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Acórdão 632/2009, de 19 de Fevereiro

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Sumário

Decide não julgar inconstitucionais as normas do artigo 50.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, segundo a qual o Tribunal de Comércio de Lisboa é competente para apreciar as decisões da Autoridade da Concorrência e do artigo 75.º do Regime Geral das Contra-Ordenações. (Proc. n.º 103/08)

Texto do documento

Acórdão 632/2009

Processo 103/08

Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente a Ordem dos Médicos e são recorridos o Ministério Público e a Autoridade da Concorrência, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal de 22 de Novembro de

2007.

2 - Por decisão de 26 de Maio de 2006, a Autoridade da Concorrência aplicou à Ordem dos Médicos uma coima no valor de (euro) 250.000,00 e ordenou a publicação do sumário da decisão no Diário da República e a da parte decisória num

jornal nacional de expansão nacional.

A Ordem dos Médicos impugnou judicialmente esta decisão, suscitando a questão prévia da incompetência material do Tribunal de Comércio.

Em 6 de Setembro de 2006, o Tribunal de Comércio decidiu declarar-se materialmente competente para apreciar o recurso interposto. Em 18 de Janeiro de 2007, o recurso foi julgado parcialmente procedente. Consequentemente, a Ordem dos Médicos foi condenada na coima de (euro) 230.000,00 e na publicação de súmula da decisão, incluída a parte decisória, no Diário da República e da parte decisória em jornal

nacional de expansão nacional.

A Ordem dos Médicos recorreu da decisão proferida quanto à questão prévia da competência material do Tribunal de Comércio (fl. 167 e ss.) e da sentença deste tribunal de 18 de Janeiro de 2007 (fl. 322 e ss.) para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Para o que importa apreciar e decidir, extrai-se da motivação deste recurso o seguinte:

«Da Incompetência legal da autoridade da concorrência para punir a recorrente 20 - A recorrente considera que a AdC não tem competência legal para sancionar a

Ordem dos Médicos.

Na verdade, importa ter presente que a lei autoriza a subsunção das ordens profissionais, enquanto entidades (auto)reguladoras, ao conceito de "entidades reguladoras sectoriais" para efeitos de caracterização da sua relação com a AdC como de colaboração - vide artigo 15.º da Lei 18/2003 e Vital Moreira in "Auto-Regulação profissional e Administração Pública", Almedina, 1997.

22 - E, nesta medida, não se vislumbra que a AdC tenha competência para instaurar processos sancionatórios contra as demais entidades reguladoras sectoriais, como seja,

a CMVM ou a ANACOM.

23 - A Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva pública.

24 - Se é certo que as contra-ordenações previstas na lei da Concorrência se aplicam, de facto, a pessoas colectivas, nada no referido diploma aponta para que as pessoas colectivas públicas tenham sido abrangidas pelo legislador; bem pelo contrário, um conjunto de elementos literais, históricos, sistemáticos, estruturais e teleológicos

indiciam a solução contrária.

25 - Tratando-se de uma questão extremamente delicada, que comporta opções de fundo de política criminal, pelo que seria de esperar uma menção expressa por parte do legislador; não existindo essa indicação, o intérprete deverá rejeitar a aplicação de sanções desta natureza a pessoas colectivas públicas por violações do direito nacional da concorrência, não só em razão dos argumentos referidos, mas também porque estamos aqui perante matéria de direito sancionatório público.

26 - Acresce que uma interpretação da lei da Concorrência que submeta as ordens profissionais ao direito nacional da concorrência é inconstitucional, porquanto, não tendo o legislador democrático sido explícito nessa inclusão, deverá prevalecer, prima facie, a garantia constitucional da autonomia das associações públicas - artigo 267.º da

CRP.

27 - Por último, a aplicação de vários preceitos da lei da concorrência, às ordens profissionais apresenta-se corno legalmente impossível, pois a mesma identifica, como destinatários da sanção, as "empresas associadas que hajam participado no comportamento proibido", e como critério para calcular a medida da coima, "10 % do volume agregado anual das empresas associadas".

28 - Em matéria de direito sancionatório público, não só não se vislumbra de que forma se procederá à identificação das "empresas participantes", como não se configura quem será o titular dos "negócios" referidos na norma em questão, nem qual a forma legal e

minimamente rigorosa de o calcular.

29 - Em face das condicionantes identificadas, a conclusão não poderá ser outra senão a de que, no direito português da concorrência vigente, a Autoridade da Concorrência carece de competência para aplicar coimas às ordens profissionais, pelo que sentença

recorrida é ilegal.

30 - Além de ilegal, é também inconstitucional por violação do artigo 267.º, n.º 4 da CRP, aliás neste sentido veja-se o parecer do Prof. Jorge Miranda, que se junta.

31 - De notar que, na esteira do afirmado pelo dito Prof. Jorge Miranda, a Ordem dos Médicos integra a Administração Autónoma do Estado, pelo que apenas está submetida à tutela do Governo, nos termos do artigo 199.º, alínea d) da CRP.

32 - Tutela que não pode ser delegada noutro órgão e que não integra poderes

sancionatórios.

33 - Ignorando todas estas questões, a Mm.ª Juiz a quo refere diversos argumentos para não declarar a ilegalidade invocada pela arguida, aqui recorrente.

34 - Todavia e salvo o devido respeito, todos pouco consistentes e sem valia.

35 - O primeiro argumento invocado na decisão recorrida é o carácter transversal da Autoridade da Concorrência (AdC), do qual resulta que a AdC tem poderes sobre

todos os sectores da actividade económica.

36 - Constata-se, contudo, que essa transversalidade quer significar que a Autoridade tem 'jurisdição" alargada a todos os sectores da actividade económica, por contraposição às entidades reguladoras sectoriais, que como é evidente se limitam a actuar num determinado sector da economia (ANACOM nas telecomunicações, CMVM no mercado bolsista, etc., etc., - vide a lista exemplificativa constante do n.º 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei 10/2003, de 18.01) 37 - Ora, salvo o devido respeito, este raciocínio não permite retirar qualquer conclusão no sentido de incluir a Ordem dos Médicos sob a 'jurisdição" da AdC.

38 - O que resulta da Lei neste ponto é que a AdC tem jurisdição (também) sobre o

sector da saúde. E nada mais.

39 - É caso para utilizar o argumento da Mm.ª Juiz a quo: onde a Lei não distingue não

deve o intérprete distinguir.

40 - De todo o modo, no entender da recorrente, essa "jurisdição" não afecta a própria "jurisdição" da Ordem dos Médicos sobre parte dos intervenientes nesse mesmo sector

da saúde, que são os médicos.

41 - É que um dos fins da Ordem é a defesa do direito dos cidadãos a uma medicina qualificada, por via da defesa da ética, da deontologia e da qualificação profissional - vide alínea a) do artigo 6.º do Estatuto da Ordem dos Médicos - Decreto-Lei n.º

282/77, de 5 de Julho.

42 - A criação e existência da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) não retira essa característica (auto) reguladora à Ordem dos Médicos - vide Rui Nunes in "Regulação da Saúde", p116, Vida Económica, 2005.

43 - O segundo argumento apresentado na sentença recorrida assenta no fim alegadamente prosseguido pela Ordem de defesa dos interesses dos médicos.

44 - Ora, esta ideia está errada e só pode resultar de uma leitura incorrecta dos

Estatutos da Ordem dos Médicos.

45 - O que o Estatuto refere claramente é que a Ordem fomenta e defende os interesses da profissão médica e não dos seus membros, o que é algo bem distinto e

com toda uma outra ressonância valorativa.

46 - É preciso ter bem presente que a Ordem é um organismo público e não um

organismo corporativo ou um sindicato.

47 - Por outro lado, sendo uma pessoa colectiva de direito público, a Ordem está sujeita aos princípios gerais da actuação da administração, entre os quais ressaltam os de isenção e imparcialidade, ou seja, precisamente os mesmos que delimitam a actuação das entidades reguladoras sectoriais.

48 - Por fim, não é verdade nem está demonstrado nos autos que a Ordem dos Médicos exerça uma actividade económica, nem se vislumbra qual ela possa ser.

49 - Conclui-se assim que a decisão da Mm.ª Juiz a quo neste ponto violou a lei, designadamente o artigo 267.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

[...]

Da ausência de auditor/instrutor independente 64 - A recorrente alegou, na impugnação da decisão da Autoridade da Concorrência, que o Presidente desta Autoridade afirmou, na apresentação feita no Seminário "Direito da Concorrência", organizado pela CIP e PLMJ, em Lisboa no dia 18/11/2004 (e disponível em www.autoridadedaconcorrencia.pt), o seguinte: "Sabemos que para assegurar um equilíbrio nas decisões finais da Autoridade e o seu escrutínio cuidado dentro da instituição é necessário assegurar a separação entre a Instrução e a Decisão.

Esta é uma das minhas principais preocupações e que terá uma solução no Regulamento Interno que tem estado em constante reflexão e que será publicado em 2005. Existem diferentes soluções possíveis, uma vez que não existe separação institucional daquelas duas funções e que aliás foi intenção claro do legislador português

integrar [...]".

65 - Importava, pois, apreciar este facto e declará-lo provado ou não provado.

