Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 403/2009
Processos n.os 111/09, 116/09 e 320/09
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Requerentes. - O Provedor de Justiça dirigiu, em 10 de Fevereiro de 2009, ao Tribunal Constitucional, um requerimento pedindo a apreciação e declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas contidas nos artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei 39/80, de 5 de Agosto, na redacção que, por último, lhe foi conferida pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro (de agora em diante, EPARAA).Logo depois, no dia 12 de Fevereiro de 2009, um grupo de Deputados à Assembleia da República apresentou outro requerimento, pedindo, agora, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no artigo 114.º do EPARAA.
Finalmente, no dia 29 de Abril de 2009, o Provedor de Justiça dirigiu novo requerimento ao Tribunal pedindo a apreciação e declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas contidas nos artigos 4.º, n.º 4, 1.ª parte, 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), 34.º, alínea m), 119.º, n.os 1 a 5, 124.º, n.º 2, e 140.º, n.º 2, do EPARAA.
2 - Objecto dos pedidos. - O teor das normas do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (na redacção introduzida pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro) que são, aqui, questionadas é o seguinte:
«Artigo 4.º
Símbolos da Região
......................................................................4 - A bandeira da Região é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região e dos órgãos de governo próprio ou de entidades por eles tuteladas, bem como nas autarquias locais dos Açores.
Artigo 7.º
Direitos da Região
1 - São direitos da Região, para além dos enumerados no n.º 1 do artigo 227.º da Constituição:......................................................................
i) O direito a uma política própria de cooperação externa com entidades regionais estrangeiras, nomeadamente no quadro da União Europeia e do aprofundamento da cooperação no âmbito da Macaronésia;
......................................................................
j) O direito a estabelecer acordos de cooperação com entidades regionais estrangeiras e a participar em organizações internacionais de diálogo e cooperação inter-regional;
......................................................................
o) O direito a criar provedores sectoriais regionais;
......................................................................
Artigo 34.º
Competência política da Assembleia Legislativa
Compete à Assembleia Legislativa:
......................................................................
m) Aprovar acordos de cooperação com entidades regionais ou locais estrangeiras que versem sobre matérias da sua competência ou sobre a participação em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter-regional;
......................................................................
Artigo 47.º
Discussão e votação
......................................................................4 - Carecem de maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções:
......................................................................
c) A eleição de provedores sectoriais regionais.
Artigo 67.º
Outras matérias
Compete ainda à Assembleia Legislativa legislar nas seguintes matérias:......................................................................
d) A criação e estatuto dos provedores sectoriais regionais;
......................................................................
Artigo 101.º
Incompatibilidades
1 - São incompatíveis com o exercício do mandato de deputado à Assembleia Legislativa os seguintes cargos ou funções:......................................................................
n) Provedores sectoriais regionais;
......................................................................
Artigo 114.º
Audição pelo Presidente da República sobre o exercício de competências
políticas
Os órgãos de governo regional devem ser ouvidos pelo Presidente da República antes da dissolução da Assembleia Legislativa e da marcação da data para a realização de eleições regionais ou de referendo regional, nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição.
Artigo 119.º
Audição qualificada
1 - A Assembleia da República e o Governo da República adoptam o procedimento de audição qualificada, nos seguintes casos:a) Iniciativas legislativas susceptíveis de serem desconformes com qualquer norma do presente Estatuto;
b) Iniciativas legislativas ou regulamentares que visem a suspensão, redução ou supressão de direitos, atribuições ou competências regionais, nos termos do n.º 2 do artigo 14.º;
c) Iniciativas legislativas destinadas à transferência de atribuições ou competências da administração do Estado para as autarquias locais dos Açores, nos termos do artigo 135.º 2 - O procedimento de audição qualificada inicia-se com o envio para o órgão de governo próprio competente da proposta ou projecto de acto acompanhada de uma especial e suficiente fundamentação da solução proposta, à luz dos princípios da primazia do Estatuto, do adquirido autonómico e da subsidiariedade.
3 - No prazo indicado pelo órgão de soberania em causa, que nunca pode ser inferior a 15 dias, o órgão de governo próprio competente emite parecer fundamentado.
4 - No caso de o parecer ser desfavorável ou de não aceitação das alterações propostas pelo órgão de soberania em causa, deve constituir-se uma comissão bilateral, com um número igual de representantes do órgão de soberania e do órgão de governo próprio, para formular, de comum acordo, uma proposta alternativa, no prazo de 30 dias, salvo acordo em contrário.
5 - Decorrendo o prazo previsto no número anterior, o órgão de soberania decide livremente.
Artigo 124.º
Relações externas com outras entidades
......................................................................
2 - No âmbito do número anterior, a Região pode, através do Governo Regional, estabelecer ou aceder a acordos de cooperação com entidades de outros Estados.
Artigo 130.º
Provedores sectoriais regionais
1 - A Região pode criar provedores sectoriais regionais que, respeitando as atribuições do Provedor de Justiça e em coordenação com este, recebam queixas dos cidadãos por acções ou omissões de órgãos ou serviços da administração regional autónoma, de organismos públicos ou privados que dela dependam, de empresas privadas encarregadas da gestão de serviços públicos regionais ou que realizem actividades de interesse geral ou universal no âmbito regional.2 - Os provedores sectoriais regionais podem dirigir as recomendações que entenderem às entidades referidas no número anterior e exercer as restantes competências que lhes venham a ser atribuídas por decreto legislativo regional.
3 - Os provedores sectoriais regionais são eleitos pela Assembleia Legislativa e têm um estatuto de independência.
4 - A criação de um provedor sectorial regional não envolve qualquer restrição ao direito de queixa ao Provedor de Justiça ou às suas competências.
Artigo 140.º
Alteração do projecto pela Assembleia da República
......................................................................
2 - Os poderes de revisão do Estatuto pela Assembleia da República estão limitados às normas estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas.» 3 - Fundamentação dos pedidos:
3.1 - O Provedor de Justiça fundamentou o pedido de declaração da inconstitucionalidade dos artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º do EPARAA, em suma, nos seguintes termos:
O artigo 7.º, n.º 1, alínea o), do Estatuto, consagra o direito da Região de «criar provedores sectoriais regionais».
Nos termos do artigo 130.º, estes provedores receberão «queixas dos cidadãos por acções ou omissões de órgãos ou serviços da administração regional autónoma, de organismos públicos ou privados que dela dependam, de empresas privadas encarregadas da gestão de serviços públicos regionais ou que realizem actividades de interesse geral ou universal no âmbito regional». Nos termos do mesmo artigo, os provedores sectoriais podem dirigir as recomendações que entenderem às entidades referidas e exercer as restantes competências que lhes venham a ser atribuídas por decreto legislativo regional.
O legislador quis instituir, ao nível regional, instituições com as mesmas características e funções que o órgão consagrado no artigo 23.º da Constituição: o Provedor de Justiça.
Ora, ao permitir a criação de provedores sectoriais regionais, o Estatuto ignora o estatuto constitucional do Provedor de Justiça. Com a criação dos provedores sectoriais regionais perde-se a visão sistémica da defesa não jurisdicional dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, subverte-se a função preventiva global de ocorrência de injustiças e ilegalidades nas diversas administrações, deturpa-se o papel unitário de guardião dos direitos e interesses legítimos de todos e de cada um dos portugueses por parte do Provedor de Justiça e retira-se, sem necessidade e contra a intenção legislativa, efectividade aos direitos.
Termina o Provedor de Justiça pedindo a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
3.2 - O grupo de Deputados à Assembleia da República, no requerimento que dirigiu a este Tribunal, fundamentou o seu pedido de declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 114.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, nos seguintes termos:
A Lei 2/2009, de 12 de Janeiro, adita ao Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores o artigo 114.º, relativo à «Audição pelo Presidente da República sobre o exercício de competências políticas».
O artigo 114.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores estabelece o que se segue:
«Os órgãos de governo regional devem ser ouvidos pelo Presidente da República antes da dissolução da Assembleia Legislativa e da marcação da data para a realização de eleições regionais ou de referendo regional, nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição.» Esta norma vem impor ao Presidente da República novas obrigações que a Constituição não prevê.
Na verdade, de acordo com o artigo 234.º, n.º 1, da CRP: «As Assembleias Legislativas das regiões autónomas podem ser dissolvidas pelo Presidente da República, ouvido o Conselho de Estado e os partidos nelas representados».
De igual forma, o artigo 133.º, alínea j), da Lei Fundamental estabelece que:
«Compete ao Presidente da República, relativamente a outros órgãos:
......................................................................
j) Dissolver as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nela representados [...]» A Constituição só impõe, portanto, o dever de audição do Conselho de Estado e dos partidos representados na Assembleia Legislativa respectiva. Só estes, e nenhum outro órgão ou entidade, devem ser ouvidos, nos termos constitucionais, pelo Presidente da República, em caso de dissolução de Assembleia Legislativa.
Sucede, porém, que o novo artigo 114.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores vem impor ao Presidente da República outras audições, para além das constitucionalmente exigidas, no caso de dissolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
Efectivamente, tal norma obriga a que, em caso de dissolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, o Presidente da República ouça, para além do Conselho de Estado e dos partidos representados na Assembleia Legislativa, os próprios órgãos de governo regional, ou seja, no caso, o Governo Regional dos Açores e a própria Assembleia Legislativa dos Açores, cuja dissolução estará em causa.
Tal norma cria, assim, obrigações acrescidas ao Presidente da República, sujeitando-o a mais deveres de audição, no que respeita à dissolução da Assembleia Legislativa dos Açores, do que as previstas na Constituição, desfigurando, assim, o equilíbrio de poderes resultante da Constituição.
Ora, tal não é possível. Nos termos do artigo 110.º, n.º 2, da Constituição, «A formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os definidos na Constituição.». O exercício dos poderes do Presidente da República é realizado no quadro da Constituição (cf. artigo 110.º, n.º 2, da CRP), não podendo ficar à mercê da contingência da legislação ordinária aprovada por maiorias políticas circunstanciais.
Não pode, assim, uma lei ordinária restringir o exercício das competências políticas do Presidente da República definidas na Constituição, impondo, em caso de dissolução da Assembleia Legislativa dos Açores, um novo trâmite que não tem cobertura constitucional: a audição dos «órgãos de governo regional».
Acresce referir que a solução normativa contida no artigo 114.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores é absurda. O Presidente da República passa a estar sujeito a mais exigências no que toca à dissolução da Assembleia Legislativa dos Açores do que as previstas para a dissolução da Assembleia da República.
Para dissolver a Assembleia da República não tem de consultar o órgão, mas para dissolver a Assembleia Legislativa dos Açores já terá de o fazer [cf. artigo 133.º, alínea e), da Constituição da República Portuguesa].
Além disso, é incompreensível a audição autónoma do Governo Regional quando o Presidente de tal órgão tem já assento no Conselho de Estado e é aí ouvido pelo Presidente da República e também não se compreende a audição autónoma da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores quando, nos termos constitucionais, o Presidente da República já ouve os partidos nela representados.
O artigo 114.º consubstancia uma redução dos poderes do Presidente da República e uma alteração no equilíbrio de poderes que é manifestamente inconstitucional.
Em sentido idêntico se pronunciou, aliás, em caso similar, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 402/08, a propósito da norma do n.º 3 do artigo 114.º do Decreto da Assembleia da República n.º 217/X.
O artigo 114.º, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, é, portanto, inconstitucional por violação do disposto no artigo 110.º, n.º 2, conjugado com os artigos 234.º, n.º 1, e 133.º, alínea j), da Constituição da República Portuguesa.
