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Acórdão 596/2009, de 24 de Dezembro

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Sumário

Decide não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho [define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares], na acepção segundo a qual, em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária. (Proc. nº 951/08).

Texto do documento

Acórdão 596/2009

Processo 951/08

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório

1 - Brisa Auto-Estradas de Portugal, S. A. interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Setembro de 2008, que negou a revista pedida pela ora recorrente e a concedeu parcialmente no recurso interposto pela Autora Maria Eugénia Setas do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que, decidindo o recurso de apelação, condenou o ora recorrente no pagamento à mesma A.

dos danos que se apurarem em execução de sentença, decorrentes de esta A. ter ficado privada de utilizar o automóvel, desde 21 de Dezembro de 2002 até Maio de 2004, tendo que socorrer-se de transportes de terceiros ou próprios alternativos, suportando os respectivos custos, e manteve a condenação da mesma R. no pagamento à A., da importância de (euro) 6.122,30, relativa ao custo da reparação do veículo, acrescida de juros de mora desde a citação.

2.1 - A recorrida Maria Eugénia Setas propôs acção com processo ordinário contra Brisa-Auto-Estradas de Portugal, S. A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de (euro) 32.872,30 (ou pelo menos (euro) 9.122,30 atento o pedido subsidiário), a título de indemnização e compensação pelos danos sofridos pela A. em consequência directa do acidente de viação, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese, que, no dia 21/12/2002, por volta das 23:50 horas, na auto-estrada A4, ocorreu um acidente de trânsito que envolveu o veículo automóvel n.º 64-79-OG, de marca Wolswagen Golf, sua pertença e que era conduzido pelo seu filho Nuno Miguel Setas da Quinta, e uma raposa que se intrometeu na faixa de rodagem por onde o condutor circulava, em virtude de a rede de protecção não estar totalmente vedada, apresentando uma abertura no local do acidente.

A R. contestou alegando efectuar inspecções periódicas da rede de vedação da auto-estrada e consertar imediatamente qualquer anomalia que detectasse, que na data do acidente não era de prever que a rede estivesse danificada, tanto mais que na inspecção realizada pouco antes do acidente acontecer, a vedação estava em bom estado e que só o facto de a rede ter sido vandalizada determinou que se encontrasse rompida no dia do acidente, pelo que não houve qualquer culpa sua na eclosão do acidente.

Foi requerida e admitida a intervenção acessória da Companhia de Seguros Fidelidade, S.

A., em virtude de a R. haver transferido para ela a responsabilidade civil que, de conformidade com a lei, lhe possa ser exigida por prejuízos causados a terceiros na qualidade de concessionária da exploração e manutenção das auto-estradas.

Efectuada audiência de julgamento para apuramento da matéria de facto controvertida, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, condenou a R. a pagar à A.

a quantia de 6.122,30 (euro), a título de indemnização correspondente ao custo de reparação do veículo, acrescida de juros de mora, à taxa de 4 % ao ano, desde 16/12/2005 até integral e efectivo pagamento, e na indemnização a liquidar em execução de sentença correspondente à quantia despendida pela A. na obtenção de viatura de substituição do OG no período de 21/12/2002 até 01/05/2005. No mais, absolveu-se a R. do pedido.

2.2 - Não se conformando com esta decisão, dela recorreram tanto a A. como a R. para o Tribunal da Relação do Porto, tendo este Tribunal julgado parcialmente procedentes os recursos, pelo que, revogando em parte a sentença recorrida, julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. a pagar à A. a quantia de 6.122,30 (euro) acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento e no mais absolveu a R. do pedido.

2.3 - Não aceitando, uma vez mais, o decidido, dele recorreram a A. e a R., esta subordinadamente, para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

A revista da A. foi julgada parcialmente procedente, tendo-se condenado a R. no pagamento à A. dos danos que se apurarem em execução de sentença, decorrentes do facto de a A. ter ficado privada de utilizar o veículo automóvel, desde 21 de Dezembro de 2002 até Maio de 2004, tendo que socorrer-se de transportes de terceiros ou próprios alternativos, suportando os respectivos custos, e mantido a condenação da R. no pagamento à A. da importância de 6.122,30 (euro), relativa ao custo de reparação do veículo, acrescida de juros de mora desde a citação.

Por seu lado, foi negado provimento à revista interposta pela R.

2.4 - O acórdão recorrido negou provimento ao recurso da R., por entender, em resumo, que, conquanto a doutrina e a jurisprudência se dividissem quanto à natureza da responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas por acidentes nelas ocorridos em razão de animais que nelas se introduzem - defendendo uns a sua natureza extracontratual, com os consequentes corolários da exigência de prova da culpa por parte do titular do direito, e outros uma natureza de responsabilidade contratual, assente, ora num contrato existente entre o utilizador e a concessionária das auto-estradas, atributivo àquela parte de um direito subjectivo à prestação do serviço com certas qualidades ou características, evidenciado pelo pagamento de uma taxa pela sua utilização, ora num contrato firmado entre a concessionária e o Estado (o contrato de concessão), mas atributivo ao utilizador de um direito subjectivo que este pode autonomamente exercer contra a concessionária - o certo é que a questão do ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança das concessionárias das auto-estradas havia sido resolvida pelo artigo 12.º n.º 1, da Lei 24/2007, de 18 de Julho, em termos correspondentes aos que já eram postulados pela tese contratualista da responsabilidade, ou seja, no sentido de que incumbia ao devedor a prova de que agiu sem culpa na determinação do dano, por força do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 799.º, 342.º, 344.º, n.º 1, e 350.º do Código Civil).

