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Acórdão 331/2016, de 14 de Junho

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Sumário

Julga inconstitucional a norma que se extrai da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, na redação dada pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro, segundo a qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, quando foi aplicado o mecanismo da dispensa de pena

Texto do documento

Acórdão 331/2016

Processo 1155/2014

Acordam, na 2.ª Secção, do Tribunal Constitucional I. Relatório 1 - Nos presentes autos vindos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em que é recorrente o Ministério Público e é recorrida Jakeline Alves da Silva Couto de Sousa, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (

«

LTC

»

), foi interposto recurso obrigatório para o Ministério Público, em 17 de fevereiro de 2014 (fls. 111 e 112), da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 31 de janeiro de 2014 (fls. 95 a 106), que julgou

«

improcedente a ação de oposição e, em consequência, ordeno[u] o prosseguimento do processo, pendente na Conservatória dos Registos Centrais, com vista ao reconhecimento à Ré do direito à aquisição da nacionalidade portuguesa e à realização dos competentes registos

»

(fl. 105). 2 - Notificado para o efeito, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal produziu alegações (fls. 119 a 143), tendo concluído o seguinte:

«

[...] 1 - O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta sentença de fls. 95 a 106, dos presentes autos, proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, “nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.os 1, alínea a) e 3,da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15.11, com as alterações introduzidas pelas Leis n.os 143/85, de 26.11, 85/89, de 01.09 e 13-A/98, de 26.02) [...]

»

2 - Este “recurso tem como objeto a expressa recusa de aplicação da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade e do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade, no sentido de que a simples verificação de facto da condenação do requerido nos citados autos pela prática de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja igual ou superior a 3 anos não importa, de per si e sem um concreto juízo de indesejabilidade, impedimento à aquisição/mu-dança de nacionalidade [...]”.

3 - Os parâmetros constitucionais cuja violação é invocada são identificados, no requerimento de interposição de recurso, nos seguintes termos:

O “[...] “princípio da proporcionalidade nos seus elementos necessidade e adequação”, por referência ao disposto nos artºs 3.º, n.º 2, 204.º e 277.º, todos da Constituição da República Portuguesa”.

4 - Para além destes, todavia, a douta decisão judicial impugnada desaplicou as identificadas normas da Lei da Nacionalidade e do Regulamento da Nacionalidade, essencialmente com fundamento na violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, do plasmado no n.º 4 do artigo 30.º da Lei Fundamental.

5 - Quanto à questão de fundo dir-se-á que, distintamente do julgado na douta decisão impugnada, que entendeu que o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, consagra, para além do direito de não perder a nacionalidade portuguesa de que se é titular, o direito, dos não nacionais, a adquirir ex novo, a nacionalidade portuguesa, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 599/05, decidiu que o direito enunciado naquele preceito se reporta, meramente, ao direito negativo, dos que já são nacionais portugueses, a exigirem do Estado que não atente contra o seu estatuto de cidadãos portugueses.

6 - No tocante aos cidadãos não portugueses que pretendam obter a cidadania portuguesa, são meros titulares da expectativa jurídica da obtenção desse estatuto, mediante o preenchimento de condições estabelecidas pelo legislador ordinário.

7 - Assim, contrariamente ao decidido pela douta decisão recorrida, não se nos afigura que as normas legais plasmadas na alínea b), do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e na alínea b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), violem, sem mais, o disposto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

8 - Discordamos, igualmente, do teor da douta decisão impugnada, no que concerne à invocada violação do parâmetro constitucional plasmado no artigo 30.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, por parte das normas acima mencionadas, na medida em que o fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, previsto na alínea b), do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e na alínea b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), não constitui uma pena ou uma medida de segurança, muito menos privativa ou restritiva da liberdade e, consequentemente, a previsão da norma constitucional é inaplicável ao caso vertente.

