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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 13/2009, de 6 de Novembro

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Sumário

Fixa a seguinte jurisprudência: durante o inquérito, o juiz de instrução criminal pode determinar, a requerimento do Ministério Público, elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a futura aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, não tendo aquele requerimento de ser cumulativo com a promoção para aplicação de uma medida de coacção, mas devendo o Ministério Público indicar nele a concreta medida que tenciona vir a promover.

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2009

I - Relatório

1 - O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa veio, ao abrigo do disposto no artigo 437.º do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da referida Relação de 23 de Janeiro de 2008, proferido no processo 9349-07, da 3.ª Secção, que rejeitou, por manifesta improcedência, o recurso interposto da decisão do juiz de instrução criminal (JIC) que indeferiu o requerimento do mesmo Ministério Público a pedir a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação futura de medidas de coacção ou de garantia patrimonial em relação a suspeitos a constituir como arguidos, com fundamento em que a intervenção do JIC apenas se justifica quando esteja em causa a concreta aplicação de uma medida de coacção, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 268.º do Código de Processo Penal (CPP).

Alega o recorrente que tal acórdão está em oposição com outro da mesma Relação, proferido em 18 de Dezembro de 2007, no âmbito do processo 8853/07, da 5.ª Secção Criminal.

Para tanto, concluiu a respectiva motivação do seguinte modo:

«1 - No acórdão recorrido a questão jurídica que vinha colocada, face ao disposto no artigo 188.º, n.º 7 do CPP revisto, foi decidida no sentido de que a intervenção do JIC apenas se justifica quando esteja em causa a concreta aplicação de uma medida de coacção, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 268.º do CPP.

Considerou-se que tratando-se de medida de coacção apenas futura e incerta - quer no tempo, quer quanto aos destinatários - a actividade reclamada pelo M.º P.º ao juiz é destituída de sentido.

Considerou-se que a intervenção do juiz, na fase de inquérito, é apenas pontual, ainda que essencial e exclusiva, por via de se dirigir à salvaguarda de importantes direitos e liberdades individuais; e que, por outro lado, o próprio M.º P.º tem à sua disposição todas as intercepções telefónicas e, bem assim, o relatório já elaborado pelo órgão de polícia criminal (OPC), pelo que sempre poderá ordenar as transcrições que entender, ao abrigo do disposto no n.º 9 do artigo 188.º do CPP.

2 - Sobre a mesma questão de direito e no âmbito da mesma legislação foi proferida a 18/12/2007, no processo 8853/07, da 5.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, acórdão [...] que consagrou solução oposta:

'O JIC pode determinar, a requerimento do M.º P.º, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a futura aplicação de medida de coacção, à excepção de termo de identidade e residência (TIR), não tendo aquele requerimento que ser cumulativo com a promoção para aplicação de uma medida de coacção.' 3 - Tendo ambos os acórdãos transitado em julgado, e não sendo nenhum deles, já, susceptível de recurso ordinário, impõe-se a fixação de jurisprudência.» 2 - Foram juntas certidões dos acórdãos recorrido e fundamento, com nota do respectivo trânsito em julgado.

3 - Admitido o recurso, os autos subiram a este Supremo Tribunal, tendo o Ministério Público, na vista a que se refere o artigo 440.º, n.º 1, do CPP, emitido parecer no sentido de ocorrerem os pressupostos legais para o prosseguimento dos autos como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

4 - Proferido despacho liminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência a que se refere o artigo 441.º do CPP, na qual foi decidido, por acórdão de 11 de Setembro de 2008, ocorrer oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento.

5 - Notificado nos termos do artigo 442.º, n.º 1, do CPP, veio o M.º P.º apresentar as suas alegações.

Começou por caracterizar a oposição de acórdãos e definir o objecto do recurso, consistente em saber se o juiz de instrução criminal (JIC) pode, a requerimento do Ministério Público, determinar e ordenar a transcrição e junção aos autos de inquérito das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a futura aplicação de medida de coacção, que não o termo de identidade e residência (TIR), sem que, cumulativamente, promova a aplicação de uma concreta medida de coacção, analisou depois os acórdãos recorrido e fundamento, citando jurisprudência abonatória das respectivas posições, para passar, de seguida, a explanar a posição defendida, convocando e interpretando os preceitos legais atinentes, à luz da jurisprudência e da doutrina, bem como da hermenêutica que teve como mais correcta, até que veio a concluir com a seguinte formulação de jurisprudência:

«O JIC deve determinar a requerimento do Ministério Público a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a futura aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do Termo de Identidade e Residência, não tendo aquele requerimento de ser cumulativo com a promoção para a aplicação de uma medida de coacção.» 6 - A oposição de acórdãos foi já decidida na fase preliminar, tendo-se concluído na conferência pela oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

Porém, não tendo a referida decisão força de caso julgado formal, podendo a mesma questão ser reapreciada pelo pleno das secções criminais, como vem sendo decidido uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça, impõe-se proceder a tal reapreciação.

6.1 - No acórdão recorrido, proferido em 23 de Janeiro de 2008 no recurso n.º 9349/07, da 3.ª Secção da Relação de Lisboa, na sequência de reclamação da decisão sumária do relator para a conferência, decidiu-se confirmar a referida decisão sumária e rejeitar por manifesta improcedência o recurso interposto pelo Ministério Público da decisão do JIC que indeferira o requerimento daquele no sentido de obter a transcrição de determinadas escutas telefónicas já realizadas, nos termos do actualmente vigente n.º 7 do artigo 188.º do CPP, com vista a requerer futuramente uma medida de coacção diferente do TIR, relativamente a determinadas pessoas tidas como suspeitas e devidamente identificadas. O fundamento de tal rejeição baseou-se essencialmente na consideração de que a medida de coacção invocada era futura e incerta e que o JIC não podia ordenar tal transcrição sem que estivesse em causa a concreta aplicação de uma medida de coacção, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 268.º do CPP.

6.2 - No acórdão-fundamento, proferido em 18 de Dezembro de 2007 no recurso n.º 8853/07, da 5.ª Secção da mesma Relação, em face da decisão de indeferimento pelo JIC de requerimento do Ministério Público, em tudo idêntico ao anteriormente referido, decidiu-se conceder provimento ao recurso, ordenando-se que o despacho recorrido fosse substituído por outro que determinasse a requerida transcrição, e isto, essencialmente com o fundamento de que «[o] JIC pode determinar, a requerimento do M.º P.º, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a futura aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do TIR, não tendo aquele requerimento de ser cumulativo com a promoção para a aplicação de uma medida de coacção.».

6.3 - Delineadas, assim, as posições de ambos os arestos, fácil é de concluir pela sua oposição relativamente à mesma questão de direito e no âmbito da mesma legislação, pois ambos eles foram proferidos no domínio de vigência das alterações introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei 47/2008, de 29 de Agosto, nomeadamente no que respeita à matéria das intercepções telefónicas e respectivas gravações.

Impõe-se, pois, confirmar, nesta sede, o julgamento prévio efectuado na conferência que decidiu a questão preliminar, nada obstando ao prosseguimento do recurso com vista à solução do conflito de jurisprudência.

II - Fundamentação

7 - A questão:

7.1 - A questão, como vimos, diz respeito a saber se o JIC, a requerimento do Ministério Público no inquérito e com vista à fundamentação de futura aplicação de medidas de coacção, com excepção do TIR, pode mandar transcrever conversas e comunicações telefónicas que tenham sido intercepcionadas e gravadas sem que, ao mesmo tempo, o Ministério Público deva promover uma concreta medida de coacção.

A) O acórdão recorrido entendeu que não, nos termos que ficaram já assinalados.

Nesse acórdão estava subjacente à decisão a seguinte situação de facto:

- Investigava-se em inquérito a prática de crime de tráfico de estupefacientes;

- No seu decurso, o Ministério Público ordenou a apresentação do inquérito ao juiz de instrução criminal, promovendo, além do mais, que se determinasse a transcrição e junção aos autos de todas as conversações e comunicações constantes das sessões que a seguir se indicavam, por essenciais e indispensáveis à futura aplicação de medidas de coacção aos suspeitos a constituir como arguidos (devidamente identificados), que se previam diversas do TIR, atenta a natureza e gravidade do ilícito em causa, pois de tais sessões resultavam elementos que contribuíam para identificar os envolvidos nos factos, o seu grau de conhecimento, modo de actuação e comparticipação, relação com os demais, responsabilidade global e individual, e eram susceptíveis de fundamentar o perigo de continuação da actividade criminosa;

- Sobre a referida promoção incidiu despacho de indeferimento do juiz de instrução criminal;

- Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, veio este, como se referiu já, decidir por Acórdão de 23 de Janeiro de 2008, após reclamação, pelo recorrente, da decisão sumária do relator, para a conferência. O acórdão, todavia, retomou a fundamentação e o sentido da decisão do relator, que rejeitara o recurso por manifesta improcedência.

Os traços fundamentais dessa fundamentação surpreendem-se nas seguintes passagens do acórdão:

«[E]ste [n.º 7 do artigo 188.º do CPP] analisa-se numa fase processual tendente à recolha de elementos para formular a acusação e que corre sob a direcção do M.º P.º - cf. art.os 262.º e 263.º do CPP.

O JIC apenas é chamado a intervir nele pontualmente e com exclusividade para realizar certos actos - cf. artigo 268.º do CPP - sempre que devam salvaguardar-se importantes direitos e liberdades individuais. É precisamente o que sucede com as intercepções telefónicas, onde se ofende a intimidade da vida privada e a segurança e privacidade das comunicações.

Porque a competência do JIC para esses actos é exclusiva e pontual - no sentido de ser unicamente dirigida à obtenção de certo resultado e nele se esgotar de imediato - temos que a solicitação à sua intervenção deve ser precisa e concreta.

Ora, nada disso sucederia na tese do Digno recorrente.

Na verdade, o JIC seria chamado a ordenar transcrições de intercepções de uma forma quase abstracta, genérica e não concretizada, sem se ver onde estaria em causa um qualquer direito ou liberdade individual (na verdade, já antes ele tivera que autorizar as intercepções e, então sim, aí se equacionara a ofensa a certos direitos para salvaguarda de outros).

Para que esta segunda intervenção do JIC se justifique é necessário pois que esteja em causa a concreta aplicação de uma medida de coacção, nos termos da alínea b) do n.º l do artigo 268.ºdo CPP.

Mas nada disso aqui sucede, pois essa aplicação é futura e incerta - quer no tempo quer quanto aos destinatários - pelo que a actividade aqui reclamada pelo 'MP' ao juiz é destituída de sentido.» Mais adiante e depois de tecer outras considerações menos relevantes para o problema aqui em causa, veio a concluir que, «no caso, deverá o M.º P.º propor a aplicação de medidas de coacção e, do mesmo passo, promover o cumprimento da norma do artigo 188.º, n.º 7, do CPP/07, a fim de garantir que ao ser 'sujeito a audição pelo JIC, [...] o arguido conheça [...] das causas - factos e meios de prova existentes - que a determinaram, constituindo as transcrições das conversas telefónicas e a sua existência (prévia junção) aos autos o meio de prova legal para fundamentar a medida de coação que venha a ser aplicada pelo JIC', para usar das próprias expressões do requerimento de fls. 29/34».

B) Por sua vez, no acórdão-fundamento estava em causa a seguinte situação de facto, que se resume nas suas linhas essenciais:

- No decurso de um processo onde se investigava a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, foi autorizada por despacho do JIC a intercepção e gravação de conversações efectuadas por meio de aparelhos de telefone que respeitavam aos suspeitos desse crime;

- Posteriormente, o Ministério Público remeteu o inquérito ao JIC promovendo que, nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP, fosse ordenada a transcrição e junção aos autos de determinadas conversações e comunicações devidamente identificadas e julgadas indispensáveis à futura aplicação de medidas de coacção em relação a suspeitos a constituir como arguidos;

- O JIC indeferiu esta promoção, considerando que o juiz de instrução só poderia ordenar aquelas transcrições que, no caso concreto, se mostrassem indispensáveis para a aplicação da medida de coacção que viesse a ser requerida pelo MP. E, nesse entendimento, expendeu que aquele conceito de indispensabilidade só ficaria preenchido, quando se pudesse estabelecer uma relação entre a medida de coacção promovida e a intercepção proposta para transcrição. Desse modo, se a medida proposta em concreto fosse a prisão preventiva, a intercepção cuja transcrição fosse requerida haveria de constituir, em si mesma, um indício forte da prática do ilícito.

Sendo outra, menos gravosa, a medida de coacção promovida, então a intercepção considerada como indispensável já poderia não conter uma carga indiciária do ilícito tão intensa. Nesta perspectiva, entendeu o JIC que não era inócuo, para preencher o conceito de indispensabilidade, a identificação da medida de coacção a aplicar e que tal só seria possível, na prática, em momento anterior ao acto de aplicação da medida e em face da respectiva promoção, fundamentada na importância da intercepção a ordenar como indício forte da prática do ilícito e correlativa necessidade de aplicação de uma determinada medida de coacção. Como o Ministério Público, no caso, remetia para futuro a aplicação de uma medida de coacção que não indicava expressamente, o caso não estaria incluído na previsão do n.º 7 do artigo 188.º do CPP;

- Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, veio esta a conceder-lhe provimento, ordenando a substituição do despacho recorrido por outro que determinasse a transcrição requerida.

