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Acórdão 500/2009, de 29 de Outubro

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Sumário

Decide não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 4.º do Código do Imposto de Valor Acrescentado, na redacção do Decreto-Lei n.º 100/95, de 19 de Maio, sobre o regime de tributação de IVA das prestações de serviços.

Texto do documento

Acórdão 500/2009

Processo 99/09

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Nos presentes autos em que é recorrente Ministério Público e recorrida L.C. - Loja do Ceramista - Importação e Exportação de Produtos para a Cerâmica e Artes, Lda., foi interposto recurso, com carácter obrigatório, ao abrigo do n.º 3 do artigo 280.º, da CRP, e do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da LTC, da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, em 5 de Setembro de 2009 (fls. 70 a 76), que desaplicou a norma constante do n.º 1 do artigo 4.º do Código do Imposto de Valor Acrescentado [de ora em diante, identificado por CIVA], por "faltar à norma o «elevado grau de determinação conceitual» exigível, assim afrontando o disposto no

artigo 103/2 CRP [...]" (fls. 74).

2 - Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu as seguintes alegações:

«1 - Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.

O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da decisão, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, nos autos de impugnação em que figura como uma impugnante L.C. - Loja do Ceramista, na parte em que se recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma constante do

artigo 4.º, n.º 1, do CIVA.

Na óptica da decisão recorrida, tal norma - de carácter "residual" e grande amplitude - violaria o princípio da legalidade tributária, já que dela decorreria um desenho "elástico"

quanto à incidência de tal imposto, transferindo para a administração tributária o poder de decidir quais as situações de facto que se lhe subsumem - e levando, no caso dos autos, à inclusão de um negócio jurídico de cessão da posição contratual, detido em contrato de locação financeira, tido por subsumível no amplo conceito de "prestação de serviços a título oneroso", delineado pela norma desaplicada.

O princípio de legalidade tributária não impede que o legislador fiscal possa utilizar conceitos indeterminados ou cláusulas gerais na definição dos pressupostos da obrigação tributária, incluindo a definição do âmbito da incidência fiscal.

A questão de admissibilidade e do âmbito do uso pela lei fiscal de cláusulas gerais ou de conceitos indeterminados foi aprofundadamente analisada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 252/05, que procede a um levantamento exaustivo de anterior jurisprudência sobre tal tema, concluindo que não pode inferir-se automaticamente do princípio da legalidade e da tipicidade que esteja vedada a utilização de conceitos indeterminados no âmbito da fattispecie normativa que releva para delimitar a incidência tributária - impondo-se distinguir os casos de inadmissível outorga à Administração Fiscal de verdadeiros poderes discricionários, judicialmente insindicáveis, "daqueloutros onde, perante um conceito indeterminado, a actuação administrativa é completamente vinculada e, por isso, sindicável pelo tribunal em toda a sua extensão [...], "sendo que, no domínio tributário - mesmo no que toca especificamente à definição dos elementos essenciais dos impostos nos aspectos relacionados com a sua incidência - o princípio da legalidade não impede que a prescrição legislativa que contenha conceitos indeterminados através dos quais se "remeta [...] a administração para a consideração de circunstâncias de índole técnica [...] (possa) significar a preterição da instancia jurisdicional decidente, (ou) a condenação do contribuinte a uma mera decisão administrativa [...]".

"Na verdade, não pode deixar de reconhecer-se que tais "conceitos indeterminados"

são passíveis de uma interpretação concretizadora que opere a sua determinação conceitual [...] [não colocando] nas mãos da Administração Fiscal o monopólio da sua densificação [...] como autênticas "cláusulas de discricionariedade", porquanto, "se nem todos os conceitos legais têm o mesmo grau de indeterminação, a verdade é que todos são interpretáveis e, embora a determinação do sentido jurídico-normativo da norma interpretada seja marcada por uma ineliminável subjectividade, tal não significa, contudo, que a mobilização de normas legais onde estejam inseridos conceitos indeterminados não possa ser pertinentemente sindicada pelos tribunais fiscais".