9 - Por fim, também no que concerne à discrepância das normas sob escrutínio com o disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa, se nos afigura, no caso concreto, não ocorrer a violação de tal parâmetro constitucional.

10 - Acontece, no caso vertente, distintamente do que ocorreu no aparentado Processo 757/13, em que o Mm.º Juiz “a quo”, apesar de munido de um considerável acervo factual respeitante à situação criminal do requerido, optou por desconsiderar esse capital circunstancial, formulando, mecanicamente, o seu juízo quanto à indesejabilidade da aquisição da nacionalidade portuguesa; que o juízo de subsunção da matéria factual ao direito, efetuado pela douta sentença impugnada, e que habilitou o tribunal recorrido a constatar a desconformidade constitucional invocada, tomou em consideração a totalidade dos factos apurados, respeitantes à condenação do recorrente, suscetíveis de fundamentar um juízo de desejabilidade ou indesejabilidade da aquisição da nacionalidade portuguesa, o que implicou uma concreta ponderação dos factos, afastando a aplicação mecânica das normas contestadas.

11 - Há que concluir, assim, que as normas contidas na alínea b), do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade e na alínea b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Regulamento da Nacionalidade, não violam o disposto no n.º 4, do artigo 30.º, da Constituição da República Portuguesa, devendo, em caso de dúvida, ser interpretadas no sentido de a sua aplicação não ser automática, constituindo um “mero índice ou cir-cunstância indiciadora da indesejabilidade a valorar perante cada situação concreta”.

12 - A não automaticidade do efeito atribuído à condenação criminal, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, evidencia a não violação do parâmetro de constitucionalidade plasmado no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.

Por força do explanado, não deverá ser declarada a inconstitucionalidade das normas contidas na alínea b), do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e na alínea b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa, devendo, consequentemente, ser concedido provimento ao presente recurso.

»

Posto isto, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação a) Delimitação da questão a apreciar 3 - Nos autos ora em apreciação, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa desaplicou as normas contidas na alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade (aprovada pela Lei 37/81, de 3 de outubro, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril) (doravante,

«

LN

»

) e na alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro) (seguidamente,

«

RNP

»

), por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 30.º, n.os 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa (

«

CRP

»

).

O teor das normas extraídas dos preceitos legais acima mencionados (na versão vigente à data da decisão judicial recorrida) é o seguinte:

Artigo 9.º da Lei da Nacionalidade Portuguesa
«

(Fundamentos)

Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:

[...] b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa;

[...]

»
Artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa
«

(Fundamento, legitimidade e prazo)

[...] 2 - Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou da adoção:

[...] b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa;

[...]

»

Ou seja, a questão ora em análise prende-se com a constitucionalidade da norma de acordo com a qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa.

Para o tribunal recorrido,

«

o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos é um efeito “necessário”, no sentido de automático, da condenação, na medida em que se impõe inexoravelmente ex vi legis na esfera jurídica do interessado, não deixando à Administração qualquer margem de apreciação e ponderação.

» é inconstitucional. Independentemente da questão de saber se esta é, ou não, a melhor interpretação da norma em causa - questão sobre a qual o Tribunal Constitucional não deve pronunciar-se, na medida em que a norma ou interpretação normativa questionadas devem ser consideradas, para efeitos da fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade, como um dado - a menos que se trate de uma interpretação que claramente a letra da lei não comporta e, nesse caso, pode socorrer-se do artigo 80.º, n.º 3, da LTC e proceder à interpretação da norma conforme à Constituição. Esta deve, todavia, ser uma situação excecional, uma vez que, em certo sentido, implica que o Tribunal Constitucional se substitua aos tribunais comuns na interpretação das normas jurídicas por aqueles aplicadas nas decisões concretas.

Ora, no caso em apreço, a interpretação das normas extraídas dos preceitos legais acima mencionados efetuada pela decisão recorrida é perfeitamente plausível em função da letra das mesmas.