Por outro lado, este critério normativo tinha natureza interpretativa, porquanto o preceito que o explicitou mais não fizera do que eleger, entre as duas soluções antes aventadas pela doutrina e pela jurisprudência, aquela que vinha sendo acolhida, no quadro do pertinente sistema jurídico, por vários arestos do STJ, designadamente, a partir da prolação do Acórdão de 22/06/2004, relatado pelo Conselheiro Afonso Correia.

Ora, de acordo com o princípio de que cabe ao devedor fazer a prova de que o incumprimento das obrigações de segurança, instituídas no contrato de concessão das auto-estradas, não basta ao devedor fazer a prova do cumprimento genérico desses deveres, mas sim o cumprimento dessas obrigações em concreto.

Não tendo essa prova sido feita, era a R. responsável pelos danos advenientes do acidente ocorrido entre o veículo que circulava na auto-estrada e uma raposa que se havia intrometido na faixa de rodagem por onde circulava o mesmo veículo.

Considerou, ainda, o acórdão recorrido que a aplicação da referida disposição do artigo 12.º da Lei 24/2007, de 18 de Julho, aos processos pendentes de apreciação judicial não atingia o alegado princípio de separação de poderes, nem a solução nele consagrada violava os princípios do processo equitativo, da igualdade, da proporcionalidade e da justiça ou afrontava o direito fundamental à propriedade privada garantido no artigo 62.º, n.º 1 e 2, da Constituição, este consubstanciado, no caso, na titularidade de obrigações contratuais com valor económico.

3 - No requerimento de interposição do recurso constitucional, a recorrente disse pretender a «apreciação das questões de inconstitucionalidade das normas que se obtêm, pela interpretação, do artigo 12.º da Lei 24/2007, de 18 de Julho (define os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, e ainda as constantes dos artigos 4.º a 12.º da mesma lei, na medida em que, com as normas directamente visadas, tenham relações sistemáticas de aplicação».

4 - Porém, em sequência de convite efectuado à recorrente, a coberto do n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC, foi, por despacho do relator, fixado como objecto do recurso de constitucionalidade a norma constante do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 24/2007, de 18 de Julho, na interpretação segundo a qual, «em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento», por alegada violação dos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4 e 62.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

5 - Alegando sobre o objecto do recurso, a recorrente condensou nas seguintes proposições conclusivas o seu discurso argumentativo:

«1.ª A BRISA é uma sociedade concessionária da construção, manutenção e exploração de auto-estradas, caindo nos deveres previstos nas bases anexas ao Decreto-Lei 247-C/2008, de 30 de Dezembro.

2.ª Na sequência de obras de alargamento na A1 (auto - estrada do Norte), a Assembleia da República aprovou a Resolução 14/2004, de 31 de Janeiro (DR, 1.ª série-A, n.º 137, de 31-Jan.-2004, p. 550), na qual pede ao Governo a alteração das bases da concessão, de modo a suspender as portagens nas vias em obras e a melhor informar os utentes da sua ocorrência.

3.ª Seguiram-se negociações entre o Governo e as concessionárias: inconclusivas, por falta de disponibilidades orçamentais.

4.ª Posto o que foram, no Parlamento, apresentados dois projectos de lei: Projecto n.º 145/X (PCP) e n.º 164/X (BE); veio a ser aprovado o primeiro (Decreto 122/X), o qual deu azo à Lei 24/2007, de 18 de Julho, destinada, no fundo, a conseguir, sem contrapartidas, o que não fora possível pela negociação.

5.ª A Lei 24/2007 veio, no essencial, fixar um esquema mais denso e mais gravoso, para as concessionárias, na hipótese de obras nas auto-estradas: sem compensação.

6.ª Além disso, adoptou um sistema que pode conduzir, na hipótese de obras, à suspensão das taxas e ao afastamento do princípio do equilíbrio financeiro: também sem compensação.

7.ª Finalmente e perante um certo tipo de acidentes (entre os quais os derivados do atravessamento de animais), estabeleceu uma denominada 'presunção de incumprimento', contra as concessionárias: igualmente sem compensação.

8.ª A Lei 24/2007, de 18 de Julho, veio definir os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares.

9.ª No entanto, ao invadir o espaço de conformação dos contratos administrativos de concessão de auto-estradas celebrados por parte do Governo, em representação do Estado Português, a Lei 24/2007, de 18 de Julho, é inconstitucional por violar o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania e o estatuto constitucional do Governo.

10.ª Na verdade, a leitura restritiva do princípio da separação de poderes que o Tribunal Constitucional fez nos Acórdãos n.º 1/97 e 24/98 deixa sérias dúvidas, na medida em que não só ignora que o princípio democrático é, hoje, fonte de legitimidade de todos os poderes do Estado, como desconsidera a dimensão positiva da mesma proposição normativa enquanto princípio organizativo de optimização do exercício das funções do Estado.