No caso dos autos, o problema detectado prende-se - mais do que com a indeterminação conceitual - com a amplitude - tida por desproporcionada e excessiva - da previsão normativa constante do artigo 4.º, n.º 1, do CIVA: na verdade, tal norma inclui no âmbito de incidência do IVA todas as operações efectuadas a título oneroso - perspectivadas como "prestação de serviços" - mesmo que não integrem transmissões onerosas de bens, prestações onerosas de serviços ou actos de transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

Tudo se passa, em rigor, como se tal norma submetesse à incidência do IVA todas as transmissões ou atribuições patrimoniais, feitas a título oneroso, independentemente da estrutura jurídica do negócio em que as mesmas se corporizam.

Não se pode dizer que tal ampla previsão normativa implique a criação de uma "zona obscura" ou de fronteira, de difícil apreensão, determinabilidade e controlo, nomeadamente jurisdicional: é que a norma, com tal interpretação e configuração, é clara e tem um conteúdo determinável, embora efectivamente muito amplo, sendo questões diferentes e autónomas a indeterminação e a amplitude da fattispecie das normas que regem sobre a incidência tributária.

Na verdade, estatuir que todos os actos que se consubstanciam numa transferência ou aquisição patrimonial, feita a título oneroso, estão sujeitos a IVA não traduz qualquer indeterminabilidade dos elementos que integram esta previsão normativa - implicando apenas que o legislador fiscal optou por estabelecer uma cláusula de grande amplitude, mas de sentido perfeitamente apreensível pelos destinatários da norma e controlável

pelos tribunais.

É certo que a qualificação de tais actos de atribuição patrimonial, a título oneroso, como "prestações de serviços" pode - do ponto de vista estritamente jurídico - configuram-se como efectivamente discutível, nomeadamente por os mesmos nada terem que ver com o conceito jus-civilístico de "prestação de serviços", decorrente do artigo 1154.º do Código Civil (sendo evidente que o negócio de cessão de posição contratual nada tem que ver com a figura do contrato de prestação de serviço, regulada naqueles artigos 1154/1156 do Código Civil).

Tal objecção não se afigura, porém, precedente por um duplo fundamento:

- em primeiro lugar, nada obriga a que os conceitos utilizados pela lei fiscal tenham de coincidir com os conceitos normativos "paralelos" utilizados pelo direito civil "comum" - bem podendo o direito fiscal, moldado essencialmente em função de realidades económicas, prescindir da estrutura jurídico-formal de certas figuras, paralelas ou análogas, tal como vigoram no campo do direito civil;

- em segundo lugar - e decisivamente - este problema não se configura, em rigor, como envolvendo uma questão de inconstitucionalidade normativa, - mas apenas e tão somente - com a realização pelo juiz de uma actividade subsuntiva, estranha à fiscalização da constitucionalidade de "normas": na verdade, se o tribunal "a quo"

entender, no exercício dos seus poderes de interpretação da lei fiscal, que o conceito de "prestação de serviço", utilizado pela norma que integra o objecto deste recurso, em nenhumas circunstâncias poderá abarcar a referência a um negócio de cessão da posição contratual, terá apenas, no exercício de tais poderes interpretativos, de optar por não subsumir à norma do artigo 4.º, n.º 1, o negócio jurídico controvertido na

presente impugnação.

2 - Conclusão

Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:

1.º

Como decorre do acórdão 252/05, não pode inferir-se dos princípios da legalidade e da tipicidade, contidos no princípio constitucional da reserva da lei fiscal, que esteja absolutamente proscrita a utilização, pelas normas determinadoras da incidência dos impostos, de conceitos indeterminados - sendo esta legítima desde que não envolva a outorga à Administração Fiscal de verdadeiros poderes discricionários, judicialmente

insindicáveis.

2.º

A ampla previsão normativa constante do artigo 4.º, n.º 1, do CIVA implica que se devam ter por situados no âmbito da incidência deste imposto todos os actos de atribuição ou transferência, de natureza patrimonial, efectuados a título oneroso, qualificados como "prestação de serviços", independentemente da natureza e estrutura jurídica formal que lhes assista e os caracterizem.

