdão 36/09, da 2.ª Secção, e Acórdão 69/09, da 1.ª Secção, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), com os seguintes argumentos que se extraem do primeiro dos citados arestos:«O Tribunal Constitucional já se debruçou amiúde sobre o fulcro da questão da inconstitucionalidade dos presentes autos - direito ao terceiro grau de jurisdição - e concluiu invariavelmente que o direito de acesso à justiça não comporta um irrestrito direito a aceder ao Supremo Tribunal de Justiça, muito menos por via de recurso
extraordinário.
Fê-lo, por exemplo, através do acórdão 247/97, quando emitiu um juízo negativo de inconstitucionalidade a respeito da interpretação normativa que, mesmo em sede de processo criminal, vedava ao arguido o direito ao recurso extraordinário de fixação de jurisprudência em caso de oposição de julgados existente entre um acórdão do Tribunal da Relação e um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (DR 2.ª série, 17-5-1997).Foi então avançado que o princípio constitucional da plenitude das garantias de defesa do arguido, ainda que esteja em causa arguido condenado com uma pena privativa de liberdade, se basta com a garantia de um segundo grau de jurisdição, e que a mera oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito não constitui motivo suficiente para impor ao legislador a previsão de um recurso extraordinário para a fixação de jurisprudência em todas as hipóteses possíveis, a nível de tribunais
superiores, de oposição de decisões.
Esse juízo negativo de inconstitucionalidade foi reiterado pelo Tribunal Constitucional a respeito de outras situações de inadmissibilidade de recurso extraordinário para a uniformização de jurisprudência, nomeadamente, nos acórdãos n.º 571/98 (DR 2.ª série, 26-11-1999) e 168/2003 (DR 2.ª série, 26-5-2003).Esta orientação do Tribunal Constitucional sobre a extensão do direito de acesso aos tribunais e do direito de recurso em processo criminal não sofreu alterações até aos nossos dias, conforme se alcança da leitura do seu recente acórdão 40/2008 (DR 2.ª série, 28-2-2008), em especial da parte em que se reiterou que:
«Ora, relativamente ao direito de acesso aos tribunais, constitui reiterado entendimento deste Tribunal o de que do artigo 20.º, n.º 1, da CRP não decorre um direito geral a um duplo grau de jurisdição, como já se explicitou nos atrás parcialmente transcritos Acórdãos n.os 489/95 e 1124/96. Como se referiu no Acórdão 638/98 (na senda do já exposto, entre outros, nos Acórdãos n.os 210/92, 346/92, 403/94, 475/94, 95/95, 270/95, 336/95, 715/96, 328/97, 234/98 e 276/98, e explicitando orientação posteriormente reiterada em numerosos arestos, designadamente nos Acórdãos n.os 202/99, 373/99, 415/2001, 261/2002, 302/2005, 689/2005, 399/2007 e 500/2007):
[...]
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição? A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32.º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo32.º
Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 653, e no Acórdão 202/90, id., vol. 16.º, p.
505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210.º), terá de admitir-se que «o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos» (cf., a este propósito, Acórdãos n.º 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9.º, p. 463, e n.º 340/90, id., vol.
17.º, p. 349).
Como a lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cf. os citados Acórdãos n.os 31/87 e 65/88, e ainda n.º 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.. 12.º, p. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos n.º 359/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8.º, p. 605), n.º 24/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 525) e n.º 450/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13.º, p. 1307).O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que tenham como efeito afectar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos.
Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a faculdade de
recorrer."
Não se vislumbra nenhuma razão para abandonar aqui a referida jurisprudência, mesmo que esteja em causa um alegado caso de oposição de julgados existente entre acórdãos proferidos pela Secção de Contencioso Administrativo e pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.Mesmo na jurisdição administrativa e tributária, até por força de um argumento a fortiori, o direito de acesso aos tribunais e a garantia jurisdicional administrativa não vão além de um segundo grau de jurisdição, conforme já foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional no acórdão 520/2007 (DR 2.ª série, 5-12-2007).