3.3 - No segundo requerimento que dirigiu ao Tribunal, o Provedor de Justiça pediu a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 4.º, n.º 4, 1.ª parte, 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), 34.º, alínea m), 119.º, n.os 1 a 5, 124.º, n.º 2, e 140.º, n.º 2, do EPARAA, nos termos e com os fundamentos que, em síntese, se seguem:
3.3.1 - O artigo 4.º, n.º 4, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores determina que «a bandeira da Região é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região e dos órgãos de governo próprio ou de entidades por eles tuteladas, bem como nas autarquias locais dos Açores».
Esta norma impõe, na prática, que a bandeira da Região seja hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania que estejam situadas na Região.
Os órgãos de soberania representam a Nação e o todo nacional. Deste modo, não faz sentido que a utilização da bandeira da Região seja imposta nas instalações deles dependentes, apenas por força da sua localização regional. Trata-se, aliás, de matéria comum às duas Regiões Autónomas, e que não se afigura apresentar especificidades em cada uma delas.
É certo que o lugar a ser ocupado pela bandeira regional quando, eventualmente, hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região teria de respeitar o «lugar de honra» que é devido à Bandeira Nacional. E é, também, naturalmente, aceitável que os órgãos de soberania na Região, por sua vontade e em momentos específicos, de celebração regional (nomeadamente, nos feriados regionais), possam hastear a bandeira da Região juntamente com a Bandeira Nacional.
Já não parece, porém, aceitável, pela própria natureza das coisas, que se imponha, aos órgãos de soberania, a utilização obrigatória de um símbolo regional.
A imposição, aos órgãos de soberania, que decorre do artigo 4.º, n.º 4, 1.ª parte, do Estatuto, é violadora do princípio da unidade e da indivisibilidade da soberania, e das ideias de unidade nacional e de integridade do território que lhe estão associadas, sendo certo que, conforme decorre, explicitamente, do artigo 225.º, n.º 3, da Constituição, a autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado.
Tal princípio e seus corolários são institucionalmente representados, na Região, pelo exercício dos poderes pelos órgãos de soberania, como órgãos superiores do Estado (artigo 110.º, n.º 1, da Constituição), e simbolicamente pela Bandeira Nacional (artigo 11.º da Constituição).
Ademais, o artigo 227.º, n.º 1, da Constituição, não abre a porta à normação pelos estatutos regionais de matérias que extravasem o que nele se consente, pelo que também por essa razão o artigo 4.º, n.º 4, do Estatuto, na parte questionada, viola o disposto no artigo 227.º, n.º 1, da Constituição.
Com efeito, o artigo 4.º, n.º 4, do Estatuto, impõe procedimentos a órgãos de soberania e a órgãos do Estado com instalações na Região, logo, interfere com os poderes destes, o que não cabe, manifestamente, no âmbito próprio da autonomia regional.
Assim sendo, a imposição, aos órgãos de soberania, do hastear da bandeira regional revela-se violadora dos princípios da soberania, da unidade e integridade territoriais, e da protecção constitucional conferida à Bandeira Nacional como símbolo desses mesmos princípios.
3.3.2 - Também o artigo 7.º, nas suas alíneas i) e j), ao conferir à região «o direito a uma política própria de cooperação externa com entidades regionais estrangeiras», e os artigos 34.º, alínea m), e 124.º, n.º 2, ao permitirem que a Assembleia Legislativa Regional e o Governo Regional estabeleçam acordos de cooperação com entidades estrangeiras são inconstitucionais.
Os mencionados dispositivos legais visam concretizar o conteúdo da norma estabelecida no artigo 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição, que inclui, no elenco dos poderes das regiões autónomas, o de estabelecerem cooperação com outras entidades regionais estrangeiras e participarem em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter-regional, de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa.
Contudo, o Estatuto omite a parte final da norma constitucional mencionada, no segmento que determina que os poderes das regiões autónomas se exerçam «de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa».
As referidas normas do Estatuto não contêm meros arranjos formais, que permitam, através de uma leitura integrada com a alínea u) do n.º 1 do artigo 227.º da Lei Fundamental, uma interpretação das mesmas conforme ao texto constitucional.
A omissão do segmento final da norma constitucional com a concomitante referência, no texto do Estatuto, a um «direito a uma política própria» visam, conjugadamente, introduzir uma ideia materialmente distinta e, conforme se concluirá, incompatível com a orientação da Constituição sobre a matéria.
O Estatuto pretende permitir o exercício, pela Região, dos poderes em causa de estabelecer acordos de cooperação com entidades estrangeiras, segundo uma política própria, independentemente da existência de orientações, quanto à matéria, definidas pelos órgãos de soberania.
Na prática, e se o exercício de tais poderes não implica, naturalmente, o cumprimento de condutas impositivas por parte dos órgãos de soberania, terá, no entanto, de ser feito de forma vinculada relativamente às orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa, e não independentemente, ou mesmo em contradição, com aquelas.
Ora os poderes das regiões devem ser exercidos nos quadros do Estado unitário e nunca ao arrepio das orientações definidas pelos órgãos de soberania em matéria de política externa.
3.3.3 - São, também, inconstitucionais as normas do artigo 119.º, n.os 1 a 5, que estabelecem um procedimento de audição qualificada.
O artigo 119.º do Estatuto vincula a Assembleia da República e o Governo da República à adopção de um procedimento que o legislador qualifica como de «audição qualificada» dos órgãos de governo próprio da Região, nas situações que aparecem discriminadas nas três alíneas do respectivo n.º 1 - iniciativas legislativas susceptíveis de serem desconformes com qualquer norma do Estatuto, iniciativas legislativas ou regulamentares que visem a suspensão, redução ou supressão de direitos, atribuições ou competências regionais e iniciativas legislativas destinadas à transferência de atribuições ou competências da administração do Estado para as autarquias locais dos Açores.
O procedimento, dito de «audição qualificada», pautado pelo conjunto de regras contidas nos n.os 2 a 5 do artigo, não pode, em bom rigor, ser materialmente qualificado como de audição, contendo antes as referidas normas um procedimento que constitui uma verdadeira negociação, de carácter bilateral, entre os órgãos de soberania mencionados e os órgãos de governo próprio da Região.
É certo que, decorrendo esse prazo, o órgão de soberania decide livremente (n.º 5 do mesmo artigo). Mas, na prática, a referida solução contém uma verdadeira limitação, de natureza temporal, ao exercício das competências legislativas e regulamentares por parte dos órgãos de soberania.
O artigo 229.º, n.º 2, estabelece um dever de audição, mas esse dever não pode obrigar os órgãos de soberania a aguardar pelo parecer da região para além do prazo concretamente razoável.
É notório que o legislador constituinte quis distinguir as formas de audição no âmbito das iniciativas legislativas em geral (artigo 229.º, n.º 2) e para efeitos de elaboração ou de alteração dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas (artigo 226.º, n.º 2), pretendendo inequivocamente um procedimento mais exigente nesta última situação, e só nesta situação.
O procedimento de audição qualificada do artigo 119.º do Estatuto imposto, para as matérias elencadas no seu n.º 1, independentemente da situação concreta e da ponderação casuística da necessidade ou não de uma segunda ou mais audições, consubstancia um procedimento materialmente distinto da audição que tem como consequência que o órgão de soberania não possa, no período temporal estabelecido, exercer as suas competências ao nível legislativo e regulamentar.
Não podendo, naturalmente, aceitar-se que o procedimento de audição pretendido pelo legislador constituinte, com tradução na previsão do artigo 229.º, n.º 2, possa comportar essa limitação de poderes dos órgãos de soberania, as normas constantes dos n.os 1 a 5 do artigo 119.º do Estatuto são materialmente inconstitucionais no confronto com o referido preceito da Lei Fundamental.
3.3.4 - É, ainda, inconstitucional a norma do artigo 140.º, n.º 2, do Estatuto.
O artigo 140.º, n.º 2, do Estatuto, determina que «os poderes de revisão do Estatuto pela Assembleia da República estão limitados às normas estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas».
Apesar de a Constituição reservar para a Assembleia Legislativa da Região a iniciativa legislativa tendente à revisão do Estatuto, não decorre do texto constitucional, em momento algum, que a Assembleia da República - órgão que, nos termos constitucionais, tem competência para aprovar o Estatuto e as suas respectivas revisões [artigos 161.º, alínea b), e 226.º, n.os 1 a 5, da Lei Fundamental] -, fique limitada na sua competência legislativa à aprovação das normas do Estatuto sobre as quais incida a prévia iniciativa da Assembleia Legislativa.
Ou seja, a reserva de iniciativa legislativa da Assembleia Legislativa não implicará, nem nos termos da Constituição, nem por natureza, a vinculação da Assembleia da República a uma espécie de «princípio do pedido», que é o que acontece com a previsão do artigo 140.º, n.º 2, do Estatuto.
A regra que se extrai da norma do artigo 140.º, n.º 2, do Estatuto, não decorre do texto constitucional, e coloca a Assembleia da República sob a possibilidade de ficar indefinidamente, e contra a sua vontade, refém das soluções legais consagradas, em determinado momento histórico, nas leis estatutárias das regiões autónomas.
E se tal solução se mostra de alcance compreensível quando estão em causa normas reguladoras de matérias que, de uma forma ou outra, servem o enquadramento e aprofundamento da autonomia político-administrativa da Região, a mesma solução já será inaceitável do ponto de vista constitucional não só quando estão em causa normas que, pese embora constando do Estatuto, não têm essa função específica, como quando estão em causa normas que disciplinam matérias integradas na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, ou seja, normas que claramente extravasem os poderes sobre os quais - e apenas sobre os quais - devem incidir os estatutos das regiões autónomas (artigo 227.º, n.º 1, da Constituição).
Ora, o actual Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores - que pretende ser, na prática, uma verdadeira «Constituição» da Região - contém várias normas que não têm tal função específica, e que, inclusivamente, regulam matérias inseridas no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
Um dos exemplos que poderá ser apontado é o das normas dos artigos 22.º e 23.º do Estatuto, que dispõem sobre o domínio público da Região e do Estado na Região, e, consequentemente, sobre matéria reservada da Assembleia da República [alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição].
A Assembleia da República tem de poder aprovar, alterar ou suprimir normas respeitantes às matérias que estejam na sua esfera de competência reservada (e não respeitem portanto à autonomia regional), pelo menos no momento em que a Região decide desencadear um procedimento de revisão do Estatuto.
A solução compromete a possibilidade de alcançar soluções de conjunto que representem o equilíbrio de interesses - possível e desejável - entre o órgão (regional) de iniciativa e o órgão (de soberania) decisor.
Tem, além disso, como pressuposto enquadrador o respeito pelo princípio do não retrocesso quanto ao grau lícito de autonomia adquirido pelas regiões autónomas. A Assembleia da República ficaria, na prática, de «mãos atadas» para legislar em matérias que lhe estão desde logo constitucionalmente reservadas. O único expediente que restaria à Assembleia da República para contornar a situação seria a via da revisão constitucional, meio que manifestamente se afigurará desproporcionado aos fins que visa atingir.
A reserva de iniciativa dos órgãos legislativos regionais é uma reserva de impulso do procedimento legislativo, nas matérias próprias da autonomia regional. Não impede os órgãos de soberania de legislarem sobre as matérias que são da sua competência reservada, ainda que constantes dos Estatutos.
O Estatuto contém, na norma do respectivo artigo 140.º, n.º 2, uma verdadeira limitação da competência legislativa da Assembleia da República, em sede de revisão do Estatuto, que não encontra suporte, explícito ou implícito, em nenhum momento do texto constitucional.
Consagra, pois, uma violação aos princípios e normas que se podem extrair conjugadamente dos artigos 161.º, alínea c), e 226.º, n.os 1 a 4, da Constituição.
4 - Resposta do órgão autor da norma. - Notificado para se pronunciar, querendo, sobre os pedidos, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos, entregando cópia dos diversos documentos relativos aos trabalhos preparatórios da Lei 2/2009.