A fundamentação em que se apoiou o acórdão-fundamento encontra-se na sua essência delineada na parte que imediatamente antecede o dispositivo e que aqui se transcreve:

«Entendemos que a interpretação a dar a este preceito tem de ser pragmática.

Embora se reconheça a subsidiariedade deste meio de obtenção de prova, decorre da experiência judiciária que a actividade investigatória neste tipo de crimes (de catálogo) é complexa, exigente e morosa, sendo necessário recorrer a vários meios de prova, entre eles as escutas telefónicas.

Pelo que se tem de conjugar este preceito com as demais disposições legais referentes ao inquérito, e do seu conjunto retirar a interpretação que se coadune com o espírito do legislador, sem ferir a necessidade de concluir eficazmente uma investigação, por um lado, e a tutela dos direitos dos visados pelas escutas telefónicas, por outro.

Entendemos, pois, que independentemente da interpretação literal do preceito feita pelo despacho recorrido, na certeza de que o legislador quis alterar o sistema das intercepções telefónicas e respectivos procedimentos, entendemos que o fez no sentido de agilizar o sistema, sem ofensa dos direitos consagrados constitucionalmente, e não criar um entrave que possa pôr em causa todo o trabalho de investigação e o sucesso do mesmo.

Claramente não se pode, pois, entender que independentemente do momento em que o suspeito seja constituído arguido, e seja nesse momento interrogado, não tenham sido já ordenadas as transcrições das suportes informáticos que o MP entende servirem de suporte à aplicação da medida de coacção. Aliás, porque sabendo que é necessário algum período de tempo para a elaboração das transcrições, não seria possível proceder ao interrogatório de arguido preso e cumprir simultaneamente o disposto no artigo 141.º É óbvio que, sendo o MP quem dirige o inquérito, e conhecendo a matéria em investigação, se pretende que determinados suportes sejam transcritos para fundamentar a medida de coacção que vai propor ao Juiz, o faz porque entende ser indispensável para uma criteriosa aplicação de uma medida de coacção, que poderá ser, nomeadamente, a prisão preventiva.

Relembre-se, como mero apontamento que, como decorre do artigo 194.º, o JIC não pode aplicar, sob pena de nulidade, uma outra medida de coacção mais grave que a requerida pelo MP.

Estando o MP obrigado por lei a pautar as suas intervenções processuais por critérios de estrita objectividade (artigo 53.º, n.º 1, parte final do CPP), não faria pois sentido que o MP requeresse a transcrição apenas como facilitador da consulta (partindo do pressuposto que ler uma transcrição é mais fácil que a audição da gravação), mas que o faça para fundamentar uma futura aplicação da medida de coacção.» Em conclusão:

«O JIC pode determinar a requerimento do MP a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a futura aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção de TIR, não tendo aquele requerimento de ser cumulativo com a promoção para a aplicação de uma medida de coacção.» 7.2 - Jurisprudência sobre a mesma questão:

7.2.1 - Não se encontraram propriamente acórdãos no exacto sentido do acórdão recorrido. O Acórdão da Relação do Porto de 9 de Abril de 2008, proferido no processo 0711032, da 4.ª Secção, embora tivesse confirmado uma decisão do JIC que indeferiu um requerimento do Ministério Público a pedir a transcrição de determinadas gravações de escutas telefónicas, com o fim de fundamentar medida de coacção, diferente do TIR, a promover mais tarde, apoiou-se em interpretação do n.º 7 do artigo 188.º do CPP substancialmente diferente da do acórdão recorrido.

Com efeito, nesse acórdão entendeu-se que a transcrição, a ter lugar, seria sempre posterior à aplicação da medida de coacção pelo JIC, no seguimento do requerimento do Ministério Público, a cujo teor e âmbito aquele estava vinculado. Isto, porque só no caso de o JIC fundamentar a aplicação da medida na prova resultante das escutas é que mandaria transcrever as indispensáveis, não podendo as mesmas ser posteriormente utilizadas pelo Ministério Público na acusação, «pois que não servem para qualquer outro fim que não seja a fundamentação de uma medida de coacção» (sic).

Baseava-se tal entendimento em que: a) a necessidade de informação ao arguido, no 1.º interrogatório, dos elementos que indiciam os factos imputados não tinha que ser feita por meio da transcrição da conversação telefónica e, se o tivesse de ser, a transcrição seria da responsabilidade do Ministério Público, a quem compete apresentar ao JIC o arguido detido, com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam (artigo 141.º, n.º 1, do CPP); b) a transcrição teria apenas por base o controlo jurisdicional do tribunal superior em caso de recurso, pois que o seu uso para outro fim não seria permitido.

7.2.2 - Já quanto à posição assumida pelo acórdão-fundamento, foi possível encontrar vários outros acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa em sentido idêntico. Trata-se dos Acórdãos de 18 de Dezembro de 2007, prolatado no processo 8853/07, da 5.ª Secção, de 27 de Fevereiro de 2008, proferido no recurso n.º 10058/07, da 3.ª Secção, de 23 de Outubro de 2008 e de 30 de Outubro de 2008, estes do mesmo relator, proferidos, respectivamente, nos processos n.os 6388/08 e 7396/08, ambos da 9.ª Secção, tendo a particularidade de explicitarem que, não tendo a medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR de ser requerida cumulativamente com a promoção de uma concreta medida de coacção, deve esta ser promovida imediatamente, logo que juntas as transcrições.

7.3 - O regime das escutas telefónicas:

7.3.1 - Considerações gerais:

Na reforma introduzida no Código de Processo Penal pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, a matéria extremamente sensível das escutas telefónicas foi uma das que sofreu alteração mais extensa e minuciosa, aproveitando o legislador para corrigir alguns pontos que vinham a ser controvertidos, sobretudo no domínio da sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP), e para regular novos aspectos relacionados com novas áreas problemáticas. Não deve suscitar estranheza esta insatisfação do legislador relativamente à regulação de tal matéria, que vinha já sendo objecto de pontuais modificações e inovações, pois as escutas telefónicas têm uma articulação muito estreita com áreas muito sensíveis dos direitos fundamentais, como sejam os da reserva da intimidade da vida privada e familiar, do direito à palavra e da inviolabilidade das comunicações (artigos 26.º e 34.º, n.os 1 e 4, da CRP). Daí a afirmação de Costa Andrade, um dos nossos tratadistas mais proeminentes no estudo sistemático e pioneiro da matéria em foco, de que «[...] as escutas telefónicas se mostr[am] particularmente rebeldes à pretensão de verter em forma de lei positivada uma qualquer disciplina generalizadora e acabada.». («Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), ano 1.º, fasc. 3.º, p. 377, e Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, p. 280.) Acresce que as escutas telefónicas, como meio de obtenção de prova particularmente intrusivo, caracterizando-se pela intromissão na intimidade da vida privada e familiar, na correspondência e na comunicação por meio da palavra falada, e acarretando, por isso, uma elevada e expansiva danosidade social, do ponto de vista desses direitos fundamentais, estão conexionadas, de modo particularmente intenso, com o regime das proibições de prova, nas modalidades de proibição de produção e (ou) de utilização. «Não fossem os condicionalismos rigorosos que o tornam admissível, dir-se-ia ser mesmo um meio de obtenção de prova desleal, contrário mesmo ao cerne do processo penal» (José Mouraz Lopes, «Escutas telefónicas: seis teses e uma conclusão», in Revista do Ministério Público, ano 126, n.º 104, Out.-Dez. 2005).

O regime das escutas é, por isso, o sismógrafo do sistema processual penal, na expressão de Maria de Fátima Mata-Mouros, devidamente adaptada de outros tratadistas («Escutas telefónicas - O que não muda com a reforma», in Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, número especial). Um regime necessariamente fragmentário, descontínuo, reclamando um trabalho em filigrana e uma «intervenção co-criadora da jurisprudência», segundo Costa Andrade (ob. cit., loc. cit.).

A evolução legislativa que tem marcado a regulação desta matéria tem sido pontual, como se disse, com excepção da reforma de 2007, que procurou responder mais detalhadamente à delicada e complexa problemática que ela suscita (sobre a evolução legislativa, antes dessa reforma, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 462/2005, de 25 de Agosto, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 5 de Dezembro de 2005, que faz uma análise exaustiva dessa legislação desde a redacção originária dos artigos 187.º e 188.º do CPP, e, na sua esteira, o Acórdão do mesmo Tribunal n.º 4/2006, de 3 de Janeiro de 2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 14 de Fevereiro de 2006, aliás ambos do mesmo relator: juiz conselheiro Mário José de Araújo Torres).

Dado o alto teor de danosidade social que o caracteriza, o legislador teve, desde o início, a preocupação de traçar com rigor os apertados pressupostos e delinear os princípios estruturantes deste meio de prova, que, consensualmente e não só entre juristas (veja-se, entre outros, o sociólogo Jean Ziegler, Os Senhores do Crime, Terramar, capítulo 5.º), se tem entendido ser imprescindível, nesta era da criminalidade organizada, para a descoberta de determinados crimes, mas sem postergar ou anular os direitos fundamentais atingidos por tal meio. Estes só devem ser sacrificados excepcionalmente, quando tal se mostre necessário (por falta de outro meio) à prevenção e investigação desses crimes, e apenas enquanto houver necessidade de lançar mão dele, revelando-se esse meio como adequado e proporcional, o que envolve forçosamente uma ponderação dos bens e direitos em conflito.

7.3.2 - Evolução legislativa:

7.3.2.1 - Manifestando orientação por estes parâmetros, o legislador, logo na Lei, de autorização legislativa, n.º 43/86, de 26 de Setembro, que concedeu autorização ao governo para aprovar o Código de Processo Penal, definiu no artigo 2.º o sentido e extensão do Código a elaborar, inscrevendo na alínea 25 do n.º 2, sobre a matéria de que estamos a tratar, a «Regulamentação rigorosa da admissibilidade de gravações, intercepção de correspondência e escutas telefónicas, mediante a salvaguarda da autorização judicial prévia e a enumeração restritiva dos casos de admissibilidade, limitados quanto aos fundamentos e condições, não podendo em qualquer caso abranger os defensores, excepto se tiverem participação na actividade criminosa.».

Em consonância com o assim determinado, o CPP de 1987 definiu o regime das escutas telefónicas no capítulo iv, do título iii - «Dos meios de obtenção da prova» -, fixando no artigo 187.º os pressupostos materiais de admissibilidade de tal meio de prova, no artigo 188.º as formalidades a que devia obedecer e no artigo 190.º a sanção aplicável ao incumprimento dos requisitos legais estabelecidos nos dois primeiros.

Desse regime, quanto aos pressupostos materiais, destacava-se (artigo 187.º):

- A necessidade de determinação ou de autorização das escutas por despacho do juiz (princípio da reserva do juiz);

- Estar em causa a investigação de um dos crimes enumerados nas diversas alíneas do n.º 2 (crimes de catálogo);

- Existência de razões para crer que a diligência se revelaria de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova (princípio da subsidariedade);

- Proibição da intercepção e gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se houvesse razões para crer que elas constituíam objecto ou elemento do crime (n.º 3).

Quanto aos pressupostos formais, estabelecia-se no artigo 188.º:

- Controlo das operações pelo juiz, ao qual devia ser levado, imediatamente, o auto de intercepção e gravação, acompanhado das respectivas fitas gravadas (n.º 1);

- Junção aos autos pelo juiz dos elementos reputados relevantes para a prova, ordenando aquele a destruição dos elementos que não tivessem essa relevância (n.º 2);

- Direito de acesso do arguido, assistente e pessoas escutadas ao auto, para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem à sua custa, se assim o desejassem, cópia de quaisquer elementos, salvo se, tendo as operações sido ordenadas no decurso do inquérito ou da instrução, o juiz tivesse razões para crer que o conhecimento dado ao arguido ou ao assistente poderia prejudicar as finalidades do inquérito ou da instrução (n.os 3 e 4).

No referente às consequências da violação dos requisitos apontados, regia o artigo 190.º, estabelecendo que todos os requisitos e condições referidos nos artigos 187.º e 188.º eram estabelecidos sob pena de nulidade.

7.3.2.2 - Na revisão introduzida pela Lei 317/95, de 28 de Novembro, procedeu-se a uma pontual alteração no artigo 187.º, consistente essencialmente no alargamento do catálogo de crimes em relação aos quais eram admissíveis a intercepção e escutas telefónicas.

7.3.2.3 - A Lei 59/98, de 25 de Agosto, alterou o artigo 188.º, em consonância com o teor de críticas e deficiências apontadas ao regime de acompanhamento das escutas. Assim, veio estabelecer-se que o facto de se exigir o imediato conhecimento do juiz relativamente ao auto da intercepção e gravação e das fitas gravadas não impedia que o órgão de polícia criminal que procedia à investigação tomasse «previamente conhecimento do conteúdo da comunicação interceptada, a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova» (n.º 2).

No que se referia à transcrição dos elementos recolhidos, veio estabelecer-se que o juiz mandaria transcrever em auto os elementos que fossem relevantes para a prova, ordenando a sua destruição no caso contrário, do mesmo passo que veio permitir-se, no n.º 4, a coadjuvação do juiz, nessa tarefa, pelo órgão de polícia criminal, conferindo-se-lhe a possibilidade de nomeação de intérprete; fixou-se ainda o regime da transcrição das gravações, que se remeteu para o disposto no artigo 101.º, n.os 2 e 3, do CPP.