66 - Sobretudo quando deste mesmo facto dependeria a rigorosa apreciação da questão prévia denominada "ausência de auditor/instrutor independente.

67 - Para apreciação da referida questão prévia, um outro facto haveria que incluir na

enumeração exigida pelo legislador.

68 - Referimo-nos à existência da figura do Auditor e respectivas competências e razões para a sua criação, no âmbito dos processos de concorrência processados

perante a Comissão Europeia.

69 - É um facto que deveria constar do elenco de factos provados e nem sequer consta

dos factos não provados.

70 - Assim, entendeu a Mm.ª Juiz a quo que a inconstitucionalidade avançada pela arguida não merece acolhimento porquanto o legislador quis claramente confluir na mesma entidade as figuras de acusador e julgador, argumento que não pode servir para afastar a inconstitucionalidade pois nem tudo o legislador faz é bem feito.

71 - Por outro lado, essa "bicefalia" resultaria de uma menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional, subtraindo-o assim às mais rigorosas exigências de determinação

válidas para o ilícito penal.

72 - Ora, esta argumentação é em tudo contraditória com o que foi defendido pelo próprio Presidente da AdC na apresentação supra mencionada.

73 - Sobre o projecto de regulamento interno da AdC e da aberração de confluir na mesma entidade as funções de acusador e julgador, vide José António Veloso in "Revista da Ordem dos Advogados", Ano 63, Abril 2003, Tomo II, p. 274, nota 24.

74 - Por outro lado, o valor de tal forma elevado da medida das coimas aplicadas neste tipo de processos leva a que se defenda que os mesmos deveriam estar rodeados de mais garantias do que aquelas que são fornecidas pelo regime legal dos Ilícitos de mera

ordenação social.

75 - Com efeito, como muito claramente refere José António Veloso in "Revista da Ordem dos Advogados", Ano 60, Janeiro 2000, Tomo I, p.74, a transposição do regime do ilícito de mera ordenação social para as infracções graves da deontologia da actividade financeira, punidas com penas muito severas, extravasam por completo dos limites e sentido que os doutrinadores desse regime lhe atribuíram.

76 - Seguindo na leitura deste artigo, destacam-se ainda estas passagens: "debates instrutórios perante o próprio investigador e decisões por este, só são admissíveis em casos de escassa relevância e com penas comensuráveis com essa escassa relevância.

Assim o entenderam sempre os doutrinadores do regime da mera ordenação, e é esse o evidente espírito do decreto-lei que o introduziu em 1982" [...] "A utilização do regime da mera ordenação como instrumento de repressão e prevenção de infracções de grande gravidade - muitas das quais se contam entre as mais graves de que pode ser vítima uma comunidade, e nem por menos visíveis menos graves do que os crimes de perigo comum do Código Penal, e quantas vezes de efeitos muito mais generalizados e perduráveis -, infracções frequentemente de averiguação altamente complexa, com sanções necessariamente muito severas, e julgadas desta forma administrativa e, no contexto português uma evolução altamente discutível" [...] Um processo em que a autoridade ao mesmo tempo investiga, organiza o contraditório e avalia os resultados, e no fim toma a decisão de punir ou absolver (embora sujeita a recurso para um juiz) constitui também - em todas as questões que não sejam de natureza e implicações muito banais - um absoluto absurdo do próprio ponto de vista da eficácia da investigação" [...] A razão deste repúdio [...] é que ninguém confia num processo em que as mesmas pessoas investigam, acusam e decidem. E a existência de uma via de recurso judicial é conforto muito pouco convincente, pois que pode levar anos e anos a produzir sentença revogatória" [...] "O verdadeiro contraditório pressupõe necessariamente um árbitro, perante a autoridade da investigação passe a ocupar a posição de simples parte, contraposta ao investigado segundo regras formais que tendam a assegurar uma ao menos aproximada igualdade de armas. Não há contraditório se não existe um árbitro terceiro, e se o debate entre investigado e investigador decorre...perante o próprio investigador. Um processo que só conheça esse debate, em que o investigador, por um lado, seja parte do debate, e por outro lado, juiz dos resultados dele, não será um processo contraditório: será o que se chama (num dos sentidos do termo) processo inquisitório, ou inquisitorial".

77 - Foi seguramente tendo presente a importância, ou melhor, a elevada ressonância ética deste ilícitos, que a Comissão Europeia decidiu criar a figura do conselheiro auditor em 1982 e concretizar os seus poderes e funções em 1994 (Decisão de 12 de Dezembro de 1994, JO L 330 de 21.12.1994, p. 67), atribuindo-lhe uma independência e certos poderes que reflectem os cuidados da Comissão em garantir a objectividade e imparcialidade da sua actuação na repressão das práticas anti-trust.

78 - Em 2001, a Comissão veio "reforçar a independência e os poderes do auditor [...], melhorar a objectividade e a qualidade dos processos da concorrência da Comissão e das decisões dele resultantes" - vide JO L 162 de 19.6.2001, p. 21 79 - Veja-se o artigo sobre as audições orais e o papel dos Auditores in "EC Competition Policy Newsletter", n.º 2, 2005, em que, a p.24, se refere que "de há algum tempo a esta parte se diz que o procedimento da Comissão em matéria de concorrência tem um carácter inquisitório. Que a Comissão chegou até a ser rotulada como sendo ao mesmo tempo acusador, juiz e júri [...] Contudo, esta descrição é hoje em dia [2005] demasiado simplista" (disponível em www.europa.eu.int/comm/competition/publications/cpn/).

80 - De elevado interesse para esta questão é também o Relatório da Casa dos Lordes britânica com o sugestivo título "Strengthening the Role of the Hearing Officer in Ec

Competition Cases", disponível em

http://www.parliament.the-stationery-office.co.uk/pa/ld199900/ldselect/ldeucom

/125/12501.htm.

81 - Baseada em todos estes considerandos, a recorrente solicitou ao tribunal a quo a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, quando interpretados no sentido de não serem aplicáveis aos processos contra-ordenacionais abertos no âmbito da lei da Concorrência às regras dos artigos 39.º e 40.º do CPP, por violação do preceituado no n.º 10 do artigo 32.º e no n.º 2 do

artigo 266.º, ambos da CRP.

82 - A Mm.ª juiz quo assumindo posição contrária, recorreu a um Acórdão do Tribunal Constitucional, em que se diz que o RGCO respeita e cumpre os ditames

constitucionais.

83 - Contudo, a Mm.ª Juiz a quo não se lembrou que, ao contrário do que preconiza o mesmo Tribunal Constitucional, a AdC tem legitimidade para recorrer das decisões do Tribunal do Comércio, o que, como se sabe não se verifica no RGCO, pois as autoridades administrativas não têm essa faculdade - vide o citado Acórdão do TC n.º 659/2006 (A diferença de "princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra-ordenações"

reflecte-se "no regime processual próprio de cada um desses ilícitos' não exigindo "um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de conformação legislativa própria do legislador", por exemplo, a não atribuição ao assistente (admitindo que a lei consente em processo contra-ordenacional esta figura) de legitimidade para recorrer, legitimidade que o artigo 73.º, n.º 2, do RGCO apenas reconhece ao arguido e ao Ministério Público (Acórdão 344/93)".

84 - Ou seja, é a própria lei da Concorrência que implicitamente reconhece a diferente

ressonância ética destes assuntos.

85 - Aliás, será interessante verificar que a AdC tem poderes que muito se assemelham aos poderes do MP em sede de inquérito - vide artigo 17.º da lei da Concorrência.

86 - Ou seja, o processo contra-ordenacional da concorrência, em termos de valoração ética, é um processo penal, a exigir as correspondentes garantias de defesa e

um verdadeiro processo equitativo.

87 - Por fim, o que se constata é que a Mm.ª Juiz a quo omitiu do seu raciocínio a razão de ser da "contestação" da Recorrente, isto é, o carácter gravoso da conduta e a seriedade do "castigo" a que estão sujeitos os prevaricadores, além de não se pronunciar sobre as regras de procedimento junto da Comissão Europeia, da qual a lei da concorrência portuguesa é um mero decalque, ressalvado o respeito devido aos

seus autores.

88 - Ao não dar provimento a estes pedidos, a Mm.ª Juiz a quo violou a lei.

Da incompetência da AdC para aplicar coimas por força do artigo 81.º do Tratado CE 89 - Por força do princípio da legalidade - decorrente do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição -, exige-se que se estabeleçam tipos contra-ordenacionais precisos, sob pena de indeterminação do conteúdo da norma, da mesma forma que se afasta o

recurso à analogia.

90 - Ora, no que respeita ao artigo 81.º do Tratado da CE, a AdC pode em conformidade com o estabelecido no artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, alternativa ou cumulativamente, exigir que seja posto termo à infracção; ordenar medidas provisórias; aceitar compromissos; aplicar coimas, sanções pecuniárias compulsórias ou qualquer outra sanção prevista pelo respectivo direito nacional.

91 - Acontece, porém, que o artigo 43.º da lei da Concorrência tem sempre por referência o artigo 4.º da mesma lei e nunca faz remissão para qualquer outro.

92 - E, como claramente se lê no artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, este restringe-se, nos seus próprios termos, a decisões da Comissão Europeia.