Assim sendo, cumpre apreciar e decidir. Em primeiro lugar, deve referir-se que esta questão de constitucionalidade não é inteiramente nova no Tribunal Constitucional. Pelo contrário, questão com alguma similitude já foi objeto de decisão pelo Tribunal Constitucional, por exemplo, nos Acórdãos n.º 599/2005, de 2 de novembro, e n.º 106/2016, de 24 de fevereiro (disponíveis in http:

//www. tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).

Porém, a questão em apreciação nos presentes autos apresenta algumas especificidades que não permitem uma transposição nem da fundamentação nem da decisão constantes daqueles acórdãos.

Assim sendo, importa apreciar e decidir.

b) A apreciação da constitucionalidade da norma constante da alínea b) do artigo 9.º da LN e na alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do RNP 4 - Comecemos por analisar os argumentos do tribunal recorrido para chegar à inconstitucionalidade da referida norma e, nesse sentido, recusar a sua aplicação.

Em primeiro lugar, o tribunal a quo considerou que a norma em apreço violava o direito fundamental à aquisição da cidadania portuguesa, consagrado no n.º 1 do artigo 26.º da CRP.

Vejamos se lhe assiste razão. No aludido Acórdão 599/2005, o Tribunal Constitucional disse:

«

Embora o diploma básico se refira várias vezes à cidadania, nem sempre este conceito está tomado na aceção de cidadania portuguesa. Assim, é seguro que ao estabelecer o limite negativo dos efeitos da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (n.º 6.º do artigo 19.º) ou ao enunciar os direitos dos trabalhadores (artigo 59.º), o conceito surge aplicado num sentido de abranger quer os cidadãos nacionais quer os estrangeiros, atenta a sua radical imbricação com o princípio da dignidade humana do qual brotam diretamente esses direitos.

Por seu lado, no artigo 33.º, a Constituição distingue bem, a propósito dos institutos relativos à expulsão, extradição e direito de asilo, entre a cidadania nacional e a cidadania estrangeira.

Mas é no artigo 26.º, n.º 1, que a Constituição consagra o direito de cidadania portuguesa como direito fundamental ao dispor que “a todos são reconhecidos os direitos [...] à cidadania, [...]”.

Uma tal conclusão resulta evidente do confronto do disposto neste número com a prescrição constante do n.º 4 do mesmo artigo, segundo o qual “a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”.

Na verdade, “considerando que compete aos Estados, embora dentro dos parâmetros (cada vez mais apertados) do direito internacional, definir quem são os seus próprios cidadãos, seria descabido e internacionalmente irrelevante - senão mesmo tido como uma interferência inaceitável - que o direito interno de um Estado se pronunciasse sobre a obtenção, conservação ou perda de cidadanias de outros países” (jorge pereira da silva, Direitos de Cidadania e Direito à Cidadania, Observatório da Imigração, ACIME, Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, Lisboa, 2004, pp. 91).

Por outro lado, sendo certo que “o direito interno do Estado português, independentemente de se tratar de preceitos constitucionais ou de leis ordinárias, só pode dispor sobre o regime da sua própria cidadania”, não pode deixar de concluir-se que os preceitos em causa se referem à cidadania portuguesa (cf. jorge pereira da silva, op. cit., pp. 91)”.

[...] Ao legislador ordinário está pois cometida a tarefa de densificar o acesso à cidadania portuguesa, sendo que nessa densificação não poderão deixar de relevar essencialmente as relações que desvelem as situações de uma ligação efetiva entre o indivíduo e o Estado português e a comunidade nacional.

Face ao que vem sendo dito, tanto se pode olhar para a cidadania portuguesa do ponto de vista de quem já detém esse status, constituindo então um direito subjetivo, como do ângulo de quem não a detém, mas pretende têla, caso em que apenas se está perante uma simples expectativa jurídica.