3.º

Tal previsão normativa - apesar da sua muito ampla abrangência - não é obviamente indeterminável, possibilitando aos destinatários da norma um juízo sobre o respectivo âmbito e ao juiz, no momento subsuntivo, um efectivo controlo da actividade administrativa no preenchimento de tal fattispecie.

4.º

Termos em que deverá proceder o presente recurso.» (fls. 94 a 99) 3 - Notificada das referidas alegações, a recorrida deixou expirar o respectivo prazo, sem que tenha vindo aos autos apresentar as correspondentes contra-alegações:

Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

4 - A norma que foi alvo de decisão de desaplicação pela decisão recorrida e que se configura agora como objecto do presente recurso corresponde à constante do n.º 1 do artigo 4.º do CIVA, de acordo com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei 100/95, de 19 de Maio, que estipula o seguinte:

"Artigo 4.º

1 - São consideradas como prestações de serviços as operações efectuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou aquisições de

bens."

Para melhor compreensão do regime de tributação de IVA das prestações de serviços, tem-se por conveniente transcrever igualmente os n.os 2 e 3 do referido artigo 4.º do

CIVA:

"2 - Consideram-se ainda prestações de serviços a título oneroso:

a) Ressalvado o disposto no n.º 1 do artigo 25.º, a utilização de bens da empresa para uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral para fins alheios à mesma e ainda em sectores de actividade isentos quando, relativamente a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto (de acordo com a redacção conferida pelo Decreto-Lei 195/89, de 12 de Junho);

b) As prestações de serviços a titulo gratuito efectuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral, a fins alheios à

mesma;

c) A entrega de bens móveis produzidos ou montados sob encomenda com materiais que o dono da obra tenha fornecido para o efeito, quer o empreiteiro tenha fornecido, ou não, uma parte dos produtos utilizados. (de acordo com a redacção conferida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 206/96, de 26 de Outubro) 3 - São equiparadas a prestações de serviços a cedência temporária ou definitiva de um jogador, acordada entre os clubes com o consentimento do desportista, durante a vigência do contrato com o clube de origem e as indemnizações de promoção e valorização, previstas no n.º 2 do artigo 22.º do Contrato de Trabalho Desportivo, aprovado pelo Decreto-Lei 305/95, de 18 de Novembro, devidas após a cessação do contrato. (de acordo com a redacção conferida pelo n.º 1 do artigo 34.º da Lei n.º

127-B/97, de 20 de Dezembro)"

Daqui decorre que o legislador ordinário optou por fixar o âmbito de incidência objectiva do IVA, no que concerne às prestações de serviços, através de um método dualista. Assim, por um lado, foi adoptado um elenco exemplificativo de operações que correspondem ao conceito de "prestações de serviços a título oneroso" sujeitas a IVA - vide n.os 2 e 3 do referido artigo 4.º do CIVA -, que é complementado, por outro lado, o n.º 1 do artigo 4.º do CIVA estabelece uma cláusula geral que permite a qualificação dessas mesmas prestações de serviço mediante recurso a um conceito jurídico indeterminado que extravasa as situações especificamente previstas nos n.os 2

e 3 do mesmo preceito.

Ora, sucede que a decisão recorrida considerou que a previsão legal de tal cláusula geral, assente num conceito jurídico indeterminado, briga com o princípio da legalidade tributária (artigo 103.º, n.º 2, da CRP), por se tratar de:

"[...] uma norma de carácter residual onde cabem todas as operações não abrangidas

pelas anteriores normas de incidência.

[...]

Mas porque «esse tudo» é indeterminável, tal implica devolução à administração fiscal do poder de preenchimento e selecção factual, subtraindo ao Parlamento o poder de decidir quais os factos tributáveis - ainda que mediante autorização legislativa.

Conclui-se faltar à norma o «elevado grau de determinação conceptual exigível, assim afrontando o disposto no artigo 103/2/CRP [...]" (fls. 73 e 74).

Importa, portanto, verificar se procedem os fundamentos adoptados pela decisão recorrida para justificar a decisão de desaplicação da norma prevista no n.º 1 do artigo

4.º do CIVA.