93 - A interpretação do Tribunal a quo de que a previsão do artigo 5.º do Regulamento 1/2003, quando se refere a "sanções previstas no direito nacional" é o bastante, é incorrecta e viola o princípio da legalidade decorrente do artigo 18.º da CRP, já que, como se disse, a legislação nacional - artigo 43.º da lei da Concorrência, não tem qualquer menção ao predito artigo 81.º do Tratado.

94 - Por outro lado, jamais se poderá considerar, atenta a linguagem comummente utilizada pelo legislador comunitário, que o Regulamento 1/2003 constitui "legislação

nacional".

[...]

Da Ilegitimidade da Autoridade administrativa para punir a OM XV. A AdC não tem competência legal para sancionar a Ordem dos Médicos.

XVI. A lei autoriza a subsunção das ordens profissionais, enquanto entidades (auto-reguladoras, ao conceito de «entidades reguladoras sectoriais», para efeitos de caracterização da sua relação com a AdC como de colaboração - vide artigo 15.º da

Lei 18/2003.

XVII. E, nesta medida, não se vislumbra que a AdC tenha competência para instaurar processos sancionatórios contra as demais entidades reguladoras sectoriais, como seja,

a CMVM ou a ANACOM.

XVIII. A Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva pública.

XIX. Se é certo que as contra-ordenações previstas na lei da Concorrência se aplicam, de facto, a pessoas colectivas, nada no referido diploma aponta para que as pessoas colectivas públicas tenham sido abrangidas pelo legislador; bem pelo contrário, um conjunto de elementos literais, históricos, sistemáticos, estruturais e teleológicos

indiciam a solução oposta.

XX. Tratando-se de uma questão extremamente delicada, que comporta opções de fundo de política criminal, seria de esperar uma menção expressa por parte do legislador; não existindo essa indicação, o intérprete deverá rejeitar a aplicação de sanções desta natureza a pessoas colectivas públicas por violações do direito nacional da concorrência, não só em razão dos argumentos referidos, mas também porque estamos aqui perante matéria de direito sancionatório público.

XXI. Uma interpretação da lei da Concorrência que submeta as ordens profissionais ao direito nacional da concorrência é inconstitucional, porquanto, não tendo o legislador democrático sido explícito nessa inclusão, deverá prevalecer, prima facie, a garantia constitucional da autonomia das associações públicas - artigo 267.º da CRP.

XXII. A OM integra a administração autónoma do Estado, pelo que apenas está submetida à tutela do Governo (artigo 199.º, alínea d), da CRP), tutela que não pode ser delegada e que não integra poderes sancionatórios.

XXIII. A sentença recorrida, ao não decidir neste sentido, violou o artigo 267.º, n.º 4,

da CRP.

XXIV. O aresto sob recurso considerou, todavia, que o carácter transversal da autoridade administrativa e o facto de a OM ser um organismo de representação e promoção do interesse de uma classe, são o bastante para declarar a improcedência

desta questão.

XXV. Ora, a transversalidade da actuação da AdC é contraposta à «sectorização» das outras autoridade reguladoras, que, por isso mesmo, se designam autoridades

reguladoras sectoriais.

XXVI. Não é a circunstância de abranger todas as áreas da actividade económica que atribui à AdC legitimidade pára punir a OM.

XXVII. Primeiro porque a OM não exerce qualquer actividade económica, sendo antes uma entidade reguladora, em rigor, uma entidade auto-reguladora sectorial.

XXVIII. Esta sua natureza regulatória resulta também dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), que exclui do seu âmbito as competências atribuídas às

Ordens profissionais do sector da saúde.

XXIX. O que decorre dos Estatutos é que a OM tem por fim a defesa dos interesses da profissão e não directamente dos profissionais, o que não é pura semântica, mas antes matéria de grande relevo e com toda uma outra ressonância valorativa.

XXX. Conclui-se, assim, que a Autoridade da Concorrência não tem legitimidade para

sancionar a OM.

[...]

Da ausência de auditor/instrutor independente XLI. Alegou a recorrente que o processo administrativo da concorrência carece de isenção e imparcialidade por não existir a figura do instrutor independente, ao contrário do que se verifica nos processos administrativos da concorrência que correm perante a Comissão Europeia, facto que afectaria a decisão da AdC de inconstitucionalidade.

XLII. Entendeu o M.mº Juiz a quo que, querendo o legislador aplicar o regime processual das contra-ordenações a este tipo de processos, não existe necessidade de tão fortes exigências em termos de garantias de defesa, dada a diferente ressonância ética dos valores discutidos num e noutro processo.

XLIII. Ao decidir da forma como o fez, a M.mª Juiz a quo violou a lei, designadamente os artigos 39.º e 40.º do CPP e o artigo 41.º, n.º 2, do RGCO.

XLIV. Tal interpretação é também inconstitucional por violação do preceituado nos artigos 32.º, n.º 10, e 266.º, n.º 2, da CRP.

Da incompetência da AdC para aplicar coimas ao abrigo do artigo 81.º do Tratado CE XLV. O princípio da legalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) exige que se estabeleçam tipos contra-ordenacionais precisos, afastando o recurso à analogia.

XLVI. Ora, o artigo 43.º da lei da Concorrência não faz qualquer menção ao artigo

81.º do Tratado CE.

XLVII. E o artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, que determina o tipo contra-ordenacional pela violação ao artigo 81.º do Tratado, restringe-se, pelos seus próprios termos, a decisões da Comissão Europeia.

XLVIII. Deste modo, a AdC apenas pode aplicar coimas por violações ao artigo 4.º da lei da Concorrência e não por violações ao artigo 81.º do Tratado, pois não existe

pena sem lei.

XLIX. Ora, o certo é que a OM foi condenada por violação ao artigo 81.º do Tratado CE, mas esse comportamento não está tipificado na lei portuguesa, não existindo, por conseguinte, qualquer coima para tal infracção.

L. Nessa medida, não existindo lei que a preveja, a coima não poderia ser aplicada.

LI. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo viola a CRP no seu artigo 18.º LII. É, portanto, inconstitucional o artigo 43.º da lei da Concorrência quando interpretado no sentido de incluir na sua previsão as violações ao artigo 81.º do Tratado CE, por violação do citado artigo 18.º da CRP».

3 - Em 22 de Novembro de 2007, o Tribunal da Relação de Lisboa acordou em negar provimento aos recursos interpostos pela Ordem dos Médicos, rejeitando-os liminarmente, por manifesta improcedência. Com relevo para a presente decisão,

extrai-se do acórdão recorrido o seguinte:

«A recorrente veio pôr em crise a matéria fáctica apurada. No entanto, nos termos do disposto no art.º 75.º n.º 1 do R.G.C.O., esta Relação apenas pode conhecer da matéria de direito, sendo que aquela só poderá ser colocada em causa caso se verifique algum dos vícios do art.º 410.º n.os 2 e 3 do C.P.Penal.

Efectuado o exame preliminar foi considerado haver razões para a rejeição do recurso por manifesta improcedência (art. 420º, n.º 1 CPP) sendo por isso determinada a remessa dos autos aos vistos para subsequente julgamento na conferencia (artigo 419.º,

n.º 4, alínea a) CPP).

[...]

Por outro lado, julgamos competente o Tribunal do Comércio materialmente competente para apreciar o recurso interposto pela Ordem dos Médicos da decisão da Autoridade da Concorrência de 26.05.06 que lhe aplicou uma coima no valor de (euro) 250.000,00, bem como a sanção acessória aplicada (vd. art. º 50.º n.º 1 do regime jurídico da concorrência aprovado pela Lei 18/2003 de 11.06), improcedendo o

recurso interposto:

"Assim, refere a Recorrente que "importa levantar a questão de saber se este Tribunal pode apreciar decisões da O.M., designadamente o artigo do Código Deontológico que a autoridade administrativa considera "nulo" e que está na base do presente processo de contra-ordenação." (cf. ponto 7 das alegações da Recorrente). Antes de mais, clarifique-se que o Tribunal de Comércio de Lisboa não foi chamado pela Recorrente - reitere-se - a "apreciar decisões da O.M." mas antes uma decisão da Autoridade da Concorrência. Ademais, note-se que, ao contrário do que sustenta a Recorrente, a AdC não considerou "nulo" o artigo do Código Deontológico invocado, tendo sido, aliás, a própria Ordem dos Médicos (como admite nos pontos 313 e 315 das suas alegações) a, em momento anterior à emissão da própria decisão recorrida, revogar tal artigo e, bem assim, suspender a vigência do Código de Nomenclatura em apreço. Certo é que a "presente questão" de que fala a Recorrente não pode confundir-se com qualquer decisão da Ordem dos Médicos ou declaração de nulidade de um artigo do respectivo Código Deontológico que se encontra já revogado, pelo que, como se afigura por demais evidente, nenhuma razão se vislumbra para que o Tribunal do Comércio se declarasse, in casu, incompetente.