5 - Despacho de junção. - Dada a conexão entre os pedidos, todos eles relativos à Lei 2/2009, de 12 de Janeiro, que aprovou a terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, o Presidente do Tribunal ordenou, por despacho, a junção dos autos relativos aos três processos.
6 - Debate do memorando. - Elaborado pelo Presidente do Tribunal Constitucional o memorando a que se refere o artigo 63.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), e submetido o mesmo a debate, cumpre dar corpo à decisão em função da orientação fixada pelo Tribunal sobre as questões a resolver.
II - Fundamentação
7 - Questões decidendas. - As questões de constitucionalidade postas ao Tribunal reportam-se às seguintes temáticas:A) Utilização da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania que estejam situadas na Região (artigo 4.º, n.º 4, 1.ª parte);
B) Poderes da Região em matéria de política externa [artigos 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), 34.º, alínea m), e 124.º, n.º 2];
C) Criação de provedores sectoriais regionais [artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º];
D) Audição dos órgãos regionais pelo Presidente da República, em caso de dissolução da Assembleia Legislativa Regional (artigo 114.º);
E) Admissibilidade de um procedimento especial de audição qualificada (artigo 119.º, n.os 1 a 5);
F) Limitação dos poderes de revisão do Estatuto às normas estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas (artigo 140.º, n.º 2).
Passemos a conhecer de cada uma delas, sendo certo que, embora em relação à alínea D) os requerentes formulem, a final, o pedido de declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 114.º do EPARAA sem qualquer restrição, resulta da respectiva fundamentação que, apenas, questionam essa norma, na parte em que se refere à dissolução da Assembleia Legislativa, devendo, consequentemente, considerar-se o pedido limitado a este segmento da norma.
A) Utilização da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania que estejam situadas na Região (artigo 4.º, n.º 4):
O artigo 4.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei 39/80, de 5 de Agosto, ficou, após a terceira revisão, operada pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro, com a seguinte redacção:
«Artigo 4.º
Símbolos da Região
1 - A Região tem bandeira, brasão de armas, selo e hino próprios, aprovados pela Assembleia Legislativa.2 - Aos símbolos da Região são devidos respeito e consideração por todos.
3 - A bandeira e o hino da Região são utilizados conjuntamente com os correspondentes símbolos nacionais e com a salvaguarda da precedência e do destaque que a estes são devidos.
4 - A bandeira da Região é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região e dos órgãos de governo próprio ou de entidades por eles tuteladas, bem como nas autarquias locais dos Açores.
5 - A utilização dos símbolos da Região é regulada por decreto legislativo regional.» A redacção, que constava da anterior versão do mesmo Estatuto e que foi aprovada pelo artigo 2.º da Lei 9/87, de 26 de Março, era a seguinte:
«Artigo 6.º
Símbolos da Região
1 - A Região tem bandeira, brasão de armas, selo e hino próprios, aprovados pela Assembleia Legislativa Regional.2 - Os símbolos regionais são utilizados nas instalações e actividades dependentes dos órgãos de governo próprio da Região ou por eles tuteladas.
3 - Os símbolos regionais são utilizados conjuntamente com os correspondentes símbolos nacionais e com salvaguarda da precedência e do destaque que a estes são devidos, nos termos da lei.» A comparação entre estas duas disposições sugere as considerações que se seguem.
A redacção do EPARAA, aprovada pela Lei 2/2009, mantém a afirmação de que a Região Autónoma tem símbolos próprios e que esses símbolos são utilizados nas instalações e actividades dependentes dos órgãos de governo próprio da Região ou por eles tuteladas e em conjunto com os correspondentes símbolos nacionais, mantendo-se salvaguardada a precedência e o destaque que a estes são devidos.
Foram, todavia, introduzidas duas alterações fundamentais:
i) Onde, antes, se afirmava que «os símbolos regionais são utilizados nas instalações e actividades dependentes dos órgãos de governo próprio da Região ou por eles tuteladas», agora acrescentou-se que a bandeira é hasteada «nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região [...], bem como nas autarquias locais dos Açores»;
ii) Onde, anteriormente, se dizia que «os símbolos regionais são utilizados conjuntamente com os correspondentes símbolos nacionais e com salvaguarda da precedência e do destaque que a estes são devidos, nos termos da lei», agora retirou-se a expressão «nos termos da lei» (que se referia à utilização conjunta dos símbolos nacionais e dos símbolos regionais) e acrescentou-se um novo número (restrito apenas à utilização dos símbolos regionais) a esclarecer que «a utilização dos símbolos da Região é regulada por decreto legislativo regional».
O requerente questiona a constitucionalidade do artigo 4.º, n.º 4, na parte em se refere ao uso da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania.
A questão não se levantaria, porventura, caso se admitisse que o sentido do artigo 4.º, n.º 4, do EPARAA não seria senão o de admitir o possível uso da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania, nos termos definidos por lei devidamente aprovada pelos órgãos de soberania.
O alcance do n.º 4 do artigo 4.º do EPARAA parece, contudo, ser outro.
Na verdade, ele situa-se numa sequência lógica que determina o seu sentido e que não pode ser ignorada pelo intérprete. O n.º 3 do artigo 4.º, embora salvaguardando a precedência e o destaque devidos à Bandeira Nacional, estabelece a utilização desta em conjunto com a bandeira da Região. Depois, logo de seguida, a 1.ª parte do artigo 4.º prescreve que a bandeira da Região é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania.
Da conjugação do teor literal da 1.ª parte do n.º 4 do artigo 4.º com o teor literal do n.º 3 desta mesma disposição resulta, assim, que a bandeira regional é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania, em conjunto com a Bandeira Nacional.
Assim sendo, o n.º 4 do artigo 4.º, lido no seu contexto normativo, suscita, inevitavelmente, a seguinte questão:
Poderá o Estatuto da Região Autónoma impor a utilização da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania que estejam, territorialmente, situadas na região (artigo 4.º, n.º 4, 1.ª parte, e n.º 3)? O problema está em saber se o Estatuto da Região, na medida em que impõe o hasteamento da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania situadas na Região sempre que aí seja hasteada a Bandeira Nacional, pode restringir a liberdade dos órgãos de soberania regularem, livremente, as regras de uso da Bandeira Nacional.
As instalações dependentes dos órgãos de soberania são o local por excelência onde a Bandeira Nacional deverá ser hasteada. Ora, o uso da bandeira regional é susceptível de interferir com as regras de utilização da Bandeira Nacional.
Desta forma, as regras que regulam a utilização da bandeira regional terão de se relacionar com as que regulam a utilização da Bandeira Nacional. E terão, ainda, que se lhes subordinar. Com efeito, a precedência e o destaque que deverão ser conferidos à Bandeira Nacional, quando hasteada em conjunto com a bandeira regional, têm expressão normativa na prevalência que deverá ser dada à Lei da Bandeira Nacional sobre o diploma que regula o uso da bandeira regional.
O Estado Português é, em todo o seu território e fora dele, representado, exclusivamente, pela Bandeira Nacional, dado que, nos termos expressos pelo artigo 11.º, n.º 1, da Constituição, esta é «símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal». E não será, porventura, demais relembrar que a Bandeira Nacional é bandeira de toda a comunidade política. Ela simboliza - com as suas cores, com as suas armas e com a esfera armilar - Portugal e, consequentemente, também os Açores.
Como explicam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., vol. i, Coimbra 2007, p. 291):
«[Os símbolos nacionais] são valores de referência de toda a colectividade, de comunhão cultural e ideológica, de identificação e distinção. Assumem, assim, um alto relevo, sob o ponto de vista constitucional [...] A dimensão simbólica - soberania, unidade e integridade de Portugal - agora claramente reafirmada no texto constitucional (na redacção da LC 1/89) transporta imposições dirigidas aos responsáveis pelo uso da Bandeira Nacional (cf. Decreto-Lei 150/87, de 30 de Março). Este uso só pode ser determinado pelos órgãos de soberania [...]» Recorde-se, antes de mais, que o regime dos símbolos nacionais é da exclusiva competência da Assembleia da República [artigo 164.º, alínea s), aditado na 4.ª revisão constitucional, de 1997].
Sendo assim, e como se afirmou recentemente no Acórdão 258/07, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 15 de Maio de 2007, acolhendo a doutrina aí identificada, «a inclusão de qualquer matéria na reserva de competência da Assembleia da República, absoluta ou relativa, é in totum. Tudo quanto lhe pertença tem de ser objecto de lei da Assembleia da República [...]. Só não se depara este postulado quando a própria Constituição estabelece diferenciações por falar em 'bases', em 'bases gerais' ou em 'regime geral' das matérias» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, ii, Coimbra, 2006, pp. 516-517).
Deste modo, a sede própria da definição do uso da Bandeira Nacional só pode ser uma lei que dê corpo normativo ao estatuto constitucional da Bandeira enquanto símbolo nacional (artigo 11.º, n.º 1).
Anote-se, porém, que, não tendo a Assembleia da República legislado sobre esta matéria após a referida revisão, se mantém o regime constante do diploma conhecido por Lei da Bandeira Nacional (Decreto-Lei 150/87, de 30 de Março).
Qualquer definição do uso da bandeira regional, em conjunto com a Bandeira Nacional, deverá estar normativamente subordinada às regras de utilização da Bandeira Nacional definidas pelos órgãos de soberania. Nesta linha se posta o actual artigo 8.º, n.º 1, da Lei da Bandeira Nacional que regula o uso desta Bandeira Nacional, em conjunto com outras bandeiras.
Abrangendo a reserva todo o regime do símbolo nacional, não é possível inserir no Estatuto da Região uma regra que conduza à utilização conjunta, em instalações dos órgãos de soberania, da Bandeira Nacional e da bandeira regional.
Sendo a Bandeira Nacional símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal (artigo 11.º, n.º 1, da Constituição), não podem os Estatutos, porque atinentes a parte do seu todo, dispor sobre o regime da sua utilização.
A Assembleia da República tem competência para aprovar o Estatuto Político-Administrativo da Região [artigo 161.º, alínea b), da Constituição] e tem competência exclusiva para aprovar o regime de uso dos símbolos nacionais [artigo 164.º, alínea s)].
Mas o que não pode fazer é impor, sob a forma de Estatuto, o uso de símbolos regionais, nas instalações próprias dos órgãos de soberania (ou seja fora do «âmbito regional» de um ponto de vista institucional), na medida em que tal exclui o seu poder de regular, com exclusividade, o uso dos símbolos nacionais, nomeadamente quanto a saber quando deve e se deve ser hasteada sozinha ou acompanhada de outros símbolos, livre de qualquer iniciativa das Regiões.
É certo que o Estatuto pode autorizar o uso da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania. Mas o que não pode fazer é impor essa utilização, pois por esse modo está a interferir na definição do regime de utilização da Bandeira Nacional.
Nestes termos, impõe-se declarar a inconstitucionalidade do artigo 4.º, n.º 4, 1.ª parte, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, por violação do disposto nos artigos 11.º, n.º 1, e 164.º, alínea s), da Constituição da República Portuguesa.
B) Poderes da Região em matéria de política externa [artigos 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), 34.º, alínea m), e 124.º, n.º 2]:
O artigo 7.º, n.º 1, alínea i), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores confere, à Região Autónoma dos Açores, «o direito a uma política própria de cooperação externa com entidades regionais estrangeiras, nomeadamente no quadro da União Europeia e do aprofundamento da cooperação no âmbito da Macaronésia».
Neste quadro, em que se admite uma política própria de cooperação externa com entidades regionais estrangeiras, o mesmo Estatuto Político-Administrativo atribui à Região, logo de seguida, na alínea j) do mesmo artigo, «o direito a estabelecer acordos de cooperação com entidades regionais estrangeiras e a participar em organizações internacionais de diálogo e cooperação inter-regional».