Por último, no tocante ao acesso ao auto de transcrição por parte do arguido, assistente e pessoas escutadas, eliminou-se a excepção que permitia ao juiz inibir tal acesso, baseado em razões que o levassem a crer que do mesmo poderia resultar prejuízo para as finalidades do inquérito ou da instrução (n.º 5).

7.3.2.4 - O Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, também alterou, em questões de pormenor, o artigo 188.º, de acordo com algumas críticas que vinham a ser formuladas, ainda no intuito de facilitar ao juiz o acompanhamento de todo o processo.

Assim, o n.º 1 passou a determinar que o conhecimento imediato dado ao juiz do auto e fitas gravadas seria acompanhado da «indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova».

Tal alteração teve a precedê-la a autorização legislativa concedida pela Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro (artigo 4.º), no sentido de permitir que «o juiz possa limitar a audição das gravações às passagens indicadas como relevantes para a prova, sem prejuízo de as gravações efectuadas lhe serem integralmente remetidas.» 8 - A Lei 48/2007:

8.1 - Merecem destaque especial as alterações introduzidas pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, não só pela extensão e importância de que se revestem mas também porque o fulcro do presente conflito de jurisprudência assenta nessas alterações, mais concretamente num dos seus pontos.

Começando pela «Exposição de motivos» da proposta de lei é, desde logo, possível surpreender, no capítulo das escutas telefónicas, as linhas essenciais dessas alterações:

«O regime de intercepção e gravação de conversações ou comunicações é modificado em múltiplos aspectos. Confina-se este meio de obtenção de prova à fase de inquérito e exige-se, de forma expressa, requerimento do Ministério Público e despacho fundamentado do juiz. Ao elenco de crimes contido no n.º 1 do artigo 187.º acrescentam-se a ameaça com prática de crime, o abuso e simulação de sinais de perigo e a evasão quando o arguido tiver sido condenado por algum dos crimes desse elenco. O âmbito de pessoas que podem ser sujeitas a escutas é circunscrito a suspeitos, arguidos, intermediários e vítimas (neste caso, mediante o consentimento efectivo ou presumido). A autorização judicial vale por um prazo máximo e renovável de 3 meses. Esclarece-se que os conhecimentos fortuitos só podem valer como prova quando tiverem resultado de intercepção dirigida a pessoa e respeitante a crime constantes dos correspondentes elencos legais.» Obedecendo a esta orientação, os artigos 187.º e 188.º do CPP passaram a ter a seguinte redacção, indicando-se a itálico as modificações efectuadas:

«Artigo 187.º

Admissibilidade

1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:

a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;

b) Relativos ao tráfico de estupefacientes;

c) De detenção de arma proibida e de tráfico de armas;

d) De contrabando;

e) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através do telefone;

f) De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores.

2 - A autorização a que alude o número anterior pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder efectivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal, tratando-se dos seguintes crimes:

a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada;

b) Sequestro, rapto e tomada de reféns;

c) Contra a identidade cultural e integridade pessoal, previsto no título iii do livro ii do Código Penal e previsto na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário;

d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal;

e) Falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda, prevista nos artigos 262.º, 264.º, na parte em que remete para os artigos 262.º e 264.º, do Código Penal;

f) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

3 - Nos casos previstos no número anterior, a autorização é levada, no prazo máximo de setenta e duas horas, ao conhecimento do juiz do processo, a quem cabe praticar os actos jurisdicionais subsequentes.

4 - A intercepção e a gravação previstas nos números anteriores só podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra:

a) Suspeito ou arguido;

b) Pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou c) Vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.

5 - É proibida a intercepção e a gravação de conversações ou gravações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento do crime.

6 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações são autorizadas pelo prazo máximo de três meses, renovável por períodos sujeitos ao mesmo limite, desde que se verifiquem os respectivos requisitos de admissibilidade.

7 - Sem prejuízo do disposto no artigo 248.º, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado da intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no n.º 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.º 1.

8 - Nos casos previstos no número anterior, os suportes técnicos das conversações ou comunicações e os despachos que fundamentaram as respectivas intercepções são juntos, mediante despacho do juiz, ao processo em que devam ser usados como meio de prova, sendo extraídas, se necessário, cópias para o efeito.

Artigo 188.º

Formalidades das operações

1 - O órgão de polícia criminal que efectuar a intercepção e a gravação a que se refere o artigo anterior lavra o correspondente auto e elabora relatório no qual indica as passagens relevantes para a prova, descreve de modo sucinto o respectivo conteúdo e explica o seu alcance para a descoberta da verdade.

2 - O disposto no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação interceptada a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.

3 - O órgão de polícia criminal referido no n.º 1 leva ao conhecimento do Ministério Público, de 15 em 15 dias a partir do início da primeira intercepção efectuada no processo, os correspondentes suportes técnicos, bem como os respectivos autos e relatórios.

4 - O Ministério Público leva ao conhecimento do juiz os elementos referidos no número anterior no prazo máximo de quarenta e oito horas.

5 - Para se inteirar do conteúdo das conversações ou comunicações, o juiz é coadjuvado, quando entender conveniente, por órgão de polícia criminal e nomeia, se necessário, intérprete.

6 - Sem prejuízo do disposto no n.º 7 do artigo anterior, o juiz determina a destruição imediata dos suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo:

a) Que disserem respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo anterior;

b) Que abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado; ou c) Cuja divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e garantias; ficando todos os intervenientes vinculados ao dever de segredo relativamente às conversações de que tenham tomado conhecimento.

7 - Durante o inquérito, o juiz determina, a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência.

8 - A partir do encerramento do inquérito, o assistente e o arguido podem examinar os suportes técnicos das conversações ou comunicações e obter, à sua custa, cópia das partes que pretendam transcrever para juntar ao processo, bem como dos relatórios previstos no n.º 1, até ao termo dos prazos previstos para requerer a abertura da instrução ou apresentar a contestação, respectivamente.

9 - Só podem valer como prova as conversações ou comunicações que:

a) O Ministério Público mandar transcrever ao órgão de polícia criminal que tiver efectuado a intercepção e a gravação e indicar como meio de prova na acusação;

b) O arguido transcrever a partir das cópias previstas no número anterior e juntar ao requerimento de abertura da instrução ou à contestação; ou c) O assistente transcrever a partir das cópias previstas no número anterior e juntar ao processo no prazo previsto para requerer a abertura da instrução, ainda que não a requeira ou não tenha legitimidade para o efeito.

10 - O tribunal pode proceder à audição das gravações para determinar a correcção das transcrições já efectuadas ou a junção aos autos de novas transcrições, sempre que o entender necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

11 - As pessoas cujas conversações ou comunicações tiverem sido escutadas e transcritas podem examinar os respectivos suportes técnicos até ao encerramento da audiência de julgamento.

12 - Os suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações que não forem transcritas para servirem como meio de prova são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo.

13 - Após o trânsito em julgado previsto no número anterior, os suportes técnicos que não forem destruídos são guardados em envelope lacrado, junto ao processo, e só podem ser utilizados em caso de interposição de recurso extraordinário.» 8.2 - Das alterações introduzidas destacam-se as seguintes linhas essenciais:

8.2.1 - No capítulo dos requisitos materiais de admissibilidade:

a) Acentuação da excepcionalidade e subsidiariedade das escutas telefónicas, através da selecção de vocábulos e expressões que reforçam a carga semântica daqueles princípios. Assim, onde antes se exigia que houvesse razões para crer que a diligência se revelaria de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, passou agora a impor-se que haja razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter. Como acentua Damião da Cunha, «O regime legal das escutas telefónicas», in Revista do CEJ, n.º 9 (especial), 1.º semestre de 2009, «existe uma clara intenção de afirmar, e acentuar, a 'excepcionalidade' (quando não o carácter de ultima ratio) do recurso às escutas telefónicas».

b) Reforço do princípio da «reserva do juiz», através da exigência de um despacho fundamentado, quando antes apenas se aludia a «despacho do juiz». E, se é certo que o adjectivo parece redundante, dada a geral imposição constitucional e legal do principio da fundamentação das decisões judiciais, sejam despachos, sejam sentenças, a verdade é que a sua inclusão no texto da lei só pode ter o sentido de fortalecer essa exigência em matéria tão melindrosa como esta, do mesmo passo que o legislador quis acentuar o papel do juiz, dentro daquele princípio de reserva, como garante dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, no confronto da restrição destes com os rigorosos pressupostos da autorização das escutas.

c) Esse reforço do papel do juiz foi ainda traduzido na restrição da sua função nesta fase à autorização das escutas, requeridas necessariamente pelo Ministério Público.

Anteriormente, a lei dava ao juiz o poder não só de autorizar, como também o de «ordenar» a diligência, o que significava que aquele podia agir por contra própria, numa confusão de funções processuais entre as duas magistraturas. Agora o juiz não se imiscui na investigação, ficando esse campo inteiramente reservado ao Ministério Público, como aliás flui da sua «natureza» ex lege, a ele lhe competindo a iniciativa e a obrigação funcional de promover as diligências adequadas, nomeadamente em matéria de escutas telefónicas. Daí que o princípio do pedido, a cargo daquele magistrado, deva também circunscrever os poderes de autorização do juiz, que não poderá desbordar dos seus limites nem subjectiva nem objectivamente e mesmo relativamente ao tempo de duração das escutas. (Veja-se André Lamas Leite, «Entre Péricles e Sísifo: o novo regime legal das escutas telefónicas», in Revista do CEJ, cit., p. 620-621, estabelecendo o referido autor um paralelo com o que se passa em matéria de medidas de coacção - artigo 194.º, n.º 2, do CPP.) d) A intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas só pode, actualmente, ser autorizada na fase do inquérito, o que, de certo modo, constitui um corolário de todas as inovações referidas anteriormente.

e) Alargamento dos crimes de catálogo, por um lado, e restrição, por outro:

alargamento relativamente aos crimes de «ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo» e «de evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas restantes alíneas do catálogo [alínea f) e g) do n.º 1]; restrição em matéria de armas, agora pertencendo ao catálogo unicamente os «crimes de detenção de arma proibida e de tráfico de armas».

Por outro lado, no que diz respeito à extensão de competência a autoridades judiciárias de outros lugares, contemplada no n.º 2, desapareceram os crimes de «associação criminosa», de «produção e tráfico de estupefacientes» e «contra a paz e humanidade», estes últimos regulados agora pela Lei 31/2004, de 22 de Julho, e alargou-se o catálogo relativamente aos «crimes de sequestro, rapto e tomada de reféns», «contra a identidade cultural e integridade pessoal» [alíneas b) e c)].

f) Definição do universo de potenciais destinatários das escutas [n.º 4, alíneas a), b) e c)], sendo essa uma necessidade já posta em relevo por vários autores, nomeadamente Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova, p. 292.

g) Fixação de um prazo máximo de autorização, eventualmente renovável por períodos sujeitos ao mesmo limite temporal (n.º 6).

h) Regulação dos conhecimentos fortuitos, que só podem ser utilizados noutro processo em curso ou a instaurar se tiverem resultado de intercepção de meio utilizado por pessoa incluída no universo dos destinatários e na medida em que seja indispensável à prova de crime previsto no catálogo (n.os 7 e 8).

8.2.2 - No tocante às formalidades das operações, são de destacar as seguintes alterações:

a) No âmbito do princípio da «reserva do juiz», uma maior precisão e concretização do tempo e modo de levar ao conhecimento daquele os elementos recolhidos, de modo que ocorra um efectivo controlo judicial das escutas e em tempo oportuno, ou seja, no mais curto prazo de tempo achado conforme pelo legislador, garantindo-se, assim, a estrita observância, em todo o processo, dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, e tendo sempre presente, como pano de fundo, a relevância desses elementos para a descoberta da verdade ou para a prova, que serviu de fundamento à autorização. Nessa perspectiva, o legislador optou por fixar prazos relativamente curtos para o órgão de polícia criminal levar ao conhecimento do Ministério Público os elementos recolhidos (de 15 em 15 dias) e para o Ministério Público os apresentar ao juiz (quarenta e oito horas). Suprimiu-se, assim, a expressão adverbial «imediatamente», constante da anterior redacção, para traduzir a temporalidade em que devia processar-se o conhecimento a dar ao juiz dos referidos elementos (n.os 3 e 4). A questão da interpretação dessa locução adverbial havia, com efeito, dado origem a divergências jurisprudenciais, originando recursos para o Tribunal Constitucional, que por várias vezes se pronunciou sobre o sentido a dar à exigência legal de imediaticidade (Acórdãos n.os 407/97, processo 649/06, da 2.ª Secção, 347/2001, de 10 de Junho, e 528/2003, processo 597/03, da 3.ª Secção);

b) Eliminação das transcrições generalizadas das gravações, em favor da relevância conferida à efectiva audição, como regra, das próprias gravações das conversas e comunicações efectuadas, isto por uma razão de contacto directo do juiz com esse material, e também por uma razão de economia tout court. Desse modo, o órgão de polícia criminal lavra o auto da intercepção e gravação e elabora um relatório, no qual indica as passagens relevantes para a prova, descreve sucintamente o seu conteúdo e explica a sua importância para a descoberta da verdade, levando esses elementos, acompanhados dos suportes técnicos, ao Ministério Público, que, por sua vez, os leva ao conhecimento do juiz (n.os 1, 3 e 4);

c) O juiz determina a destruição imediata dos suportes técnicos manifestamente estranhos ao processo: i) que disserem respeito a conversações em que não intervenham pessoas que não pertençam ao círculo das que podem ser alvo de escuta; ii) que disserem respeito a matéria de segredo profissional, de funcionário ou do Estado; iii) cuja divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e garantias (n.º 6). É, pois, o juiz de instrução como juiz de garantias que aqui se assinala de modo específico, num recorte muito mais nítido do que na lei anterior, em que o seu papel era, para além do controlo das operações, o de seleccionar o material relevante para a prova e mandar destruir o que o não fosse.

