Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1 - João José Esteves Simões intentou, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras e contra Ana Cristina Gonçalves Ferreira Nunes, acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de mútuo nos termos do Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro.Citada para contestar, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 1.º do Regime dos Procedimentos anexo ao referido decreto-lei, veio a contestação oferecida pela Ré a ser julgada extemporânea, em despacho datado de 19 de Outubro de 2007.
Considerando que a Ré apresentara a sua contestação após o termo do prazo legalmente fixado para tanto (n.º 2 do artigo 1.º do Regime anexo ao Decreto-Lei 269/98); que, salvo o caso de justo impedimento, devidamente invocado, o decurso do prazo peremptório extingue o direito à prática do acto (artigos 145.º, n.º 3 e 146.º do Código de Processo Civil); e que se não verificara, in casu, o justo impedimento invocado pela Ré, o Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras ordenou, após ter julgado extemporânea a contestação, o seu desentranhamento dos autos e a sua devolução à
representante da Ré.
Deste despacho interpôs Ana Cristina Gonçalves Ferreira Nunes recurso de agravopara o Tribunal da Relação de Lisboa.
Nas suas alegações de recurso, sustentou fundamentalmente Ana Cristina que, tendo sido a citação para a contestação efectuada em pessoa diversa do citando, nos termos do n.º 2 do artigo 236.º e do n.º 2 do artigo 240.º do Código de Processo Civil, a secretaria do tribunal lhe não comunicara o facto dentro do prazo cominado pelo artigo 241.º do mesmo Código, o que, constituindo um dado notório, teria desde logo inviabilizado a possibilidade de realização atempada da sua defesa.2 - Por Acórdão datado de 17 de Junho de 2008, o Tribunal da Relação concedeu provimento ao agravo do despacho que havia considerado extemporânea a contestação, revogando-o. Fê-lo, no entanto, por recusar a aplicação da norma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, "na parte em que determina a não aplicação da dilação prevista no artigo 252.º-A, n.º 1, alínea a) do CPC no caso de citação feita em pessoa diversa do réu nos termos do artigo 236.º, n.º
2, do mesmo Código".
O juízo de inconstitucionalidade, fundamentado em violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 4 (processo equitativo); 18.º (proporcionalidade) e 13.º (igualdade) da Constituição da República, fez-se nos seguintes termos:
[...]
A consideração da extemporaneidade da contestação tem vindo a ser tratada nos autos como uma questão de justo impedimento; mas, em nosso modo de ver,incorrectamente.
Com efeito não se nos afigura que esteja em causa a discussão de um evento que obste à prática atempada de um acto de que se tem perfeita consciência e conhecimento que pode ser praticado, que é o pressuposto da noção de justo impedimento, mas antes acontagem de um prazo.
[...]
Mas o que verdadeiramente está em causa é um outro aspecto, que importa afrontardirectamente.
Se atentarmos às regras gerais sobre a citação (designadamente os artigos 236.º, 252.º-A e 145.º do CPC), e partindo da data da assinatura do aviso de recepção, a contestação haveria de ser considerada apresentada em prazo (os 5 dias de dilação remetem o início do prazo para 12SET, terminando o respectivo prazo de 20 dias em 2OUT; 3 e 4OUT foram os primeiro e segundo dias úteis subsequentes; 5, 6 e 7OUT (feriado, sábado e domingo) foram dias não úteis; e 8OUT foi o terceiro dias útilsubsequente).
Ocorre, porém, que o artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98, 1SET, determina que à contagem dos prazos constantes no regime da acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária são aplicáveis as regras do CPC, "sem qualquer dilação". E é por aplicação dessa norma ao caso concreto que se levanta a questão daextemporaneidade da contestação.
Afigura-se-nos, no entanto, que tal norma, na medida em que proíbe que o prazo de contestação só comece a contar depois de decorridos cinco dias após a entrega da carta de citação a terceira pessoa que não o citando, afronta as normas constitucionais, devendo ser recusada a sua aplicação, nos termos do artigo 204.º da Constituição.A Constituição da República estabelece no seu artigo 20.º, n.º 4, o direito ao processo equitativo, o qual só pode ser restringido com respeito pelos princípios da proporcionalidade (artigo 18.º) e da igualdade (artigo 13.º).
O significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais. Sendo um desses princípios o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas.
O respeito pelo direito de defesa e ao contraditório implica uma particular relevância do acto de citação, na medida em que esta surge como um particular momento de efectivação de tal direito; na medida em que é com ela que, conforme refere o artigo 228.º do CPC, se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender.
O acto de citação deve, pois, para respeito do direito de defesa e ao contraditório e garantia do processo equitativo, ser rodeado de especiais cautelas para assegurar a
plena compreensão do seu objecto.
[...]
Pode dizer-se que tais cautelas foram tomadas no caso de entrega da carta de citação(citação) a terceira pessoa.
Desde logo essa entrega só pode ser feita a um terceiro qualificado para a entrega da carta ao citando em face das circunstâncias do caso: pessoa que se encontre na residência ou local de trabalho do citando que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando (artigo 236.º, n.º 2, do CPC) ou pessoa que esteja em melhores condições de a transmitir ao citando (artigo 240.º, n.º 2, do CPC).Tal pessoa é devidamente identificada (artigos 236.º, n.º 3, e 240.º, n.º 2, do CPC) e expressamente advertida do dever de entrega pronta e da responsabilidade adveniente do incumprimento desse dever (artigos 236.º, n.os 1 e 4, e 240.º, n.º 4, do CPC).
E é remetida carta registada ao citando dando-lhe conta de que a citação foi entregue a
terceira pessoa (artigo 241.º do CPC).
Realizada em tais circunstâncias é sustentável um juízo de certeza jurídica de que a citação chega prontamente ao seu destinatário, cumprindo integral e plenamente as suas funções, no cumprimento da exigência de um processo equitativo, pelo que é lícito equiparar tal forma de citação à citação pessoal, tendo-se a mesma como efectuada na própria pessoa do citando (artigos 238.º, n.º 1, e 240.º, n.º 5, do CPC).Nessa equiparação falta, no entanto, um elemento essencial na caracterização do sistema legal de citação. Como se afirmou já, a exigência do processo equitativo impõe que o sistema de citação permita fixar segura e objectivamente o momento da citação, o que não ocorre na citação efectuada através de terceira pessoa.
Podendo ter-se a citação como efectuada na própria pessoa do citando e presumindo que a carta (acto) é prontamente entregue (comunicado), fica sempre a incerteza quanto ao tempo dessa entrega (comunicação), sendo que a simples experiência comum de vida leva a vislumbrar diversificadas situações em que ocorre um lapso de
tempo até à entrega (comunicação).
Sendo manifesta a necessidade de tempo para entrega da carta ou comunicação do acto não seria conforme com as exigências do processo equitativo considerar-se a citação feita no momento da intervenção do terceiro (como literalmente se expressa o artigo 238.º, n.º 1, do CPC) onerando-se o citado com a obrigação de demonstrar o efectivo momento em que teve conhecimento de lhe ter sido instaurada uma acção.A fixação temporal do momento do chamamento não pode ficar dependente de contingências probatórias (em muitas circunstâncias difíceis de alcançar dado tratarem-se de actos de relacionamento privado) a cargo do citado, mas tem, antes, de resultar segura e objectivamente dos actos praticados no processo.
A mesma experiência comum de vida que nos permite vislumbrar diversificadas situações em que ocorre um lapso de tempo até à entrega (comunicação) também nos permite vislumbrar um espaço de tempo dentro do qual, na generalidade dos casos e segundo padrões de diligência imposto pela obrigação de prontidão, essa entrega (comunicação) vem a ocorrer e considerar esse espaço de tempo como prazo padrão objectivo a considerar para a fixação temporal do momento da citação.
E foi essa a solução adoptada pelo legislador ao estabelecer, no artigo 252.º-A, n.º 1, al. a), do CPC, que nos casos em que a citação tenha sido efectuada em pessoa diversa do réu acresce ao prazo de defesa uma dilação de cinco dias. Ou seja, quando a citação é efectuada em pessoa diversa do réu, não obstante ter-se a mesma como efectuada na pessoa do réu, a mesma só se considera efectuada decorridos cinco dias (tempo tido por adequado ao cumprimento da obrigação de pronta entrega da carta ou
Como garantia última da compatibilidade do sistema de citação com as exigências do processo equitativo estabeleceram-se duas 'válvulas de segurança' para obviar a possíveis (e, necessariamente, excepcionais) disfuncionalidades: a admissibilidade de demonstração de que a entrega (comunicação) ocorreu para além do prazo de cinco dias (artigo 238.º, n.º 1, do CPC) ou que não chegou mesmo a ocorrer (artigo 195.º,n.º 1, al. e), do CPC).