11.ª A Constituição permite recortar, outrossim, uma área de reserva de administração a partir das normas de competência do Governo e outra a partir dos modos típicos de exercício da função administrativa.

12.ª O núcleo da reserva de caso concreto é constituído pela autonomia pública, isto é, pela permissão de criação de efeitos de direito não predeterminados por normas jurídicas e titularidade e exercício do correspondente poder, isto é, por margens de livre decisão na criação de efeitos de direito nas situações concretas regidas pelo direito administrativo.

13.ª A autonomia pública corresponde, pois, a uma reserva de decisão parcial a favor da Administração, exercida através da prática de actos administrativos ou da outorga de contratos administrativos.

14.ª No caso em análise, a Assembleia da República pretendeu alterar, através um acto formalmente legislativo, contratos administrativos de concessão celebrados pelo Governo, em representação do Estado Português, com sociedades de direito privado.

15.ª O diploma veio versar matéria que estava ocupada pelo Governo, determinando a alteração de contratos administrativos em execução, através da introdução de novas obrigações que passam a impender sobre os co-contratantes da Administração. Mais: o Parlamento fê-lo prescindindo de qualquer acordo de vontades entre as partes.

16.ª Existe, assim, uma cobertura 'com a forma de lei' de uma 'pura actividade administrativa' (alteração de um contrato de concessão já existente), com consequências evidentes no futuro desenvolvimento do plano rodoviário traçado pelo Governo, em termos de se não poder falar a este propósito de 'uma esporádica e excepcional limitação do espaço de manobra do Governo'.

17.ª Por outro lado, o diploma é ainda inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.

18.ª Este diploma veio consagrar, com carácter geral, uma presunção de culpa das concessionárias de auto-estradas em matéria de (in)cumprimento de obrigações de segurança daquelas quanto a acidentes rodoviários.

19.ª Fazendo-o, passou a onerar as concessionárias com a demonstração de que não cometeram nenhuma violação dos deveres de segurança a que estavam adstritas, ou seja, são oneradas com a prova de um facto negativo. Estabelece um ónus de prova, mas ao mesmo tempo inviabiliza efectivamente, na prática, a sua realização: atenta contra as regras do processo equitativo e do acesso ao direito.

20.ª A verdade, porém, é que os restantes co-contratantes da Administração - ou sequer os restantes concessionários - , não estão onerados com uma tal presunção de culpa; o caso da ANA, que gere as infra-estruturas aeroportuárias, é paradigmático a este respeito.

21.ª Ponderadas as 'propriedades' dos dois casos - o das concessionárias de auto-estradas e o da ANA -, conclui-se inexistir qualquer razão suficiente para um tratamento desigual que não seja a maior frequência dos sinistros rodoviários 22.ª Não se vê, contudo, como possa esse fundamento justificar a diferença de tratamento, visto que, se uma tal asserção é verdadeira, não é menos certo dizer que os acidentes conjecturáveis nas infra-estruturas aeroportuárias causados pela violação das mesmas regras de segurança seriam, potencialmente, de proporções muito superiores aos que se verificam em auto-estradas; ou seja, de certa forma, a magnitude dos acidentes acaba por compensar a respectiva frequência.

23.ª Se assim é, estão aqui dois sujeitos - por um lado, as concessionárias de auto-estradas e, por outro, a concessionária das infra-estruturas aeroportuárias - a ser tratados de forma arbitrariamente desigual, o que se encontra proscrito pelo princípio da igualdade.

24.ª No que concerne ao equilíbrio financeiro uma leitura atenta do artigo 11.º deste diploma demonstra que o que o mesmo determina é que, caso a concessionária não cumpra o disposto nos artigos 4.º a 8.º e, por via disso lhe sejam aplicáveis as sanções previstas nos artigos 9.º e 10.º, tal situação não será 'causa justificativa de revisão contratual para efeitos de equilíbrio financeiro'.

25.ª De resto, visto que o direito ao equilíbrio financeiro do contrato se encontra constitucionalmente protegido pelo direito fundamental de propriedade privada, associado à liberdade de iniciativa económica privada, e pelo princípio da protecção da confiança, sempre prevaleceria esse direito contra qualquer lei que o negasse.

26.ª Em concreto, através do princípio do equilíbrio financeiro, não se indemnizam prejuízos causados por circunstâncias excepcionais e imprevisíveis alheias à vontade das partes: antes se mantém um equilíbrio que, por respeito ao significado inicial do contrato, a administração não pode romper.

27.ª A intervenção legislativa em questão configura-se como um caso de fait du prince, isto é, trata-se de uma actuação exterior ao contrato que determina uma perturbação significativa na sua equação económico-financeira.

28.ª São vários os requisitos do factum principis: (i) a imprevisibilidade: (ii) a natureza geral da medida; (iii) a natureza jurídico-pública da entidade que emana a medida; (iv) o grau de perturbação do equilíbrio financeiro do contrato, que deve sofrer um agravamento significativo; e (v) a repercussão particular da medida em determinados sujeitos.

29.ª O fait du prince gera uma obrigação ressarcitória que deverá ser satisfeita pela pessoa colectiva administrativa contratante, fundada no princípio do equilíbrio do contrato.