5 - O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de apreciar, por diversas vezes, a problemática decorrente da necessidade de compatibilização entre o princípio da legalidade democrática e a previsão de conceitos jurídicos indeterminados que concedem à administração fiscal uma relativa margem de discricionariedade no seu preenchimento, a propósito de cada relação jurídico-administrativa em concreto. A compatibilidade da previsão de tais conceitos jurídicos indeterminados com o referido princípio da legalidade tributária, desde que seja objectivamente possível que o destinatário possa antever a criação legal de uma obrigação tributária tem sido

jurisprudência consolidada neste Tribunal.

Assim, no Acórdão 233/94 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt), este

Tribunal entendeu o seguinte:

"11. Como já vimos, a norma em causa insere-se de pleno no domínio fiscal, estando, por assim dizer, duplamente vinculada à lei, por um lado por força da cominação expressa do artigo 106.º, n.os 2 e 3, da Constituição e, por outro, em virtude de a matéria em causa se inserir na esfera de competência reservada da Assembleia da República [artigo 168.º, n.º 1, alínea i) - "criação de impostos e sistema fiscal"].

Ora, o que verdadeiramente a recorrente pretende criticar na norma em causa é a violação do princípio da legalidade tributária na óptica da insuficiente densificação legislativa das condições de aplicação do aludido preceito (ou seja, do insuficiente grau de precisão e determinabilidade das regras legais atinentes a esta específica situação tributária que poderiam colocar o regime em crise a descoberto das garantias decorrentes dos aludidos princípios constantes do artigo 106.º, n.os 2 e 3, da

Constituição).

Dito ainda de outra forma, estando em causa matéria tributária, matéria de definição dos pressupostos de aplicação de um determinado imposto, a recorrente parece entender que se mostra incompatível com o aludido princípio da legalidade tributária a circunstância de a lei, com base em conceitos indeterminados ou só indirectamente determinados, conferir uma certa margem de livre apreciação à Administração para efeitos de determinação da substituição de um sistema de tributação (típico do grupo A) por um outro (o do grupo B), este mais gravoso do que aquele, em virtude do incumprimento, por parte do contribuinte, de certas regras atinentes às suas obrigações

fiscais.

Recorde-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional já teve ocasião de dizer que em sede de restrição de direitos, liberdades e garantias, a Constituição não veda ao legislador a possibilidade de este conferir à Administração a faculdade de actuar ao abrigo de poderes discricionários, desde que as balizas de exercício de tais poderes constem de forma suficientemente densificada na própria lei (cf. Acórdão 285/92, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de Agosto de 1992). Ou seja: em sede de restrições de direitos, liberdades e garantias, o recurso a conceitos jurídicos indeterminados, para efeitos de definição dos pressupostos e da amplitude de exercício de poderes discricionários pela Administração, deve encontrar na letra da lei um tal grau de densificação normativa que correspondam a um mínimo de critérios objectivos que balizem essa actuação discricionária da Administração, em termos tais que permitam aos cidadãos, com um mínimo de segurança, saber com que quadro normativo contam quanto à possível aplicação dessa lei e que simultaneamente confiram aos tribunais elementos objectivos suficientes para apreciação da adequação e

proporcionalidade no uso de tais poderes.

E se se chama este lugar paralelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional para apreciação do caso em análise é apenas para tornar mais evidente que, desde logo para quem entenda que a actividade normativa de definição do sistema tributário, à luz do princípio da legalidade tributária, não se traduz numa verdadeira e própria restrição de direitos, liberdades e garantias, então parece não constituir obstáculo inultrapassável que a lei acolha na sua formulação conceitos jurídicos indeterminados e, com base neles, confira à Administração uma "margem de livre apreciação" para analisar uma dada situação de facto de incumprimento ou de desvio de um dever fiscal e, consequentemente, decidir da aplicação do mecanismo de substituição do sistema de tributação (como resulta do § 2.º do artigo 114.º do Código da Contribuição Industrial), desde que tal habilitação preencha o conteúdo mínimo exigível ao cabal cumprimento do aludido requisito da legalidade tributária (no sentido de previsão legal

do imposto).