A quem se encontra na primeira situação, a Constituição reconhece (artigo 26.º, n.os 1 e 4) o direito de não ser privado dele, de forma arbitrária. Mas a Lei fundamental, quer pela via da assunção do direito internacional sobre a matéria estabelecida no seu artigo 4.º, quer através do princípio da interpretação e da integração do sentido dos direitos fundamentais constante do artigo 16.º, de acordo com a regra relativa à nacionalidade afirmada no artigo 15.º da DUDH, não pode deixar de reconhecer a todos os demais a expectativa jurídica de adquirirem a nacionalidade portuguesa, observados que sejam determinados pressupostos que o legislador interno entende como expressando aquele vínculo de integração efetiva na comunidade nacional. Lembre-se aqui que este artigo 15.º dispõe que:

“1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade”.

E no mesmo sentido poderá ainda convocar-se o artigo 24.º, n.º 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), onde se prescreve que “toda a criança tem direito a adquirir uma na-cionalidade”, cuja força vinculativa, no direito interno português, se impõe, não só por força da referida remissão do artigo 4.º da Constituição, como por via do princípio da receção automática do direito internacional convencional, estabelecido no artigo 8.º, n.º 2, da Constituição.

Nesta última dimensão, o acesso à cidadania portuguesa repre-senta, assim, uma expectativa jurídica de obtenção de um direito cujo conteúdo é o direito subjetivo ou pessoal da cidadania portuguesa com todo o amplexo dos poderes e deveres com que o direito interno (constitucional e direito ordinário) o reveste.

Nesta perspetiva, o “direito de aceder” à cidadania portuguesa tem uma estrutura jurídica muito diferente do direito subjetivo de cidadania portuguesa. “Com efeito - escreve Jorge Pereira da Silva (op. cit., pp. 94) - ao passo que o primeiro é um direito positivo, exigindo dos poderes públicos uma atitude interventiva, no sentido de criar as condições jurídicas para a sua efetivação, o segundo é um direito negativo (se não mesmo uma simples garantia daquele primeiro), que visa a defesa contra as intervenções arbitrárias dos mesmos poderes públicos, exigindo-se destes, apenas, que não atentem contra o status dos cidadãos portugueses”

[...] “A definição dos pressupostos do “direito de aceder” à nacionalidade portuguesa surge deste modo como um postulado da sua natureza de direito fundamental, de conteúdo não completamente determinado a nível constitucional, e das referidas exigências formais e procedimentais. Não estando o conteúdo imediato desse direito densificado na Constituição, torna-se imprescindível e necessária uma “imposição legislativa concreta ao legislador ordinário das medidas necessárias para tornar exequíveis os preceitos constitucionais” (cf. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª edição, pp. 393).

Tendo em conta a natureza do vínculo em que se expressa a nacionalidade, tais pressupostos não poderão deixar de constituir índices de desvelação do tipo, natureza e intensidade da relação que concretamente intercede entre o indivíduo, o Estado português e a comunidade nacional em que se pretende integrar.

Por mor da força vinculativa da natureza de direito fundamental de que comunga o direito em causa, hão de essas exigências estabelecidas pelo legislador ordinário passar o crivo da adequação, necessidade e proporcionalidade, tendo em vista precisamente a preservação do núcleo essencial de tal direito que, por natureza, há de corresponder à evidenciação de um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa.

»

Ou seja, do excerto que se acaba de transcrever pode retirar-se que, para o Tribunal Constitucional, o direito de aceder à nacionalidade portuguesa, por tratar-se de uma expectativa jurídica - contrariamente à situação em que alguém já é titular dessa cidadania, caso em que estará em causa um direito subjetivo a não ser dela privado-, deixa ao legislador uma muito maior margem de liberdade de conformação no que toca ao estabelecimento de critérios de acesso, pelo que não se vislumbra, à partida, qualquer violação daquele preceito.

Em segundo lugar, o tribunal a quo considerou que a norma em apreciação violava o n.º 1 do artigo 30.º da CRP, nos termos do qual

«

[n]ão pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida

»

.