Como salienta Carlos Adérito Teixeira («As escutas telefónicas - A mudança de paradigma e os velhos e novos problemas» (Revista do CEJ, número especial, cit., pp.

257 e 258), «[...] pode o juiz fazer cessar a escuta, desde que fundamentadamente, em especial, em nome da salvaguarda de direitos e interesses, v. g., em caso de erro na pessoa alvo de escuta; ou mesmo sendo escutada a pessoa pretendida, quando se trate de conversações absolutamente estranhas ao processo e irrelevantes para a prova (a que a mesma se destinava); ou verificando-se que ocorre uma clara desproporção entre os direitos postos em causa ou o padrão de segredos revelados com o grau de necessidade da investigação.» Esta solução, todavia, não merecerá o consenso da doutrina, para uma parte da qual se trata aqui de uma proibição de prova a tutelar nos mesmos termos da proibição estabelecida para a gravação de conversações e comunicações telefónicas entre o arguido e o seu advogado, segundo o regime estabelecido no n.º 5 do artigo 187.º e relativamente a segredos que têm uma eminente função pública e, por isso, são tutelados legalmente (segredo de Estado, segredo de justiça, segredo médico, segredo dos ministros religiosos, sigilo do jornalista, etc.). Neste sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, pp. 506 e 513, e Costa Andrade, em reponderação da sua posição anterior, «Das escutas telefónicas», in 1.º Congresso de Processo Penal - Memórias (coord. de Manuel Guedes Valente, pp.

215-224).

Problema, neste âmbito, reside também em saber se a destruição pode ou não ser efectuada pelo juiz de instrução, sem previamente ter dado a possibilidade aos interessados de exercerem o contraditório, considerando Benjamim da Silva Rodrigues que é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), o entendimento contrário (Das Escutas Telefónicas, i, Coimbra Editora, 2008, p. 358). No mesmo sentido, entendendo que tal destruição deve ser relegada para a fase em que vigore o contraditório, uma vez cessado o regime de segredo de justiça interno, opinam André Lamas Leite, RPCC, ano 17, n.º 4, p. 648, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário..., pp. 512 e 513);

d) As transcrições e respectiva junção aos autos ocorrem, agora, apenas em determinadas circunstâncias: i) a requerimento do Ministério Público e ordenadas pelo juiz, durante o inquérito, com vista a fundamentar a aplicação de medida de coacção ou garantia patrimonial, com excepção do termo de identidade e residência (n.º 7); ii) depois de encerrado o inquérito, as que o Ministério Público mandar transcrever ao órgão de polícia criminal para servirem de prova a indicar na acusação; iii) as que o arguido e o assistente transcreverem, a partir de cópias das partes que considerem relevantes contidas nos suportes técnicos e obtidas à sua custa, requerendo a junção da respectiva transcrição aos autos, também para efeitos de prova (n.os 8 e 9). Só podem valer como prova as transcrições das escutas desse modo efectuadas, havendo agora uma distinção muito nítida entre as transcrições, que são meios de prova, e as escutas, que constituem meios de obtenção de prova. Porém, todas as transcrições obtidas pelos processos referidos ficam a constituir meios de prova, independentemente da entidade que requer ou de terem sido requeridas durante o inquérito (para fundamentarem medida de coacção) ou depois do encerramento dele, para serem indicadas na acusação, na contestação ou no requerimento para abertura de instrução. Neste ponto concordamos com Carlos Adérito Teixeira, (ob. cit., loc. cit., pp. 263 e segs.).

Eventualmente, a esses meios de prova, poderão ser ainda juntas pelo próprio tribunal de julgamento (cf. neste sentido Carlos Adérito Teixeira e em sentido divergente André Lamas Leite, aquele na Revista do CEJ, cit., p. 264, e este em «Entre Péricles e Sísifo...», na RPCC, também já citada, p. 655) outras transcrições necessárias à descoberta da verdade, num afloramento do princípio de investigação judicial (n.º 10);

e) Do exposto anteriormente decorre uma outra inovação importante, consagrada no n.º 8: o acesso do arguido e do assistente aos próprios suportes técnicos, bem como ao auto e relatório elaborados pelo órgão de polícia criminal, inovação que tem o maior alcance quando encarada do ponto de vista da defesa do arguido, que, assim, pode seleccionar e juntar aos autos os elementos que repute relevantes para esse fim e controlar a legitimidade e regularidade da escuta, como assinala Damião da Cunha, que sustenta que «a consagração deste regime legal [se] justifica [...] por um princípio (ou garantia) de justo processo ou justo tratamento, no sentido de que aquele que foi objecto de uma investigação [...] deve poder 'aproveitar', em seu benefício, de eventuais elementos que possam ser úteis à sua defesa (incluindo o contraditório)», para além da sua «participação no controlo da regularidade/legitimidade dos procedimentos de escutas» (ob. cit., p. 214).

Esta inovação não terá sido alheia a críticas que eram movidas ao anterior sistema e mesmo à sua conformidade constitucional, por permitir que o juiz pudesse mandar destruir os elementos recolhidos que reputasse não terem relevância para a prova, sem que o arguido tivesse a oportunidade de se pronunciar sobre tal matéria. No sentido da inconstitucionalidade, aliás, já se tinham pronunciado vários acórdãos do Tribunal Constitucional, nomeadamente o Acórdão 660/2006, de 28 de Novembro, que teorizou extensamente sobre o assunto, depois seguido pelos Acórdãos n.os 450/2007 e 451/2007, ambos de 18 de Setembro, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Outubro de 2007). E não só se garante o referido acesso do arguido e assistente, mas vai-se mais longe;

f) Com efeito, dentro da lógica perfilhada por essa jurisprudência, consagra-se a possibilidade de as pessoas cujas conversações e comunicações foram escutadas e transcritas (incluindo, naturalmente o arguido e o assistente) examinarem os respectivos suportes técnicos até ao encerramento da audiência (n.º 11), a fim de controlarem a legalidade e regularidade da transcrição, detectarem e corrigirem erros, identificarem vozes e reagirem contra transcrições proibidas ou irrelevantes (Acórdão do TC n.º 660/2006, citado), isto por um lado; por outro, a lei determina a conservação, até ao trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo, dos suportes técnicos referentes a conversações e comunicações que não foram transcritas para servirem como meio de prova, isto no objectivo de acautelar certos interesses, nomeadamente da defesa, pois tais elementos não gravados podem servir para contrariar ou confrontar, contextualizando-a, determinada perspectiva acusatória, podendo o arguido requerer a sua audição em julgamento ou em fase de recurso (cf. o aresto referido).

9 - Revertendo ao tema do conflito de jurisprudência:

9.1 - Como vimos antecedentemente, o objecto do presente conflito de jurisprudência centra-se em saber se o JIC, a requerimento do Ministério Público no inquérito e com vista à fundamentação de futura aplicação de medidas de coacção, com excepção do TIR, pode mandar transcrever conversas e comunicações telefónicas que tenham sido intercepcionadas e gravadas sem que, ao mesmo tempo, o Ministério Público deva promover uma concreta medida de coacção.

9.1.1 - Já vimos que o acórdão recorrido entendeu que o JIC não podia ordenar a transcrição de escutas telefónicas de uma forma quase genérica e abstracta, para fundamentar uma medida de coacção futura e incerta, sem ver onde estaria em causa um qualquer direito ou liberdade individual, devendo o Ministério Público, ao mesmo tempo que requeresse a transcrição da gravação considerada relevante, promover uma concreta medida de coacção, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 268.º do CPP, de forma que o juiz pudesse cumprir a sua função, que no inquérito é pontual e exclusiva, de salvaguarda de importantes direitos e liberdades individuais. Em suma, teria de ocorrer sempre uma conexão entre a requerida transcrição e uma concreta medida de coacção, pois se o Ministério Público ordena a transcrição das intercepções relevantes para a prova e o juiz as indispensáveis para aplicação de uma medida de coacção, tem de decorrer dessa distinção um efeito pragmático, que vem a traduzir-se em o juiz só poder determinar, das transcrições requeridas, aquelas que, no caso concreto, são indispensáveis para a aplicação da medida de coacção que vier a ser requerida pelo Ministério Público (as expressões a itálico são do próprio acórdão).

Tal tese pressuporia, pois, uma avaliação feita pelo juiz da transcrição requerida, em confronto com uma concreta medida de coacção, que teria de ser promovida nesse acto e isso em momento anterior ao da sua efectiva aplicação. Lê-se no acórdão recorrido: «Assim e no caso, deverá o M.º P.º propor a aplicação de medidas de coacção e, do mesmo passo, promover o cumprimento da norma do artigo 188.º, n.º 7, do CPP/07, a fim de garantir que ao ser '[...] sujeito a audição pelo JIC, [...] o arguido conheça, [...] das causas - factos e meios de prova existentes - que a determinaram, constituindo as transcrições das conversas telefónicas e a sua existência (prévia junção) aos autos o meio de prova legal para fundamentar a medida de coacção que venha a ser aplicada pelo JIC [...]' [...]» 9.1.2 - Esta posição não parece ser a mais correcta.

Com efeito, as alterações introduzidas no CPP visaram, como vimos, reforçar os direitos, liberdades e garantias fundamentais, face à intrusão de um meio de obtenção de prova especialmente danoso, nomeadamente no que diz respeito ao direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, ao direito à palavra e ao direito à não ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações e demais meios de comunicação (artigos 26.º, n.º 1, e 34.º, n.º 4, da CRP). Meio tão mais danoso, quanto são potencialmente expansivos os seus efeitos, quer de um ponto de vista objectivo (pela possibilidade de devassa que proporciona e alargamento dos efeitos nefastos a outros direitos) e subjectivo (pela real possibilidade de serem atingidas terceiras pessoas, não culpadas), como o reconhecem os estudiosos desta problemática (cf.

Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova, pp. 283 e segs.).

Nessa medida, procurou-se reforçar a posição do JIC, quanto à verificação dos pressupostos materiais de admissão do referido meio de obtenção de prova e ao controlo dos elementos que se forem obtendo, na perspectiva de garantir a conexão entre o fundamento da autorização e os elementos recolhidos, a necessidade de continuação da intercepção e da gravação das escutas ou a sua sustação, em função da relevância ou irrelevância daqueles elementos para a descoberta da verdade ou para a prova, a preservação de direitos de terceiras pessoas não incluídas no universo das que podem ser objecto da medida, o asseguramento da protecção de certas áreas de segredo, a salvaguarda de certos direitos fundamentais, que possam ser gravemente afectados com a divulgação.

Ao mesmo tempo, fez-se uma rigorosa demarcação de atribuições, na actuação do princípio da separação funcional, clarificando-se a posição do juiz e a do Ministério Público, aquele com a função estrita de velar pela legalidade, pela observância de um processo justo e equitativo e pela protecção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, e este com a função de dirigir o inquérito e coordenar a estratégia de investigação, recentrando-se o seu estatuto processual em torno da ideia de ser ele o dominus desta fase do processo.

O referido papel do juiz foi, desse jeito, reforçado também no capítulo das chamadas formalidades das operações (artigo 188.º) e que, como notou Damião da Cunha, não se reconduzem a meras formalidades, pois, «sob as designadas 'formalidades', das operações encontram-se reguladas matérias atinentes à 'reserva do juiz' (constitucionalmente consagrada no artigo 34.º, n.º 4, da CRP) e outras matérias referentes à conservação/utilização da prova» (ob. cit., p. 210). Assim, em tal âmbito, a lei procurou assegurar, por parte do juiz, um controlo estreito e tão próximo quanto possível da «fonte», no desenrolar das operações, postulando também um contacto directo e imediato com o material recolhido, ou seja, com as próprias gravações das conversações e comunicações telefónicas. Nessa medida, as transcrições das gravações passaram a ser secundarizadas, para se dar a primazia àquelas gravações.

9.1.3 - Com efeito, as transcrições das gravações têm agora apenas lugar em dois momentos (com excepção das que o juiz do julgamento pode mandar efectuar, nos termos do n.º 10 do artigo 188.º): os contemplados nos n.os 7 e 8 do mesmo normativo e já referidos circunstanciadamente supra [n.º 8.2.2, alínea d)], só nos importando para a resolução do problema, a partir de agora, o primeiro daqueles momentos.