Mas mesmo para quem veja na definição normativa do sistema tributário, em concorrência com os ditames do princípio da legalidade e da tipicidade tributárias, uma específica forma de restrição de direitos, liberdades e garantias, ou melhor, de direitos fundamentais de natureza análoga, que beneficiariam do regime do artigo 18.º da Constituição, por força do disposto no artigo 17.º da lei Fundamental, será também de concluir que, à luz do critério jurisprudencial atrás referenciado, quando a lei usa conceitos jurídicos indeterminados, embora daí resulte que a Administração vem a beneficiar de uma certa margem de liberdade de apreciação, não haverá ofensa da Constituição desde que os dados legais contenham uma densificação tal que possam ser tidos pelos destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade administrativa assim desenvolvida." (com itálico nosso) Em sentido idêntico, quanto à questão da constitucionalidade de conceitos indeterminados em matéria fiscal, veja-se igualmente o Acórdão 756/95 (disponível

in www.tribunalconstitucional.pt):

"4.1. Será a norma de incidência aqui questionada tão ampla e vaga na sua formulação, que ponha em causa esse mínimo de precisão exigível às normas fiscais? A resposta a esta interrogação pressupõe o caracterizar da articulação - constitucionalmente viável - entre o emprego, neste tipo de normas, de conceitos indeterminados e aquilo que a jurisprudência constitucional alemã definiu como "princípio da determinabilidade" (Bestimmenheitgrunsatz), referindo-se à exigência destas normas construírem a respectiva previsão "assegurando um mínimo de clareza e de transparência do tipo" e que "permita a calculabilidade e a previsibilidade da obrigação fiscal" (J. L: Saldanha Sanches, A Segurança Jurídica no Estado Social de Direito, Ciência e Técnica Fiscal, n.os 310/312, pág. 299).

A justificação de qualquer destas realidades (conceitos amplos/exigências de determinabilidade) não deixa de ser possível face a regras ou princípios constitucionalmente relevantes: se a determinabilidade se acolhe na defesa dos contribuintes contra o arbítrio da Administração Fiscal, que subjaz aos artºs n.os 2 e 3, do artigo 106.º, o emprego de conceitos amplos e por vezes indeterminados - os únicos que garantem a plasticidade que possibilite a adaptação ao constante aparecimento de novas situações que, substancialmente iguais a outras já tributadas, não estejam ainda formalmente descritas com precisão - não deixa, o emprego desse tipo de conceitos, de se poder louvar no cumprimento do mandato de igualdade em sentido material, não permitindo o aparecimento constante de refúgios de evitação

fiscal.

Só a harmonização entre estas duas realidades, potencialmente conflituantes, é susceptível de fornecer soluções equilibradas que, sacrificando o menos possível dos valores subjacentes a cada uma, garanta o essencial desses valores.

Esta harmonização vem sendo prosseguida, nomeadamente no plano das jurisdições constitucionais, excluindo as cláusulas gerais que operem como que uma transferência da "criação da obrigação fiscal" para a "discricionariedade da administração", mas não inviabilizando liminarmente certas "cláusulas gerais", "conceitos jurídicos indeterminados", "conceitos tipológicos" (Typusbegriffe), "tipos discricionários"

(Ermessentatbestände), e certos conceitos que atribuem à administração uma margem de valoração, os chamados "preceitos poder" (Kaan-Vorschrift).

Todas estas figuras, guardadas certas margens de segurança, flexibilizam o sistema tornando-o apto a abranger, através da interpretação, "circunstâncias novas, porventura imprevisíveis ao tempo da formulação da lei" (JL Saldanha Sanches, ob. cit. pág. 297 e

299/300).

Ganha, assim, a tipicidade tributária, concretizada no princípio da determinabilidade, um valor específico, aquele que (e citamos de novo JL Saldanha Sanches) "tem o seu núcleo essencial na reserva da competência da lei para a selecção dos factos da vida social que devem ser objecto de tributação, na manutenção do dictum do legislador ordinário quanto à determinação dos factos tributáveis", mas que não inviabiliza "que este se sirva de uma formulação suficientemente ampla para abranger factos da mesma natureza e igualmente indicadores de capacidade tributária, ainda que com características que entre si os diferenciem" (ob. cit. pág. 299).