30.ª A Lei 24/2007 vem invadir os poderes nucleares do Governo enquanto órgão superior da administração pública - 182.º - incumbido da direcção da administração directa do Estado - 199.º, d).

31.ª Com efeito, cabe apenas ao Governo negociar os contratos públicos de concessão, tanto mais que apenas ele tem os meios técnicos e humanos necessários para o efeito; nesse sentido, de resto, o próprio Parlamento adoptou a referida Resolução 14/2004.

32.ª A Lei 24/2007 traduz, logo por aí, uma intromissão do Parlamento na área própria do Governo, pondo em crise o princípio da separação dos poderes e violando o artigo 2.º da Constituição.

33.ª O contrato de concessão tem uma inequívoca base contratual, integrando-se nas chamadas leis-contrato ou leis pactuadas.

34.ª Do facto de essas leis serem de formação contratual e terem uma substância contratual decorrem importantes implicações em sede do seu regime jurídico, tais como: a de a sua modificação ou revogação apenas poder realizar-se por mútuo acordo das partes, que lhe deram origem, a menos que a sua modificação resulte do poder de modificação unilateral 35.ª O princípio jurídico fundamental pacta sunt servanda é estruturante da nossa ordem constitucional que tem o seu fundamento último na própria ideia de Estado de Direito ou no princípio da segurança jurídica ou da protecção da confiança, com assento muito claro no art.

2.º da Constituição. Pois a 'palavra dada' é para respeitar mesmo quando venha a assumir a forma de lei.

36.ª Na revisão do contrato de concessão formalizada pelo Decreto-Lei 247-C/2008, de 30 de Dezembro, e pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 198-B/2008, da mesma data (esta publicada no D.R., 1.ª série, n.º 252, de 31-12.08), a estipulação da responsabilidade civil na Base XLIX do Decreto-Lei 294/97, de 24 de Outubro, para com os utentes, manteve-se incólume, não tendo sido alvo de modificação.

37.ª Com efeito, não é legítimo tratar uma tal lei como as demais, colocando-as sob o normal poder de revisão (ou alteração) próprio do poder e ordenamento legislativos, uma vez que tais leis, em virtude do vínculo contratual subjacente, não participam inteiramente da livre revisibilidade própria da função legislativa.

38.ª O n.º 1 do artigo 12.º viola também o princípio da protecção da confiança, num outro aspecto, ou seja, enquanto põe em causa o particular mundo das empresas que planeiam a longo prazo com o maior rigor os proveitos que vão obter e os e custos em que vão incorrer.

39.ª Além disso, a Lei 24/2007, designadamente através do seu artigo 12.º/1, veio interferir na composição de litígios já em curso, surgidos entre particulares.

40.ª Tais litígios só podem ser dirimidos pelos tribunais (202.º/2), sob pena de se pôr também em causa o direito de acesso aos mesmos, para defesa dos direitos (20.º/1).

Interpretar o contrato não compete à lei, mas aos tribunais.

41.ª A Lei 24/2007 equivale a uma intromissão do Parlamento no núcleo do poder judicial; põe em causa, num ponto estruturante do nosso ordenamento, o princípio da separação de poderes, violando, também por aqui, o artigo 2.º da Constituição.

42.ª O Direito assenta no postulado básico de tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença: a essa luz, as soluções desarmónicas são, já por si, contrárias ao princípio da igualdade.

43.ª O Direito civil, na sequência de um esforço milenário de equilíbrio, distingue a responsabilidade obrigacional da aquiliana: a obrigacional, emergente da violação de deveres concretos pré-existentes, prevê uma presunção de culpa, perante o incumprimento (mais severo); a aquiliana, correspondente à inobservância de deveres gerais de respeito, não comporta tal presunção (mais leve): artigos 799.º/1 e 487.º/1, do Código Civil.

44.ª A cominação de um ou outro tipo de responsabilidade não é arbitrária: depende da materialidade em jogo, sob pena de atingir a igualdade.

45.ª No caso de acidentes em auto-estrada, mostrando-se cumpridos os deveres específicos a cargo da BRISA, apenas queda verificar se, com violação do dever genérico de respeito, foram violados direitos dos utentes: a responsabilidade é, pela natureza das coisas, aquiliana.

46.ª A 'presunção de incumprimento', ao interferir (e na medida em que interfira) nessa questão, viola o artigo 13.º/1, da Constituição. Sem conceder, 47.ª A igualdade constitucional projecta-se no princípio da igualdade rodoviária: nas diversas vias e aos vários utentes aplicam-se regras genéricas e nunca ad hominem.

48.ª Daí que não seja compaginável, nas auto-estradas, uma regra de maior protecção (ou menor risco) dos utentes, em função de gerar coordenadas jurídicas: ser ou não um lanço concessionado; haver ou não portagem; estar em causa o condutor ou o passageiro, como exemplos: seria violado o artigo 13.º/1. Sem conceder, 49.ª O artigo 12.º/1 da Lei 24/2007 veio, de facto, fixar uma presunção de 'não-cumprimento' (e, não, de culpa); com isso estabelece, de facto, um regime de imputação objectiva: mesmo cumprindo todos os seus deveres, a concessionária ainda será responsabilizada pelo resultado, numa manifestação de puro risco.

