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Acórdão 488/2009, de 5 de Novembro

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Sumário

Decide não julgar organicamente inconstitucional o artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução de veículo em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado, efectuado mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.

Texto do documento

Acórdão 488/2009

Processo 115/09

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório.

1 - O Ministério Público, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da sentença proferida, em processo sumário, por aquele Tribunal que condenou o arguido Sérgio Nuno Ferreira Zananar, como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, pedindo a apreciação da questão de inconstitucionalidade do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada cuja aplicação ao caso concreto foi recusada, com fundamento "na violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa".

2 - No julgamento da matéria de facto, a decisão recorrida deu como provado que o arguido "ao ser submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue no aparelho DRAGER 7110 MKIIIP com o n.º de série ARPN-0073 acusou uma TAS de 1,95 g/l" e que "realizou contra-prova no aparelho DRAGER 7110 MKIIIP com o n.º de série ARPN-0074 e acusou uma TAS de 2,02 g/l".

Ao proceder ao "enquadramento jurídico-penal" dos factos apurados, a decisão recorrida sopesou que não restavam dúvidas de que o arguido, com a sua conduta, "praticou o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.

e p. pelo artigo 292.º do Código Penal", pois, "com efeito conduzia o veículo em via pública, sendo portador de uma TAS superior a 1,2 g/l e sendo certo que agiu de modo doloso" e que "haverá que ser considerada para efeitos de incriminação o resultado do exame inicial e não o resultado da contraprova contrariamente ao que expressamente dispõe o artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada", por a "referida disposição legal enferma[r] de inconstitucionalidade material na medida em que, como acontece no caso vertente, conforma a apreciação da prova pelo tribunal em prejuízo do arguido, violando o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição e o princípio in róo ró reo que constitui emanação em matéria de prova do princípio da presunção de inocência plasmado na referida norma constitucional".

3 - Alegando no Tribunal Constitucional sobre o objecto do recurso, o Procurador-Geral Adjunto concluiu do seguinte jeito o seu discurso argumentativo:

"1 - A norma do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada, enquanto permite que seja considerado o resultado da contraprova, ainda que revele uma taxa de álcool no sangue superior ao exame inicial, não viola o artigo 32.º, n.º 1.

2 - A mesma norma, enquanto impõe taxativa e automaticamente que deve ser o resultado da contraprova a prevalecer, viola o princípio da livre apreciação da prova, que se extrai dos artigos 2.º e 202.º da Constituição.

3 - Termos em que, ainda que com fundamento diferente, deve negar-se provimento ao recurso".

4 - O recorrido não contra-alegou.

B - Fundamentação.

5.1 - O n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada, que está aqui em causa, dispõe do seguinte jeito:

"O resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial".

O preceito foi introduzido na alteração ao Código da Estrada levada a cabo pela mão do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, havendo este diploma sido editado sob a invocação do uso da autorização legislativa concedida pela Lei 53/2004, de 4 de Novembro.

Sistematicamente, o preceito está enquadrado no sistema de fiscalização da condução sob a influência de álcool conformado pelo artigo 153.º do Código da Estrada.

Posteriormente à edição daquele n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada foi o regime constante deste artigo do Código da Estrada objecto de regulamentação, levada a cabo pelo Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17 de Maio, o qual revogou o Decreto Regulamentar 24/98, de 30 de Outubro que dispunha sobre a mesma matéria.

De acordo com o disposto no artigo 153.º do Código da Estrada, a pesquisa de álcool no condutor arguido começa por ser realizada através de exame no ar expirado efectuado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito e só quando não for possível, após três tentativas possíveis, o exame através desse método ou as condições físicas em que o arguido se encontra não lhe permitam a sua realização é que o primeiro exame é levado a cabo através de análise de sangue.

Por seu lado, regulamentando tal preceito dispõe o artigo 1.º do referido Regulamento de 2007 que:

"1 - A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo.

2 - A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise no sangue.

3 - A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo".