Recordando o que se encontra preceituado no n.º 7 do artigo 188.º: «Durante o inquérito, o juiz determina, a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência.» Dentro da linha de separação entre as funções de ambas as magistraturas no inquérito e que, como já assinalado, foi clarificada com a reforma, compete ao Ministério Público, como dominus do inquérito, requerer a respectiva transcrição e ao juiz, ordená-la, sendo certo que este não deve imiscuir-se na investigação e na estratégia investigatória a desenvolver. A responsabilidade pelo exercício dessa função compete por inteiro ao Ministério Público. Portanto, a transcrição, neste momento processual, obedece ao princípio do pedido, tal como sucede quanto à autorização da escutas [cf., supra, n.º 8.2.1, alínea c)], não podendo o juiz ultrapassá-lo, visto que o requerimento do Ministério Público circunscreve o âmbito dentro do qual se há-de mover aquele (cf. Carlos Adérito Teixeira, ob. cit., loc. cit., pp. 264 e segs.) De resto, como salienta o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal, a própria evolução dos trabalhos preparatórios na unidade de missão para a reforma do Processo Penal parece apontar nesse sentido:

«De facto, num primeiro esboço de redacção, no então n.º 5 do artigo 188.º dizia-se o seguinte:

'O juiz de instrução determina a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, dando conhecimento ao arguido do conteúdo dessa transcrição.'.

Mais tarde, evoluiu-se para '[o] juiz de instrução determina, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, dando ao arguido conhecimento prévio do conteúdo dessa transcrição'.

A este respeito uma das críticas/sugestões então avançadas no seio de unidade de missão já referia expressamente que, 'se já não compete ao JIC apreciar a relevância das escutas para a prova, já que tal ponderação passa a caber ao Ministério Público, como aceitar que seja o juiz das liberdades a seleccionar as intercepções cujo conteúdo lhe serve para fundamentar a aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial? Não deveria o juiz decidir, sobre esta matéria, com base na prova que lhe é apresentada pela acusação? E se o Ministério Público entender que uma determinada conversação é irrelevante para a prova, pode, ainda assim, o juiz utilizá-la para fundamentar a aplicação de uma medida de coacção (ficando obrigado a mandar transcrevê-la)?'.

A redacção final da proposta, resultante afinal de um conjunto de alterações introduzido na matéria de intercepções das comunicações telefónicas, acabou por seguir nessa direcção [...]» Competindo ao Ministério Público requerer a transcrição e delimitar o âmbito dela, para o que certamente relevará a sua própria estratégia de investigação (por exemplo, o que se lhe afigurará dever ou não ser revelado ao arguido numa fase em que poderá vigorar o segredo de justiça e, de qualquer modo, em que não há ainda acesso aos suportes técnicos por parte do arguido e do assistente, como decorre do n.º 8 do artigo 188.º do CPP), só ele (Ministério Público) pode ser responsável pela eventual insuficiência da transcrição requerida para fundamentar a respectiva medida de coacção. Como salienta Carlos Adérito Teixeira, ob. cit., loc. cit., «[...] é ao juiz que cabe fundamentar a medida de coacção, mas o risco de se mostrarem insuficientes os fundamentos de prova para sustentar o despacho que a não decrete tem que correr também por conta do MP. É que a situação não é muito diversa da que resultaria se o MP não tivesse feito qualquer pedido, isto é, nada tivesse requerido.». O juiz de instrução não tem quaisquer prerrogativas, mas também não tem quaisquer deveres no que toca à investigação, apenas lhe competindo, em certos momentos fundamentais designados pela lei, no decurso do inquérito, ser o fiel da balança no sistema de equilíbrio dos direitos fundamentais que se jogam e que conflituam no seu seio.

No caso das transcrições a que se refere o n.º 7 do artigo 188.º de que vimos tratando, cremos que o problema fulcral para o acórdão recorrido é dar conteúdo ao papel do juiz no controlo dessas transcrições. Com efeito, do ponto de vista desse acórdão, a questão parece residir numa espécie de vácuo em que o juiz de instrução estaria mergulhado ao ser chamado a intervir nas transcrições requeridas pelo Ministério Público para fundamentar uma futura medida de coacção, ainda não concretizada, mas que se sabe ser diferente do TIR. Se o juiz é chamado a intervir, por princípio, para salvaguarda de direitos, liberdades e garantias, que direitos, liberdades ou garantias é que estão em causa, quando o juiz é requerido para transcrever determinadas gravações de conversações e comunicações telefónicas, sem saber que concreta medida de coacção o Ministério Público pretende? Essa parece ser, na realidade, a questão ínsita ao seguinte trecho da decisão: «Na verdade, o JIC seria chamado a ordenar transcrições de intercepções de uma forma quase abstracta, genérica e não concretizada, sem se ver onde estaria em causa um qualquer direito ou liberdade individual (na verdade, já antes ele tivera que autorizar as intercepções e, então sim, aí se equacionava a ofensa a certos direitos para salvaguarda de outros).» Ora, o problema está em que, e antes de mais, qualquer medida de coacção diferente do TIR implica uma restrição à liberdade e, portanto, se o Ministério Público pode requerer a transcrição de determinadas gravações, porque elas podem servir para fundamentar a aplicação de uma qualquer medida restritiva da liberdade, ao juiz compete, por força da lei, verificar se a transcrição requerida se justifica (por outras palavras, se é indispensável) para fundamentar uma dessas medidas restritivas da liberdade individual.

Dir-se-ia, contudo, no seguimento, aliás, do que propugna o Ministério Público junto do STJ, que, nessa fase, não competiria ao juiz avaliar da justeza da transcrição em relação a uma concreta medida de coacção, mas tão-só da indispensabilidade daquela para fundamentar qualquer medida de coacção, fosse ela qual fosse, desde que restritiva da liberdade, pelo que ao Ministério Público bastaria justificar o pedido genericamente, alegando a necessidade da transcrição para requerer futuramente (certamente num futuro próximo) uma medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR, mas sem necessidade de a individualizar.

Por outro lado, se o Ministério Público é o «dominus» do inquérito, a verdade é que o juiz é o «dominus» das escutas durante o decurso do mesmo, e aí, nessa diferenciação de funções e territórios, poderia situar-se uma das razões (no fundo de coerência legal) para se impor ao Ministério Público que requeira ao juiz a transcrição das gravações indispensáveis para fundamentar medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR, não podendo ser ele, nessa fase, a operar a mesma transcrição, como, a dado passo, parece admitir-se no acórdão recorrido.

A tudo isto acresceriam outras razões que teriam a ver com o controlo da legalidade das escutas que ao juiz compete efectivar, mormente em áreas de especial melindre ou de especial densidade axiológica, prendendo-se com o conteúdo de gravações inadmissíveis ou inutilizáveis, como são os casos contemplados no n.º 6 do artigo 188.º e cujos suportes técnicos podem não ter sido ainda destruídos, ou terem ficado à espera do momento em que, na fase do contraditório, os interessados se possam pronunciar sobre a eventualidade de destruição, assim se salvaguardando, em certa perspectiva já focada, a solvabilidade constitucional da prescrição legal [cf., supra, n.º 8.2.2, alínea c)]. Basta imaginar a hipótese possível de o Ministério Público requerer a transcrição de alguma das gravações que caiam sob a alçada do referido normativo.

Estas razões, de entre outras, possíveis, bastariam para justificar a intervenção do JIC no deferimento ou indeferimento das transcrições que o Ministério Público requeresse com o único fundamento de se mostrarem necessárias para justificar uma qualquer (indiscriminada) medida de coacção ou de garantia patrimonial, desde que diferente do TIR, e sua junção aos autos.

Todavia, a lei fala na transcrição e junção aos autos das comunicações e conversações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência.

Ora, a exigência do requisito da indispensabilidade tem de ter um conteúdo útil na economia da lei, em consonância com a função de juiz das garantias que ao juiz de instrução compete desempenhar. Simplesmente essa exigência não pode ir ao ponto, como se postula no acórdão recorrido, de se pretender que o Ministério Público promova desde logo, em simultâneo com o requerimento das transcrições, uma concreta medida de coacção.

Esta conclusão extrai-se de uma análise mais sistemática do regime legal atinente, começando pelas medidas de coacção.

9.2 - Enquadramento legal:

9.2.1 - Medidas de coacção:

9.2.1.1 - O regime estruturante das medidas de coacção encontra-se fundamentalmente nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º e 204.º do CPP.

O primeiro daqueles normativos consagra o princípio da legalidade, em virtude do qual as medidas de coacção e de garantia patrimonial, caracterizando-se por imporem uma restrição total ou parcial da liberdade das pessoas, são as taxativamente enumeradas na lei.

Tais medidas não podem ser aplicadas sem a prévia constituição do visado como arguido (artigo 192.º).

O artigo 193.º, dando tradução ao princípio constitucional inserto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, consagra os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade na aplicação das medidas coactivas, em atenção às exigências cautelares que o caso requer e à gravidade do crime e sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, concedendo-se à medida de prisão preventiva um estatuto de excepcionalidade, de subsidariedade e mesmo de ultima ratio, não podendo nenhuma das medidas sacrificar direitos fundamentais que se mostrem compatíveis com a sua execução.

Verdadeiramente importante para a matéria aqui tratada é o disposto no artigo 194.º Vejamos as suas disposições mais relevantes para o que nos interessa:

Consagra-se nos dois primeiros números, o princípio do pedido, durante o inquérito, pelo Ministério Público da medida de coacção ou de garantia patrimonial que entenda adequada, com excepção do TIR; o princípio da «reserva do juiz», que aplica a medida por despacho, não podendo ordenar medida mais gravosa do que a requerida, sob pena de nulidade, o que se entende por o Ministério Público ser o «dominus» do inquérito. Aliás, na «Exposição de motivos» da proposta de lei 109/X, dizia-se expressamente que «[...] impede-se o juiz de instrução de aplicar, durante o inquérito, medida de coacção ou garantia patrimonial mais grave do que a preconizada pelo dominus dessa fase processual [...]» Já o mesmo se não passa na instrução, em que o juiz pode aplicar uma medida de coacção ou garantia patrimonial oficiosamente, depois de ouvir o Ministério Público.

Lembremos que o princípio da iniciativa do Ministério Público, através da necessidade de requerimento deste, no inquérito, se encontra consagrado no n.º 7 do artigo 188.º, directamente em causa neste conflito de jurisprudência, e que razões idênticas nos levaram a admitir a delimitação por tal pedido da actividade do juiz, relativamente às transcrições indispensáveis para fundamentar uma medida de garantia patrimonial ou uma medida de coacção diferente do TIR (cf., supra, n.º 9.1.3).

No n.º 3, consagra-se o princípio da audição do arguido, antes da aplicação de qualquer das medidas referidas, podendo tal audição ocorrer no primeiro interrogatório judicial, com obrigação de o juiz observar o que se acha prescrito no n.º 4 do artigo 141.º do CPP, a que se aludirá mais abaixo.

O n.º 4 é denso de regulamentação e diz respeito à fundamentação do despacho do juiz no que toca à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR. Aquele deve conter, sob pena de nulidade:

- A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo [alínea a)];

- A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime [alínea b)];

- A qualificação jurídica dos factos imputados [alínea c)];

- A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º (já referido) e 204.º, este a analisar mais adiante [alínea d)].

O n.º 5 estabelece o princípio da invalidade para a fundamentação de quaisquer factos ou elementos do processo que não tenham sido comunicados ao arguido durante a sua audição, ressalvando as situações referidas no 2.º item [alínea b)] do número anterior.

O n.º 6 estatui o princípio do acesso, durante o interrogatório e no prazo previsto para a interposição de recurso, por parte do arguido e seu defensor, aos elementos do processo determinantes para aplicação de medida diferente do TIR, com a mesma ressalva anteriormente referida.

O artigo 204.º estabelece os requisitos gerais da aplicação de qualquer medida de coacção ou garantia patrimonial diferente do TIR:

- Fuga ou perigo de fuga [alínea a)];

- Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova [alínea b)]; ou, - Perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem ou tranquilidade públicas [alínea c)].

9.2.1.2 - Outras normas legais com interesse:

Nos termos do artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do CPP, a detenção de um cidadão pode ser efectuada, de entre outros objectivos, para o detido ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção.

O primeiro interrogatório de arguido detido tem lugar nos termos do artigo 141.º do CPP:

O n.º 1 deste normativo impõe que o arguido detido que não deva ser julgado de imediato é interrogado pelo juiz de instrução no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.

Nos termos do n.º 4, o juiz é obrigado a informar o arguido:

«- Dos direitos referidos no artigo 61.º, explicando-lhos se isso for necessário;

- Dos motivos da detenção;

- Dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;

- Dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade, nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime [...]» Por seu turno, o artigo 61.º do CPP, referido no antecedente artigo, especifica, entre outros, os seguintes direitos do arguido:

«1 - O arguido goza, em especial em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:

........................................................................

b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte;

c) Ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade;

........................................................................

g) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias [...]» Ora, cremos não resultar do quadro legal apontado e dos comentários que fomos tecendo outra solução que não seja a que já foi esboçada, no sentido de que, na fase processual em questão - durante o inquérito -, o Ministério Público não tem que promover a aplicação de uma concreta medida de coacção simultaneamente com o requerimento em que pede a transcrição de gravações de determinadas conversas e comunicações telefónicas para fundamentar medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR.

É que tais medidas são sempre aplicadas pelo juiz de instrução, mediante prévia audição do arguido, podendo este ter lugar no primeiro interrogatório judicial de arguido detido. A detenção, por seu turno, tem como uma das finalidades a aplicação ou execução de medida de coacção.