50.ª A responsabilidade pelo risco é expoliativa: só se admite em casos especiais, para o futuro, com limitação das indemnizações e acompanhamento por seguros. In casu, nada disso foi ponderado: há nova via de inconstitucionalidade, por discriminação subjectiva, atingindo-se o artigo 13.º/1 da lei Fundamental. Sem conceder, 51.ª A Lei 24/2007, em vários dos seus preceitos, designadamente o artigo 12.º/1, veio atingir selectivamente os direitos das concessionárias; fê-lo fora de quaisquer pressupostos tributários, violando, também por aqui, a igualdade prevista no artigo 13.º/1, da Constituição.

52.ª A recorrente brisa detém um acervo patrimonial enquanto parte num contrato de concessão; tal acervo, ainda que contratual, é protegido pela Constituição, por reconduzir-se a uma noção ampla de propriedade (artigo 62.º/1, da Constituição).

53.ª A Lei 24/2007, em vários dos seus preceitos e, designadamente, no seu artigo 12.º, veio atingir direitos patrimoniais pré-existentes, sem compensação: violou a propriedade privada.

54.ª No caso do artigo 12.º em causa, esse fenómeno mais flagrante se torna: foi criada, com referência a situações pré-existentes, uma situação objectiva de risco, que é substancialmente amputante de valores patrimoniais: a violação do artigo 62.º/1, da Constituição, surge apodíctica.

Nestes termos e naqueles que, suprindo, os Venerandos Conselheiros Constitucionais queiram subscrever, deve ser declarada a inconstitucionalidade material da Lei 24/2007 e, designadamente, do seu artigo 12.º, por violação, inter alia, dos artigos 2.º, 13.º/1 e 62.º/1, da Constituição, assim se dando provimento ao presente recurso.»

6 - A recorrida não contra-alegou.

B - Fundamentação

7 - Resulta do relatado que o objecto do recurso de constitucionalidade se cinge à norma constante do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, «em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via [não] lhe é, de todo imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento».

Em tal norma radica, na verdade, o fundamento normativo do decidido relativamente à obrigação de indemnizar em que a ora recorrente foi condenada.

De fora do objecto do recurso de constitucionalidade, por não terem constituído sua ratio decidendi, estão, assim, as normas constantes dos artigos 4.º a 12.º da mesma lei às quais a recorrente imputa a violação do equilíbrio financeiro do contrato de concessão firmado entre o Estado e a recorrente para a construção, manutenção e exploração de auto-estradas formalizado no Decreto-Lei 294/97, de 24 de Outubro, bem como, em certa medida, «o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania e o estatuto constitucional do Governo».

Deste modo apenas faz sentido convocar o princípio do equilíbrio dos contratos, mesmo quando de natureza administrativa, enquanto dimensão absorvida no princípio da proporcionalidade que a nossa Constituição acolheu quer como princípio geral próprio do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º), quer como princípio legitimador das limitações ou restrições aos direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).

A problemática da responsabilidade das concessionárias de auto-estradas por acidentes nelas ocorridos por virtude de animais que nelas se introduzem tem sido objecto de larga discussão doutrinária e jurisprudencial, centrada essencialmente na preocupação de dar resposta à questão de saber a quem compete o ónus de prova da culpa do facto, tendo no horizonte como referentes legais os princípios segundo os quais, na responsabilidade contratual, esse ónus incumbe ao devedor (artigo 799.º do Código Civil) e, na responsabilidade extra-contratual, ao lesado (artigo 487.º, n.º 1, do Código Civil).

Pode dizer-se que, para uns, se trata de uma responsabilidade contratual, porque advém de um contrato inominado de utilização da auto-estrada, expresso na oferta de fornecimento do serviço de circulação automóvel, efectuado segundo os parâmetros de qualidade expressos no contrato de concessão, e no pagamento da taxa de portagem que possibilita a utilização do serviço oferecido: a situação ajusta-se a um contrato de facto celebrado directamente entre o utente do serviço e o fornecedor do respectivo bem, por adesão de uma relação factual concreta a um tipo contratual predefinido pela exigência de pagamento de uma taxa de portagem e pela disponibilidade de utilização da auto-estrada em condições de segurança (Sobre as diferentes teses, cf. a anotação do Prof. Sinde Monteiro, in Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 131.º, 41 e segs., 132.º, 29 e segs. e 133.º, 27 e segs.).

Outros admitem a natureza contratual da responsabilidade mas fundam-na no contrato de concessão celebrado entre o Estado e a concessionária da construção, conservação e exploração das auto-estradas, descortinando neste uma cláusula de constituição de responsabilidade contratual em benefício de terceiros, os utentes da via: os terceiros utilizadores da via estariam incluídos, por força do próprio contrato, no âmbito da protecção dos interesses acautelados pelo contrato de concessão, em termos que justificam a chamada à colação da figura dos «contratos com eficácia de protecção para terceiros» (cf. Sinde Monteiro, loc. cit.).

Finalmente, depara-se uma tese de responsabilidade extra-contratual ou aquiliana, nos termos da qual, o único contrato discernível na situação é um contrato entre a concessionária das auto-estradas e o Estado que apenas define as suas recíprocas obrigações, pelo que aquela responde perante os terceiros se, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (cf. Profs.