Dentro da mesma linha, o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores confere, por outro lado, à Assembleia Legislativa Regional dos Açores, a competência para «aprovar acordos de cooperação com entidades regionais ou locais estrangeiras que versem sobre matérias da sua competência ou sobre a participação em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter-regional» [artigo 34.º, alínea m)] e atribui ao Governo Regional o poder de, em nome da Região, «estabelecer ou aceder a acordos de cooperação com entidades de outros Estados» (artigo 124.º, n.º 2).
Nos termos expressos pelo corpo do artigo 7.º do EPARAA, esses poderes pretendem estar para além dos poderes configurados no artigo 227.º da Constituição.
Poderá, então, questionar-se «se» e «até que ponto» tal será possível. É o que de seguida se verá.
A Constituição da República Portuguesa atribui às Regiões Autónomas, nomeadamente no artigo 227.º, poderes com incidência internacional.
Entre esses poderes conta-se o poder de participar na celebração de tratados e acordos internacionais que lhes digam directamente respeito [artigo 227.º, n.º 1, alínea t), da Constituição].
Sobre a natureza e âmbito de tal poder diz Rui Manuel Moura Ramos (Da Comunidade Internacional e do Seu Direito, Coimbra 1996, pp. 203 e segs.):
«Não se trata evidentemente do reconhecimento do próprio treaty-making power, mas de uma forma de participação no seu exercício, o que não é todavia praticado, sequer, em todos os Estados federais [...] Precisa-se, no que respeita à sua concretização, que uma tal participação traduzir-se-á na representação efectiva dentro da delegação nacional que negociará o tratado ou acordo, bem como nas comissões de execução ou fiscalização respectivas.» Além deste poder de participação na celebração de acordos que lhes digam directamente respeito, as Regiões Autónomas possuem, ainda, um poder de estabelecer laços de cooperação com outras entidades regionais estrangeiras e participar em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter-regional, de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa [artigo 227.º, n.º 1, alínea u)].
Aqui, já não se trata, apenas, de um poder de participação. Por isso, a Constituição é clara em estabelecer um limite que salvaguarde o princípio da unidade do Estado no exercício da política externa, limite esse ínsito, aliás, nos próprios termos em que o artigo 225.º, n.º 3, da Constituição configura a autonomia político-administrativa regional, ao dispor que esta «não afecta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição».
A este propósito, discreteia Rui Manuel Moura Ramos (Da Comunidade Internacional e do Seu Direito, cit., p. 206) do seguinte modo:
«A legitimidade do estabelecimento de laços de cooperação entre as Regiões Autónomas portuguesas e outras entidades regionais estrangeiras fica portanto assente. E a previsão de uma tal hipótese permite claramente afirmar que não se trata aqui apenas de laços a tecer exclusivamente por referência às formas do direito privado, o que de todo o modo não estava em questão. A fórmula escolhida leva pois a crer que são as Regiões Autónomas enquanto pessoas colectivas de direito público que estão autorizadas a estabelecer esses laços com outras entidades estrangeiras de natureza similar. Não se faz qualquer referência às formas e à natureza que os instrumentos desta cooperação deverão revestir: é, no entanto, certo que todo o processo deverá conformar-se com as orientações definidas pelos órgãos de soberania competentes em matéria de política externa.
[...] É igualmente reconhecido o poder de participar em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter-regional, ainda que um tal poder esteja subordinado, no seu exercício, às orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa.» Os poderes das regiões autónomas, em matéria de política externa, não as transformam, portanto, em entidades autónomas e diferenciadas do Estado Português, do ponto de vista do Direito Internacional Público. Desse ponto de vista, elas integram-se no Estado Português, como afirma, a este respeito, Jorge Miranda (Direito Internacional Público, 3.ª ed. 2006, p. 205):
«[Os poderes das Regiões autónomas de incidência internacional], embora originais e significativos, não envolvem a transformação das regiões em sujeitos de Direito Internacional.
Na cooperação inter-regional verifica-se por certo uma actuação externa dos órgãos de governo próprios das regiões. Todavia é uma cooperação com entidades também desprovidas de personalidade jurídico-internacional e sempre de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania.» É esta compreensão das relações internacionais que se encontra vertida no artigo 7.º da Constituição, no qual se acham consagrados os princípios fundamentais em matéria de política externa e que subjaz, do mesmo passo, à repartição da competência em razão da matéria entre os diversos órgãos de soberania - Presidente da República (cf. artigo 135.º), Assembleia da República [161.º, alínea i)] e Governo [197.º, n.º 1, alíneas b) e c), todos da Constituição].
Na verdade, ao enunciar os diversos vectores em que se decompõem essas relações internacionais, o preceito sedia-as, no que tange à sua titularidade, no Estado.
Deste modo, a palavra em matéria de política externa cabe à República. Por outro lado, a unidade de sentido da política externa exigida pelo artigo 7.º só pode ser conseguida mediante a intervenção decisória, apenas, dos órgãos de soberania que interpretam o interesse nacional, representando a injunção estabelecida na parte final da alínea u) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, exactamente, um postulado de tal posição constitucional.
Nos termos do artigo 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição, as Regiões Autónomas podem «estabelecer cooperação com outras entidades regionais estrangeiras [...]».
Porém - em homenagem ao princípio da integridade da soberania do Estado -, devem fazê-lo, nos termos da parte final do preceito «de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa».
Ora, como já se viu, o artigo 7.º do EPARAA pretende, expressamente, através das alíneas i) e j) do seu n.º 1, ampliar os poderes da Região previstos no artigo 227.º da Constituição, ao considerar como «direitos da Região, para além dos enumerados no n.º 1 do artigo 227.º da Constituição»: «o direito a uma política própria de cooperação externa com entidades regionais estrangeiras» [alínea i)] e «o direito a estabelecer acordos de cooperação com entidades regionais estrangeiras e a participar em organizações internacionais de diálogo e cooperação inter-regional» [alínea j)].
O contraste entre o artigo 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), do Estatuto e o artigo 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição, em matéria de poderes com incidência internacional, é evidente: a utilização da expressão «política própria» na alínea i) do artigo 7.º e a ausência, em ambas as alíneas i) e j), de uma qualquer menção às «orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa» como faz o artigo 227.º da Constituição.
E como o corpo do artigo 7.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores explica que os direitos nele enunciados pretendem ir além dos contidos na Constituição, não restam dúvidas: trata-se de alargar os poderes da Região para além do que a Constituição prevê.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se tal será possível. Será a matéria dos poderes das Regiões livremente disponível pelo legislador ordinário ou será, pelo contrário, matéria de reserva de Constituição? É evidente que o alargamento de poderes da Região, que o artigo 7.º do EPARAA explicitamente pretende, é, neste caso, susceptível de afectar os poderes estabelecidos na Constituição para os órgãos de soberania e para efectivação de uma política externa comum. Ou seja, os termos em que a cooperação externa das Regiões aparece consagrada no artigo 7.º, alínea i), implicam uma compressão dos poderes dos órgãos de soberania que não é constitucionalmente possível (artigos 7.º e 110.º, n.º 2, da Constituição), sendo feita com restrição da unidade do Estado e da integridade da soberania [artigos 6.º e 225.º, n.º 3, e 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição].
Esta disposição constitucional implica que não será possível ampliar os poderes regionais constitucionalmente previstos, por via legislativa ou estatutária, quando tal interfira com a competência dos órgãos de soberania em matéria da definição do sentido da política externa.
Deste modo, o artigo 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores padece de inconstitucionalidade, por violação das disposições conjugadas dos artigos 6.º, 7.º, 110.º, n.º 2, 225.º, n.º 3, e 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição.
Uma vez admitido que, ao invés do que resulta do confronto entre as alíneas i) e j) do n.º 1 do artigo 7.º do EPARAA e do artigo 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição, a cooperação externa terá de se fazer «de acordo com as orientações definidas pelos órgãos de soberania com competência em matéria de política externa», não há obstáculo a considerar que as Regiões, enquanto pessoas colectivas públicas, mantenham, através da Assembleia Legislativa Regional, no âmbito das suas competências e sem prejuízo dos poderes próprios dos órgãos de soberania, o poder de aprovar acordos de cooperação com entidades regionais ou locais estrangeiras.
Assim, porque os artigos 34.º, alínea m), e 124.º, n.º 2, do mesmo Estatuto colhem o seu directo fundamento no artigo 227.º, n.º 1, da Constituição, não correspondendo a quaisquer concretizações do analisado «direito a uma política própria», eles não são atingidos pelo juízo de inconstitucionalidade imputado ao artigo 7.º, n.º 1, alíneas i) e j).
Nestes termos, não há que os declarar inconstitucionais.
C) Criação de provedores sectoriais regionais [artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º]:
O Provedor de Justiça coloca a questão da constitucionalidade da criação dos provedores sectoriais regionais.
Dispondo sobre aquele órgão constitucional, diz a Constituição:
«Artigo 23.º
Provedor de Justiça
1 - Os cidadãos podem apresentar queixas por acções ou omissões dos poderes públicos ao Provedor de Justiça, que as apreciará sem poder decisório, dirigindo aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças.2 - A actividade do Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis.
3 - O Provedor de Justiça é um órgão independente, sendo o seu titular designado pela Assembleia da República, pelo tempo que a lei determinar.
4 - Os órgãos e agentes da Administração Pública cooperam com o Provedor de Justiça na realização da sua missão.» Do mesmo passo que institui o órgão constitucional Provedor de Justiça, o preceito procede à conformação dos traços que, sob o ponto de vista constitucional, enformam a sua verdadeira natureza e recortam o núcleo essencial do seu estatuto.
No mais, próprio ou relativo ao seu estatuto, a Constituição reservou à Assembleia da República a competência exclusiva para legislar sobre ele. Na verdade, o artigo 164.º, alínea m), dispõe que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a matéria do «estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal» (itálico aditado).
É evidente que o Provedor de Justiça é um órgão constitucional, porquanto criado pela Constituição e cuja competência é, também, por ela definida, pelo menos nos seus elementos constitucionalmente caracterizantes.
Segundo emerge daquele artigo 23.º, o Provedor de Justiça é um órgão do Estado, de natureza independente, perante todos os demais órgãos constitucionais, conquanto designado, pelo tempo que a lei determinar (quatro anos - artigo 6.º da Lei 9/91, de 9 de Abril), pela Assembleia da República, por uma maioria qualificada de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções.
Enquanto órgão constitucional, é também a Constituição que define a competência que o caracteriza enquanto tal. E fá-lo sob quatro ângulos diferentes. De um lado, evidenciando a sua posição institucional em relação aos cidadãos, dizendo que os cidadãos lhe podem apresentar queixas - é, assim, um órgão aberto ao recebimento das queixas dos cidadãos, sem distinções, no todo do Estado unitário; do outro, referindo que essas queixas podem ter por objecto acções ou omissões dos poderes públicos; depois, estatuindo que o Provedor apreciará essas queixas sem poder decisório e dirigindo aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças; e, finalmente, dispondo que essa competência é levada a cabo de modo independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis.
Como se vê, a competência constitucionalmente atribuída ao Provedor de Justiça abrange todos os «poderes públicos» e, decorrentemente, assim, os actos por estes praticados.
Pela sua própria natureza, ressalvam-se os actos jurisdicionais, em face do disposto nos artigos 203.º e 205.º da Constituição.
De acordo com a configuração dada pelo legislador constitucionalmente competente [artigo 164.º, alínea m)] ao estatuto do Provedor de Justiça (Lei 9/91), o terreno privilegiado da sua actuação é a Administração, não estando excluído qualquer sector dela, abrangendo assim a administração estadual, regional ou local, directa ou indirecta, civil ou militar.