Ora, este preceito constitucional não é convocável no caso dos autos simplesmente porque não está em causa uma pena restritiva da liberdade.

Como é afirmado no Acórdão 106/2016 deste Tribunal:

«

19.2 Diga-se, desde já, que igualmente não se mostra ofendido o princípio enunciado no artigo 30.º, n.º 1, da Constituição, já que não encontra aqui aplicação.

Com efeito, quando a Constituição estabelece que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, permite identificar, como escopo principal da norma constitucional, o estabelecimento de limites (temporais definidos) às sanções criminais ou de outros ramos do direito sancionatório, dirigindo-se, assim, em primeira linha, ao legislador penal. Faltalhe, por isso, a virtualidade de poder ser tida como parâmetro para julgar da constitucionalidade das normas legais que estabelecem, entre os pressupostos para a aquisição da nacionalidade portuguesa, o requisito de não condenação por crime punível com pena acima de determinado limite (tal como configurado pelo legislador penal no respeito daquele comando constitucional), como é o caso.

Bem assim, não é neste princípio da definição e limitação temporal das penas (ou outras medidas punitivas), sobretudo em correspondência com o direito à liberdade pessoal, que encontramos o valor que possa ser desrespeitado pela relevância atribuída a um facto ocorrido há dezenas de anos (in casu a sentença criminal data de 1992 - cf. supra, 6) para o efeito de fundamentar a oposição à aquisição da nacionalidade no caso vertente. É que das normas em causa, mesmo assim interpretadas, não resulta a

«

perpetuidade

» da pena então determinada.

Ora, se a dimensão normativa que o julgador entendeu derivar das normas legais sob escrutínio e que justificou a sua desaplicação - deste modo obstando à não relevância do decurso do tempo e das consequências já produzidas por esse decurso na vigência do registo criminal do requerente da nacionalidade portuguesa - não merece censura à luz das disposições constitucionais apreciadas, é de questionar se tais normas (e sua dimensão normativa) ainda mereceriam censura em face de (outros) valores e princípios plasmados na Constituição, como o princípio da proporcionalidade (também invocado pela decisão ora recorrida - cf. III, 2.2., supra, 9.), enquanto princípio geral da atuação do poder publico (neste sentido, em especial, os Acórdãos deste Tribunal n.º 187/2001 e n.º 73/2009). Todavia, tal apreciação pode afigurar-se desprovida de utilidade se for possível descortinar ainda nas normas em causa um sentido interpretativo consonante com a Constituição e com o caráter jusfundamental do direito à nacionalidade, ínsito na Lei Fundamental, acima mencionado, e também decorrente das normas de Direito Internacional recebidas pelo Ordenamento jurídicoconstitucional nacional - o que se analisa de seguida.

»

Em terceiro lugar, o tribunal recorrido invocou a violação da norma constante do n.º 4 do artigo 30.º da CRP, de acordo com a qual

«

[n]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos

»

.

Embora se possam colocar algumas dúvidas quanto à aplicação desta norma, no caso em apreço, porque não está aqui em causa a aplicação de uma pena, mas sim a oposição ao prosseguimento de um processo com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa, a verdade é que resulta genericamente da jurisprudência do Tribunal Constitucional que da aplicação de uma pena não podem decorrer efeitos que impliquem, de uma forma automática, a perda de direitos civis, políticos ou profissionais, o que acaba por se repercutir no caso em apreço.

Conforme resulta da jurisprudência constitucional [ver, por exemplo, Acórdãos n.os 327/99, de 26 de maio, 176/00, de 22 de março, e n.º 154/04, de 14 de março (disponíveis in http:

//www.tribunalconstitu-cional.pt/tc/acordaos/), os efeitos da pena estão submetidos não apenas aos princípiosgarantia das penas e medidas de segurança, como também ao princípio da proporcionalidade,

«

no sentido de que qualquer

«

efeito (acessório) da pena

» pressupõe, por um lado, uma certa gravidade do facto praticado e, por outro, uma fundada conexão entre o efeito (o direito que deve ser declarado perdido) que se quer determinar e o facto criminoso praticado. Nestes termos, seria inconstitucional uma lei que, p. ex., privasse do direito de voto quem fosse condenado por um qualquer crime
»

(cf. Damião da Cunha,

«

Anotação ao artigo 30.º

»

, in Jorge Mi-randa/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra:

Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, p. 686).