Menezes Cordeiro, in Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas, Estudo do Direito Civil Português, 2004, pp. 56; Carneiro da Frada, parecer publicado na Revista do STJ n.º 650/07, e Conselheiro Armando Triunfante, in Responsabilidade Civil das Concessionarias das Auto-estradas, RDJ, tomo 1.º, pp. 45 e segs.).

O Supremo Tribunal de Justiça adoptou tanto a tese da responsabilidade extra-contratual (cf.

Acórdãos de 12/11/96, BMJ, 461.º, 411 e Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 131, pp. 41 e segs., de 20/05/2003 e de 1/10/2009, in www.dgsi.pt/jstj,nsf), como a da responsabilidade contratual que o acórdão recorrido tem por dominante a partir da prolação do Acórdão de 22/06/2004, disponível no mesmo site informático.

O acórdão recorrido resolveu a questão do ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança das auto-estradas em função apenas do disposto na norma questionada do artigo 12.º da Lei 24/2007, de 18 de Junho que assim dispõe:

«Artigo 12.º

Responsabilidade

1 - Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:

a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;

b) Atravessamento de animais;

c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança.

3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:

a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;

b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;

c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.» Segundo o aresto recorrido «este dispositivo põe fim à polémica relativa ao ónus de prova, remetendo a discussão sobre a natureza jurídica da responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas para fundamentos meramente teórico-académicos». Todavia, não obstante esta proclamação, certo é que, para resolver o caso concreto, não pôde o aresto ignorar as posições anteriores sobre o fundamento da responsabilidade das concessionárias das auto-estradas, pois se lhe tornou necessário aferir se ao novo preceito deveria ser atribuída natureza interpretativa ou carácter inovatório, dado os factos em questão terem ocorrido antes da entrada em vigor da lei nova.

E no desembaraço dessa tarefa e convocando os critérios definidores das leis interpretativas concluiu o acórdão recorrido que o preceito devia ser tido como lei interpretativa e consequentemente como norma esclarecedora do sentido da norma interpretada e integrando, por isso, ab initio, o seu conteúdo prescritivo enquanto cometendo às concessionárias das auto-estradas o ónus da prova das obrigações de segurança, tal qual era antes consagrado pela jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça.

Ora, conquanto a recorrente, pelos termos em que recorta a norma sindicada, pareça apenas controverter a validade do critério estabelecedor do ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança, a se, o certo é que, na sua argumentação, não deixa ela de atacar igualmente a eficácia retroactiva da norma associada àquela qualificação de lei interpretativa.

A elucidação da questão de constitucionalidade dispensa a determinação da natureza da responsabilidade aqui em causa, mas já não desobriga de uma análise da norma impugnada quanto a saber se ela deve ser havida como norma que dispõe sobre matéria cuja regulação tenha sido pactuada entre os intervenientes do contrato de concessão, formalizado no Decreto-Lei 294/97, de 24 de Outubro (ou diploma posterior - Decreto-Lei 247-C/2008, de 30 de Dezembro) ou se dispõe sobre efeitos que são estranhos à negociação contratual ou à ponderação dos interesses que cada um dos contraentes visa acautelar vinculativamente através do contrato.

Ora, o preceito questionado insere-se num diploma que tem como objecto definir, nos termos nele apontados (artigo 1.º da referida Lei 24/2007), «os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares e estabalece[r], nomeadamente as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos utentes estabelecidos ou a estabelecer».

Se bem que a norma sindicada respeite apenas ao ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança da concessionária de «auto-estradas, com ou sem obras em curso, em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens», o certo é que ele atinge não só os sujeitos que já detenham a qualidade de concessionários de auto-estradas, mas igualmente todos aqueles que venham a ficar em tal posição no futuro. Por outro lado, o preceito não visa dispor acerca de um certo e determinado contrato de concessão de auto-estradas, nem interferir com a definição das obrigações contratuais assumidas nesses contratos por quem neles intervém: o Estado concedente e a concreta concessionária. O legislador associa, simplesmente, a constituição de efeitos jurídicos à existência de uma hipótese de facto configurada em torno de uma categoria abstracta de pessoas e de um tipo de situações, igualmente abstractas.

Nesta linha de pensamento não se vê como seja possível sustentar-se que, ao adoptar o regime jurídico de cometer à concessionária das auto-estradas o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança atinentes à circulação nas respectivas vias, na dimensão aqui sindicada, o legislador parlamentar esteja a violar o «princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania e o estatuto constitucional do Governo», como esgrime a recorrente.

Não tendo a norma em causa a natureza de qualquer cláusula contratual, mesmo que construída sobre um qualquer prévio pacto de legislar em certo sentido, antes derivando da competência da Assembleia da República de «fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo» [artigo 161.º, alínea c)], não se vislumbra como possa defender-se que, com a conformação do respectivo regime jurídico, com carácter geral e abstracto, se possa estar a atingir o «núcleo essencial» da autonomia pública pressuposta como função material da Administração-Governo em se vincular, com respeito pelo princípio da precedência e da reserva material de lei, em contratos de concessão da concepção, construção, manutenção e exploração de auto-estradas.

Como dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3.ª edição revista, pp. 497-498), o sentido útil do princípio da separação de poderes, como princípio normativo autónomo dotado de um irredutível núcleo essencial, será o de servir de fundamento à declaração de inconstitucionalidade de qualquer acto que ponha em causa o sistema de competências, legitimação, responsabilidade e controlo consagrado no texto constitucional».