De notar que tais situações apenas se afiguram compatíveis com as exigências do processo equitativo enquanto 'válvulas de segurança' de situações excepcionais, que extravasam os padrões de normalidade da prática social, que justifica seja colocado o ónus da respectiva prova no citado; não podendo ver-se nelas uma consagração de atribuição generalizada ao citado do ónus de demonstração do momento da citação.A consagração da dilação no caso de a citação ter sido efectuada em pessoa diferente do réu surge assim como um imperativo da garantia de defesa decorrente das
exigências do processo equitativo.
Só sendo constitucionalmente legítimo ao legislador ordinário restringir ou eliminar tal circunstância com respeito pelos princípios da proporcionalidade ou da igualdade.A acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias (e o procedimento de injunção) criada pelo Decreto-Lei 269/98, 1SET, visava, no dizer do relatório preambular do citado diploma limitar os efeitos perversos da ocupação dos tribunais, como órgãos de reconhecimento e cobrança de dívidas, por parte de empresas que negoceiam com milhares de consumidores, com concessão indiscriminada de crédito, criando uma tramitação própria tendo em conta a normal simplicidade desse tipo de acção, em que é frequente a não oposição do demandado, virada essencialmente para
a rápida formação de título executivo.
Ora não se vislumbra que a restrição das garantias de defesa seja adequada e necessária (por inexistência de meios menos onerosos) para alcançar a finalidade visada com a criação dessa acção especial, não podendo considerar-se a ocorrência de proporcionalidade na eliminação da dilação do prazo da contestação nesse tipo deacção.
Como igualmente se não vislumbra qualquer diferenciação de posições entre os réus desse tipo de acção e a generalidade dos demandados que justifique um desigualtratamento.
O que se vislumbra, isso sim, é que considerando-se ser frequente a não oposição do demandado, se entendeu não ser de prolongar o prazo em que o processo fica à espera de uma ocorrência improvável, para mais rapidamente se obter decisão que confiraforça executiva à petição inicial.
Só que a eficiência e a celeridade não podem ser alcançados à custa do sacrifício dos direitos fundamentais nem justificam arbitrárias diferenciações.3 - Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto pela alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, João José Esteves
Simões, autor na acção principal.
Perante a ausência, no requerimento de interposição de recurso, de indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que o Tribunal apreciasse, foi o recorrente convidado pela primitiva Relatora a aperfeiçoar o referido requerimento, tendo sido esclarecido que se pretendia ver apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei 268/98, de 1 de Setembro, na parte em que determina a não aplicação da dilação prevista no artigo 252.º-A do Código de Processo Civil, nos casos de citação feita em pessoa diversa do Réu, nos termos do artigo 236.º, n.º 2 domesmo diploma (fls. 218 dos autos).
4 - Admitido o recurso no Tribunal, nele vieram apresentar alegações recorrente erecorrida.
Disse o primeiro, basicamente, que, gozando o legislador ordinário de discricionariedade para, dentro das exigências impostas pelo princípio da proporcionalidade e da igualdade, moldar ou conformar as normas de processo - aí se incluindo a definição da tramitação a seguir e das sanções processuais que a violação dessa tramitação importasse -, e não havendo, in casu, lesão dos princípios da proporcionalidade e da igualdade, se não deveria julgar inconstitucional o disposto pelo artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98. Sustentou por seu turno a segunda, e fundamentalmente, que seria de manter a tese da inconstitucionalidade adoptada pela decisão recorrida, por implicar o disposto no artigo 4.º do referido decreto-lei, nas situações em que ocorra citação feita em pessoa diversa do Réu, violação dos princípios constitucionais do processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4 da CRP), da proporcionalidade das restrições aos direitos (artigo 18.º) e da igualdade (artigo 13.º).
Importa agora apreciar e decidir.