Destes preceitos, entendidos conjugadamente, pode distrair-se que a presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo. Ou seja, a utilização de analisador qualitativo apenas tem por função indiciar a presença de álcool no sangue.

Para se saber qual a taxa de álcool no sangue e, assim, se se estará perante uma situação relevante, criminal ou contra-ordenacionalmente, terá de recorrer-se a analisador quantitativo ou a análise de sangue.

Constatada a presença de álcool no sangue através de analisador quantitativo, pode o arguido requerer a contraprova, suportando as despesas por esta originadas no caso de resultado positivo, sendo essa contraprova realizada, consoante a vontade do examinando, através de novo exame, a efectuar através de aparelho aprovado ou de análise de sangue.

É no quadro deste regime que surge o referido n.º 6, dispondo que "o resultado da contraprova prevalece sobre o resultado inicial". É claro que a situação apenas se coloca em caso de exame inicial feito através de aparelho quantitativo a que se suceda novo exame de contraprova através de aparelho quantitativo, pois que sendo o primitivo exame levado a cabo através de exame de sangue não existe possibilidade de contraprova.

O legislador considerou que, em tal caso, ela não se justificava por ao resultado desse exame corresponder um elevado grau de certeza científica.

É, aliás, esta ratio que justifica a prescrição constante do n.º 5 do artigo 6.º do referido Regulamento, nos termos do qual "o resultado do exame de sangue para quantificação da taxa de álcool prevalece sobre o resultado do teste de ar expirado realizado em analisador quantitativo".

O resultado da análise de sangue tem, em tal caso, um nível de certeza científica, em razão dos métodos científicos utilizados, superior ao conferível aos obtidos através do outro método científico, o do fornecido pelos aparelhos de pesquisa através de ar expirado.

5.2 - Pois bem, a primeira questão que se coloca é a da constitucionalidade orgânica da norma que está em causa, enquanto dispondo sobre o valor das provas atendíveis em julgamento por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal.

A decisão recorrida não equacionou esta questão. Tal não impede, porém, que o Tribunal Constitucional a enfrente e a resolva, dado estar apenas vinculado ao pedido e não, já, aos fundamentos invocados, podendo fazê-lo com base na violação de normas ou princípios constitucionais diversos dos alegados (artigo 79.º-C da LTC).

É claro que a norma, nos termos em que se acha enunciada, tanto funciona ou projecta os seus efeitos nas situações em que a condução sob a influência de álcool se queda pela prática de uma contra-ordenação grave [artigo 145.º, n.º 1, alínea l)] ou muito grave [artigo 146.º, alínea j), ambos do Código da Estrada], como quando ela é susceptível de preencher o tipo penal recortado no artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal.

Mas tendo a virtualidade de alcançar efeitos a nível penal e sendo este domínio de vigência que está aqui em causa, é quanto a ele que há que resolver a questão.

E colocando-nos neste plano, haverá, todavia, que destrinçar as situações em que a contraprova foi efectuada através de análise de sangue ou através de aparelho de pesquisa quantitativa aprovado para o efeito.

Na verdade, quanto àquele tipo de contraprova não poderá desconhecer-se o disposto, hoje, no referido n.º 5 do artigo 6.º do mencionado Regulamento e a circunstância de o mesmo haver sido emitido através de lei da Assembleia da República.

Deste modo, a questão da inconstitucionalidade orgânica de tal preceito do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada apenas se coloca relativamente aos resultados das contraprovas obtidos através de analisadores quantitativos aprovados para o efeito e no domínio do processo penal, como é o caso.

Ora, quer se atribua às normas que dispõem sobre as provas atendíveis em processo criminal e o seu respectivo valor natureza material, quer se lhes reconheça natureza adjectiva, certo é que as disposições que prevêem os tipos de prova admissíveis e o seu valor são normas de processo criminal, dado cumprirem a função instrumental de darem a conhecer "os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis" (cf. Artigo 124.º do Código de Processo Penal - C. P. Penal) cuja determinação é prosseguida pelo processo criminal.