Conquanto a inserção constitucional do Provedor de Justiça na parte geral dos direitos fundamentais mostre claramente que ele «é essencialmente um órgão de garantia dos direitos fundamentais (de todos, e não apenas dos direitos, liberdades e garantias) perante os poderes públicos, em geral, e perante a Administração em especial» (cf. J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., vol. i, p. 440), nada impede que ele actue, no terreno daquela Administração, no domínio dos direitos económicos, sociais ou outros, conferidos pelo legislador ordinário.
A questão que se coloca, no caso, é, todavia, a de saber se o órgão Provedor de Justiça é um órgão do Estado de competência exclusiva nas matérias incluídas no seu estatuto jurídico-constitucional ou se as mesmas podem ser desdobradas ou repartidas através de provedores sectoriais ou especializados, com base numa ideia de que assim se poderão obter maiores níveis de protecção dos direitos dos cidadãos.
Na doutrina existe uma crítica generalizada à ideia de multiplicação dos provedores sectoriais regionais.
É, muito em especial, o caso de Jorge Miranda (artigo 23.º, Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda/Rui Medeiros, t. i, Coimbra 2005, p. 220), que sustenta:
«A lei não pode criar Provedores de Justiça especializados, como já tem sido preconizado (Provedor para as Forças Armadas, Provedor Ecológico, Provedor do Consumidor, Provedores Municipais, Provedor da Criança, Provedor das Pessoa Idosas, Provedor da Saúde) ou como já chegou a ser estabelecido (Defensor do Contribuinte).
A competência de um órgão constitucional decorre da norma constitucional, explícita ou implicitamente, ou tem nela a sua base. Daí que não possa o Provedor de Justiça, órgão constitucional, ser despojado de faculdades que lhe pertençam, em proveito de outros órgãos, nem que possam as suas competências ou as matérias delas objecto ser desdobradas ou repartidas através de mais de um Provedor.
Não pode haver dois ou mais Provedores [...]» Na mesma linha de pensamento vai Vieira de Andrade, ao declarar o seu «alinhamento incondicional com aqueles que defendem uma concepção unitária e plurifuncional da instituição e se opõem à proliferação de provedores especializados em função das várias áreas da actividade administrativa» («O Provedor de Justiça e a protecção efectiva dos direitos fundamentais», in O Provedor de Justiça - Estudos, Lisboa 2006, p. 62).
Mas há, também, autores que, com mais ou menos dúvidas ou limites (cf. João Caupers, in O Cidadão, o Provedor de Justiça e as Entidades Administrativas Independentes, p. 88, e, reportando-se a provedores regionais, Rui Medeiros, Tiago Fidalgo de Freitas e Rui Lanceiro, in Enquadramento da Reforma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, p. 124), admitem não existir uma proibição constitucional de provedores especializados.
Entende, porém, o Tribunal que, sendo a competência do órgão constitucional, Provedor de Justiça, definida pela Constituição, não pode esse órgão ser despojado das faculdades que lhe pertençam ou as matérias delas objecto ser desdobradas através de mais de um Provedor.
A repartição, com outros órgãos, das faculdades inseridas na competência com que foi dotado constitucionalmente o Provedor de Justiça, ainda que respeitando as suas atribuições constitucionais e obrigando a agir em coordenação ou de forma articulada com este, desfigura o órgão tal como foi concebido pela Lei Fundamental, na medida em que introduz elementos distorcedores da unidade da sua actuação para todo o território nacional e para todos os poderes públicos.
A existência, ao lado, de um outro órgão, criado pelo legislador ordinário, com atribuições decalcadas ou paralelas às do Provedor de Justiça, especializadas ou não, ainda que de âmbito regional, não deixa de descaracterizar o tipo constitucionalmente construído do mesmo órgão sem agregação a quaisquer especialidades da matéria da sua competência ou a quaisquer entes territoriais, antes atingindo todos os poderes públicos, enfraquecendo, em termos de visibilidade e intensidade práticas, os poderes e faculdades com que foi dotado o órgão constitucional.
Está vedada ao legislador ordinário a conformação de qualquer outro órgão, a quem sejam, concomitantemente, atribuídas as funções de apreciar, sem poder decisório, as queixas dos cidadãos por acções ou omissões dos poderes públicos, e de dirigir aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças.
Ora, é exactamente isso que sucede na situação recortada no artigo 130.º do EPARAA. É que os provedores sectoriais regionais recebem, com autonomia em relação ao Provedor de Justiça, «queixas dos cidadãos por acções ou omissões de órgãos e serviços da administração regional autónoma, de organismos públicos ou privados que dela dependam, de empresas privadas encarregadas da gestão de serviços públicos regionais ou que realizem actividades de interesse geral ou universal no âmbito regional» e podem, igualmente com autonomia em relação ao mesmo Provedor de Justiça, dirigir as recomendações que entenderem àquelas entidades.
Temos, assim, que não podem deixar de ter-se por inconstitucionais, por violação do artigo 23.º da Constituição, os artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º do Estatuto Político-Administrativo dos Açores.
D) Audição dos órgãos regionais pelo Presidente da República, em caso de dissolução da Assembleia Legislativa Regional (artigo 114.º):
O artigo 114.º do EPARAA estabelece: «A Assembleia Legislativa, o Presidente do Governo Regional e os grupos e representações parlamentares da Assembleia Legislativa devem ser ouvidos pelo Presidente da República antes da dissolução da Assembleia Legislativa e da marcação da data para a realização de eleições regionais ou de referendo regional.» O Requerente contesta a constitucionalidade desta norma na medida em que impõe, ao Presidente da República, deveres de audição adicionais para além dos já previstos na Constituição, em caso de dissolução da Assembleia Legislativa.
De facto, de acordo com o artigo 133.º, da Constituição, a Assembleia Legislativa Regional pode ser dissolvida «ouvidos os partidos nela representados e o Conselho de Estado» [alínea j)] em paralelo total com o que sucede a respeito da Assembleia da República [alínea e)]. O que o artigo 114.º do EPARAA faz é introduzir um trâmite adicional no processo de dissolução daquele órgão.
Segundo esse artigo, terão de ser ouvidos não só o Conselho de Estado e os partidos representados na Assembleia Legislativa, mas, ainda, a Assembleia Legislativa, enquanto órgão colectivo no seu conjunto, e o Presidente do Governo Regional, que passaria, assim, a ser titular de um direito de audição autónomo, fora do Conselho de Estado, de que faz parte integrante, nos termos do artigo 142.º, alínea e), da Constituição.
O artigo 110.º, n.º 2, estabelece, porém, a taxatividade do quadro de competências dos órgãos de soberania, nos termos que se seguem: «A formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os definidos na Constituição.» Daqui decorre - asseveram Gomes Canotilho e Vital Moreira - «que a competência dos órgãos de soberania - entre os quais se conta o Presidente da República - é a que consta da Lei Fundamental» (Os Poderes do Presidente da República, Coimbra, 1991, p. 35).
Essa taxatividade dos poderes do Presidente da República impede a sua ampliação por lei, mas impede também, obviamente, a sua restrição por via legal. Trata-se de uma matéria sujeita a «reserva de Constituição» (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. v, 3.ª ed., p. 198).
A taxatividade dos procedimentos a observar pelo Presidente da República colhe-se, por outro lado, directamente do disposto no artigo 133.º, alínea j), da Constituição, ao dispor que compete ao Presidente da República, relativamente a outros órgãos, «dissolver as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nelas representados, observado o disposto no artigo 172.º, com as necessárias adaptações», não sendo de lhe opor a norma do artigo 229.º, n.º 2, da Constituição que prevê um dever genérico de audição das regiões, dado aquela norma regular exaustiva e especificamente o procedimento em causa.
Nesta matéria, a lei nada pode fazer. A matéria é reserva de Constituição, ou melhor, constitui reserva de competência do legislador constituinte.
Esta reserva de Constituição em matéria de poder do Presidente da República e o carácter taxativo dos seus poderes compreende-se como expressão de um princípio do equilíbrio institucional de poderes, cujos termos só o poder constituinte poderá alterar. Nem o legislador ordinário nem o legislador estatutário o poderão fazer.
Anote-se que o Tribunal já se pronunciou no Acórdão 402/08, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, sobre uma questão algo paralela no que tange à conexão que intercede entre uma norma constitucional atributiva de competência e a norma constitucional que prevê um dever genérico de audição das regiões (artigo 229.º, n.º 2, da Constituição).
Conclui-se, assim, que o artigo 114.º do EPARAA, ao prever que a Assembleia Legislativa e o Governo da Região devem ser ouvidos, pelo Presidente da República, antes da dissolução da Assembleia Legislativa Regional, é inconstitucional, por violação dos artigos 133.º, alínea j), e 110.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
E) Procedimento de audição qualificada (artigo 119.º, n.os 1 a 5):
O Provedor de Justiça coloca, ainda, a questão da constitucionalidade do artigo 119.º, n.os 1 a 5, do EPARAA.
A sua argumentação vai, essencialmente, no sentido de que o artigo 229.º, n.º 2, da Constituição é insusceptível da interpretação maximalista que lhe é dada pelo citado artigo 119.º do EPARAA.
Note-se que, nos termos do n.º 1, o procedimento de audiência qualificada abrange os seguintes casos: a) «Iniciativas legislativas susceptíveis de serem desconformes com qualquer norma do presente Estatuto»; b) «Iniciativas legislativas ou regulamentares que visem a suspensão, redução ou supressão de direitos, atribuições ou competências regionais» e c) «Iniciativas legislativas destinadas à transferência de atribuições ou competências da Administração do Estado para as autarquias locais dos Açores».
O procedimento previsto no artigo 119.º contém exigências de tramitação, nomeadamente nos seus n.os 2 e 4, cuja constitucionalidade terá de se questionar.
Nos termos do n.º 2, do artigo 119.º, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, o procedimento de audição qualificada inicia-se com o envio, para o órgão de governo próprio da região que seja no caso competente, da proposta ou projecto de acto.
Ora, essa proposta ou esse projecto deve, segundo o mesmo preceito, estar «acompanhado de uma especial e suficiente fundamentação [...] à luz dos princípios da primazia do Estatuto, do adquirido autonómico e da subsidiariedade».
Ou seja, a Assembleia da República, para efeitos de procedimento, terá de fundamentar a legislação, que é da sua exclusiva competência e que visa o todo nacional, à luz dos princípios da primazia do Estatuto, do adquirido autonómico e da subsidiariedade que protegem a autonomia regional.
Note-se que não são os órgãos de governo regional que se pronunciam com base em tais princípios, mas é, sim, a Assembleia da República que o deverá fazer.
O ónus da prova do facto negativo (não violação da primazia do Estatuto, do adquirido autonómico e da subsidiariedade) fica do lado dos órgãos de soberania. Não é a Região que deverá invocar os princípios que a favorecem, ao emitir o seu parecer: é o órgão de soberania que deverá demonstrar que não existe, na solução legislativa proposta, violação desses princípios.
É evidente que os órgãos de soberania deverão, naturalmente, respeitar os princípios que exprimem a autonomia regional [artigos 6.º, 225.º, 227.º, 228.º e 288.º, alínea o)].
Mas o artigo 119.º, n.º 2, não se limita a especificar os princípios que os órgãos de soberania devem respeitar ou ponderar: obriga-os a fundamentar a sua proposta de âmbito nacional, perante os órgãos regionais, à luz dos princípios de protecção da autonomia regional, como se eles não fossem uma parte do todo nacional, mas antes um destinatário externo nele não integrado.
O regime da audição qualificada não se contém por aqui. Há mais aspectos a considerar.
No caso de o parecer do órgão de governo próprio da Região ser desfavorável ou de não-aceitação das alterações propostas pelo órgão de soberania em causa, deve, nos termos do n.º 4 do artigo 119.º, constituir-se uma «comissão bilateral».
Essa comissão bilateral deverá ser composta por um número igual de representantes do órgão de soberania e do órgão de governo próprio e formular, de comum acordo, uma proposta alternativa, no prazo de 30 dias (salvo acordo em contrário quanto a este prazo).