II
Fundamentos
5 - Está em juízo, no presente recurso de constitucionalidade, o artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, que dispõe do seguinte modo:À contagem dos prazos constantes das disposições do regime aprovado pelo presente diploma são aplicáveis as regras do Código de Processo Civil, sem qualquer dilação.
O Decreto-Lei 269/98 veio aprovar, para ser aplicável apenas a litígios de pequeno valor, o regime especial dos procedimentos destinados e exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
Ao fazê-lo cumpriu (com alterações sucessivas, que agora não interessa enumerar) o desiderato que o legislador da revisão do Código de Processo Civil já havia formulado em 1995: o de que se deveria prever, em diploma próprio, e sem prejuízo da aplicação do regime de processo sumaríssimo, a regulação especial da tramitação dos processos que corressem termos nos tribunais de pequena instância cível, de modo a aí atingir objectivos de simplificação e celeridade processual (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º
329-A/95).
Foi assim que, em 1998, se concretizou este propósito, generalizando-o no entanto ao conjunto dos tribunais judiciais. Pretendia-se que, para o domínio da pequena litigiosidade, respeitante ao cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contratos que não excedessem o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância, valesse um processo especial que, embora inspirado no modelo da acção sumaríssima, o simplificasse ainda. E isto para - conforme se diz na exposição de motivos do Decreto-Lei 269/98 - obviar aos efeitos perversos decorrentes da "instauração de acções de baixa intensidade que tem crescentemente ocupado os tribunais, [que], colocados, na prática, ao serviço de empresas que negoceiam com milhares de consumidores, correm o risco de se converter, sobretudo nos grandes meios urbanos, em órgãos que são meras extensões dessas empresas, com o que se postergam decisões, em tempo útil, que interessam aos cidadãos, fonte legitimadora do seu podersoberano".
É neste contexto que se deve entender o disposto na norma sob juízo.Com efeito, ao determinar que, quanto ao modo de contagem dos prazos previstos pelo regime de processo simplificado que regula, se apliquem, sem qualquer dilação, as regras pertinentes do Código de Processo Civil, o artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98 vem ainda, em harmonia com o espírito geral do sistema aqui instituído pelo legislador, simplificar o modelo originário da acção sumaríssima, tornando-o mais célere.
No caso do presente recurso, o prazo de cuja contagem se trata diz respeito à contestação oferecida pelo réu. Nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do Regime dos Procedimentos destinados e exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, constante do anexo ao Decreto-Lei 269/98, "o réu é citado para contestar no prazo de quinze dias, se o valor da acção não exceder a alçada do tribunal de 1.ª instância, ou no prazo de vinte dias, nos restantes casos." Na situação dos autos o prazo aplicável seria, em princípio, o de vinte dias.
No entanto, e por nela ter ocorrido a circunstância prevista nos artigos 236.º, n.º 2 e 240.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (a citação foi efectuada em pessoa diversa do Réu), a estes vinte dias deveriam acrescer ainda mais cinco, caso valesse para este tipo de processos o regime de dilações previsto no artigo 252.º-A do mesmo Código (particularmente, o regime constante da alínea a) do seu n.º 1, relativo aos casos em que a citação seja realizada em pessoa diversa do réu). Mas impondo o artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98 um método de contagem de prazos sem qualquer dilação, ao réu - ainda que citado através de terceiros - só restaria no caso, e para organizar a sua defesa, o prazo peremptório de vinte dias, fixado pelo n.º 2 do artigo 1.º do regime
processual em questão.
Entendeu a decisão recorrida que este resultado, apenas decorrente da norma que proíbe a aplicação, a este tipo de processos, dos prazos dilatórios previstos pelo artigo 252.º-A do CPC, feria os princípios constitucionais do processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4 da CRP), da proporcionalidade (artigo 18.º) e da igualdade (artigo 13.º); e, por isso, desaplicou a norma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, "na parte em que determina a não aplicação da dilação prevista no artigo 252.º-A, n.º 1, alínea a) do CPC no caso de citação feita em pessoa diversa do réu nos termos do artigo 236.º, n.º 2, do mesmo Código". Foi por assim ter decidido que o Tribunal da Relação, concedendo provimento ao agravo que havia sido interposto, revogou o despacho do tribunal a quo que julgara extemporânea a contestação que, nocaso, a ré oferecera.