E note-se que é bastante tal argumento para deitar por terra a frágil invocação da inconstitucionalidade do artigo 50.º, n.º 1 da lei da Concorrência, em que, displicentemente, incorre a Recorrente. Sustenta, assim, a Recorrente que, pelo facto de determinar que "Das decisões da Autoridade que determinem a aplicação de coimas ou de outras sanções previstas na lei cabe recurso para o Tribunal de Comércio de Lisboa, com efeito suspensivo" deverá julgar-se inconstitucional o aludido artigo da lei da Concorrência, face ao disposto nos artigos 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), os quais delimitam a jurisdição dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos e fiscais, estipulando este último preceito a competência dos tribunais administrativos e fiscais para o "julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais". Ora, perante tal argumentação, cabe, desde logo, reiterar que o objecto dos presentes autos cinge-se à decisão proferida pela Autoridade da Concorrência no exercício dos seus poderes sancionatórios em sede de procedimento contra-ordenacional, não estando, pois, em causa, neste âmbito e por esse motivo, qualquer "relação jurídica administrativa". Na verdade, é a própria lei Fundamental que reconhece autonomia ao direito contra-ordenacional ou de mera ordenação social face aos demais ramos de direito, maxime, o direito administrativo.

Com efeito, prevê-se no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, que "É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguinte matérias, salvo autorização ao Governo: [...] d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo". Ora, é no âmbito de tal previsão e consagração constitucional que se inserem os poderes sancionatórios e competências conferidas à AdC em sede de direito de mera ordenação social. Posto isto, cumpre salientar que este ramo do direito, o de mera ordenação social, não poderá, em caso algum, confundir-se com o direito administrativo nem tão-pouco poderão os actos e práticas por aquele abrangidos ser configurados como "relações jurídicas administrativas". Como referem Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira. "É preciso [...] não confundir os factores de administratividade de uma relação jurídica com os factores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa" (in Código de Processo nos Tribunais Administrativos Volume I - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Anotados, 2004, pág. 26). É que o direito de mera ordenação social foi concebido para ser aplicado pelas autoridades administrativas, e não pelo poder judicial, sendo que tal não significa que o mesmo se reconduza ao direito administrativo. Na verdade, o direito de mera ordenação social "surge por contraposição, justamente, ao direito penal, está de certa maneira em relação com aquilo que tradicionalmente seria o direito das contravenções, ou o direito contravencional" (Teresa Beleza, Direito Penal, Volume I, pág. 131, 2.ªEdição). Para Figueiredo Dias "o direito de mera ordenação não é filho ou herdeiro de um direito penal administrativo já falecido, não é a sua máscara presente, mas é sim limite negativo de um direito penal administrativo que evoluiu e surge hoje renovado sob a face do direito penal secundário" (Direito e Justiça, Volume IV, 1989/1990, pág. 22) (realce nosso). Encontramo-nos, pois, inequivocamente, perante um direito penal secundário cujas raízes e aforamentos recentes em nenhum ponto poderão confundir-se com o direito administrativo e com a regulação das "relações jurídicas administrativas". Ora, in casu, a decisão recorrida, como se deixou demonstrado à exaustão, foi adoptada no âmbito de um processo contra-ordenacional, do qual foi incumbida a Autoridade através dos seus Estatutos, da lei da Concorrência e, bem assim, do próprio Texto

Constitucional.

Mas mesmo que assim não se entendesse, o que por mero dever de patrocínio se concebe, também por outra via se concluiria pelo desacerto da tese propugnada pela Recorrente. Assim, esclarecem Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, em anotação ao artigo 1.º n.º 1, do ETAF, que "Quanto à questão de saber da conformidade material das cláusulas "aditivas" e "subtractivas" da competência dos tribunais administrativos, por referência ao âmbito natural da sua jurisdição (consagrado no citado artigo 212.º/3 da CRP), respondeu-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 93/VIII apresentada pelo Governo à Assembleia da República - e que deu origem ao ETAF -, que a Constituição não estaria a instituir aí uma reserva material absoluta de competência dos tribunais administrativos, que impedisse o legislador ordinário de atribuir a outras jurisdições o julgamento de questões administrativas, e à jurisdição administrativa o julgamento de questões não administrativas." (ob. cit. 2004, pág. 21).

Ora, encontrando-se o direito de mera ordenação constitucionalmente previsto e tendo o legislador ordinário estabelecido expressamente, nesse âmbito, a competência do douto Tribunal de Comércio para julgar as impugnações das decisões da Autoridade em sede de processos contra-ordenacionais, nunca poderia tal previsão - a constante do artigo 50.º, n.º 1, da Lei 18/2003, de 11 de Junho - ser julgada violadora do disposto nos artigos 212.º, n.º 3 e 211.º, n.º 1, da CRP, ao invés do que pretende a

Recorrente sustentar.

Note-se, ainda, que assume, a este propósito, extrema relevância o facto de, nos termos do disposto nos artigos 32.º e 41.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, o qual estabelece o Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), o direito penal e o direito processual penal constituírem direito subsidiário face ao aludido regime geral, ao qual a própria Recorrente reconduz a decisão recorrida, invocando mesmo tal regime como aplicável à situação ora objecto de apreciação ao longo das suas alegações. Ora, como se afigura evidente, em caso algum poderia sustentar-se que os tribunais administrativos viessem a aplicar, tão-somente por se tratarem de factos imputáveis a uma pessoa colectiva de natureza administrativa, normas de direito penal e processo penal, carecendo, assim, de qualquer sentido, a impugnação de processos contra-ordenacionais, ainda que envolvendo entidades administrativas, junto da jurisdição administrativa. A resposta vai, pois, evidentemente, no sentido de serem materialmente incompetentes os tribunais administrativos para conhecerem dos recursos interpostos em sede de direito de mera ordenação social, o que, naturalmente, determina a inexistência de qualquer inconstitucionalidade do artigo 50.º, n.º 1, da lei da

Concorrência.

A sufragar todo o exposto, e contrariamente ao que pretende a Recorrente, veja-se o teor dos artigos 4.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), 10.º do Decreto-Lei 10/2003, de 18 de Janeiro, (os quais são, aliás, invocados pela Recorrente para sustentar a tese que apresenta) e, bem assim, o artigo 50.º n.º 1, da lei da Concorrência. Com efeito, estabelece o artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do ETAF que "Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: [...] b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração". Ora, in casu, e como se deixou dito, não se encontra o Tribunal de Comércio incumbido de proceder a qualquer fiscalização das normas ou actos emanados da Ordem dos Médicos nem tão-pouco de aferir da sua eventual invalidade. O que está em causa nos presentes autos é a sindicância da legalidade e mérito da decisão de condenação em processo contra-ordenacional emanada da Autoridade da Concorrência, a qual, note-se, não declarou a invalidade de qualquer norma do Código Deontológico da Recorrente, antes condenando a mesma, em sede de processo contra-ordenacional - e não administrativo - ao pagamento de uma coima e à publicação da decisão ora recorrida em virtude da verificação de uma prática restritiva da concorrência em que incorreu a Ordem dos Médicos, situação que claramente foge ao escopo dos Tribunais Administrativos e Fiscais e, especificamente, do artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do ETAF.

Por sua vez, mais patente se afigura a confusão e desacerto em que incorre a Recorrente ao invocar o artigo 10.º do Decreto-Lei 10/2003, de 18 de Janeiro, o que faz no ponto l1 das suas alegações. Consagra o aludido preceito que "Até à entrada em vigor de diploma que estabeleça o regime processual dos recursos a que se refere o n. º 2 do artigo 38.º dos Estatutos anexos a este diploma, as decisões aí previstas são impugnáveis junto dos tribunais administrativos, de acordo com as regras gerais aplicáveis ao contencioso administrativo." (sublinhado nosso). Importa, pois, atentar no que se estabelece no n.º 2 do mencionado artigo 38.º dos Estatutos da Autoridade da Concorrência: "As decisões da Autoridade proferidas em procedimentos administrativos, respeitantes a matéria de concorrência, bem como a decisão ministerial a que alude o artigo 34.º deste diploma, são igualmente impugnáveis junto do Tribunal de Comércio de Lisboa." (realce nosso). Com efeito, a norma ora citada regula, como é notório, tão-somente as decisões de que a AdC se encontra incumbida em sede de procedimento administrativo. São estas, pois, as previstas nos artigos 30.º a 41.º e 53.º a 55.º da lei da Concorrência, relativas ao procedimento de controlo de operações de concentração de empresas e, bem assim, à decisão ministerial prevista no artigo 34.º dos Estatutos. Não se incluem, pois, neste universo os processos contra-ordenacionais, como o que originou os presentes autos, os quais merecem tratamento autonomizado no n.º 1 do artigo 38.º dos Estatutos, soçobrando necessariamente qualquer tese de inclusão dos mesmos na previsão do respectivo n.º 2, bem como no invocado artigo 10.º do Decreto-Lei 10/2003, de 18 de Janeiro.

Afigura-se, pois, incorrecta a posição da Recorrente ao tentar reconduzir a decisão recorrida à previsão dos preceitos legais aplicáveis aos procedimentos administrativos consagrados na lei da Concorrência, confundindo as regras de controlo jurisdicional em processos de contra-ordenação com o controlo jurisdicional em sede de procedimentos administrativos, ambos insertos nas atribuições da Autoridade da

Concorrência.