A definição do regime de responsabilidade dos concessionários das auto-estradas para com os utentes dessas vias de comunicação não é matéria que respeite à definição das obrigações recíprocas dos contraentes no contrato de concessão respeitantes às operações materiais e jurídicas da concepção, construção, manutenção e exploração de auto-estradas e, consequentemente, ao exercício, com respeito pelos referidos princípios da precedência e de reserva material de lei, de uma competência inserida materialmente na função administrativa, independentemente de esta não caber exclusivamente ao Governo, mas apenas como função-regra, própria da concepção constitucional do Governo como órgão superior da administração pública (artigo 182.º da Constituição) dotado de uma competência administrativa expressamente enunciada no texto fundamental (artigo 199.º da Constituição), mas ao regime de relações com terceiros em relação ao contrato.

Do mesmo passo, pode asseverar-se que a instituição do referido ónus de prova, por banda das concessionárias de auto-estradas, do cumprimento das obrigações de segurança na circulação rodoviária que estas oferecem, não ofende, ao contrário do alegado, as regras do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.

O princípio do processo equitativo tem sido compreendido enquanto um direito a um due process of law que deve compreender o direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias, o direito de defesa e de contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado dessas provas, direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, direito à fundamentação das decisões, direito à decisão em tempo razoável, direito ao conhecimento dos elementos processuais, «direito à apresentação de provas tendentes e aptas a demonstrar os factos alegados e o direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas» (cf. J. J. Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, p. 415-416).

Ora a repartição, pelo legislador, entre os sujeitos das obrigações do ónus de prova dos elementos constitutivos de tais obrigações não se afigura constituir matéria de processo, mas antes matéria substantiva, conquanto o momento de primacial efectividade da norma ocorra dentro do processo, determinando a quem incumbe, nele, a tarefa de ter de demonstrar os factos controvertidos e de como deve o tribunal decidir no caso de não se fazer prova do facto. Está ausente dessa atribuição qualquer ideia de igualdade ao processo e no processo.

De qualquer modo, não se vislumbra que seja desprovido de fundamento material bastante a opção de o legislador cometer o ónus em causa à parte que se encontra em melhores condições para antecipadamente poder lançar mão dos meios ou instrumentos materiais aptos à prova dos factos, quer pelo domínio material que tem sobre as auto-estradas e os meios de equipamento e de infra-estruturas adequadas a conferir maior segurança na circulação rodoviária, quer pela sua capacidade económica para se socorrer desses meios.

Entende a recorrente que o estabelecimento, pelo referido preceito, do ónus de prova de cumprimento das obrigações de segurança viola os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da protecção da confiança.

Para fundamentar a primeira asserção convoca a circunstância de os restantes co-contratantes da Administração - ou sequer os restantes concessionários - não estarem onerados com uma tal presunção de culpa, constituindo caso paradigmático da diferença de tratamento o que se passa com a ANA que gere as infra-estruturas aeroportuárias e cuja violação das regras de segurança terá potencialmente proporções muito superiores.

Mas tal alegação é manifestamente improcedente. O princípio da igualdade, assumido como princípio fundamental na nossa Constituição (artigo 13.º) não significa igualitarismo ou igualdade formal.

Como se disse no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990, dispensando-se o Tribunal de citar outros locais, dada a uniformidade de critério, «O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, 'razoável, racional e objectivamente fundadas', sob pena de, assim não sucedendo, 'estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes', no ponderar do citado Acórdão 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299)».

Ora, a afirmação de que o regime de responsabilidade civil do ónus da prova dos restantes co-contratantes da Administração na concessão de bens ou serviços públicos, e mais especificadamente a alegada relativa à ANA, é menos exigente do que a decorrente da aplicação do artigo 12.º da Lei 24/2007 é tudo menos líquida, porquanto é possível sustentar que idêntica inversão do ónus da prova opera, nesse domínio, seja por decorrência do enquadramento na responsabilidade contratual (artigo 799.º do Código Civil), seja por aplicação do regime específico da responsabilidade extracontratual (artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil).

Por outro lado, não pode negar-se que as duas situações de facto apresentam contornos evidentes de exigências não inteiramente coincidentes.

Do mesmo passo, tendo em conta que o tipo de bens oferecido através da oferta da via das auto-estradas, diferentemente do que se passa com as demais estradas, pressupõe níveis elevados e especiais de segurança, traduzidos desde logo na concepção, construção, manutenção e exploração das vias segundo padrões materiais ou normativos de grande exigência, e que a sua utilização é feita em termos massivos e mediante o pagamento de uma taxa (ainda que nas SCUT esta seja assumida pelo Estado), não se vê que possa considerar-se existir qualquer violação do princípio da proporcionalidade ao atribuir-se ao concessionário da auto-estrada o ónus de demonstrar que cumpriu, em concreto, relativamente a cada utilizador, a obrigação de segurança cuja pressuposta existência real se apresenta como determinante para que uma grande massa de consumidores opte pela sua utilização.