Enquanto norma que dispõe sobre o valor da análise da contraprova por confronto com o valor do exame inicial (não importando, aqui, saber se com o valor de prova taxada ou prova legal, como parece ter entendido a decisão recorrida, ou se com valor de prova sujeita a apreciação judicial segundo as regras de experiência e livre convicção do julgador), ela é uma norma processual compreendida no âmbito material do princípio afirmado no artigo 127.º do C. P.

Penal.

Assim sendo, o preceito, na medida em que projecta efeitos a nível da valoração da prova em processo criminal, e quando referido a contraprova efectuada mediante analisador quantitativo, apenas poderia ser editado por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo, emitido a coberto de autorização legislativa, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Assembleia da República.

Anote-se, porém, que, quando referida a contraprova efectuada com recurso a análise ao sangue, há-de entender-se que a mesma foi substituída pelo referido n.º 5 do artigo 6.º do referido Regulamento, deixando-se de colocar a questão da competência para a edição do respectivo critério normativo.

5.3 - O artigo 1.º da Lei 53/2004, de 4 de Novembro, concedeu autorização ao Governo para "proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.os 2/98, de 3 de Janeiro, e 265-A/2001, de 28 de Setembro, e pela Lei 20/2002, de 21 de Agosto, e ainda a criar um regime especial de processo para as contra-ordenações emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementar".

E, definindo o sentido da autorização, o artigo 2.º da mesma lei dispõe que a autorização visa "permitir a criação de um regime jurídico em matéria rodoviária em conformidade com os objectivos definidos no Plano Nacional de Prevenção Rodoviária, com as normas constantes de instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado e com as recomendações das organizações internacionais especializadas com vista a proporcionar índices elevados de segurança rodoviária para os utentes".

Ora, conquanto possa entender-se que o regime em causa constante do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada cabe no objecto e no sentido da lei de autorização, certo é que, analisado o artigo 3.º da mesma lei e tendo em conta que "a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados" (cf., entre outros, o Acórdão 358/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), não se vê que o mesmo caiba em qualquer dos que, aí, são enunciados.

Assim sendo, a norma em causa padece de inconstitucionalidade orgânica.

Aqui chegados, torna-se desnecessário apurar se a mesma afronta os princípios constitucionais invocados pela decisão recorrida ou pelo Ministério Público.

C - Decisão.

6 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, o artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução de veículo em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado, efectuado mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito, e, consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando, ainda que por razões diferentes, a decisão recorrida.

Lisboa, 28 de Setembro de 2009. - Benjamim Rodrigues - Joaquim de Sousa Ribeiro - João Cura Mariano - Rui Manuel Moura Ramos.

202529722

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/11/05/plain-264022.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/264022.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1993-01-26 - Acórdão 358/92 - Tribunal Constitucional

    Decide não declara a inconstitucionalidade nem a ilegalidade dos artigos 12.º, 13.º, n.os 1 e 2, e 14.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, não declara a inconstitucionalidade do artigo 38.º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, e declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do artigo 50.º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, por violação do artigo 168.º, n.º 2, da Constituição (Processo n.º 120/92).

  • Tem documento Em vigor 1994-05-03 - Decreto-Lei 114/94 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o Código da Estrada, cujo texto se publica em anexo.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-30 - Decreto Regulamentar 24/98 - Ministério da Administração Interna

    Regulamenta os procedimentos para a fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas.

  • Tem documento Em vigor 2002-08-21 - Lei 20/2002 - Assembleia da República

    Altera o Código da Estrada, considerando sob influência do álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5g/l e fixando as respectivas coimas para os infractores.

  • Tem documento Em vigor 2004-11-04 - Lei 53/2004 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio.

  • Tem documento Em vigor 2005-02-23 - Decreto-Lei 44/2005 - Ministério da Administração Interna

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio e posteriormente alterado. Republicado na íntegra com todas as alterações.

  • Tem documento Em vigor 2007-05-17 - Lei 18/2007 - Assembleia da República

    Aprova o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2011-11-29 - Acórdão do Tribunal Constitucional 485/2011 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado. (Processo n.º 799/2010)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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