O disposto no n.º 4 do artigo 30.º da CRP implica, portanto, uma proibição de o legislador consagrar critérios legais nos termos dos quais decorra, de uma forma automática, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, em virtude de uma pena aplicada.

Mais concretamente, naquilo que importa para o presente caso, se não resultam dúvidas de que é a própria Constituição que comete ao legislador a tarefa de concretizar o direito a aceder à cidadania portuguesa, o que foi feito desde logo pela Lei da Nacionalidade, e que cabe ao legislador, nessa tarefa, a ponderação das conexões relevantes com o Estado português e os critérios que lhes presidem, o legislador está igualmente impedido de criar critérios legais de acesso ao vínculo jurídico da cidadania portuguesa que impliquem, em virtude de uma pena aplicada, a perda automática de direitos civis, profissionais ou políticos.

Por outras palavras, os eventuais critérios legais relacionados com a aplicação de penas - como o que decorre da alínea b) do artigo 9.º da LN e na alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do RNP - que sejam criados em sede de acesso à cidadania portuguesa devem permitir que o aplicador do Direito possa ponderar as circunstâncias do caso concreto, de modo a que da aplicação de uma pena não resulte a perda automática de um direito civil.

Ora, em face da proibição constitucional de perda automática de direitos civis em virtude da aplicação de uma pena, o julgador, na apreciação do preenchimento do critério de acordo com o qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, não pode estar impedido, em toda e qualquer situação, de valorar as demais circunstâncias associadas à condenação pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, designadamente a efetiva execução da pena aplicada, o tempo que mediou entre a prática do crime e a decisão proferida, a eventual reincidência ou a perseverança na prática criminosa, a ocorrência da extinção da pena, a dispensa de pena.

Nestes termos, se é indiscutível que a tarefa de enunciação dos critérios e pressupostos para a atribuição e aquisição da cidadania está constitucionalmente reservada ao legislador parlamentar (cf. alínea f) do artigo 164.º da CRP), mesmo que este resolva consagrar um critério objetivo (partindo da condenação por crimes cuja moldura penal se fixou a partir de determinado limite), que resulte da sua própria ponderação (por via geral e abstrata), esse critério também não pode violar o disposto no n.º 4 do artigo 30.º da CRP. Pode suceder que o critério estabelecido, por mais objetivo que seja, se venha a mostrar sobre ou subinclusivo à luz do caso concreto, abrangendo situações que o legislador não terá considerado ou não abrangendo situações que este certamente terá considerado.

Do que acaba de se dizer, decorre que a norma constante da alínea b) do artigo 9.º da LN e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do RNP dificilmente passará o crivo da conformidade com a Constituição.

Se é certo que a norma constante da alínea b) do artigo 9.º da LN e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do RNP admite outras interpretações, como, por exemplo, a de se considerar que quando a norma se refere a fundamentos de oposição não está a definir os fundamentos de indeferimento do pedido e, como tal, a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão máxima igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa, não acarretaria automaticamente o indeferimento do pedido, a verdade é que a interpretação da norma efetuada pelo juiz a quo, nos presentes autos, corresponde a uma interpretação perfeitamente possível, pelo que a inconstitucionalidade da norma deve ser apreciada com o sentido com o qual foi aplicada (ou melhor, não aplicada).

Nos presentes autos, a recorrida foi condenada por um crime de ofensa à integridade física simples, tendo, contudo, sido dispensada de pena.