Quer dizer, se a Região não emitir parecer favorável o procedimento deixa de ser da audição conformada no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição e transforma-se numa negociação.
Aqui, a relação constitucional de poderes desfigura-se: a Região não só será ouvida, como poderá negociar e, eventualmente, impor a sua vontade, nomeadamente quando o órgão de soberania, que seja no caso competente para decidir, possa ter, a seu desfavor, a pressão do tempo de decisão.
É, aliás, o que caracteristicamente poderá suceder em matérias económicas e financeiras.
Pode dizer-se que o órgão de soberania é livre, no final, de decidir como bem entender (n.º 5 do artigo 119.º). Não poderia, aliás, deixar de ser assim. Mas a verdade é que o órgão de soberania fica impedido de decidir nesse período de tempo em que negoceia com a Região uma solução de âmbito nacional.
A norma contida no artigo 119.º, n.º 4, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores é susceptível de subverter, totalmente, a lógica e o fundamento do dever de audição, recortado no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição. Não se trata já de atender ao que o órgão regional diz a respeito de actos normativos de alcance nacional, mas sim de negociar esses actos normativos com a Região.
A ideia que ressalta, em tal situação, é a de que se está perante um processo de «co-decisão», com distorção, portanto, do sentido consagrado constitucionalmente relativamente ao direito de audição no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, conduzindo, necessariamente, a que a Assembleia da República e o Governo fiquem diminuídos da sua competência de dispor legislativamente sobre as matérias em causa, a todo o tempo, cumprido que seja o dever genérico de audição e por esta via a violar-se, também, a reserva de Constituição consagrada no artigo 110.º, n.º 2, da Constituição.
O procedimento de negociação, durante 30 dias (salvo acordo de ambas as partes em contrário), extravasa, claramente, o âmbito do dever de audição constitucionalmente previsto no artigo 229.º, n.º 2.
Estando o n.º 2 e o n.º 4 do artigo 119.º do EPARAA em contradição com o sentido do dever de audição estabelecido do artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, resta perguntar se poderão subsistir os restantes números do artigo 119.º A resposta é, porém, evidente: o n.º 1 delimita o âmbito material do dever de audição qualificada que segue a tramitação dos n.os 2 e 4, o n.º 3 mais não faz do que definir um prazo para a resposta da Região ao parecer que deveria ser emitido nos termos do n.º 2 e o n.º 5 apenas se compreende à luz da solução inconstitucional do n.º 4, com o qual literalmente se relaciona. Assim sendo, a inconstitucionalidade dos n.os 2 e 4 terá de arrastar consigo a inconstitucionalidade consequente dos n.os 1, 3 e 5.
Deste modo, impõe-se concluir pela inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 119.º, n.os 1 a 5, do EPARAA, por violação dos artigos 229.º, n.º 2, 110.º, n.º 2, e 225.º, n.º 3, da Constituição.
F) Limitação dos poderes de revisão do Estatuto às normas estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas (artigo 140.º, n.º 2):
Relembre-se que o preceito estabelece que «os poderes de revisão do Estatuto pela Assembleia da República estão limitados às normas estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas».
Ora, sobre a matéria dos «Estatutos e leis eleitorais», dispõe o artigo 226.º da Constituição:
1 - Os projectos de estatutos político-administrativos e de leis relativas à eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas são elaborados por estas e enviados para discussão e aprovação à Assembleia da República.
2 - Se a Assembleia da República rejeitar o projecto ou lhe introduzir alterações, remetê-lo-á à respectiva Assembleia Legislativa para apreciação e emissão de parecer.
3 - Elaborado o parecer, a Assembleia da República procede à discussão e deliberação final.
4 - O regime previsto nos números anteriores é aplicável às alterações dos estatutos político-administrativos e das leis relativas à eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas.
Verifica-se, assim, que, apesar de caber à Assembleia da República, no âmbito da sua competência política e legislativa, aprovar os estatutos político-administrativos e as leis relativas à eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas, e respectivas alterações [artigo 161.º, alínea b), da Constituição], o certo é que o poder de impulso dessa iniciativa legislativa não reside nela, mas nas Assembleias Legislativas das regiões autónomas.
Resulta, todavia, dos n.os 2 e 3 do preceito constitucional que o poder de discussão e aprovação dos estatutos e respectivas alterações não se resume somente a um poder de concordância com os projectos elaborados pelas Assembleias Legislativas das regiões autónomas.
Questão controvertida é a questão da existência dos limites à revisão dos Estatutos por parte da Assembleia da República.
Abordando tal temática dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 847):
«[...] a solução mais consentânea com o regime compartilhado de alteração dos estatutos é a de que a AR não pode fazer alterações em áreas não envolvidas nas propostas de alteração da assembleia regional. Contra isto pode argumentar-se que isso constituiria uma limitação severa da liberdade legislativa e um congelamento inadequado do estatuto. Mas, sendo certo que a AR não pode proceder a nenhuma proposta de revisão sem iniciativa regional, não se compreenderia que aproveitasse uma proposta de revisão de um aspecto menor para proceder a uma revisão geral do estatuto contra a vontade da região; em segundo lugar, a AR pode sempre condicionar a aprovação de uma revisão à proposta de revisão de outras matérias; finalmente o estatuto pode sempre ser superado por via de revisão constitucional.» Num plano diametralmente oposto encontra-se a posição de Jorge Miranda (Estatutos das Regiões Autónomas, p. 799; Manual de Direito Constitucional, tomo iii, 5.ª ed., p.
306, nota 1):
«A Assembleia da República pode adoptar soluções diversas das preconizadas pelas assembleias legislativas regionais; não tem apenas de aprovar ou rejeitar as propostas estatutárias destas; pode aprovar propostas de alteração de iniciativa (superveniente) de Deputados e grupos parlamentares.
E poderá tratar ex novo matérias não consideradas nas propostas de estatutos? Designadamente, aditar novos preceitos ou fazer alterações aos estatutos em vigor não constantes das propostas vindas das regiões? Respondemos afirmativamente, por causa da rigidez e da restrição aos poderes do parlamento - órgão com primado de competência legislativa - que envolveria a posição contrária. De resto, perante quaisquer alterações introduzidas pela Assembleia da República, as Assembleias legislativas regionais terão sempre ainda a faculdade de se pronunciar [nos termos do artigo 226.º, n.º 2].» Num sentido parcialmente convergente defende Rui Medeiros (sub artigo 226.º, in Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda/Rui Medeiros, vol. iii, Coimbra, 2007, p. 289):
«Não se pode olvidar, por outro lado, que o princípio geral que vigora entre nós é o de que as situações de iniciativa reservada a certos órgãos respeitam apenas à iniciativa originária, pois o essencial se encontra nesta, a colaboração de vários órgãos e sujeitos de acção parlamentar no aperfeiçoamento do texto originário pode revelar-se muito útil e a própria ideia de racionalidade ligada ao debate parlamentar justifica uma tal solução (consultar anotação ao artigo 167.º). Enfim, a própria referência do n.º 2 do artigo 226.º a propostas de alteração tem, nos termos gerais, um sentido abrangente.
Efectivamente, como está bem evidenciado no artigo 142.º do Regimento da Assembleia da República, as chamadas propostas de alteração podem ter a natureza, não apenas de propostas de emenda (propostas que, conservando todo ou parte do texto em discussão, restrinjam, ampliem ou modifiquem o seu sentido) e de eliminação (propostas que se destinem a suprimir a disposição em discussão), mas também de propostas de substituição (propostas que contenham disposição diversa daquela que tenha sido apresentada) e de aditamento (propostas que, conservando o texto primitivo e o seu sentido, contenham a adição de matéria nova) (veja-se também, em sentido análogo, Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores Anotado, Lisboa, 1997, pp.
22-27).» O Autor acrescenta, porém, que esta posição não significa um poder de revisão ilimitado:
«Não significa isto que a Assembleia da República possa desfigurar os projectos de revisão dos estatutos político-administrativos enviados pelos parlamentos regionais, introduzindo alterações substanciais nos projectos apresentados. Não se trata, portanto, de sustentar que 'a Assembleia da República goza de um poder irrestrito de livre conformação do projecto de estatuto das Regiões Autónomas' (cf., criticamente, Lucas Pires/Paulo Castro Rangel, Autonomia e Soberania - os poderes de conformação da Assembleia da República, p. 417). Pelo contrário, 'pelo menos nas suas dimensões essenciais, a Assembleia da República não pode introduzir alterações ao projecto de um estatuto manifestamente rejeitadas por uma determinada região autónoma' [Gomes Canotilho, Os Estatutos, p. 14; cf., em sentido próximo, se bem que a propósito do poder de emenda dos Deputados à proposta de orçamento apresentada pelo Governo, Tiago Duarte, A Lei por detrás do Orçamento, Lisboa, 2004 (polic.), pp. 644 e segs.]. O que se contesta é que um tal limite deva ser concretizado com base no critério puramente formal das matérias objecto dos projectos elaborados pelos parlamentos regionais (cf., para maiores desenvolvimentos, Rui Medeiros/Jorge Pereira da Silva, Estatuto, pp. 20 e segs.).» Segundo esta posição, portanto, os deputados e grupos de deputados à Assembleia da República seriam livres de introduzir alterações aos projectos de revisão do estatuto apresentados, desde que não lhes introduzam alterações substanciais.
Existem, assim, divergências sobre o limite dos poderes de revisão dos Estatutos e das respectivas alterações por parte da Assembleia da República.
Ora, o preceito estatutário sobre exame veio conferir aos n.os 2 e 4 do artigo 226.º da Constituição o sentido de que os poderes de revisão do Estatuto pela Assembleia da República estão limitados às normas estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas.
Porém, tanto o âmbito das alterações dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas como os termos do procedimento em que as mesmas devem desenvolver-se são os que se encontram vertidos nos n.os 2 a 4 do artigo 226.º da Lei Fundamental.
Ao dispor sobre o alcance e os termos em que o procedimento das alterações estatutárias devem desenrolar-se, o preceito em causa acaba por intrometer-se na delimitação ou definição dos poderes constitucionais da intervenção da Assembleia da República sobre a matéria (artigo 110.º, n.º 2, da Constituição).
Ora, o certo é que não pode uma norma de direito ordinário estatuir o nível de rigidez de que a mesma norma se encontra revestida quando esse nível de imperatividade decorra de uma norma de categoria superior, como a norma constitucional.
Deste modo, o legislador ordinário está a usurpar poderes de legislador constituinte.
O preceito viola, assim, o princípio da reserva de competência constante das disposições conjugadas dos artigos 110.º, n.º 2, e 226.º, n.os 2 e 4, da Constituição.
III - Decisão
Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:A - Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro:
1 - Da norma constante do artigo 4.º, n.º 4, primeira parte, por violação conjugada do disposto nos artigos 164.º, alínea s), e 11.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
2 - Das normas constantes do artigo 7.º, n.º 1, alíneas i) e j), por violação conjugada do disposto nos artigos 6.º, 7.º, 110.º, n.º 2, 225.º, n.º 3, e 227.º, n.º 1, alínea u), da Constituição da República Portuguesa;
3 - Das normas constantes dos artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º, por violação do disposto no artigo 23.º da Constituição da República Portuguesa;
4 - Da norma constante do artigo 114.º, na parte relativa à dissolução da Assembleia Legislativa, por violação conjugada do disposto nos artigos 133.º, alínea j), e 110.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;
5 - Da norma constante do artigo 119.º, n.os 1 a 5, por violação conjugada do disposto nos artigos 110.º, n.º 2, 229.º, n.º 2, e 225.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa;
6 - Da norma constante do artigo 140.º, n.º 2, por violação conjugada do disposto nos artigos 110.º, n.º 2, e 226.º, n.os 2 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
B - Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 34.º, alínea m), e 124.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro.