Ora, a norma aqui constitucionalmente questionada, como verdadeira norma residual de um universo que o legislador define com suficiente precisão (a Secção B do Imposto de Capitais - v. artigo 3.º, do CIC); construída em torno de um conceito - "rendimentos derivados da simples aplicação de capitais" - que concretizado de acordo com as regras interpretativas possíveis relativamente a normas de incidência fiscal, está muito longe de colocar nas mãos da administração um poder arbitrário de concretização; uma norma com estas características, dizíamos, não pode à partida ser tida como

inconstitucionalmente indeterminada."

No acórdão 252/05, (disponível in www.tribunalconstitucional.pt), foi apreciada a constitucionalidade de norma que incluía um conceito jurídico indeterminado indispensável a habilitar a administração fiscal a corrigir a base tributável de IRC, quando estejam em causa relações especiais indiciadoras de "preços de transferência"

(daquela feita, tratava-se do n.º 1 do artigo 57.º, do CIRC), o Tribunal Constitucional pôde já afirmar a inexistência de qualquer antinomia entre o princípio da legalidade tributária e a previsão legal de conceitos jurídicos indeterminados - porém, determináveis - que permitam a definição dos elementos fundamentais de impostos

devidos pelos contribuintes:

"5.2.4.2 - Não há dúvida de que a presente construção legislativa assenta na mobilização tipológica de conceitos indeterminados, que, pela sua natureza, não se prestam a uma aplicação "automática", antes exigindo uma valoração problematicamente concretizadora do sentido jurídico-normativo da norma, e, portanto, uma concretização especificante em atenção ao caso a considerar.

Contudo, tal conclusão não autoriza que, sem mais, possa concluir-se por uma apodíctica preterição do princípio da legalidade fiscal - com a inerente dimensão de tipicidade - e, do mesmo passo, pelo reconhecimento de um insindicável espaço de discricionariedade à actuação administrativa, mesmo salientando-se que nessa esfera não pode estar em causa a concessão de um poder arbitrário de conformação normativa, porquanto, a bem ver, no âmbito de um Estado de direito materialmente comprometido, toda a actuação administrativa, ainda que discricionária, está sempre "sujeita a uma regra de absoluta juridicidade" (cf. João Pedro Silva Rodrigues, Critérios normativos de predeterminação da matéria tributável - Os novos caminhos abertos pela [pré-] suposta avaliação indirecta na imposição fiscal do rendimento, Coimbra, 2002, pp. 110; e, mais expressivamente, A. Castanheira Neves, "O problema da discricionariedade", in Digesta - Escritos acerca do Direito, do Pensamento jurídico, da sua Metodologia e Outros, Volume 1.º, Coimbra, 1995, pp. 531 e ss., esp.te 586).

Nesta linha discursiva, sempre haverá, então, que distinguir as questões relacionadas com o exercício de poderes discricionários, "daqueloutras onde, perante um conceito indeterminado, a actuação administrativa é completamente vinculada e, por isso, sindicável pelo tribunal em toda a sua extensão [...]", sendo que, no domínio tributário - mesmo no que toca especificamente à definição dos elementos essenciais dos impostos e aos aspectos relacionados com a sua incidência - o princípio da legalidade não impede que a prescrição legislativa que contenha conceitos indeterminados através dos quais se "remeta [...] a administração para a consideração de circunstâncias de índole técnica [...] [possa] significar a preterição da instância jurisdicional decidente, [ou] a condenação do contribuinte a uma mera decisão administrativa [...]".

Na verdade, não pode deixar de reconhecer-se que tais «conceitos indeterminados são passíveis de uma interpretação concretizadora que opere a sua determinação conceitual [...] [não colocando] nas mãos da administração fiscal o monopólio da sua densificação, [...] como autênticas "cláusulas de discricionariedade"», porquanto, "se nem todos os conceitos legais têm o mesmo grau de indeterminação, a verdade é que todos são interpretáveis e, embora a determinação do sentido jurídico-normativo da norma interpretanda seja marcada por uma ineliminável subjectividade, tal não significa, contudo, que a mobilização de normas legais onde estejam inseridos conceitos indeterminados não possa ser pertinentemente sindicada pelos tribunais fiscais" (cf.