Sendo ou não integrada no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o certo é que a audição do arguido pressupõe a observância de formalidades estritas, ligadas aos direitos liberdades e garantias fundamentais, como sejam a indicação ao arguido dos factos que concretamente lhe são imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as respectivas circunstâncias de tempo, lugar e modo e os elementos do processo que indiciam os factos imputados, tudo nos termos já devidamente referenciados. E não só: o despacho do juiz que aplique qualquer das medidas de coacção ou de garantia patrimonial assinaladas tem de ser fundamentado com as provas que indiciam os factos concretos que lhe são imputados e com as que servem para fundamentar a medida de coacção, sob pena de não poderem ser consideradas para tal efeito, acrescendo que o arguido e o defensor podem consultar as referidas provas constantes do processo, durante o interrogatório e no prazo para a interposição do recurso.

Tudo isto, porque, gozando o arguido dos direitos de audição e de defesa e tendo um estatuto de sujeito activo no processo, pode não só tomar posição e contrariar as provas produzidas e os elementos que indiciam os factos imputados (afloramento do princípio do contraditório) como também daqueles que fundamentam uma medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR, nomeadamente os pressupostos gerais e especiais de que depende a sua aplicação. E pode oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurarem necessárias. Ou seja: traduzindo-se sempre numa restrição da liberdade, nenhuma medida de coacção, salvo casos excepcionais, deve ser aplicada sem que antes se tenha dado a possibilidade ao arguido de se defender, «elidindo ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2.ª ed., Editorial Verbo, 2002, p. 277). Só depois disso o juiz pode tomar posição.

Ora, como se vê, quando o Ministério Público requer ao JIC a transcrição e junção aos autos de conversações e comunicações telefónicas indispensáveis para fundamentar uma medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR, ele não o pode fazer em termos de promover logo uma concreta medida de coacção, visto que tal depende, além do mais, de factores que ele não controla nesse momento. Quando muito, só o poderia fazer como projecto. Por outro lado, também não compete ao juiz, nesta fase, pronunciar-se sobre uma concreta medida de coacção ou de garantia patrimonial, pois o momento próprio para o fazer é em seguida à audição do arguido, que pode ter lugar no primeiro interrogatório judicial, ou seja, depois de o arguido tomar posição sobre os factos imputados e (ou) sobre os pressupostos que preenchem uma concreta medida de coacção ou de garantia patrimonial com excepção do TIR, e respectivas provas apresentadas.

A transcrição da gravação é uma fase prévia, equivalente à recolha de prova, sendo mesmo necessária a transcrição para ficar a constar como prova nos autos, neste caso tendo em vista a aplicação de uma medida de coacção, que ainda há-de ter lugar. Consequentemente, também não é esse o momento próprio para promover a medida, como se pretende no acórdão recorrido. Aquela só é promovida com a apresentação do arguido ao JIC pelo Ministério Público, para lhe ser aplicada uma medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR, ou para primeiro interrogatório judicial de arguido, neste caso necessariamente detido, e aplicação cumulativa de uma medida coactiva.

«A razão de ser da transcrição a que alude o n.º 7 do artigo 188.º, CPP, prende-se com a necessidade prática e cautelar de antecipar prova útil, tendo em vista a aplicação de uma medida de coacção [...]», opina Carlos Adérito Teixeira, ob. cit., loc.

cit., p. 269.

Neste contexto, o que se pede ao juiz, neste particular, é que verifique se a transcrição é legítima (no sentido que demos ao disposto no n.º 6 do artigo 188.º) e se ela é indispensável para fundamentar uma medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR. Não lhe compete nesta fase, como dissemos já, imiscuir-se no inquérito e na estratégia investigatória do Ministério Público, nem tomar posição antecipada sobre a medida de coacção projectada por aquele. Eventualmente, como opina Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., p. 514), o juiz também pode sopesar na sua decisão de ordenar ou não a transcrição o que deve ou não ser revelado ao arguido, aquando da sua audição ou interrogatório, em função do perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime, ou mesmo da possibilidade de se pôr gravemente em causa a investigação ou a descoberta da verdade [artigos 141.º, n.º 4, alínea d), e 194.º, n.º 4, alínea b), ambos do CPP] (mas nessa questão pensamos que o Ministério Público tem de ter um papel fundamental como dominus do inquérito a quem deve ser imputada toda a responsabilidade pelo êxito ou inêxito da investigação, que, de resto, o juiz não conhecerá na sua estratégia e na sua extensão).

Nessa perspectiva, não sendo o momento próprio de promover a aplicação de uma concreta medida de coacção, não será todavia excessivo e até se coaduna com a função que a lei impõe nesta fase ao juiz de instrução, exigir ao Ministério Público que, no requerimento a pedir determinadas transcrições, indique a medida que tenciona promover num futuro próximo e, em função disso, o juiz ajuíze da indispensabilidade daquelas.

Porém, o JIC, escudando-se no critério da indispensabilidade, não pode ir além das transcrições pedidas por aquele magistrado, sendo esse um corolário do princípio do pedido de que acima falámos. Pode não satisfazer o pedido em toda a sua amplitude, mas não pode ir além dele, não lhe competindo, como dissemos já, imiscuir-se no inquérito e na estratégia investigatória do Ministério Público. O conceito de indispensabilidade referido no n.º 7 do artigo 188.º tem, assim, por força de hermenêutica adequada, nomeadamente através da intervenção do elemento sistemático e também teleológico, de sofrer uma restrição, ao menos no sentido de que o JIC tem de circunscrever-se aos limites do pedido efectuado pelo Ministério Público, não podendo mandar transcrever mais do que aquilo que se lhe pede, embora possa fundadamente indeferir parcialmente ou in totum o requerido.

Como sustenta o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça nas suas bem elaboradas alegações, «a indispensabilidade da transcrição não pode ser vista em função do seu valor indiciário absoluto mas relativo em conjugação com os restantes meios de prova. E nessa medida caberá ao Ministério Público, enquanto dominus do inquérito, julgar, numa primeira fase, dessa indispensabilidade, tanto mais que entende que essa prova vai ser necessária para justificar a aplicação da medida de coacção que vai propor e, por isso, sabe que a mesma só pode ser utilizada para fundamentar a aplicação ao arguido dessa medida de coacção se lhe tiver sido comunicada - n.º 5 do artigo 194.º do CPP».

9.2.1.3 - Dissemos acima que a transcrição de conversações e comunicações telefónicas representa uma antecipação de prova útil, com vista à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do TIR.

Com efeito, as medidas de coacção, como vimos, têm de ser aplicadas precedendo audição do arguido, que pode ter lugar no primeiro interrogatório judicial. Nesse momento, o juiz tem de dar conhecimento ao arguido, se ele for apresentado detido (o que sucederá no caso de ser submetido a primeiro interrogatório judicial), em primeiro lugar, dos motivos da detenção e, em segundo lugar, dos elementos do processo que indiciam os factos imputados e dos que preenchem uma medida de coacção, incluindo os pressupostos genéricos e específicos da sua aplicação, tudo nos termos já anteriormente referidos com mais detalhe. Quanto às medidas de coacção, não podem ser considerados para a fundamentação da sua aplicação quaisquer elementos do processo que não tenham sido comunicados ao arguido, assim como este e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes para o decretamento da medida, durante o interrogatório e no prazo para a interposição de recurso (n.os 5 e 6 do artigo 194.º).

Ora, se os referidos elementos se contiverem em escutas telefónicas, não podem estas servir para fundamentar medida de coacção diferente do TIR senão constando da respectiva transcrição e estando esta junta aos autos, pois o arguido, como vimos, não tem acesso a tais escutas, senão a partir do encerramento do inquérito (n.º 8 do artigo 188.º) e daí que, tendo elas de constar dos autos, só como prova documental possam figurar. Para isso, essa prova deve estar junta ao processo antecipadamente, a fim de garantir que, no momento em que o arguido é ouvido, possa a mesma prova ser usada e consultada, servindo ao mesmo tempo para fundamentar o respectivo despacho do juiz.

Tão mais premente é esta necessidade, quanto o arguido, se detido para primeiro interrogatório judicial, tem o direito de ser informado sobre os motivos da detenção, que até podem ser baseados em elementos recolhidos através das escutas, e não pode deixar de ser interrogado pelo juiz num prazo excedente a 48 horas.

As transcrições das escutas podem levar algum tempo, e daí que se justifique que as mesmas, para além das razões já invocadas, devam ser requeridas antecipadamente, sob pena de poder ficar inviabilizado o referido primeiro interrogatório, sobretudo em processos complexos em que haja vários arguidos e se imponha transcrever um assinalável número de gravações de conversações e comunicações telefónicas, como, por regra, sucede em processos em que este meio de obtenção de prova é usado.

Esta mesma necessidade de prover antecipadamente a tais situações foi reconhecida por Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 515:

«No caso de processos com um grande volume de escutas, esta tramitação é dificilmente praticável, pois não pode ficar a aguardar-se depois da decisão de aplicação da medida de coacção vários dias e até semanas pela transcrição das conversações e comunicações mandadas revelar pelo juiz. O MP pode requerer com alguma antecedência em relação ao interrogatório a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações que entender indispensáveis para fundamentar a aplicação das medidas e o juiz pode tomar previamente ao interrogatório a sua decisão sobre quais as escutas que entende que devem ser reveladas, transcritas e mandadas juntar aos autos. Quando estiverem prontas as transcrições, o MP deve requerer então a realização de interrogatório judicial para aplicação de medida de coacção, no qual se revelarão as transcrições efectuadas. Este desfasamento temporal entre o requerimento do MP de transcrição e junção aos autos de conversações e comunicações e o requerimento do MP de realização de interrogatório para aplicação de medida de coacção permite que as transcrições sejam feitas entretanto e estejam concluídas na data do interrogatório e não tenha que se aguardar pelas mesmas na fase posterior ao interrogatório, quando já está a correr o prazo de recurso da decisão que aplicou medida de coacção ou de garantia patrimonial.» Acresce que, como muito bem se aduz no acórdão-fundamento, transcrito no essencial [supra, n.º 7.1, alínea B)], o mecanismo agora criado pelo legislador, a par de outras modificações, indicia que se pretendeu agilizar o sistema, sem prejuízo de direitos, liberdades e garantias fundamentais, mal se compreendendo que a pretendida agilização degenerasse em «arrastamento» processual, sobretudo quando estão em causa crimes de complexa investigação como são, em geral, aqueles em relação aos quais se permite a utilização de um meio de obtenção de prova como as escutas, e quando o juiz já teve que autorizar essas escutas por despacho fundamentado em que teve de ponderar o imperativo da sua excepcionalidade e subsidiariedade com o da sua indispensabilidade para a descoberta da verdade ou a sua estrita necessidade para a prova, por ser muito difícil ou mesmo impossível obtê-la de outro modo.

Por outro lado, sendo o Ministério Público o dominus do inquérito que deve actuar segundo critérios de estrita objectividade (artigo 53.º, n.º 1, do CPP) e conhecendo a matéria em investigação, é de supor que, ao requerer a transcrição de determinadas escutas, o faz porque entende ser ela indispensável para fundamentar uma medida de coacção, que não pode ser aplicada em medida mais gravosa do que a requerida.

De qualquer forma, tal não contende - acrescentamos nós - com a conveniência de o Ministério Público indicar, no requerimento em que pede as transcrições de determinadas gravações de conversas e comunicações telefónicas que foram escutadas, a medida de coacção ou de garantia patrimonial diferente do TIR que tenciona promover, para que o juiz, ele próprio, como também legalmente lhe compete, ajuíze autonomamente da sua indispensabilidade.

III - Decisão

10 - Nestes termos, o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:

a) Fixar a seguinte jurisprudência:

«Durante o inquérito, o juiz de instrução criminal pode determinar, a requerimento do Ministério Público, elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a futura aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, não tendo aquele requerimento de ser cumulativo com a promoção para aplicação de uma medida de coacção, mas devendo o Ministério Público indicar nele a concreta medida que tenciona vir a promover.» b) Julgar procedente o recurso interposto.

11 - Dê-se cumprimento ao disposto no artigo 444.º, n.º 1, do CPP.

Sem custas.

Lisboa, 1 de Outubro de 2009. - António Artur Rodrigues da Costa (relator) - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral (junta declaração de voto) - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes (acompanhando a declaração do Exmo. Conselheiro Santos Cabral) - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa - António Pires Henriques da Graça (vencido, conforme a declaração de voto anexa) - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Jorge Henrique Soares Ramos (vencido, consoante a declaração anexa) - Fernando Manuel Cerejo Fróis - José António Carmona da Mota (com declaração de voto em anexo) - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar (vencido, nos termos da declaração junta) - Luís António Noronha Nascimento.

Declaração

I - Nos termos do artigo 262.º do Código de Processo Penal o inquérito compreende o conjunto das diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação.

Recorta-se, assim, um modelo construído sobre dois momentos essenciais, com finalidades distintas: o inquérito e a audiência. Repescando as palavras de Souto Moura (O Novo Código de Processo Penal, p. 85) a «fase inicial do processo, e porque em regra tem lugar logo a seguir à ocorrência do feito-crime é, aquela onde as diligências probatórias melhor êxito podem ter na reconstituição dos factos. O que se obterá também pela relativa contenção dos direitos da defesa, sobretudo no que diz respeito à eleição do secretismo e à rejeição da oralidade. Daí que seja uma fase de investigação, predominantemente secreta e escrita. Por outro lado, é nesta fase que em regra se assegura a possibilidade de aplicação, duma pena ou medida de segurança ulteriores. A identificação do criminoso e sua perseguição, mesmo em sentido físico, terão lugar aí, e com elas todas as questões colocadas pela prisão preventiva. Finalmente, a decisão de submeter ou não alguém a julgamento funciona como filtro de selecção que impedirá o assoberbamento dos tribunais com casos inviáveis.