Lisboa, 30 de Julho de 2009. - Benjamim Rodrigues - Ana Maria Guerra Martins - Gil Galvão - José Borges Soeiro - Vítor Gomes - Carlos Pamplona de Oliveira (vencido em parte, conforme declaração) - Mário José de Araújo Torres (vencido quanto à declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 140, n.º 2, do EPARAA, pelas razões constantes da declaração de voto junta) - Joaquim de Sousa Ribeiro [vencido, quanto à alínea A), n.º 6, da decisão, conforme declaração anexa] - Maria Lúcia Amaral (vencida em parte, conforme declaração de voto junta) - João Cura Mariano (vencido quanto ao número A, n.º 1, da decisão, conforma declaração anexa) - Maria João Antunes (vencida em parte, nos termos da declaração junta) - Rui Manuel Moura Ramos - Tem voto de conformidade do Conselheiro Carlos Cadilha que não assina por não estar presente. - Benjamim Rodrigues.
Declaração de voto
Votei vencido na parte em que a decisão se pronuncia pela inconstitucionalidade das normas ínsitas no n.º 4 do artigo 4.º e no n.º 2 do artigo 140.º do Estatuto dos Açores aprovado pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro (EPARAA).Quanto à primeira questão, entendo que os estatutos regionais são os diplomas constitucionalmente vocacionados para conterem a disciplina das matérias do tipo da que está em causa. Na verdade, o regime político-administrativo de cada uma das Regiões que deriva - nos termos do artigo 225.º, n.º 1, da CR - das características geográficas, económicas, sociais e culturais próprias, deve naturalmente condensar-se no estatuto de cada Região, salvo quanto às matérias que a Constituição expressamente ressalva. Assim, os regimes autonómicos são moldados, em primeiro lugar, pelas regras uniformes decorrentes do texto constitucional e, depois, pelas normas específicas de cada estatuto. Aprovados necessariamente por lei da Assembleia da República - artigo 226.º, n.os 3 e 4, da CR - e por maioria qualificada quanto às disposições que enunciam as matérias que integram os poderes legislativos regionais - artigo 168.º, n.º 6, alínea f), da CR -, os estatutos podem, em princípio, com a já referida ressalva, conter normas sobre todas as matérias da competência deste órgão de soberania, ainda que exclusiva, desde que concernentes ao regime autonómico da Região a que respeitem. A norma em causa, segundo a qual «a bandeira da Região é hasteada nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região e dos órgãos de governo próprio ou de entidades por eles tuteladas, bem como nas autarquias locais dos Açores», trata de matéria que cabe na competência da Assembleia da República, não está constitucionalmente subtraída ao estatuto, e reporta-se ao regime político-administrativo dos Açores; não é, em meu entender, formalmente inconstitucional.
No referido artigo 226.º, a Constituição impõe uma forma especial de aprovação das leis estatutárias, submetida à reserva de iniciativa das assembleias legislativas regionais; a norma ínsita no n.º 2 do artigo 140.º do EPARAA, ora em análise, limita-se a reafirmar este princípio, razão pela qual também não é, em meu entender, constitucionalmente desconforme. - Carlos Pamplona de Oliveira.
Declaração de voto
Votei vencido quanto à decisão de declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 140.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei 39/80, de 5 de Agosto, na redacção dada pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro (doravante EPARAA), segundo a qual «Os poderes de revisão do Estatuto pela Assembleia da República estão limitados às normas estatutárias sobre as quais incida a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias correlacionadas».Interessará começar por esclarecer que, contrariamente ao aludido na correspondente parte do pedido do requerente, a norma em causa tem apenas por objecto as «normas estatutárias» em sentido próprio, isto é, as normas que sejam formal e materialmente estatutárias. Relativamente a normas que, apesar de formalmente inseridas no Estatuto, não revestem a natureza de normas estatutárias, continua a valer o entendimento, desde sempre acolhido por este Tribunal, da «irrelevância» dessa inserção, mantendo a Assembleia da República inteira liberdade para alterar ou revogar tais normas, designadamente através de «lei comum», sem dependência de prévia iniciativa da assembleia legislativa regional.
Relativamente às normas estatutárias em sentido próprio, tem sido discutida, na doutrina e na praxe legislativa, a existência de limites à capacidade de decisão da Assembleia da República no quadro do procedimento de revisão dos estatutos regionais, limites esses que se podem situar em dois níveis: quanto ao âmbito ou objecto da intervenção da Assembleia da República e quanto ao conteúdo ou sentido dessa intervenção. Isto é: questiona-se quer a possibilidade de a Assembleia da República introduzir alterações em preceitos não incluídos no projecto de revisão, quer a possibilidade de, cingindo-se a esse objecto, vir a consagrar soluções que materialmente «desfigurem» o sentido desse projecto.
No presente caso, está apenas em causa aquele primeiro nível. A norma questionada visa tão-só a delimitar o âmbito ou objecto da intervenção possível da Assembleia da República, não pretendendo estabelecer quaisquer constrangimentos quanto ao sentido ou conteúdo dessa intervenção.
A opção tomada corresponde à seguida no relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre as alterações propostas ao decreto de revisão do EPARAA, relatado pelo Deputado Almeida Santos (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 31, de 16 de Janeiro de 1987, pp. 1280 e segs.), onde se consignou:
«Tem sido aceite sem oposição a interpretação do artigo 228.º da Constituição, segundo a qual a reserva de iniciativa das assembleias regionais quanto aos estatutos da respectiva região se estende às alterações dos mesmos estatutos, não podendo a Assembleia da República alterar, por seu turno, dispositivos não abrangidos por aquela iniciativa.
A Comissão debateu o que deve entender-se por unidade legislativa sujeita a proposta de alteração (se cada artigo, se os respectivos números, se as correspondentes alíneas), tendo-se esboçado um entendimento em torno de que é o artigo a unidade a considerar, sem se ter desenhado a necessidade de uma tomada de posição a este respeito.» E é posição que, na doutrina, tem sido defendida, designadamente, por J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, pp.
774-778), J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 847: «a solução mais consentânea com o regime comparticipado de alteração dos estatutos é a de que a AR não pode fazer alterações em áreas não envolvidas nas propostas de alteração da assembleia regional»);
Francisco Lucas Pires e Paulo Castro Rangel, «Autonomia e soberania (os poderes de conformação da Assembleia da República na aprovação dos projectos de estatutos das Regiões Autónomas», em Juris et de Jure - Nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa - Porto, Porto, 1998, pp. 411-434: «A Assembleia da República [...] não [pode], portanto, aditar novos preceitos ou introduzir alterações em preceitos cuja modificação não tenha sido proposta pela Assembleia Legislativa Regional, de acordo, aliás, com o n.º 4 do artigo 226.º»; e Carlos Blanco de Morais, A Autonomia Legislativa Regional, Lisboa, 1993, p. 215: «Entendemos que a Assembleia da República não poderá inovatoriamente alterar matérias do estatuto originário, não insertas no projecto de revisão.» Do exposto resulta que as normas constitucionais pertinentes - n.os 2 e 4 do artigo 226.º - permitem o entendimento que veio a ser consagrado na norma estatutária ora questionada, ao que acresce que o mesmo se apresenta como o mais conforme ao espírito que rege o regime constitucional de aprovação e revisão dos estatutos regionais, que consagra um procedimento concertado, que parte do reconhecimento de que «o direito à elaboração dos estatutos e o direito de alteração dos estatutos são uma dimensão nuclear da autonomia regional» (J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 776).
Rege, nesta matéria, um princípio de cooperação dos órgãos de soberania e dos órgãos regionais, sendo no quadro deste «espírito constitucional» que se deve interpretar tal cooperação, referindo Francisco Lucas Pires e Paulo Castro Rangel (loc.
cit., p. 423): «O modelo da Constituição da República Portuguesa é, por conseguinte, o modelo de um procedimento concertado - em linguagem de direito comunitário não se lhe poderia decerto chamar 'procedimento de co-decisão', mas poder-se-ia nomeá-lo, sem forçar, como 'procedimento de cooperação'. O que se pretende, numa palavra, é que cada órgão actue, pelo menos, numa medida 'suportável', 'aceitável', 'sustentável' para o outro.» Ora, afigura-se que a solução consagrada na norma ora questionada, para além de ser compatível com a formulação constitucional, surge como sendo a que melhor se adequa ao apontado «princípio da cooperação» em matéria estatutária regional.
Representaria, na verdade, um desrespeito desse princípio se, por exemplo, perante um projecto de revisão estatutária que se limitasse, a propor alterações ao artigo relativo aos símbolos regionais, a Assembleia da República aproveitasse o ensejo e introduzisse profundas alterações noutros capítulos estatutários, de todo estranhos ao objecto do projecto de revisão, como, por exemplo, procedendo a uma redução drástica da enumeração das matérias de interesse regional. Em tal hipótese, não seria lícito sustentar que fora respeitado, em termos materiais, a regra constitucional que atribui às assembleias legislativas regionais o exclusivo do poder de iniciativa da revisão estatutária.
Nem se diga que, dessa forma, se exaspera a chamada «rigidez estatutária». Esta «rigidez» resultou directa e exclusivamente de uma opção do legislador constitucional, ao atribuir em exclusivo às assembleias legislativas regionais o poder de iniciativa em matéria de aprovação e revisão dos estatutos. Tal «rigidez» atingirá o seu grau máximo perante persistentes atitudes de completa inércia de iniciativa regional. Nesta perspectiva, a solução consagrada na norma agora em causa até pode contribuir, em termos práticos, para a atenuação dessa rigidez, uma vez que não é de afastar que a inibição, por parte das assembleias legislativas regionais, de apresentação de projectos de revisão seja condicionada pelo temor de, a entender-se consagrado um poder ilimitado da Assembleia da República de alterar qualquer parte do estatuto, correr o risco de, face a um projecto de revisão bem delimitado, serem introduzidas, sem iniciativa da Região, alterações profundas e tidas por regressivas da autonomia regional.
Refira-se, por último, que a norma questionada não representa qualquer «usurpação do poder constituinte». A regulação do procedimento legislativo de aprovação e revisão dos estatutos regionais não consta de forma esgotante do texto constitucional, nenhum obstáculo havendo a que seja igualmente desenvolvida nos estatutos regionais (desde que, obviamente, em termos compatíveis com as regras constitucionalmente consagradas, mas então a eventual desconformidade acarretaria inconstitucionalidade material, que não «usurpação» pelos estatutos da competência do legislador constitucional). Aliás, no recente Acórdão 402/2008, em processo de fiscalização preventiva do Decreto 217/X, relativo à 3.ª revisão do EPARAA, este Tribunal considerou admissível a inserção no Estatuto de regras relativas ao procedimento legislativo de revisão estatutária, não se tendo pronunciado pela inconstitucionalidade da regra do n.º 3 do artigo 47.º desse Decreto, que exigia maioria qualificada para a aprovação dos projectos de estatuto. - Mário José de Araújo Torres.
Declaração de voto Dissenti da decisão, quanto ao número A, n.º 6, por considerar que o poder da Assembleia da República de introduzir alterações nos projectos de revisão dos estatutos elaborados pelas Assembleias Legislativas regionais (artigo 226.º, n.os 2 e 4, da CRP) se cinge às matérias sobre que tenha incidido a iniciativa destes órgãos. Às Assembleias Legislativas das regiões autónomas não cabe apenas um genérico poder de impulso que, uma vez exercido, ponha nas mãos da Assembleia da República o poder de decidir sobre quaisquer matérias estatutárias, comportando o poder de introduzir matéria nova, não contemplada no projecto recebido. O poder de iniciativa daqueles órgãos regionais não se exerce no vácuo, tem como referente objectivo cada uma das normas projectadas, a elas e só a elas abrange, pelo que é de lhe atribuir valência delimitativa do âmbito material da decisão da Assembleia da República.