No caso concreto, a sociedade recorrente viu a sua pretensão de impugnação de liquidação tributária ser sucessivamente apreciada e julgada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja e pela Secção de Contencioso Tributário do Supremo
Tribunal Administrativo.
É assim possível concluir que o direito de acesso aos tribunais e o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa foram adequadamente assegurados pelo legislador ordinário e efectivamente gozados pela sociedade recorrente para defesa dosseus direitos.»
Voltando ao caso em apreço, importa afirmar que não cabe ao Tribunal Constitucional determinar qual a interpretação mais adequada das normas ou interpretações normativas cuja inconstitucionalidade é suscitada nos autos, cabendo-lhe apenas se a interpretação adoptada é contrária às normas e princípios ínsitos na lei Fundamental.Dito isto, importa frisar que nada na interpretação normativa adoptada permite concluir pela violação do direito de acesso à Justiça. Conforme já supra demonstrado pela jurisprudência citada, não pode pretender-se retirar dos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4, da CRP, qualquer direito fundamental ao recurso para harmonização de jurisprudência, em sede de Direito Processual Administrativo ou Tributário. Mesmo em sede de processo penal, já foi por este Tribunal entendido que o legislador ordinário não se encontra constitucionalmente obrigado a prever um recurso para harmonização de jurisprudência que abranja todas as hipóteses possíveis de contradição de julgados proferidos por tribunais superiores (cf. Acórdão 247/97, já supra citado). Para além disso, conforme decorre do Acórdão 520/07 (já supra citado), a ora recorrente apenas goza do direito a que a sua questão juridicamente controvertida seja apreciada por um tribunal imparcial e independente e, quando muito, que tal decisão seja reapreciada por um tribunal de segunda instância. Ora, nos autos recorridos, a questão controvertida já foi devidamente apreciada, não por um, mas por dois tribunais: o Tribunal Administrativo e Tributário de Viseu e o TCA-Norte.
Como tal, sendo certo que a interpretação normativa adoptada pelo tribunal recorrido quanto ao n.º 1 do artigo 152.º do CPTA não abarca todas as hipóteses possíveis de contradição entre acórdãos proferidos por tribunais superiores, não se justifica considerá-la como inconstitucional, por violação do direito de acesso à Justiça (artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4, ambos da CRP).
7 - O mesmo se diga quanto à invocada inconstitucionalidade por violação do princípio
da igualdade (artigo 13.º da CRP).
Pretende a recorrente que a circunstância de a mesma ter instaurado duas acções tributárias que foram alvo de decisões divergentes, relativamente à mesma questão jurídica, implica um tratamento desigual, por não lhe ser possível lançar mão do mecanismo de harmonização de jurisprudências previsto no n.º 1 do artigo 152.º doCPTA. Não tem, porém, razão a recorrente.
O princípio da igualdade não impede a adopção de opções legislativas que envolvam um tratamento diferenciado de situações diferenciadas, nem tão pouco impede a diferenciação de soluções jurídicas aplicáveis a situações aproximadas, desde que objectivamente justificadas e adequadas e necessárias ao fim que se pretende prosseguir. Dito de outro modo: o princípio da igualdade impõe uma verdadeira proibição de arbítrio, ou seja, exige que a opção legislativa assente num fundamento racional (assim, ver a mero título de exemplo, Acórdãos n.º 39/88, n.º 188/90 e n.º 98/01). Ora, ainda que se admitisse que a interpretação normativa reputada de inconstitucional pudesse comportar um tratamento diferenciado de situações similares, sempre seria evidente que tal diferenciação assenta num critério objectivo e racional, in casu a restrição do mecanismo de harmonização de julgados a decisões tomadas por um tribunal superior situado na mesma instância ou em instância superior. Assim, os argumentos da recorrente não seriam procedentes.Pelo exposto, também não se vislumbra que a interpretação normativa acolhida pela
decisão recorrida seja inconstitucional.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso.Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC's, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2010. - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão.
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