Uma fase processual onde o contraditório é excepção, e onde tanta vez se persegue o criminoso para ser detido, é uma fase em que o carácter compromissório do processo penal surge talvez, no seu maior dramatismo.» Ciente da necessidade de se conseguir o equilíbrio entre os direitos inscritos no património do cidadão, nomeadamente do arguido, e as exigências impostas por uma actividade criminosa cada vez mais complexa, o autor da versão inicial do Código de Processo Penal procurou encontrar soluções que não criassem uma situação em que um dos factores em equação fosse aniquilado pelo outro. Para tanto, e jogando com as consequências inerentes ao regime do segredo de justiça, relegou o exercício do contraditório, e a plenitude do exercício dos direitos de defesa, para um momento a jusante do processo em que a abertura do processo já pouco, ou nada, podia significar em termos de eficácia da investigação criminal.

II - Foi diferente a opção da reforma inscrita na Lei 48/2007 com a intenção assumida de transpor a transparência do processo, e a visibilidade da prova produzida, para momentos cada vez mais a montante do percurso processual.

O paradigma transformou-se radicalmente e o segredo de justiça passou a ter natureza excepcional e limitado no tempo. Por alguma forma a tarefa da necessidade de concordância entre realidades tão distintas como a realização de justiça e a descoberta da verdade material e a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais do cidadão foi resolvida numa opção clara num dos sentidos.

Um dos momentos em que tal opção da reforma assume maior significado é o da aplicação da medida de coacção, nomeadamente a prisão preventiva, com a alteração substancial das regras de comunicação ao arguido nos termos do artigo 194.º, n.º 4, alínea a), que impõe a obrigação de enumeração dos elementos do processo que indicam os factos imputados. Salvaguarda-se a possibilidade de a comunicação colocar em causa gravemente a investigação; impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, integridade física ou liberdade dos participantes processuais.

A alteração do modelo, justificada à face do dever de informação inscrito no n.º 7 do artigo 27.º da Constituição da República, veio ser formatada pela pronúncia que o Tribunal Constitucional emitiu a propósito de um processo concreto (processo Casa Pia), nomeadamente os Acórdãos n.os 416/2003 e 607/2003. Porém, importa salientar que a perspectiva daquele Tribunal não tem o conteúdo abrangente que, posteriormente, o legislador consagrou naquele artigo 194.º, n.º 4, alíneas a) e b), pois que refere «que não é possível sustentar que os princípios do contraditório, e da igualdade de armas, imponham ao legislador que consagre, em todos os casos, um acesso irrestrito e ilimitado aos autos na fase de inquérito pelo arguido, seja para recorrer do despacho que impôs a prisão preventiva, seja para requerer a sua revogação ou substituição e, porventura, recorrer do despacho que sobre tal requerimento vier a ser proferido (artigo 212.º do CPP). De facto, as circunstâncias podem variar de caso para caso, no que toca ao tipo de crime investigado e ao próprio grau de desenvolvimento das actividades de recolha da prova.» (Acórdão 416/2003).

Assim se justificando o juízo emitido de julgar inconstitucional, por violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a «exposição dos factos que lhe são imputados» pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa; e, consequentemente, por alguma forma o Tribunal Constitucional admitiu um juízo de ponderação em que o perigo de perturbação da prova é equacionado com o dever de comunicação consoante a fase e o desenvolvimento da investigação.

III - A reforma constante da Lei 48/07 consagrou o princípio da obrigatoriedade de comunicação.

Ciente das consequências que uma abertura prematura do inquérito causa à investigação criminal, inviabilizando-a a maior parte das vezes, o legislador criou as citadas válvulas de segurança que, na prática, dificilmente podem ter um significado.

Na verdade, afirmar a existência de «perigo para a vida» pressupõe uma investigação paralela orientada para a procura de indícios que apontem para uma actividade com vista a «eliminar» fisicamente quem deu origem àquelas transcrições. Por seu turno, a lei não define, e devia definir, quando é que uma investigação é «gravemente afectada» pelo facto de serem publicitados os elementos de prova.

Em nosso entender, a partir do momento em que a fase de recolha de prova - o inquérito - é objecto de uma inusitada publicitação está em causa a eficiência da investigação criminal, nomeadamente na criminalidade mais grave e organizada, e é quebrado, em sentido desfavorável ao Ministério Público - dominus do inquérito -, o princípio da igualdade de armas (1).

Entendemos que a eficiência da investigação, e a funcionalidade do inquérito, e, consequentemente, uma das finalidades do próprio Estado de direito, é colocada em causa por uma interpretação em que a comunicação ao arguido não seja restringida apenas aos elementos probatórios cujo conhecimento, naquele preciso elemento, não é susceptível de influenciar, ou perturbar, directa ou indirectamente, a investigação, ou susceptível de provocar alguma alteração, de forma ilegal, em termos meio de obtenção de prova ou de prova obtida (2).

Em última análise, qualquer investigação, nomeadamente na área da criminalidade grave e violenta, é sempre gravemente afectada quando, numa fase prévia de recolha de prova em que a recolhida no passado se encandeia com a prova a recolher no futuro e a obtenção desta pode ser condicionada pelo simples conhecimento da sua existência, se publicita tal prova, inquinando, em absoluto, a finalidade do inquérito.

(1) Como refere Figueiredo Dias, a «'igualdade' de armas processuais [...] só pode ser entendida com um mínimo aceitável de correcção quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa e da sua dialéctica.

Com a consequência de que uma concreta conformação processual só poderá ser recusada, como violadora daquele princípio de igualdade, quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável, ou arbitrária; como ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que àquele está assinado ou dos referentes axiológicos que comandam» (negrito nosso).

O princípio da igualdade de armas não significa, pois, uma igualdade lógica ou matemática de «armas», uma vez que a própria lei processual penal atribui à acusação e à defesa armas desiguais. Na verdade, enquanto ao Ministério Público compete defender a legalidade democrática e exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade (artigo 219.º, n.º 1, última parte da CRP), devendo, nesta veste, colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade (artigo 53.º, n.º 1, do CPP), o arguido tem o direito ao silêncio, cujo exercício nunca o pode desfavorecer (artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 343.º, n.º 1, e 345.º, n.º 1, do mesmo Código). Por outro lado, enquanto à acusação compete o ónus da prova dos factos incriminadores, o arguido é protegido pela presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo 32.º, n.º 1, da CRP) - cf. Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, A Prova do Crime - Meios Legais para a Sua Obtenção, p. 48.

(2) Isto sem analisar a circunstância de acontecer que o recurso sobre os fundamentos de aplicação da medida de coacção em termos de indício tender a tornar-se, de forma despropositada, uma audiência de julgamento.

O artigo 188.º, n.º 7, do Código do Processo Penal, sobre o qual incide o presente acórdão de fixação de jurisprudência, é um segmento de lei que está envolvido na mesma relação inerente ao dever de comunicação com as reservas que acima enunciamos. Assim, subscreve-se a decisão de fixação de jurisprudência emitida, com o esclarecimento de que se entende que a transcrição e junção de conversações não deve ser pedida, ou ordenada, quando se verificar alguns dos perigos enunciados em relação à prova, sendo certo que, em abstracto, dificilmente tais perigos deixarão de se verificar no que respeita à transcrição de comunicações e conversações. - José António Henriques dos Santos Cabral.

Recurso de fixação de jurisprudência 995/08-5

Declaração de voto

Vencido pelo seguinte:

Em inquérito, a interligação funcionalmente diferenciada entre Ministério Público (titular do inquérito) e juiz de instrução (interventor pontual e excepcional, no mesmo) pode gerar várias perspectivas interpretativas do disposto no n.º 7 do artigo 188.º do CPP.

Ao interpretar o n.º 7 do artigo 188.º do CPP - sem prejuízo do maior respeito por outras interpretações -, considero que o referido normativo convoca duas questões:

- A dos poderes do juiz de instrução perante o requerimento do Ministério Público e a amplitude do requerimento do Ministério Público dirigido ao juiz de instrução.

A - Sobre os poderes do juiz de instrução perante o requerimento do Ministério Público:

1 - Na área das conversações ou comunicações telefónicas interceptadas e gravadas - incluindo a extensão abrangida pelo artigo 189.º do CP, em que a sua admissibilidade se legitima «por despacho fundamentado do juiz de instrução» - artigo 187.º, n.º 1, do CPP -, este apenas pode inteirar-se do conteúdo das conversações ou comunicações quando o Ministério Público as levar ao seu conhecimento, uma vez que o Ministério Público leva ao conhecimento do juiz os elementos que a propósito de tal conteúdo foram previamente entregues ao Ministério Público pelo órgão de polícia criminal - artigo 188.º, n.os 3 e 4, do CPP.

2 - Prima facie, o n.º 7 do artigo 188.º do CPP poderia assumir-se então como redundante, pois que tendo o Ministério Público conhecimento prévio dos conteúdos conversados ou comunicados, antes do requerimento previsto naquele normativo, ficou, certamente, a par do que entendia ser necessário para fundamentar medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência.

3 - Porém, em inquérito, a transcrição e junção aos autos, das conversações e comunicações, pode dirigir-se a finalidades diferentes:

- Podem valer como prova, ou podem valer para fundamentar a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência - v. n.os 7 e 9, alínea a), do artigo 188.º do CPP.

4 - Nem todas as conversações e comunicações podem ser transcritas - v., desde logo, n.os 6 e 12 do artigo 188.º do CPP.

5 - Das conversações e comunicações que podem ser transcritas, valendo como «prova», o Ministério Público manda transcrevê-las ao órgão de polícia criminal que tiver efectuado a intercepção e a gravação e indica-as como meio de prova na acusação - artigo 188.º, n.º 9, alínea a), do CPP.

Nesta situação, o Ministério Público actua oficiosamente.

6 - Destinando-se a fundamentar a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para essa fundamentação tem de ser requerida ao juiz pelo Ministério Público, 7 - É logicamente compreensível que a indispensabilidade das conversações e comunicações cuja transcrição e junção aos autos é requerida pelo Ministério Público seja previamente considerada pelo requerente. Constitui aliás, o fundamento, o objecto, do seu requerimento, previsto no n.º 7 do artigo 188.º do CPP.

8 - Na verdade, «a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações durante o inquérito é excepcional e só tem lugar com vista a instruir e fundamentar o pedido do MP de aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial» - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa, p. 511, nota 6.

9 - Mas deve ter-se em conta que «[a] aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial depende da prévia constituição como arguido, nos termos do artigo 58.º, da pessoa que delas for objecto» - n.º 1 do artigo 192.º do CPP.

10 - E não pode olvidar-se o regime constante do artigo 194.º do CPP:

- «À excepção do termo de identidade e residência, as medidas de coacção e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz.» - N.º 1;

- «Durante o inquérito, o juiz não pode aplicar medida de coacção ou de garantia patrimonial mais grave que a requerida pelo Ministério Público, sob pena de nulidade.» -N.º 2;

- «A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º» - N.º 3;

- A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade, o desiderato integrado pelas alíneas a), b), c) e d) do n.º 4 do artigo 194.º 11 - Ora:

- Se é certo que, conforme o n.º 5 do referido artigo 194.º, «[s]em prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3»;

- Se é certo, também, que se torna obrigatória na fundamentação do despacho a «referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º» - conforme a citada alínea d) do n.º 4 do artigo 194.º:

concluo que o juiz de instrução, perante o requerimento formulado pelo Ministério Público nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP, deve apreciar a indispensabilidade das conversações e comunicações cuja transcrição e junção aos autos lhe foi requerida, para efeitos de fundamentação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, bem como, eventualmente, a indispensabilidade de outras partes dessas conversações e comunicações compreendidas no âmbito das indicadas pelo Ministério Público cuja transcrição, apesar de não ter sido requerida, o juiz entenda poder ser ainda (também) indispensável para fundamentação dessas medidas, tendo em conta os pressupostos definidos pelos artigo 193.º e 204.º do CPP.

12 - Com efeito, se as medidas de coacção, ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, por via de regra são requeridas no interrogatório judicial do arguido, não faria sentido que o juiz, ao apreciar o requerimento do Ministério Público formulado nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP, tivesse de ater-se exclusivamente às partes concretamente especificadas das conversações e comunicações objecto desse requerimento, pois que no interrogatório judicial do arguido, feito com assistência do Ministério Público (n.º 2 do artigo 194.º do CPP), se porventura houvesse ainda outros elementos indispensáveis à fundamentação dessas medidas, no âmbito das mesmas conversações e comunicações, cuja transcrição e junção aos autos não tivesse sido requerida e que já existissem no momento daquele requerimento, o juiz, no referido interrogatório, sempre teria de comunicá-los, conforme o artigo 194.º, n.º 5, do CPP.

13 - Se as medidas de coacção e de garantia patrimonial contendem com a liberdade das pessoas, a qual «só pode ser limitada, total ou parcialmente em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei» - artigo 191.º, n.º 1, do CPP -, o juiz de instrução, como garante da liberdade das pessoas, deve mandar transcrever as conversações e comunicações, solicitadas pelo Ministério Público, e ainda outros elementos, delas constantes, que considere indispensáveis para completar aquelas, desde que compreendidos no âmbito das requeridas, de forma a habilitar o Ministério Público a fundamentar a(s) medida(s) concreta(s) quando requerer efectivamente a sua aplicação - de harmonia com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, aludidos no artigo 193.º, n.º 1, do CPP, e com as condições exigidas no artigo 204.º do mesmo diploma legal adjectivo, tanto mais que a «referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida que for aplicada, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º», tem de constar do despacho do juiz quando apreciar o requerimento do Ministério Público, de aplicação concreta dessa(s) medida(s).