Vejamos com que razão se fez este juízo relativo à questão de constitucionalidade.6 - Na conformação das regras próprias do processo civil não está o legislador ordinário sujeito a uma vinculação constitucional tão intensa quanto a que se verifica a propósito da conformação das regras de processo penal. A afirmação, que tem sido reiterada pela jurisprudência (vejam-se quanto a este ponto, e por exemplo, os Acórdãos n.os 271/95, 335/95 e 508/2002, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), compreende-se face à natureza dos bens jurídicos protegidos por um e outro domínio do direito infraconstitucional. Estando em causa, no processo penal, a tutela de bens jusfundamentais como os relativos à liberdade e à segurança das pessoas (artigos 27.º, 28.º, 30.º, 31.º, e 32.º da CRP), natural é que, neste domínio, a Constituição enuncie expressamente os princípios e as garantias a que devem estar subordinadas as leis de processo. O mesmo não sucede com o regime processual civil, declarativo ou executivo. No entanto, e também como sempre se tem dito, tal não significa que o legislador ordinário detenha aqui uma total liberdade conformadora, como se fosse este um campo vazio de vinculações jurídico-constitucionais. Desde logo, o princípio do processo equitativo, decorrente do princípio do Estado de direito e consagrado, sobretudo, no artigo 20.º da Constituição, limita à partida todas as escolhas legislativas que nestas áreas se poderão vir a fazer.
É já firme o conteúdo que a jurisprudência do Tribunal tem conferido a este princípio do processo equitativo, reconhecido no artigo 20.º da CRP.
Como se disse no Acórdão 271/95 - retomando jurisprudência já fixada nos Acórdãos n.os 404/87, 86/88 e 222/90, in Diário da República, 2.ª série, respectivamente, de 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990 - o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (que encerra entre nós um conteúdo similar àquele que, noutros lugares, é conferido ao princípio do due process of law) inclui, entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com a observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras.
Quer isto dizer, fundamentalmente, que no âmbito de protecção normativa do artigo 20.º da CRP se integrarão, além de um geral direito de acção, ainda o direito a prazos razoáveis de acção e de recurso e o direito a um processo justo, no qual se incluirá, naturalmente, o direito da cada um a não ser privado da possibilidade de defesa perante os órgãos judiciais na discussão de questões que lhe digam respeito.
Integrando, assim, a "proibição da indefesa" o núcleo essencial do "processo devido em Direito", constitucionalmente imposto, qualquer regime processual que o legislador ordinário venha a conformar - seja ele de natureza civil ou penal - estará desde logo vinculado a não obstaculizar, de forma desrazoável, o exercício do direito de cada um a
ser ouvido em juízo.
Neste contexto, assume particular relevância o modo pelo qual a lei ordinária conforma o regime das citações e das notificações. Tratando-se estes de actos processuais, praticados pelo tribunal, que visam (em geral) informar sobre o processo ou chamar alguém a juízo, é compreensível que o modo da sua regulação infraconstitucional se revista de alguma sensibilidade quanto ao cumprimento das garantias exigidas pelo princípio do processo equitativo. Sobretudo no caso da citação, que, conforme dispõe a primeira parte do n.º 1 do artigo 228.º do Código de Processo Civil, é desde logo "o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender." A regulação, por lei ordinária, dos prazos que se concedem para que o réu responda ao convite à defesa, que deste modo lhe é feito, assume assim, inquestionavelmente, relevo jurídico-constitucional, na exacta medida em que dela pode vir a depender o modo concreto do exercício do direito (fundamental) de cada um a ser ouvido em juízo.Tal relevo torna-se ainda mais acentuado naquelas situações - como a dos autos - em que a citação é efectuada em pessoa diversa do réu, nos termos do disposto pelo n.º 2 do artigo 236.º do CPC e pelo n.º 2 do artigo 240.º do mesmo Código. Como bem sublinha a decisão recorrida, nestas circunstâncias, às preocupações gerais que devem orientar qualquer regulação ordinária dos modos e do tempo da citação - garantir que ao réu seja facultada a plena compreensão das razões por que é chamado a juízo, de forma a possibilitar a organização eficaz e atempada da sua defesa - acrescem ainda "as cautelas necessárias para assegurar um adequado grau de certeza da efectiva recepção da citação pelo seu destinatário." (fls. 183). É assim que se compreendem as exigências decorrentes do n.º 2 do artigo 236.º do CPC (e também do n.º 2 do seu artigo 240.º) quanto à pessoa a quem pode ser entregue a citação, quanto à sua necessária identificação (n.º 3 do artigo 236.º; n.º 2 do artigo 240.º) e quanto às advertências que lhe são feitas relativamente ao dever de entrega pronta da citação ao seu destinatário (n.os 1 e 4 do artigo 236.º; n.º 4 do artigo 240.º.) É assim, também, que se compreende que, nos termos do n.º 1, alínea a) do artigo 252.º-A do CPC, "ao prazo de defesa do citando acresce uma dilação de cinco dias quando a citação tenha sido realizada em pessoa diversa do réu [...]."