Do exposto resulta, pois, de forma inequívoca, e ao invés do que sustenta a Recorrente, ser o Tribunal de Comércio de Lisboa o tribunal competente para apreciar os presentes autos, não consubstanciando tal apreciação qualquer violação dos artigos 211.º, n.º 1, 212.º, n.º 3, e 204.º da CRP, carecendo, assim, de fundamento a pretensão de inconstitucionalidade do artigo 50.º, n.º 1 da Lei 18/2003, de 11 de Junho, alegada

pela Recorrente».

4 - A Ordem dos Médicos recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional.

Convidada pelo relator para o efeito previsto nos n.os 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC,

a recorrente respondeu do modo seguinte:

«1 - Quanto às decisões a julgar, a recorrente esclarece que pretende ver apreciadas as decisões (as partes da decisão final) do Tribunal da Relação de Lisboa sobre cada uma das inconstitucionalidades invocadas nas alegações do recurso interposto da decisão final e da decisão interlocutória, ambas proferidas pelo Tribunal de Comércio de

Lisboa, a saber:

a) A interpretação normativa segundo a qual o artigo 50.º da Lei 18/2003, ao atribuir competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa para apreciar a conduta de uma associação pública, será conforme os artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP, inconstitucionalidade invocada nas alegações do recurso interlocutório interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão interlocutória proferida pelo Tribunal de

Comércio de Lisboa;

b) A decisão que considera constitucional a interpretação do artigo 1.º da Lei 18/2003, segundo a qual as Ordens Profissionais e, em particular, a Ordem dos Médicos, estão sujeitas ao direito nacional da concorrência, não configurando portanto qualquer violação dos artigos 267.º, n.º 4, e 199.º, alínea d), da CRP, inconstitucionalidade que foi invocada nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e que antes também fora invocada nas alegações de recurso para o

Tribunal de Comércio de Lisboa;

c) A decisão que considera conformes com os artigos 32.º, n.º 10, e 266.º, n.º 2, da CRP os artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei 18/2003, quando interpretados no sentido de não ser aplicável aos processos contra-ordenacionais abertos no âmbito da lei da Concorrência o disposto nos artigos 39.º e 40.º do CPP, inconstitucionalidade que foi invocada nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa;

d) A decisão que considera conforme com o artigo 18.º da CRP a interpretação do artigo 43.º da Lei 18/2003, segundo a qual este normativo, ao fazer uma remissão directa para o Regulamento CE n.º 1/2003, confere à Autoridade da Concorrência o poder de aplicar coimas pela violação do artigo 81.º do Tratado da Comunidade Europeia, inconstitucionalidade que foi invocada nas alegações de recurso para o

Tribunal da Relação de Lisboa;

e) A decisão que considerou constitucional a interpretação segundo a qual o artigo 75.º do RGCO, ao limitar o recurso em 2.ª instância à matéria de direito, não viola os artigos 20.º, n.os 1 e 4, e 32.º, n.º 1, todos da CRP, inconstitucionalidade que foi invocada nas alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa.

2 - A Recorrente entende que, deste modo, fica indicado com precisão o objecto do recurso interposto para este douto Tribunal».

5 - Por despacho do relator, a recorrente e os recorridos foram notificados para alegar

e para se pronunciarem, querendo:

«sobre a eventualidade de não se conhecer do recurso:

Quanto à segunda questão de constitucionalidade enunciada no requerimento de interposição de recurso, reportada ao artigo 1.º da Lei 18/2003, por se poder entender que, na parte correspondente da motivação do recurso da recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa (n.os 20. a 49. e conclusões XV a XXX), não foi adequadamente individualizada a norma arguida de inconstitucional; e Quanto às terceira e quarta questões de constitucionalidade enunciadas no mesmo requerimento, reportadas aos artigos 17.º, 19.º, 22.º e 43.º da Lei 18/2003, por se poder entender que, nas partes correspondentes da motivação do recurso para a Relação (respectivamente, n.os 64. a 88, e conclusões XLI a XLIV, e n.os 89. a 94, e conclusões XLV a LII), a violação da Constituição foi directamente imputada a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, não tendo a recorrente identificado, com precisão, qual o sentido das interpretações normativas que reputava

inconstitucionais».

6 - A recorrente alegou, concluindo o seguinte:

«I. O objecto do processo contra-ordenacional movido pela Autoridade da Concorrência contra a requerente põe em causa a validade das normas aprovadas no uso do poder próprio da Ordem dos Médicos, enquanto associação pública.

II. Estando em causa a validade das normas regulamentares aprovadas no uso do poder próprio da Ordem dos Médicos e sendo claros os preceitos constitucionais e legais sobre a reserva material da jurisdição administrativa, o artigo 50.º, n.º 1, da Lei 18/2003 é inconstitucional quando interpretado no sentido de o Tribunal de Comércio de Lisboa ser competente para apreciar da legalidade dos regulamentos emanados pela Ordem dos Médicos, no âmbito das competências que lhe estão atribuídas por lei, mesmo que o faça no âmbito de um processo contra-ordenacional se

este processo tiver por objecto tais normas.

III. Tal interpretação viola os artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP.

IV. A Autoridade da Concorrência não tem competência legal para sancionar a Ordem

dos Médicos.

V. Se é certo que as contra-ordenações previstas na lei da Concorrência se aplicam, genericamente, a pessoas colectivas, nada no referido diploma aponta para que as pessoas colectivas públicas tenham sido abrangidas pelo legislador, antes pelo contrário, já que um conjunto de elementos literais, históricos, sistemáticos, estruturais e teleológicos indiciam a solução contrária.

VI. Conclui-se assim que a interpretação que o Tribunal recorrido fez do artigo 1.º da Lei 18/2003 é desconforme à Constituição, designadamente ao artigo 267.º, n.º 4, devendo, portanto, ser declarada inconstitucional.

VII. Os processos instaurados pela Autoridade da Concorrência em matéria de concorrência são preparados, instruídos e julgados pela mesma entidade, sem garantir a

isenção e a imparcialidade do julgador.

VIII. Fundindo-se o instrutor e o julgador na mesma pessoa/órgão/entidade, como é o caso, o segundo nunca terá a distância e a imparcialidade que lhe é exigível, nem o visado as garantias constitucionalmente reconhecidas em processo penal nesta matéria.

XI. São, por isso, inconstitucionais os artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, quando interpretados no sentido de não serem aplicáveis aos processos contra-ordenacionais abertos no âmbito da lei da Concorrência as regras dos artigos 39.º e 40.º do CPP, por violação do preceituado no n.º 10 do artigo 32.º e no n.º 2 do

artigo 266.º, ambos da CRP.

X. Por força do princípio da legalidade - decorrente do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição - exige-se que se estabeleçam tipos contra-ordenacionais precisos, sob pena de indeterminação do conteúdo da norma, da mesma forma que se afasta o

recurso à analogia.

XI. Sucede que o artigo 43.º da lei da Concorrência tem sempre por referência o artigo 4.º da mesma lei e nunca faz remissão para o artigo 81.º do TUE.

XII. E, como claramente se lê no artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, este restringe-se, nos seus próprios termos, a decisões da Comissão Europeia.

XIII. Nesta medida, a interpretação feita pelo Tribunal a quo de que a previsão do artigo 5.º do Regulamento 1/2003, quando se refere a «sanções previstas no direito nacional», é o bastante para atribuir competência à Autoridade da Concorrência, é incorrecta e viola o princípio da legalidade decorrente do artigo 18.º da CRP, já que, como se disse, a legislação nacional - artigo 43.º da lei da Concorrência - não tem qualquer menção ao predito artigo 81.º do Tratado.

XIV. O artigo 75.º do RGCO não permite que os arguidos em processo contra-ordenacionais interponham recurso para a Relação sobre a matéria de facto, o que constitui mais uma violação da CRP, como se passa a demonstrar.

XV. Dispõe o artigo 75.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, que «se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões».

XVI. Ou seja, em matéria contra-ordenacional, independentemente da natureza da infracção ou do montante da coima aplicada, o arguido não tem hipótese de impugnar o juízo que o tribunal de primeira instância formulou sobre os factos ou a valoração da

prova.

XVII. Esta limitação constitui uma violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20.º, n.os 1 e 4, da CRP) e do princípio consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, que determina que «o processo criminal assegura todas as garantias de

defesa, incluindo o recurso».

XVIII. Ora, é jurisprudência assente do Tribunal Constitucional, mesmo antes da revisão constitucional de 1997, que em matéria penal a Constituição consagra o princípio do duplo grau de jurisdição, na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa previstas no já referido artigo 32.º (cf.

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 415/2001, Proc. n.º 160/2001).

XIX. A aplicação do artigo 75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO) implica uma severa diminuição das garantias de defesa da arguida.

XX. Por outro lado, impedir uma segunda análise da matéria de facto por um Tribunal superior constitui também, e como já se aflorou, uma violação do direito de acesso ao direito e do direito a um processo equitativo.

XXI. Com efeito, a autoridade administrativa tem o privilégio de fixar inicialmente os factos que considera relevantes para efeitos da aplicação de uma coima.

XXII. Posteriormente, em juízo, tem a arguida que se defender da acusação, procurando contrariar o sentido da decisão, carreando novos factos e meios de prova

aos autos.

XXIII. O juiz conhecerá dos factos em causa de acordo com a ponderação que faz da

prova produzida.