João Pedro Silva Rodrigues, «Conceitos indeterminados e a sindicabilidade pelo tribunal da sua "interpretação-aplicação"», in Saldanha Sanches et alii, Jurisprudência Fiscal Anotada, 2001, pp. 89 e ss. esp.te 102-103) E, no âmbito desta distinção, sempre importará precisar que não será, pois, o maior ou menor grau de indeterminação conceitual a determinar - ou afastar - a sindicância jurisdicional do juízo administrativo, antes havendo que determinar se, para lá da estrutura conceitual da norma e, portanto, do seu "conteúdo significativo-conceitual", o legislador pretendeu desvincular a actuação administrativa de uma esfera de revisibilidade jurisdicional, admitindo, quanto a determinados aspectos do acto administrativo, uma verdadeira - e insindicável - liberdade de escolha.

[...]

Essencial, será, assim, que a norma em questão possa "ser interpretada e aplicada em termos de assegurar aos interessados uma suficiente densificação que sirva de critério orientador à actividade administrativa e à dos próprios tribunais quando chamados a controlar a actividade da administração" (cf. o mencionado Acórdão 233/94, deste

Tribunal).

[...]

Podemos assim concluir, sintetizando, que estamos, no caso, perante conceitos indeterminados cujo conteúdo não demanda a atribuição de qualquer poder constitutivo à administração fiscal em sede de determinação da matéria colectável, pois apenas pode ser admitido como critério de decisão aquele sentido objectivo que resulta directamente da lei tributária. Isto, ao contrário do que se passava na norma sindicada pelo Acórdão 233/94, em que a lei erigia a dúvida subjectiva da administração fiscal sobre a correspondência à realidade da matéria colectável declarada a elemento normativo determinante e especificante da mudança do critério de tributação.

Diversamente, à administração tributária apenas é reconhecida, agora, uma competência de prognose probatória relativamente aos factos que preencherão esses conceitos jurídicos, gozando tão somente de liberdade quanto à escolha dos meios de prova a utilizar, de entre os permitidos em direito.

E conquanto a determinação em concreto dos termos em que ocorrem as relações entre "pessoas independentes" admita, segundo os padrões de normalidade probatória, alguma álea, como vem sendo dito, não poderá dizer-se que esta seja atentatória do princípio da previsibilidade das obrigações fiscais do destinatário da norma e do princípio da segurança jurídica, que encarnam a essência material do princípio da legalidade tributária no Estado de direito democrático, avaliados pelo crivo dos princípios da necessidade e da proporcionalidade: até porque ninguém melhor do que o sujeito passivo conhecerá as regras de mercado cuja existência pode evidenciar à

administração e perante o tribunal."

Tendo em conta esta firme jurisprudência do Tribunal, resta verificar se a norma em apreço (n.º 1 do artigo 4.º do CIVA), face ao seu teor, encerra em si um mínimo de significação normativa que se revela apta a limitar o exercício interpretativo da administração fiscal e a permitir ao sujeito tributário o prévio conhecimento da

obrigação tributária que sobre si recai.

6 - Parece evidente que o diploma legal em causa fixa, de modo apreensível para qualquer destinatário, o âmbito de incidência objectiva do imposto a cobrar.

Com efeito, a alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA determina que "estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado: [...] as transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas em território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal". Após esta fixação do âmbito de incidência objectiva do imposto, o legislador opta ainda por densificar tais conceitos jurídicos, mediante a exemplificação de condutas concretas que são susceptíveis de se enquadrar nos referidos conceitos de "transmissões de bens" (cf. artigo 3.º do CIVA) e "prestações de serviços" (cf. artigo

4.º do CIVA).

Sucede que, no caso do artigo 4.º do CIVA, o legislador opta por associar um critério geral (cf. n.º 1 do artigo 4.º do CIVA), à previsão de um elenco exemplificativo de operações qualificáveis como "prestações de serviços".