Entendeu a decisão recorrida que, ao excluir a aplicação deste prazo dilatório aos processos por ele regulados, o artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98 não cumpriu - em casos de citação em pessoa diversa do réu - os deveres jurídico-constitucionais que impendem sobre o legislador ordinário. Mas sem razão o fez.
7 - Como já se viu, da estrutura complexa que detém o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da CRP, decorrem, para o legislador ordinário, várias obrigações, para além daquela que se cifra em não lesar o princípio da "proibição da indefesa". A lei de processo, nos termos da Constituição, não está só obrigada a garantir "um correcto funcionamento das regras do contraditório", de modo a que "cada uma das partes [possa] deduzir as suas razões [...], oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras". Para além disso, deve o legislador ordinário conformar o processo de modo tal que através dele se possa efectivamente exercer o direito a uma solução jurídica dos conflitos, obtida em tempo razoável e com as todas as garantias de imparcialidade e
independência.
Assim, entre os valores da "proibição da indefesa" e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica existe à partida, e como se disse no Acórdão 508/2002, uma relação de equivalência constitucional: todos estes valores detêm igual relevância e todos eles são constitucionalmente protegidos. Ora, quando vinculado por vários valores constitucionais, díspares entre si pelo conteúdo mas iguais entre si pela relevância, deve o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em benefício exclusivo de outro ou deoutros.
Ao determinar que, no regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias de pequeno montante emergentes de contratos, os prazos se contassem de acordo com as regras fixadas pelo Código Civil mas sem qualquer dilação, o artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98 procurou ainda cumprir, em equilíbrio com o sistema geral que o legislador aqui havia instituído, finalidades de simplificação e celeridade processual que se entenderam ser justificadas face ao tipo de litigiosidade em causa. À luz do disposto pelo artigo 20.º da CRP, tais finalidades correspondem à prossecução de interesses e valores constitucionais que vinculam o legislador tanto quanto o vincula a obrigação de respeitar, na modelação das normas de processo, a"proibição da indefesa".
Este modo de prossecução de valores e interesses constitucionalmente relevantes não implicou o sacrifício unilateral do princípio do contraditório, particularmente nos casos em que ocorra citação em pessoa diversa do citando. Desde logo, porque a lei continua a assegurar que, naquelas situações em que seja comprovadamente difícil para o réu organizar a sua defesa no prazo peremptório para tal fixado, se prorrogue, por decisão do tribunal, o período de tempo concedido para a contestação (artigo 486.º, n.º 5 do CPC). É certo que a decisão recorrida entendeu não ser aplicável ao caso este último regime, de justo impedimento, fixado no n.º 5 do artigo 486.º do Código. Por outro lado, também é certo que não cabe ao Tribunal rever o modo pelo qual as instâncias interpretam e aplicam o direito ordinário. No entanto, e para efeitos do juízo sobre a (in)constitucionalidade da norma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei 268/98, é absolutamente necessário ter em conta este elemento fundamental do sistema, independentemente do modo pelo qual ele foi, no caso concreto, entendido e aplicado:a possibilidade de o juiz da causa vir a prorrogar o prazo da defesa, naqueles casos comprovados de impossibilidade da sua organização, plena e eficaz, no prazo peremptório fixado pela lei, funciona em si mesma - e para empregar expressão usada pela decisão recorrida - como uma "válvula de segurança" do sistema, no que diz respeito ao cumprimento das exigências decorrentes do princípio constitucional da
"proibição da indefesa".