XXIV. Sendo que essa é a única e a última oportunidade que a arguida tem para suscitar a apreciação judicial da decisão da autoridade administrativa no que à matéria

de facto respeita.

XXV. Ora, esta interpretação, quando aplicada aos processos da concorrência, em que as multas atingem valores muito elevados, em muito superiores às multas aplicadas no âmbito do Código Penal, não é consentânea com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem nem com o espírito presente no n.º 10 do artigo 32.º da CRP.

XXVI. Razão pela qual se deverá decidir que o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO, quando aplicado aos processos de contra-ordenação previstos na lei da Concorrência, é inconstitucional, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.os 1 e 4, da CRP.

Nestes termos, requer-se sejam declaradas inconstitucionais as seguintes normas:

Artigo 50.º, n.º 1, da Lei 18/2003, de 11 de Junho, por violação dos artigos 212.º,

n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP;

Artigo 1.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, por violação dos artigos 267.º, n.º 4, e

199.º, alínea d), da CRP;

Artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, por violação do preceituado no n.º 10 do artigo 32.º e no n.º 2 do artigo 266.º, ambos da CRP;

Artigo 43.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, por violação do artigo 18.º da CRP;

Artigo 75.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, por violação dos artigos 20.º,

n.os 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da CRP».

7 - O Ministério Público contra-alegou, da seguinte forma:

«1 - Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.

O presente recurso vem interposto, pela Ordem dos Médicos, do Acórdão, proferido em matéria contra-ordenacional, pela Relação de Lisboa, a p. 443 e segs., rejeitando a

impugnação deduzida por aquela entidade.

Concordando inteiramente com a delimitação do objecto do recurso, realizado pelo douto despacho de p. 555, apenas se irá apreciar o mérito das questões elencadas no requerimento de interposição do recurso, de p. 551, sob as alíneas a) e e).

Ambas as questões de constitucionalidade, ali delineadas pela entidade recorrente, se configuram como manifestamente improcedentes.

Desde logo - e movendo-nos no âmbito do processo contra-ordenacional - é evidente que não afronta a reserva material da jurisdição administrativa a circunstância de o pleito estar cometido a um tribunal judicial (o Tribunal de Comércio de Lisboa): na verdade, o Tribunal Constitucional tem interpretado com alguma margem de flexibilidade o dito princípio constitucional, proclamado pelo artigo 214.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (cf. v.g. o recente Acórdão 211/07), nunca tendo originado qualquer dúvida a legitimidade de outorga de competência aos tribunais judiciais para apreciarem a impugnação de decisões administrativas sancionatórias com

coima, tomadas pela competente autoridade.

É, por outro lado, manifesto que o Tribunal competente para apreciar o objecto da acção - no caso, a legalidade da decisão administrativa sancionatória - tem naturalmente competência para, no âmbito do recurso contra-ordenacional, apreciar todas as questões que incidentalmente se mostrem necessárias ao julgamento do objecto da causa: não se trata, deste modo, e ao contrário do que sustenta a recorrente, de atribuir aos tribunais judiciais competência para directamente apreciarem a legalidade de regulamentos editados por uma Associação Pública - mas antes e tão - somente de valorarem incidentalmente tal matéria, como "questão prejudicial", relativamente à dita - e impugnada - aplicação de uma coima.

Igualmente improcedente é a última questão de constitucionalidade suscitada em sede de "direito ao recurso" sobre a matéria de facto - sendo manifesto que a lei Fundamental não impõe que o arguido goze, em processo contra-ordenacional, de um novo grau de jurisdição, envolvendo a reapreciação da matéria de facto que já foi reapreciada pelo tribunal de 1.ª instância, na sequência do recurso interposto da decisão administrativa (cf. Acórdão 73/07).

2 - Conclusão

Nestes termos e pelo exposto conclui-se:

1.º

O princípio constitucional da reserva material de jurisdição administrativa não obsta a que os recursos em matéria contra-ordenacional sejam apreciados pelos tribunais

judiciais.

2.º

Nenhum princípio constitucional impõe que, em processo contra-ordenacional, esteja cometido à Relação o exercício de um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, já devida e plenamente reapreciada pelo tribunal de 1.ª instância, na sequência do recurso da decisão sancionatória com coima.

3.º

Termos em que deverá improceder o presente recurso».

A Autoridade da Concorrência contra-alegou, concluindo, entre o mais, que:

«A) Considerando os pressupostos de conhecimento do recurso pelo Tribunal Constitucional elencados nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, ressalta com clareza, no caso concreto, da simples leitura das alegações da recorrente junto do Tribunal a quo, que as questões de constitucionalidade colocadas nos pontos I, II e III das alegações a que ora se responde não foram invocadas de forma a poderem ser sindicadas por este Venerando Tribunal.

B) Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, constitui seu pressuposto processual a colocação da questão de constitucionalidade, durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, in casu, o Tribunal da Relação de Lisboa, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (cf. artigo 72.º, n.º 2, da LTC).

C) In casu, e relativamente às segunda, terceira e quarta questões de constitucionalidade que invoca (respeitantes, respectivamente, ao artigo 1.º, aos artigos 17.º, 19.º e 22.º, e ao artigo 43.º, todos da Lei 18/2003), a recorrente não deu cumprimento a tal pressuposto essencial de conhecimento do presente recurso pelo

Venerando Tribunal Constitucional.

D) Relativamente à segunda questão de constitucionalidade enunciada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal ad quem, reportada ao artigo 1.º da Lei 18/2003, é manifesto que a recorrente, nas suas alegações de recurso e respectivas conclusões junto do Tribunal a quo, não procedeu à necessária individualização e indicação, concreta e inequívoca, da norma que reputa de inconstitucional.

E) E o mesmo se afirme quanto às terceira e quarta questões de constitucionalidade (relativas, respectivamente, aos artigos 17.º, 19.º e 22.º e ao artigo 43.º, todos da Lei 18/2003) suscitadas no requerimento da recorrente. Também a esse propósito, não dá a recorrente cumprimento a tal pressuposto, neste caso por não ter identificado, com precisão, a interpretação ou a dimensão normativa que tem por violadora da CRP.

F) Especificamente no que concerne à terceira questão de constitucionalidade suscitada, a recorrente, nos pontos 64.º a 88.º das suas alegações de recurso para o Tribunal a quo e, bem assim, nos pontos XLI a XLIV das respectivas conclusões, tece as mais variadas considerações sobre os regimes processual penal e contra-ordenacional e, bem assim, o regime processual constante da Lei 18/2003, relativo aos processos por infracção do direito da concorrência, contrapondo-os e comentando as respectivas diferenças, para concluir, sem mais, pela inconstitucionalidade dos artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei 18/2003. O que a recorrente não faz - e impunha-se que fizesse - é esclarecer qual a interpretação que, no seu entender, atento o regime previsto nos identificados artigos do CPP, determinaria a inconstitucionalidade daqueles preceitos da Lei 18/2003.

G) Tal situação é determinante da impossibilidade de ser conhecida pelo Tribunal ad quem a questão de constitucionalidade a que alude a recorrente no ponto III das

alegações a que ora se responde.

H) Também no que concerne à quarta questão de constitucionalidade suscitada, é patente a ausência de concreta enunciação da interpretação normativa que a recorrente reputa inconstitucional nas suas alegações junto do Tribunal da Relação de Lisboa.

Assim sendo, cumpre necessariamente concluir não ter a recorrente, também aqui, observado o pressuposto de conhecimento do recurso pelo Venerando Tribunal Constitucional que impunha a identificação concreta e precisa, junto do Tribunal a quo, do sentido ou da dimensão normativa que a recorrente tem por violadora da lei

Fundamental.

I) Assim, afigura-se inequívoco não poder o Tribunal ad quem conhecer das segunda, terceira e quarta questões de constitucionalidade suscitadas no requerimento de

interposição do presente recurso.

J) Mesmo que assim não se entenda - o que não se concede e por mero dever de patrocínio se concebe -, também por outra via sempre se imporia o não conhecimento, pelo Venerando Tribunal Constitucional, das terceira e quarta questões de constitucionalidade suscitadas pela ora recorrente.

K) O legislador constituinte elegeu como elemento identificador do objecto típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização de constitucionalidade - maxime, no domínio da fiscalização concreta - o conceito de norma jurídica, pelo que apenas as normas poderão ser objecto de sindicância constitucional e não já as decisões judiciais em si mesmas consideradas.

L) No que respeita à terceira questão de constitucionalidade suscitada nesta sede, a recorrente configurou a questão em apreço, que agora reputa de inconstitucionalidade normativa, como uma mera discordância com a decisão adoptada pelo Tribunal de Comércio de Lisboa, considerando, nessa sede, não que as normas em causa eram inconstitucionais mas antes não concordando com a aplicação que delas fez o

identificado Tribunal.

M) E o mesmo se afirme quanto à quarta questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente junto do Venerando Tribunal Constitucional, já que também aí a recorrente, nas suas alegações e conclusões junto do Tribunal a quo, afirma encontrar-se perante uma inconstitucionalidade normativa (do artigo 43.º da Lei 18/2003), sendo que, na verdade, apenas discorre sobre a decisão que adoptou o Tribunal de Comércio de Lisboa sobre o âmbito de aplicação do artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, do

Conselho.