14 - Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem, p. 515, «[a] decisão de ordenar a transcrição e junção das conversações e comunicações é uma consequência da decisão sobre a revelação das escutas [...] A revelação das escutas ao arguido e seu defensor no interrogatório judicial processa-se pela audição das passagens seleccionadas pelo juiz, ou, caso já tenham sido juntas as transcrições, pela leitura das mesmas nas partes correspondentes. O arguido pode requerer e o tribunal pode ordenar a notificação na sua presença da compatibilidade entre a gravação do suporte técnico e a transcrição, por força do artigo 194.º, n.º 6.

No caso de processo com um grande volume de escutas, esta tramitação é dificilmente praticável, [...]. O MP pode requerer com alguma antecedência em relação ao interrogatório a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações que entender indispensáveis para fundamentar a aplicação das medidas e o juiz pode tomar previamente ao interrogatório a sua decisão sobre quais as escutas que entende que devem ser reveladas, transcritas e mandadas juntar aos autos. Quando estiverem prontas as transcrições, o MP deve requerer então a realização de interrogatório judicial para aplicação de medidas de coacção, no qual se revelarão as transcrições já efectuadas.» 15 - Por outro lado, do meu ponto de vista, os limites dos poderes do juiz de instrução na área das medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, traduzem-se em que:

1) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados não poderão ser comunicados (transcritos) se essa comunicação (transcrição) puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime [artigo 141.º, n.º 4, alínea d), e alínea d) do n.º 4 do artigo 194.º, a contrario, do CPP]; ou, e ainda, se tais elementos do processo, não sendo manifestamente estranhos ao processo, disserem respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo 187.º do CPP; abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado; ou cuja divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e garantias de qualquer outro cidadão que não o arguido, bem como quanto a este, do que não for essencial (indispensável) ao preenchimento dos pressupostos de aplicação da(s) medida(s) - v.

n.º 6 do artigo 188.º e n.º 1 do artigo 193.º, a contrario;

2) Não pode vir a aplicar medida de coacção ou de garantia patrimonial mais grave do que a requerida pelo Ministério Público, como resulta do n.º 2 do artigo 194.º do CPP;

3) Para efeitos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP, o juiz não pode, de motu proprio ou oficiosamente, ordenar a transcrição das conversações e comunicações indispensáveis à fundamentação das medidas de coacção e de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, sem prévio requerimento do Ministério Público onde se identifiquem as conversações e comunicações consideradas indispensáveis a essa fundamentação, cuja transcrição e junção aos autos requer.

B - Relativamente à amplitude do requerimento do Ministério Público dirigido ao juiz de instrução, nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP:

Afigura-se-me que o requerimento do Ministério Público formulado nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP não se encontra subordinado, nem condicionado para que possa ser apreciado, e deferido, a que dele conste indicação ou especificação da(s) medida(s) que em concreto o Ministério Público pretende fundamentar, pois que:

1 - O n.º 7 do artigo 188.º, ao estabelecer que «o juiz determina, a requerimento do Ministério Público, transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis» não refere que seja para fundamentar a aplicação de determinada(s) ou concreta(s) medida(s) de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência; outrossim, genericamente refere «para fundamentar a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência» (itálico meu).

2 - A lei não determina, nem sugere, ao Ministério Público, que indique ou especifique no requerimento formulado nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP a medida ou as medidas de coacção ou de garantia patrimonial que pretende vir a requerer.

Ora, nos termos do artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, deve considerar-se que, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.».

3 - Ubi lex non distinguit nec interpres distinguere debet.

4 - Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque - ibidem, p. 530 -, a propósito do conteúdo do requerimento do Ministério Público, «o Ministério Público não tem contudo de especificar logo no seu requerimento uma concreta medida e, se o fizer, pode modificar essa concreta medida durante o interrogatório, para medida mais ou menos grave, pois o princípio do pedido constitui um limite para o poder judicial, mas não para o próprio Ministério Público para o qual constitui uma prerrogativa.».

5 - Se o Ministério Público «não tem contudo de especificar» logo no requerimento elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP uma concreta medida, mas apesar disso a especifica, redunda em mera explicitação formal, mera intenção, sem compromisso de concretização futura, pois que a lei não exige, nem prevê, essa especificação, e, por isso, em termos legais, a sua omissão não invalida o requerimento, não o torna ineficaz, nem pode implicar qualquer consequência jurídico-processual.

6 - Em inquérito, apenas é exigível ao Ministério Público que indique ou especifique essa(s) concreta(s) medida(s) no momento em que requerer ou promover a respectiva aplicação nos termos do artigo 194.º, n.º 1, do CPP.

Pelo exposto, fixaria jurisprudência com a seguinte redacção:

«O juiz de instrução criminal determina, em inquérito, a requerimento do Ministério Público, nos termos do n.º 7 do artigo 188.º do CPP, no âmbito definido por esse requerimento, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, não sendo necessário que o Ministério Público especifique nesse requerimento a medida ou medidas que pretende fundamentar, por estas apenas poderem concretizar-se quando vier a ser requerida, de forma fundamentada, a respectiva aplicação.» António Pires Henriques da Graça.

Fixação de jurisprudência 995/08-5

Declaração

Sendo o juiz de instrução criminal, também durante o inquérito, o principal garante dos mais destacados direitos fundamentais do cidadão, nessa medida, apenas, interferindo, nomeadamente, ao nível do versado exclusivo domínio de acção do Ministério Público (domínio daquele na fase processual preliminar), então, só excepcionalmente deverá fazer-se-lhe (fundado) apelo, não a título de melhor ponderação futura, como que a qualquer momento; ou seja, só tanto deverá ocorrer quando, efectivamente, se manifeste, do ponto de vista do requerente, a iminência da colocação em crise da liberdade do arguido, face, necessariamente, a um concreto circunstancialismo de facto e a uma individualizada e exaustiva indicação de meios probatórios, imediatamente submetida a apreciação judicial.

Tanto assim, sob pena, até, de alguma degradação funcional do próprio prestigiado conceito comum da titularidade do exercício da acção penal, que, por si só, desde que eficazmente usada a competência conferida pelos artigos 53.º, n.º 2, alínea b), 263.º, n.os 1 e 2, e 267.º do CPP, é sempre susceptível de fazer aceder o Ministério Público, naturalmente, às transcrições que ele próprio tenha mandado efectuar, ao abrigo da faculdade reflectida no segmento inicial da alínea a) do n.º 9 do artigo 188.º do CPP.

Entender-se-ia melhor, por isso, a imperativa utilização do verbo «determinar», no n.º 7 do referido artigo 188.º, reportada a momento adjectivo imediatamente seguinte - no âmbito do «poder-dever» estabelecido no n.º 1 do artigo 197.º (quanto à aplicação de medidas de caução) ou da figuração prevista nos artigos 227.º e 228.º (com respeito à aplicação de caução económica ou arresto preventivo, respectivamente) - ao requerimento do Ministério Público.

Melhor se compreenderia, também, a urgência de actuação estabelecida nos artigos 268.º, n.os 1, alínea b), e 4, e 269, n.os 1, alíneas e) e f), e 2, do CPP, vinculando o juiz de instrução criminal ao muito estreito prazo de vinte e quatro horas...

Nem se ajusta à versada indispensabilidade a circunstância de o juiz de instrução, durante o inquérito, não conhecer, afinal, a globalidade dos elementos ou indícios probatórios entretanto adquiridos pelo dominus do inquérito.

Eis por que confirmaria o acórdão recorrido.

Também a fundamentação e a redacção triunfantes se desviam, atento o focado trecho legislativo, de um tipo discursivo imperativo, adquirindo feição facultativa, até anódina. - Jorge Soares Ramos.

Recurso n.º 995/08-5.ª

Declaração de voto

Os trabalhos preparatórios que precederam a actual redacção do n.º 7 do artigo 188.º do CPP mostram que a introdução do inciso «a requerimento do MP» pretendeu que fosse o MP a delimitar o âmbito da transcrição, no pressuposto de que «o juiz deve decidir, sobre a aplicação de uma medida de coacção, com base na prova apresentada pela acusação».

Daí que tudo se passe como se o n.º 7 do artigo 188.º do CPP dissesse que «[d]urante o inquérito, o juiz determina, sob prévia delimitação do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção [...]».

Na sequência, aliás, do disposto no artigo 194.º, n.º 4, alínea b), do CPP, que determina que «a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção [...] contém, sob pena de nulidade:

a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido [...]; e b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime.» Acresce que, sem prejuízo «do disposto na alínea b) do número anterior» (o juiz é dispensado de enunciar os elementos do processo que indiciam os factos imputados sempre que a sua comunicação puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime), «não podem ser considerados 'para fundamentar' a aplicação ao arguido de medida de coacção [...] quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3 («A aplicação [...] é precedida de audição do arguido») (n.º 5).

Assim interpretado o n.º 7 do artigo 188.º, a dúvida que jurisprudencialmente surgiu e que o nosso assento procurará desfazer é saber:

I) Se, nessa fase, o MP - por razões pragmáticas (ligadas com o disposto no artigo 194.º, n.º 6: «Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 4, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção [...] durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso») - poderá antecipar a delimitação das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a futura aplicação de medidas de coacção;

II) E se o juiz de instrução, por idênticas razões, poderá - antes mesmo de aplicar qualquer medida de coacção - determinar a transcrição e a junção aos autos (para que, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso, possam ser imediatamente consultáveis pelo arguido e pelo seu defensor) das conversações e comunicações tidas por indispensáveis para fundamentar a eventual aplicação futura de determinada medida de coacção.

Tenho dúvidas de que o preceito explicitamente consinta essa prática mas - ao mesmo tempo - não me parece que ele e os congéneres a ela obstem.

Não me opus, pois, a que se fixasse jurisprudência no sentido de que, «de acordo com o artigo 188.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, o juiz de instrução, durante o inquérito, determinará obrigatoriamente, sob prévia delimitação do Ministério Público (de modo a acautelar que a sua revelação ao arguido não ponha gravemente em causa a investigação ou impossibilite a descoberta da verdade), a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção e cuja revelação não crie perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime, não obstando porém tal norma a que, nessa fase, o juiz, por razões de ordem pragmática, determine facultativamente, a requerimento especificado do Ministério Público, a antecipada transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações que se justifiquem indispensáveis à fundamentação de eventual aplicação futura de uma qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, concretamente identificada pelo requerente». - J. Carmona da Mota.

Declaração de voto

A interpretação que faço do n.º 7 do artigo 188.º do CPP não me permite acompanhar a posição que fez vencimento.

A referida norma não pode deixar de ser lida no contexto e no conjunto da disciplina da intercepção de comunicações e conversações, numa perspectiva funcional em vista a finalidades a que, processualmente, está adstrita.

A norma visa uma finalidade: permitir dispor de elementos documentados para prova dos pressupostos de aplicação da medida de coacção. Mas os elementos constam todos do processo, nos anexos em suporte técnico que contêm as conversações gravadas. A questão é só de selecção e indicação pela pertinência para a demonstração dos pressupostos da medida de coacção, e só nessa medida se justifica a transcrição.

Mas, porque manifestamente a lei não poderá prever a prática de actos inúteis e nem a transcrição de conversações gravadas poderá constituir uma espécie de «arrasto» sem finalidade definida, ou, o que é o mesmo, com uma finalidade genérica, de guarda ou conservação preventiva ex ante, a transcrição só se compreende como finalidade processual se for para demonstração dos pressupostos de aplicação de uma medida de coacção cuja aplicação se requeira, isto é, quando se referir a prova dos pressupostos de uma medida de coacção concreta e determinada que o MP requeira.

A indispensabilidade da transcrição não pode ser apreciada fora da relação com os fundamentos e a aplicação de uma concreta medida de coacção.

Por isso, a transcrição só poderá ser requerida e deferida perante uma medida de coacção, que se justifique e que seja concretamente requerida.

Acompanho, pois, a interpretação do artigo 188.º, n.º 7, do CPP acolhida no acórdão recorrido. - António Silva Henriques Gaspar.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/11/06/plain-264117.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/264117.dre.pdf .

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  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 2000-11-17 - Lei 27-A/2000 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a alterar o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho, 317/95, de 28 de Novembro, e pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto.

  • Tem documento Em vigor 2000-12-15 - Decreto-Lei 320-C/2000 - Ministério da Justiça

    Altera o Código de Processo Penal, estabelecendo medidas de simplificação e combate à morosidade processual.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-22 - Lei 31/2004 - Assembleia da República

    Adapta a legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tipificando as condutas que constituem crimes de violação do direito internacional humanitário. Altera o Código Penal e publica em anexo a Lei penal relativa às violações do direito internacional humanitário.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 2008-08-27 - Lei 47/2008 - Assembleia da República

    Procede à quarta alteração à Lei n.º 13/99, de 22 de Março (estabelece o novo regime jurídico do recenseamento eleitoral), e consagra medidas de simplificação e modernização que asseguram a actualização permanente do recenseamento. Republica a citada lei.

Aviso

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