Não parece, por isso, que tenha havido qualquer excesso no modo pelo qual o legislador, no artigo 4.º do Decreto-Lei 268/98, procurou articular os "valores" da celeridade processual e do princípio do contraditório. A medida que aí se fixou não se mostra nem inadequada, nem desnecessária, nem desproporcionada face aos fins de política legislativa que a orientaram, pelo que não implicou, efectivamente, o sacrifício unilateral do valor ínsito na "proibição da indefesa", potencialmente conflituante com os valores da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica. A solução que foi achada correspondeu antes a uma forma côngrua de fazer concordar praticamente os diferentes "interesses" em conflito, pelo que não merece, à luz das normas contidas no artigo 20.º da CRP, nenhuma censura constitucional.8 - Tal como não merece, a mesma solução, nenhuma censura constitucional face ao princípio consagrado no artigo 13.º da CRP.
O Tribunal tem dito, em jurisprudência de tal modo constante que não vale a pena repetir aqui todos os lugares da sua afirmação (veja-se, entre muitos outros, o Acórdão 232/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) que o princípio da igualdade, enquanto parâmetro constitucional capaz de limitar as acções do legislador, tem uma tripla dimensão: a da proibição do arbítrio legislativo, a da proibição de discriminações negativas, não fundadas, entre as pessoas e a eventual imposição de discriminações positivas. Não estando evidentemente em causa, no caso concreto, nem a segunda nem a terceira dimensões do princípio da igualdade (a diferença entre os regimes processuais comum e especial, quanto ao modo de contagem do prazo para a contestação do réu em caso de citação efectuada em pessoa terceira, não é seguramente algo que possa relevar do domínio da discriminação, que, podendo ser negativa ou positiva, tem sempre a sua sede última no n.º 2 do artigo 13.º), só cabe in casu averiguar se o legislador terá aqui instituído, no artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98, uma diferença de regimes - entre o processo comum e o processo especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos - que seja arbitrária, isto é, que não possa ser fundamentada à luz de um critério inteligível ou racionalmente apreensível, congruente com valores constitucionalmente relevantes.
Ora, decorre de tudo quanto atrás se disse que não é, evidentemente, arbitrária ou não fundada a diferença de regime que o artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98 institui, quanto ao modo de contagem do prazo para a contestação do réu, caso este tenha sido citado através de terceira pessoa. Tal diferença ou especialidade de regime, pelo contrário, tem a fundamentá-la uma razão material bastante (claramente decorrente da exposição de motivos contida no preâmbulo do decreto-lei), razão essa congruente com a prossecução, por parte do legislador ordinário, de interesses e valores constitucionais dotados, como já vimos, de particular relevância. Tanto basta para que se conclua que, também face ao parâmetro contido no artigo 13.º da CRP, não merece a norma sob juízo qualquer censura por parte do Tribunal.
III
Decisão
Assim, e pelos motivos expostos, o Tribunal decide:a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, na parte em que determina a não aplicação da dilação prevista no artigo 252.º-A, n.º 1 alínea a), do Código de Processo Civil, no caso de citação feita a pessoa diversa do réu; e, consequentemente, b) Conceder provimento ao recurso, reformando-se a decisão recorrida quanto à
questão de constitucionalidade.
Sem custas
Lisboa, 13 de Janeiro de 2010. - Maria Lúcia Amaral - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins (vencida, nos termos da declaração anexa) - Vítor Gomes (vencido, nos termos da declaração de voto da Exma. Conselheira Ana Guerra Martins para que remeto) - Gil Galvão.