N) A recorrente, precisamente quanto à quarta questão de constitucionalidade, não indicou, sequer, qualquer norma ou interpretação como violadora da CRP, limitando-se a apontar a sua divergência face à decisão judicial recorrida, no mero plano da

aplicação da lei.

O) Assim sendo, conclui-se, inequivocamente, que o que vem impugnado pela recorrente não são as normas constantes dos artigos 17.º, 19.º, 22.º e 43.º da Lei 18/2003, em si mesmas consideradas, mas antes a decisão judicial que as aplicou, por via de um processo interpretativo que a recorrente reputa de constitucionalmente

proibido.

P) Tais questões - por não respeitarem a inconstitucionalidades normativas, mas antes a pretensas inconstitucionalidades da própria decisão judicial - excedem os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de «amparo», designadamente na modalidade do «amparo» face a decisões jurisdicionais directamente violadoras da CRP.

Q) Assim, considera-se que as inconstitucionalidades invocadas nos pontos II, III e IV das alegações da recorrente, por não preencherem os pressupostos processuais do presente recurso, não devem ser conhecidas pelo Venerando Tribunal ad quem, com as

legais consequências.

R) Não obstante o que se deixou dito acerca do conhecimento do recurso, e mesmo que assim não se entenda - o que não se concede e por mero dever de patrocínio se concebe -, sempre se impõe a conclusão de que carece integralmente de fundamento a argumentação expendida nos capítulos I a V das alegações da ora recorrente, não se verificando, pois, ao invés do que pretende a mesma sustentar, qualquer das

inconstitucionalidades que invoca.

S) No que concerne à primeira das inconstitucionalidades suscitadas pela recorrente - do artigo 50.º da Lei 18/2003 face aos artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP -, pela qual sustenta uma pretensa incompetência material do Tribunal de Comércio de Lisboa para «apreciar a legalidade de normas regulamentares emanadas da Ordem dos Médicos» (cf. ponto I das alegações da recorrente), importará, desde logo, evidenciar o manifesto equívoco em que incorre a recorrente, maxime, ao partir de um

pressuposto manifestamente erróneo.

T) A questão objecto de sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa e, posteriormente, de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não pode confundir-se com qualquer decisão da Ordem dos Médicos ou declaração de nulidade de um artigo do respectivo Código Deontológico que se encontra já revogado. Tal questão é, tão-somente, a de saber se a recorrente infringiu ou não o disposto nos artigos 4.º, n.º 1, da Lei 18/2003 e 81.º, n.º 1, do TCE, nos termos decididos pela AdC.

U) A própria lei Fundamental reconhece autonomia ao direito contra-ordenacional ou de mera ordenação social face aos demais ramos de direito, maxime, o direito administrativo. Tal é o que decorre do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.

V) É no âmbito de tal previsão e consagração constitucional que se inserem os poderes sancionatórios e competências conferidas à AdC em sede de direito de mera

ordenação social.

W) Cumpre salientar que este ramo do direito, o de mera ordenação social, não poderá, em caso algum, confundir-se com o direito administrativo nem, tão-pouco, poderão os actos e práticas por aquele abrangidos ser configurados como «relações jurídicas administrativas». É que o direito de mera ordenação social foi concebido para ser aplicado pelas autoridades administrativas, e não pelo poder judicial, sendo que tal não significa que o mesmo se reconduza ao direito administrativo.

X) In casu, a decisão da AdC foi adoptada no âmbito de um processo contra-ordenacional, do qual a mesma foi incumbida pelos seus Estatutos, da Lei 18/2003 e, bem assim, do próprio texto constitucional.

Y) Encontrando-se o direito de mera ordenação constitucionalmente previsto e tendo o legislador ordinário estabelecido expressamente, nesse âmbito, a competência do Tribunal de Comércio de Lisboa para julgar as impugnações das decisões da AdC em sede de processos contra-ordenacionais, nunca poderia tal previsão - a constante do artigo 50.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho - ser julgada violadora do disposto nos artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP, ao invés do que pretende a recorrente

sustentar.

Z) Resulta, pois, de forma inequívoca, e ao invés do que sustenta a recorrente, ser o douto Tribunal de Comércio de Lisboa o tribunal competente para apreciar os presentes autos, não consubstanciando tal apreciação qualquer violação dos artigos 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP, carecendo, assim, de fundamento a pretensão de inconstitucionalidade do artigo 50.º da Lei 18/2003 alegada pela recorrente no

ponto I das suas alegações.

[...]

YY) No que concerne, igualmente, ao alegado pela recorrente no ponto V das suas alegações, carece integralmente de fundamento a pretensa inconstitucionalidade do artigo 75.º do RGCO face aos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.os 1 e 4, da CRP.

ZZ) Se no processo em apreço nos encontramos no âmbito do direito de mera ordenação social, e não do direito penal, o que sempre determinaria uma interpretação adaptada da norma constitucional invocada pela recorrente, impõe-se evidenciar que o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO mais do que acautela tal previsão constitucional ao prever não uma mas duas instâncias de recurso, ainda que uma delas limitada ao conhecimento

da matéria de direito.

AAA) Não faz qualquer sentido a invocação da inexistência, in casu, de um duplo grau de jurisdição, independentemente de nos encontrarmos no âmbito do processo contra-ordenacional ou penal, já que, efectivamente, a recorrente beneficiou já de tal duplo grau, ao recorrer da decisão da AdC para o Tribunal de Comércio de Lisboa e, consequentemente, da sentença proferida por esse Tribunal, para o Tribunal da

Relação de Lisboa.

BBB) É evidente que as garantias de defesa do arguido, incluindo a hipótese de recurso a que alude o invocado preceito constitucional, se encontram especificamente acauteladas pelo disposto no artigo 75.º do RGCO e, note-se, em grau garantisticamente superior ao que sempre resultaria da letra e ratio do artigo 32.º, n.º 1, da lei Fundamental e, bem assim, da constante prática decisória do Venerando Tribunal

Constitucional.

CCC) Mas ainda que assim não se entendesse, sempre haveria que ater a interpretação dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.os 1 e 4, da CRP aos seus precisos termos, maxime, à luz das inegáveis diferenças entre o processo penal e o processo contra-ordenacional, incluindo o referente a infracções jusconcorrenciais, diferenciação essa que impõe tratamento constitucional diverso a um e outro tipo de processos.

DDD) Não podem equiparar-se, para os presentes efeitos, os processos sancionatórios em sede jusconcorrencial - pelo valor das coimas aplicadas ou em virtude de uma pretensa diferença de ressonância ética face à natureza do direito contra-ordenacional - aos processos de natureza penal, já que, como se afigura por demais evidente, nenhum sentido fará aplicar as mesmas garantias de defesa e, bem assim, os mesmos graus - ou âmbito material - de recurso, em sede de processo penal - o qual poderá cominar com uma sanção privativa da liberdade ou com a aplicação de uma multa - e em sede de processo contra-ordenacional por violação das normas jusconcorrenciais constantes da Lei 18/2003 - no âmbito do qual a AdC apenas

poderá aplicar uma coima ao arguido.

EEE) Tais situações não são, de todo em todo, comparáveis, assim se justificando que o RGCO, no seu artigo 75.º, n.º 1, não preveja a apreciação do recurso do arguido relativamente à matéria de facto pelo Tribunal da Relação.

FFF) Assim, afigura-se inequívoco não enfermar o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO de qualquer inconstitucionalidade, sendo, pois, compatível com as normas constitucionais constantes dos artigos 32.º, n.os 1 e 10, e 20.º, n.os 1 e 4, pelo que, também aqui, improcederá, necessariamente, a pretensão da recorrente.

Nestes termos,

deve julgar-se integralmente improcedente o presente recurso e, em consequência:

a) Não conhecer das inconstitucionalidades invocas em 2.º, 3.º e 4.º lugar, nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC;

b) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação do artigo 50.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, segundo a qual o Tribunal de Comércio de Lisboa é competente para apreciar as decisões da Autoridade da Concorrência, por violação dos artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP; e c) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da aplicação do artigo 75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações aos processos de contra-ordenação previstos na Lei 18/2003, de 11 de Junho, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.os 1

e 4, da CRP».

8 - Os presentes autos foram redistribuídos em Setembro de 2009, por o relator ter

cessado funções neste Tribunal.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1 - O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da

LTC para apreciação:

a) Do artigo 50.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, enquanto atribuiu competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa para apreciar a conduta de uma associação

pública;

b) Do artigo 1.º da Lei 18/2003, na interpretação segundo a qual as Ordens Profissionais e, em particular, a Ordem dos Médicos, estão sujeitas ao direito nacional

da concorrência;

c) Dos artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei 18/2003, quando interpretados no sentido de não ser aplicável aos processos contra-ordenacionais abertos no âmbito da lei da Concorrência o disposto nos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal;

d) Do artigo 43.º da Lei 18/2003, na interpretação segundo a qual este normativo, ao fazer uma remissão directa para o Regulamento CE n.º 1/2003, confere à Autoridade da Concorrência o poder de aplicar coimas pela violação do artigo 81.º do

Tratado da Comunidade Europeia; e

e) Do artigo 75.º do Regime Geral da Contra-ordenações, enquanto limita o recurso

em 2.ª instância à matéria de direito.