Não constituindo a instituição legal desse ónus uma interferência no domínio da estipulação das concretas relações contratuais, não pode também defender-se que ela introduza qualquer perturbação anormal e imprevisível na habitual previsão dos riscos que as partes ponderam antecipadamente antes de se decidir pela vinculação contratual, em termos de se poder considerar afectar-se intoleravelmente a autonomia de vontade pressuposta pelo direito à capacidade civil e ao livre desenvolvimento da personalidade.

Estando-se perante especiais actividades económicas geradoras de riscos elevados de lesão de bens e direitos de terceiros, muitas vezes ínsitos ao próprio tipo de bens cuja aquisição se oferece, afigura-se como previsível que o legislador possa submeter essa actividade concreta a especial regime de responsabilidade e isso principalmente quando ela é levada a cabo em regime de concessão pública, pois dela poderá sobrar para o Estado a emergência de ter de suprir as consequências danosas para os utilizadores desses bens, mormente através do cumprimento dos deveres de prestação dos serviços de saúde e de segurança social.

Nesta senda, falece, igualmente, o argumento da violação do princípio da protecção da confiança, independentemente de se afigurar inconsistente a sua convocação quando, como acontece no caso, se está, segundo o entendimento do tribunal a quo que constitui um dado para o Tribunal Constitucional, em presença de uma lei interpretativa, por o sujeito não poder deixar de contar com a eventualidade de o legislador vir a assumir como sentido normativo obrigatório aquele que, na jurisprudência aplicada, pese embora a existência de divergências perante a lei interpretada, coincidia com o que veio a ser positivado na lei interpretativa.

Alega, ainda, a recorrente que a norma em questão viola o direito de iniciativa económica privada e o direito de propriedade privadas, consagrados, respectivamente, nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, ambos da Constituição.

Mas sem razão, uma vez mais. O direito de iniciativa económica privada está expressamente reconhecido como direito fundamental no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição. Mas não como direito absoluto. Daí que ele deva ser exercido «nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral».

Ora, no preceito constitucional imediatamente antecedente (o artigo 60.º, n.º 1) dispõe-se que «os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, [...] à protecção [...] da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos».

Por outro lado, não pode deixar de distrair-se do artigo 2.º da Constituição, consagrador do princípio do Estado de direito democrático, enquanto postulado decorrente do princípio de justiça material em que aquele também se decompõe, um princípio fundamental do reconhecimento de um direito geral à reparação de danos.

O direito à reparação de danos, seja por violação dos direitos do consumidor com protecção constitucional garantida no artigo 60.º, n.º 1, da Constituição, seja por falta de cumprimento de obrigações emergentes de contratos, da violação de direitos ditos «absolutos» ou até da prática de actos que, embora lícitos causam prejuízo a outrem, pressupõe uma tomada de posição legislativa quanto à exigência ou não da culpa pelo facto danoso e dentro desta matéria, da repartição do ónus de prova.

Não se afigura, pelas razões já expendidas, que a sujeição das concessionárias de auto-estradas ao ónus de prova do cumprimento, em concreto, das obrigações de segurança de circulação na via, viole esse direito de iniciativa económica privada, mormente por ofensa do alegado princípio da proporcionalidade em qualquer das suas significações.

E também não procede a alegada violação do direito fundamental à propriedade privada.

Pode, desde logo, questionar-se que, no âmbito material da garantia do direito fundamental à propriedade privada, possa incluir-se as diminuições de património decorrentes do dever de indemnizar.

Mas, independentemente da resposta que essa dúvida possa merecer, certo é que o direito de propriedade privada não está garantido em termos absolutos, mas apenas, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 62.º da Constituição, dentro dos limites e com as restrições previstas em outros lugares da Constituição e na lei quando ela remeta para esta a regulação das matérias previstas nesses outros lugares da Lei Fundamental.

Sendo assim, mesmo que o direito à reparação de danos por acidentes em auto-estradas possa fundar-se, em alguns casos e, em parte, na violação do direito de propriedade privada de outrem, sempre razões de segurança e de protecção de outros direitos com reconhecimento constitucional, como o direito à vida, à integridade física e à protecção da saúde, podem justificar a opção legislativa de atribuição do ónus de prova do facto danoso a quem incumbe o cumprimento de uma obrigação legal de concreta provisão material e normativa de condições de segurança na circulação rodoviária.

Deste jeito, impõe-se concluir que a norma constante do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, «em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento», não padece de inconstitucionalidade.

C - Decisão

8 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 25 UCs.

Lisboa, 18 de Novembro de 2009. - Benjamim Rodrigues - Joaquim de Sousa Ribeiro - João Cura Mariano - Rui Manuel Moura Ramos.

202709201

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/12/24/plain-267116.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/267116.dre.pdf .

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1997-10-24 - Decreto-Lei 294/97 - Ministério das Finanças

    Revê o contrato de concessão da BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S.A.

  • Tem documento Em vigor 2007-07-18 - Lei 24/2007 - Assembleia da República

    Define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares.

  • Tem documento Em vigor 2008-12-30 - Decreto-Lei 247-C/2008 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Procede à quinta alteração ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, que revê o contrato de concessão da BRISA — Auto-Estradas de Portugal, S. A. e republica as bases da concessão de construção, conservação e exploração de auto-estradas atribuída à BRISA - Auto-Estradas de Portugal, S. A., aprovadas pelo citado diploma.

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