De acordo com o artigo 143.º, n.º 3, do CP, no âmbito do crime de ofensa à integridade física simples,

«

[o] tribunal pode dispensar de pena quando:

a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qualquer dos contendores agrediu primeiro; ou b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.

»

.

A figura da dispensa de pena implica que o legislador admite que a conduta em causa é suscetível de dar lugar à não punibilidade, pelo que não se verificam os imperativos de prevenção (geral e especial) que subjazem às penas.

Vai justamente neste sentido o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei da Identificação Criminal (aprovada pela Lei 37/2015, de 5 de maio), nos termos do qual as decisões de dispensa de pena inscritas no registo criminal cessam a sua vigência decorridos 5 (cinco) anos sobre o trânsito em julgado ou sobre a execução.

Assim sendo, o legislador parece ter desvalorizado a situação em que o juiz recorre ao mecanismo da dispensa de pena, o que significa que o critério negativo de aquisição da nacionalidade portuguesa que consiste na

«

condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa

» terá de ser ponderado concretamente, à luz do crivo permitido pelo princípio da proporcionalidade, o que não se afigura possível na interpretação segundo a qual aquela condenação conduz automaticamente ao indeferimento do pedido de aquisição da nacionalidade. Em suma, a norma que consagra como fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos não deixa qualquer margem de ponderação ao julgador. Por força do n.º 4 do artigo 30.º da CRP, não podem deixar de ser tidas em consideração as circunstâncias do caso concreto em que o próprio legislador desvalorizou os ilícitos penais em causa, como acontece precisamente com aqueles em que se permite a dispensa de pena.

Note-se que, nos casos de dispensa de pena, não deixa de existir um juízo de censurabilidade jurídicopenal, ainda que não lhe seja associada qualquer sanção, pelo que estes casos se devem considerar abrangidos pelo artigo 30.º, n.º 4 da CRP.

Em conclusão, a norma que se extrai da alínea b) do artigo 9.º da LN e na alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do RNP segundo a qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, quando foi aplicado o mecanismo da dispensa de pena, é inconstitucional.

III. Decisão Em face do exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional a norma que se extrai da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei 37/81, de 3 de outubro, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro, segundo a qual constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa, quando foi aplicado o mecanismo da dispensa de pena, por violação do artigo 30.º, n.º 4 da CRP. e, em consequência, b) Não conceder provimento ao recurso do Ministério Público.

Sem custas judiciais, por não serem legalmente devidas. Lisboa, 19 de maio de 2016. - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Pedro Machete (vencido conforme declaração que junto) - Joaquim de Sousa Ribeiro.

ESCOLA SUPERIOR NÁUTICA INFANTE D. HENRIQUE

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2631259.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1981-10-03 - Lei 37/81 - Assembleia da República

    Aprova a Lei da Nacionalidade.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2006-04-17 - Lei Orgânica 2/2006 - Assembleia da República

    Altera a Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro (Lei da Nacionalidade) e republica-a em anexo.

  • Tem documento Em vigor 2006-12-14 - Decreto-Lei 237-A/2006 - Ministério da Justiça

    Aprova o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, publicado em anexo, e introduz alterações ao Decreto-Lei n.º 322-A/2001, de 14 de Dezembro, assim como ao Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado por ele aprovado.

  • Tem documento Em vigor 2015-05-05 - Lei 37/2015 - Assembleia da República

    Estabelece os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento da identificação criminal, transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro 2009/315/JAI, do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, relativa à organização e ao conteúdo do intercâmbio de informações extraídas do registo criminal entre os Estados membros, e revoga a Lei n.º 57/98, de 18 de agosto

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2018-09-18 - Acórdão do Tribunal Constitucional 376/2018 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 22.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio (Estabelece o regime do exercício da atividade de segurança privada), e, quanto à remissão para a mesma feita, das normas constantes dos n.os 2, 3 e 4 do mesmo artigo, por violação do n.º 1 do artigo 47.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição

Aviso

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