2 - De acordo com o disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.

Se, por um lado, um dos requisitos do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º é a suscitação prévia e de forma adequada, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, da questão de constitucionalidade cuja apreciação é requerida a este Tribunal, por outro, identifica-se o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

Quer se trate da norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, desde que a interpretação definida não seja afinal um caso de abuso ou ficção do conceito de interpretação normativa, apenas com o objectivo de forjar artificialmente uma norma sindicável pelo Tribunal Constitucional (sobre isto, Lopes do Rego, "O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade:

as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional", Jurisprudência

Constitucional, n.º 3, p. 8).

2.1 - A recorrente requer a apreciação do artigo 1.º da Lei 18/2003, na interpretação segundo a qual as Ordens Profissionais e, em particular, a Ordem dos Médicos, estão sujeitas ao direito nacional da concorrência.

Na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa não foi questionada a constitucionalidade de qualquer norma reportada ao artigo 1.º daquele diploma legal (cf. n.os 20 a 49 e conclusões XV a XXX), não se podendo dar como verificado o requisito da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade.

Consequentemente há que concluir, nesta parte, pelo não conhecimento do objecto do

recurso.

2.2 - A Ordem dos Médicos requer também a apreciação dos artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei 18/2003, quando interpretados no sentido de não ser aplicável aos processos contra-ordenacionais abertos no âmbito da lei da Concorrência o disposto nos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal.

Da motivação do recurso que deu origem à decisão recorrida (cf. n.os 64 a 88 e conclusões XLI a XLIV), daquele enunciado e do teor daqueles artigos da Lei 18/2003 decorre que aquilo que a recorrente questiona verdadeiramente é a sentença do Tribunal de Comércio, imputando-lhe a violação dos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal, bem como a dos artigos 32.º, n.º 10, e 266.º, n.º 2, da Constituição. Assim sendo, há que concluir, também nesta parte, pelo não

conhecimento do objecto do recurso.

2.3 - A recorrente requer ainda a apreciação do artigo 43.º da Lei 18/2003, na interpretação segundo a qual este normativo, ao fazer uma remissão directa para o Regulamento CE n.º 1/2003, confere à Autoridade da Concorrência o poder de aplicar coimas pela violação do artigo 81.º do Tratado da Comunidade Europeia.

Na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação (cf. n.os 89 a 94 e conclusões XLV a LII), resulta que a recorrente acusa o Tribunal de Comércio de violar o artigo 18.º da Constituição, por ter decidido como decidiu. A circunstância de a Ordem dos Médicos ter questionado a constitucionalidade de uma decisão judicial (e não de uma norma), obsta ao conhecimento do recurso na parte que se refere àquele

artigo da Lei 18/2003.

3 - Por se verificarem os requisitos do recurso interposto no que respeita aos artigos 50.º da Lei 18/2003 e 75.º do Regime Geral das Contra-ordenações, importa, nesta parte, apreciar as questões de constitucionalidade postas a este Tribunal.

3.1 - A Ordem dos Médicos requer a apreciação do artigo 50.º da Lei 18/2003, enquanto atribui competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa para apreciar a

conduta de uma associação pública.

O artigo 50.º, n.º 1, daquela lei dispõe o seguinte:

«Das decisões proferidas pela Autoridade que determinem a aplicação de coimas ou de outras sanções previstas na lei cabe recurso para o Tribunal de Comércio de Lisboa,

com efeito suspensivo».

A recorrente requer esta apreciação invocando os artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da Constituição. Face à reserva constitucional da jurisdição administrativa, questiona a constitucionalidade de norma que, em matéria de direito administrativo, atribui competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa.

A questão de saber qual é, afinal, o alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa tem sido respondida na jurisprudência do Tribunal Constitucional.

Seguindo o Acórdão do n.º 211/2007 (disponível em www. tribunalconstitucional.pt), é

de concluir que:

«Desta jurisprudência ressalta o entendimento, várias vezes sublinhado, de que a introdução, pela revisão constitucional de 1989, no então artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, da definição do âmbito material da jurisdição administrativa, não visou estabelecer uma reserva absoluta, quer no sentido de exclusiva, quer no sentido de excludente, de atribuição a tal jurisdição da competência para o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. O preceito constitucional não impôs que todos estes litígios fossem conhecidos pela jurisdição administrativa (com total exclusão da possibilidade de atribuição de alguns deles à jurisdição "comum"), nem impôs que esta jurisdição apenas pudesse conhecer desses litígios (com absoluta proibição de pontual confiança à jurisdição administrativa do conhecimento de litígios emergentes de relações não administrativas), sendo constitucionalmente admissíveis desvios num sentido ou noutro, desde que materialmente fundados e insusceptíveis de descaracterizar o núcleo essencial de cada uma das jurisdições».

Nos presentes autos está em causa a norma que atribui competência a um tribunal judicial para conhecer de recurso interposto de decisão da Autoridade da Concorrência que aplica coima e sanção acessória contra-ordenacional à Ordem dos Médicos. Ora, não pode concluir-se que esta atribuição de competência seja

desprovida de justificação.

No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2008 (disponível em

www.tribunalconstitucional.pt) lê-se que:

«Na verdade, a opção legislativa, com longa tradição entre nós, de manter o contencioso das contra-ordenações excluído da jurisdição administrativa foi assumida na discussão que antecedeu a recente reforma do contencioso administrativo e a redefinição do respectivo âmbito da jurisdição, de que veio a resultar o actual artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, e alterado, por último, pela Lei 26/2008, de 27 de Junho). Como justificação para esta opção, invocaram-se as insuficiências de que padece a rede de tribunais administrativos (mesmo após a reforma), incapaz de dar a adequada resposta, sem o risco de gerar disfuncionalidades no sistema (cf. Diogo Freitas do Amaral/ Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo,

Coimbra, 2002, 24).

Por último, sendo inegável a natureza administrativa [...] do processo de contra-ordenação e das situações jurídicas que lhe estão subjacentes, a verdade é que o processo contra-ordenacional, pelo menos na fase judicial, está gizado à imagem do processo penal (cf. artigos 41.º e 59.º e s., maxime, 62.º e s., do RGCO, e artigo 52.º Lei 50/2006, de 29 de Agosto, que estabelece o regime aplicável às contra-ordenações ambientais). Neste contexto, em que coexistem matérias administrativas com modelos processuais penalistas, a "remissão" para os tribunais judiciais das impugnações judiciais no âmbito de processos de contra-ordenação (ambiental) não se afigura atentatória do figurino típico que a Constituição quis consagrar quanto ao âmbito material da justiça administrativa».

Impõe-se, por conseguinte, negar provimento ao recurso interposto na parte que se

reporta ao artigo 50.º da Lei 18/2003.

3.2 - A recorrente requer ainda a apreciação do artigo 75.º do Regime Geral da Contra-ordenações, enquanto limita o recurso em 2.ª instância à matéria de direito.

No n.º 1 desta disposição legal determina-se o seguinte:

«Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões».

A Ordem dos Médicos requer a apreciação daquela norma face ao disposto nos artigos 20.º, n.os 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição. Está em causa a inexistência de um duplo grau de recurso em matéria de facto em processo contra-ordenacional.

Este Tribunal tem entendido que a Constituição não impõe o duplo grau de recurso em matéria de facto (cf., entre muitos outros, os Acórdãos n.os 573/98, 189/2001 e 73/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), pelo que, reiterando este entendimento, há que negar provimento ao recurso interposto na parte que se reporta ao artigo 75.º do Regime Geral da Contra-ordenações.

III. Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a) Não tomar conhecimento do objecto do presente recurso, na parte que se refere às questões reportadas aos artigos 1.º, 17.º, 19.º e 22.º e 43.º da Lei 18/2003;

b) Negar provimento ao recurso na parte que dele se conhece.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de

conta.

Lisboa, 3 de Dezembro de 2009. - Maria João Antunes - Carlos Pamplona de Oliveira - Gil Galvão - José Borges Soeiro - Rui Manuel Moura Ramos.

202911807

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/02/19/plain-270205.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/270205.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 2002-02-19 - Lei 13/2002 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, altera o regime jurídico das empreitadas de obras públicas, o Código de Processo Civil, o Código das Expropriações e a Lei de Bases do Ambiente.

  • Tem documento Em vigor 2003-01-18 - Decreto-Lei 10/2003 - Ministério da Economia

    Cria a Autoridade da Concorrência, pessoa colectiva de direito público, de natureza institucional, dotada de orgãos, serviços, pessoal e património próprios e de autonomia administrativa e financeira, sendo o seu regime jurídico definido pelos estatutos publicados em anexo.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-11 - Lei 18/2003 - Assembleia da República

    Aprova o regime jurídico da concorrência.

  • Tem documento Em vigor 2006-08-29 - Lei 50/2006 - Assembleia da República

    Aprova a lei quadro das contra-ordenações ambientais.

  • Tem documento Em vigor 2008-06-27 - Lei 26/2008 - Assembleia da República

    Altera a Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, que aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais (nona alteração), e a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (quinta alteração)

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