Ora, o recurso a tal conceito jurídico não prejudica, no caso concreto em apreço, a susceptibilidade de apreensão dos factos sujeitos a imposto por parte de um destinatário normal, nem tão pouco viola o princípio da legalidade tributária.

Acresce ainda que, conforme já notado, a alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA determina estarem sujeitas a imposto as "prestações de serviços efectuadas em território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal". Ora, quando o intérprete recorre ao conceito de sujeito passivo do imposto, constata que são enquadráveis como tais - conforme decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do

CIVA:

"As pessoas singulares ou colectivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam actividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões livres, e, bem assim, as que do mesmo modo independente, pratiquem uma só operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das referidas actividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente dessa conexão, tal operação preencha os pressupostos da incidência real de IRS e de IRC".

Assim, apesar de amplo, o conceito jurídico consagrado no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA é determinável, pelo que, qualquer que fosse o seu sentido, a decisão da administração fiscal permaneceria sempre passível de ser controlada pelo competente

tribunal administrativo e tributário.

Como tal, conclui-se que a adopção do conceito jurídico constante do n.º 1 do artigo 4.º do CIVA não constitui violação do princípio da legalidade tributária (artigo 102.º,

n.º 3.º, da CRP).

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, decide-se:

a) Julgar procedente o presente recurso;

E, em consequência:

b) Determinar a baixa dos autos ao tribunal recorrido, para que seja reformada a decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade, conforme determina o n.º 2 do artigo 80.º da LTC.

Sem custas, por não serem legalmente devidas.

Lisboa, 30 de Setembro de 2009. - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão.

202487943

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/10/29/plain-263470.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/263470.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1989-06-12 - Decreto-Lei 195/89 - Ministério das Finanças

    Altera o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro, e legislação complementar, com o objectivo de adaptar aquele código à legislação comunitária e aos impostos sobe o rendimento das pessoas singulares (IRS) e das pessoas colectivas (IRC). Republicado em anexo o Código do IVA.

  • Tem documento Em vigor 1992-08-17 - Acórdão 285/92 - Tribunal Constitucional

    PRONUNCIA-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA QUE SE EXTRAI DA CONJUGACAO DO ARTIGO 3, NUMERO 1, PARTE FINAL, COM O NUMERO 2 DO MESMO ARTIGO E O NUMERO 6 DO ARTIGO 2 DO DECRETO REGISTADO NA PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS SOB O NUMERO 171/92 (QUE DEU ORIGEM AO DECRETO LEI 247/92, DE 7 DE NOVEMBRO), POR VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DE DETERMINABILIDADE DA LEI E DA RESERVA DE LEI, DECORRENTES DAS DISPOSIÇÕES CONJUGADAS DOS ARTIGOS 2 E 18, NUMERO 3, POR REFERÊNCIA AO ARTIGO 53, TODOS DA CONSTITUICAO. PRONUN (...)

  • Tem documento Em vigor 1995-05-19 - Decreto-Lei 100/95 - Ministério das Finanças

    Altera o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), aprovado pelo Decreto Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro, e respectiva legislação complementar.

  • Tem documento Em vigor 1995-11-18 - Decreto-Lei 305/95 - Ministério da Educação

    APROVA O REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE TRABALHO DO PRATICANTE DESPORTIVO E DO CONTRATO DE FORMAÇÃO DESPORTIVA, PUBLICADO EM ANEXO.

  • Tem documento Em vigor 1996-10-26 - Decreto-Lei 206/96 - Ministério das Finanças

    Dá execução as autorizações legislativas concedidas ao Governo em matéria de harmonização fiscal comunitária/IVA, constantes das alíneas b), c) e d) do artigo 42º da lei 10-B/96, de 23 de Março, que aprovou o Orçamento do Estado para 1996. Assim: - altera o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto Lei 394-B/84, de 26 de Dezembro, - Altera o regime do IVA nas transacções intracomunitárias, aprovado e publicado em anexo ao Decreto Lei 290/92, de 28 de Dezembro. Altera o Decreto Lei (...)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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