Declaração de voto
1 - Vencida por considerar que a norma extraída do artigo 4.º do decreto preambular do Decreto-Lei 269/98, de 01 de Setembro, é inconstitucional, quando afasta o prazo dilatório de cinco dias úteis previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 252.º-A, do CPC, se após citação em pessoa diversa do réu, a secretaria não procede à advertência exigida pelo artigo 241.º, do CPC, no prazo legalmente fixado de dois dias úteis, por restrição desproporcionada (artigos 17.º e 18.º, n.º 2, da CRP) do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 4, da CRP).Em primeiro lugar, deve registar-se que existe uma abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao regime de citações e notificação em processo civil, alicerçada na ideia de que tal regime deve assegurar a possibilidade de defesa efectiva daqueles contra quem são deduzidos pedidos em juízo (ver os Acórdãos n.º 271/95 (disponível in «Acórdãos do Tribunal Constitucional», 31.º vol., págs. 359 e segs.; n.º 508/2002, publicado in «Diário da República», 2.ª série, de 26 de Fevereiro de 2003;
n.º 182/06, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Em segundo lugar, deve sublinhar-se que este Tribunal tem decidido pela não inconstitucionalidade de normas jurídicas que presumam o conhecimento da instauração de acção contra o réu - que sucede no caso da citação por via postal simples, mas também ocorre quando a citação é feita em pessoa diversa do réu e aquela não lha comunica imediatamente -, desde que tais presunções sejam rodeadas das cautelas necessárias a garantir a possibilidade de conhecimento efectivo, por um destinatário normalmente diligente, do conteúdo da citação.
2 - O afastamento de quaisquer prazos dilatórios pelo artigo 4.º do referido diploma legal visa acautelar o próprio direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, na sua vertente de direito à obtenção de uma decisão jurisdicional célere (artigo 20.º, n.º 4, da CRP). Ou seja, visam-se objectivos de celeridade processual, em prol da posição processual dos credores que instaurem estas acções especiais. Em contraponto, a prossecução de tal celeridade atinge, necessariamente, o direito fundamental dos devedores a uma defesa justa (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), na medida em que reduz os respectivos prazos efectivos de contestação.
Em tese até pode ser sustentável que a norma em causa não restringe, de modo desproporcionado (artigos 17.º e 18.º, n.º 2, ambos da CRP) o direito da recorrida a uma tutela jurisdicional efectiva, na medida em que é: i) "necessária", uma vez que visa a protecção do direito do autor (ora recorrente) a uma decisão jurisdicional célere; ii) "adequada", visto que contribui para acelerar a marcha daquela acção especial; iii) "proporcional em sentido estrito", dado que poderá representar a medida menos lesiva do direito da recorrida, designadamente, porque acautela o efectivo conhecimento da citação, mediante envio de advertência da citação no prazo de dois dias úteis contados da citação na pessoa diversa do réu, conforme imposto pelo artigo 241.º do CPC.
Sucede, porém, que, na dimensão com que a norma foi aplicada aos presentes autos, a demora na advertência à citanda (ora requerida) - que apenas foi enviada, em 27 de Setembro de 2007, e não em 11 de Setembro de 2007, conforme expressamente cominado pelo artigo 241.º do CPC - não lhe é de todo imputável, pelo que não pode repercutir-se na sua esfera jurídica, sem que o seu direito fundamental à proibição de indefesa seja afectado. Além disso, não recaíam sobre a recorrida quaisquer deveres de informação do recorrente sobre a eventual alteração do seu domicílio, na medida em que o contrato celebrado entre aqueles não procedeu a qualquer fixação de domicílio.
Ora, se é certo que a não aplicação de prazos dilatórios às citações para as acções especiais previstas no Decreto-Lei 269/98 - cujos valores são objectivamente reduzidos, por inferiores à alçada dos tribunais de Relação - não se afigura, necessariamente, contraditória com o princípio da proibição da indefesa, não é menos certo que tal conformidade dependerá sempre de um acautelamento acrescido da possibilidade de conhecimento efectivo da citação por parte do réu. A advertência constante do artigo 241.º do CPC é configurável como um instrumento privilegiado de garantia da proporcionalidade de tal restrição.
Quer dizer: somente a garantia de uma cognoscibilidade acrescida salvaria o artigo 4.º do decreto preambular do Decreto-Lei 269/98 de um juízo negativo de
proporcionalidade.
Assim sendo, o afastamento do prazo dilatório previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 252.º-A do CPC, pelo artigo 4.º do decreto preambular do Decreto-Lei 269/98, quando a advertência do citando não tenha ocorrido no prazo previsto no artigo 241.º do CPC, é contrário à Constituição, na medida em que restringe, de modo desproporcionado, o direito fundamental de tutela jurisdicional efectiva, na sua vertente de proibição da indefesa (artigos 17.º, 18.º, n.º 2 e 20.º, n.º 4, todos da CRP). - AnaMaria Guerra Martins.
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