Só esta interpretação está de acordo com o modelo constitucional de concertação e de confluência de vontades entre os órgãos legiferantes regionais e o nacional, em matéria de criação e de revisão dos Estatutos. Esse modelo é o de uma competência partilhada, em que aos primeiros cabe a iniciativa e ao segundo o poder decisório sobre a solução definitiva. Ora, se este poder estivesse legitimado a incidir sobre as áreas não cobertas pelo projecto de alteração, as normas que resultassem do seu exercício não teriam na sua base uma iniciativa prévia da Assembleia Legislativa Regional sobre os pontos que elas regulam, o que contraria o balanceamento de poderes constitucionalmente traçado.
É claro que este regime de condicionamento recíproco dos poderes de normação estatutária, com incidência, cada um deles, em distintas fases do iter legislativo, dota os estatutos regionais de uma acentuado grau de rigidez, trazendo consigo um risco forte de bloqueamento dos processos de revisão, por mais aconselháveis que eles se possam afigurar. Mas, contrariamente ao afirmado no acórdão, essa rigidez não é «superior à prevista na Lei Fundamental», correspondendo antes ao inevitável efeito reflexo do que por esta foi intencionado. Em matéria tão delicada, de definição da «competência das competências», foi esse o meio encontrado de achar um ponto de equilíbrio entre os poderes regionais e o da República. Uma outra opção, de total desvinculação da Assembleia da República do objecto do projecto regional de revisão, importa a intervenção do legislador constituinte.
De resto, pode duvidar-se de que a interpretação que fez vencimento contribua para contrariar aquele bloqueamento. Pois não é ousado supor que o receio de um aproveitamento, em sentido indesejado, de uma iniciativa de revisão desincentive a Assembleia Regional de desencadear um procedimento de alteração. E, sem iniciativa deste órgão, não há revisão.
Pelo exposto, ter-me-ia pronunciado pela constitucionalidade do artigo 140.º, n.º 2, dos Estatutos da Região Autónoma dos Açores, na versão que lhe foi dada pela Lei 2/2009, de 12 de Janeiro - norma formulada, aliás, em termos abertos, com margem de flexibilidade aplicativa, na medida em que reconhece o poder da Assembleia da República em adicionar novos preceitos em «matérias correlacionadas» com as versadas no projecto regional.
Pode dizer-se, num outro plano, que, por fundada que seja esta interpretação do disposto na Constituição, não cabe aos Estatutos afirmá-la. Mas o Tribunal sempre tem entendido que preceitos infraconstitucionais repetitivos do que a Constituição consagra não estão, por isso, feridos de inconstitucionalidade. - Joaquim de Sousa Ribeiro.
Declaração de voto
1 - Votei vencida quanto ao n.º 3 da decisão (declaração de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 7.º, n.º 1, alínea o), 47.º, n.º 4, alínea c), 67.º, alínea d), 101.º, n.º 1, alínea n), e 130.º dos Estatutos: provedores sectoriais regionais) e quanto ao seu n.º 6 (declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 140.º, n.º 2: procedimento de alteração dos estatutos), pelas razões seguintes.2 - O Tribunal entendeu que eram inconstitucionais as normas estatuárias que previam a possibilidade de criação, por decreto legislativo regional, de provedores sectoriais apenas para a região. Fê-lo com um único fundamento: violação do artigo 23.º da Constituição. Quer isto dizer que entendeu como determinante para o juízo de inconstitucionalidade não a dimensão regional da questão (não o facto de a previsão ser constante de norma estatutária) mas a sua dimensão institucional-nacional, ou seja, o facto de o artigo 23.º da Constituição consagrar um provedor único, para todo o território nacional, e plurifuncional, ou com competências para a defesa não jurisdicional dos direitos das pessoas sem acepção de matérias. Concordo inteiramente com o juízo do Tribunal nesta parte. Não sendo a figura dos chamados «provedores sectoriais» constitucionalmente proibida, nenhuma razão haveria para entender que os estatutos não poderiam prever a sua criação só para a região, através de decreto legislativo regional. O nó górdio do problema reside assim (tal como o entendeu o Tribunal) na questão de saber se é inconstitucional a criação por acto legislativo, qualquer que ele seja, de um «provedor"» que seja «sectorial». O Tribunal entendeu que o era; foi desse julgamento que dissenti.
É certo que o artigo 23.º da Constituição consagra, como órgão constitucional, um provedor de justiça que é simultaneamente único e plurifuncional: as suas competências de defesa não jurisdicional dos direitos das pessoas valem para todo o território nacional, sendo os actos e omissões da administração regional, local ou estadual o «terreno privilegiado» da sua expressão, sem acepção de matérias ou sem consideração dos bens substanciais tutelados pelo direitos a defender. Por isso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed.
revista, p. 172), é o Provedor de Justiça, nos termos do artigo 23.º, um provedor plurifuncional: provedor médico, provedor militar, provedor do ensino ou provedor do ambiente.
Sendo tudo isto certo, creio no entanto que fica por demonstrar que seja inconstitucional a criação - desde logo pelo legislador ordinário, qualquer que ele seja - de provedores sectoriais.
Não o é, seguramente, por força do princípio formal-competencial de reserva de constituição. O Provedor de Justiça a que se refere o artigo 23.º da CRP foi primeiro instituído por lei ordinária, e só depois (logo com a primeira versão da CRP) recebido pela Constituição ou constitucionalizado. Tanto basta para demonstrar que não estamos aqui perante «matérias» que sejam, pela sua própria natureza ou por expressa imposição constitucional, reservadas à esfera de normação própria do poder constituinte, com exclusão de qualquer intervenção conformadora por parte do legislador ordinário. O facto de a Constituição Portuguesa, ao contrário de muitas outras, ter escolhido atribuir à instituição do Provedor valor e dignidade constitucional, terá seguramente consequências quanto à vinculação do poder legislativo; contudo, tais consequências inserir-se-ão no âmbito do princípio substancial do primado da Constituição, e não no âmbito do princípio formal-competencial da reserva de poder constituinte. Assim, o essencial da argumentação deve encontrar-se no ponto que segue.
Desta opção da CRP, de conferir valor e dignidade constitucional à instituição «Provedor de Justiça», decorrem vínculos seguros para o legislador ordinário. Desde logo, e negativamente, é-lhe vedada a eliminação da instituição; depois, e positivamente, é-lhe imposto um dever de conformação [da mesma instituição] em harmonia com os fins e funções que constitucionalmente lhe são atribuídos. Ao julgar como julgou, o Tribunal partiu do princípio segundo o qual a proibição da existência de provedores sectoriais se incluiria no âmbito deste dever do legislador de conformar a instituição «Provedor de Justiça» em harmonia com as funções que lhe são constitucionalmente conferidas. A meu ver, porém, ficou por demonstrar a necessária inclusão de uma coisa na outra. Como creio que a interpretação da Constituição se não faz pela leitura isolada dos seus preceitos - visto que nenhuma constituição se confunde com um "simples corpo articulado de preceitos escritos" - penso que a demonstração, a poder ser feita, requereria argumentos sistémicos fortes, que não vejam onde possam ser encontrados: nem na «unidade de sentido dos direitos fundamentais», razão maior para a existência, constitucionalmente tutelada, do Provedor de Justiça, nem no tipo de competências, não decisórias, que lhe são atribuídas, encontro tais argumentos. Não se discute que a criação de provedores sectoriais poderá corresponder a uma má política legislativa: como é evidente, as magistraturas de influência serão tanto menos influentes quanto mais plurais forem.
Também se não discute que, no limite, a má política legislativa possa redundar na emissão de normas inconstitucionais lesivas - i. a. - de um dever de boa administração. Contudo, o que creio é que este último juízo, a fazer-se, só poderá fundar-se no exame da instituição em concreto, de cada «Provedor Sectorial». A condenação em bloco da existência da figura, com fundamento em inconstitucionalidade, é que me parece infundada.
3 - Dissenti também do juízo que foi formulado a propósito da norma estatuária referente ao procedimento a seguir quanto à alteração do próprio estatuto (artigo 140.º, n.º 2). A questão que aqui se coloca é a de saber se há algum espaço para a conformação do iter procedimental a seguir sempre que estiver em causa a alteração do Estatuto Político-Administrativo da região. Entre o poder de impulso que, nos termos constitucionais, pertence em exclusivo à Assembleia Legislativa da região, e o poder de deliberação que, nos mesmos termos, pertence à Assembleia da República, existe espaço para uma ulterior regulação do procedimento, nomeadamente quanto à competência para o agendamento das matérias objecto da alteração? Em bom rigor, a pergunta subdivide-se em três questões distintas: primeira, a questão de saber se a Constituição responde, ela própria, ao problema; segunda, a questão de saber se pode o mesmo ser respondido pelas normas estatutárias; terceira, a questão de saber se o modo como a norma contida no n.º 2 do artigo 140.º, agora em juízo, a ele respondeu, ultrapassa, ou não, os limites constitucionais que lhe são aplicáveis.
O Tribunal resolveu todas estas questões entendendo o seguinte:
i) A Constituição responde, ela própria, a este problema;
ii) De qualquer modo, nunca os Estatutos poderiam versar sobre a matéria (qualquer que fosse a solução neles contida) porque é ela reservada à decisão constituinte.
Não creio que a Constituição tenha dado resposta ao problema. O que aparece recortado no texto constitucional, com clareza, é que pertence só às regiões o poder de iniciar o procedimento tendente à alteração dos estatutos; e que pertence só à Assembleia da República a competência para sobre elas deliberar. Entre o poder de impulso e o poder de deliberação existe, pois, um espaço para a conformação ulterior do procedimento tendente à aprovação, pelo Parlamento, das alterações estatutárias.
É para mim natural que esse espaço venha a ser preenchido pelas próprias normas estatutárias. Sendo os Estatutos Político-Administrativos das regiões precisamente aquilo que são - a norma básica da região, que, no quadro dos limites constitucionais, concretiza e organiza as regras fundamentais da autonomia - parece-me que pertencerá naturalmente ao seu âmbito a concretização e a organização das regras de procedimento relativas à alteração das suas próprias normas.
Se - diversamente do que foi o juízo maioritário do Tribunal - se partir do princípio segundo o qual a Constituição, não respondendo ela própria ao problema, deixa algum espaço para a conformação ulterior do iter procedimental, nem outra conclusão se afigura possível: as normas estatutárias poderão ser o lugar adequado para o preenchimento deste espaço.
No caso, determinava o n.º 2 do artigo 140.º do EPARAA que pertencesse à Região não apenas o poder de impulso do procedimento legislativo nacional tendente à aprovação das alterações das normas estatutárias, mas também o poder de agendamento das matérias objecto de alteração. Não me parece que esta conformação ulterior do procedimento legislativo ultrapassasse quaisquer limites constitucionais. Pois que entendi que, não respondendo a Constituição ao problema, deixava ela própria algum espaço para a solução ulterior dele, seguramente que não considero - como considerou o Tribunal - que tenham sido atingidos os limites decorrentes do n.º 2 do artigo 110.º e dos n.os 2 e 4 do artigo 226.º; mas também não vejo que outros limites constitucionais possam ter sido lesados.
No modo de feitura dos estatutos político-legislativos (e no modo de feitura das suas alterações) exprime-se o princípio da cooperação entre órgãos de soberania e órgãos da região (artigo 229.º). É esse princípio que explica que, neste procedimento legislativo atípico, a iniciativa legislativa esteja reservada a um ente exterior ao Parlamento (o único caso paralelo em que tal acontece é o da elaboração da lei do orçamento). Não me parece que seja consentânea com a razão de ser desta reserva a sua redução a um esquálido impulso procedimental, sem quaisquer consequências na fase ulterior do procedimento; e parece-me, pelo contrário, que se inscreve ainda no seu âmago a possibilidade de agendamento, por parte do titular do poder de iniciativa legislativa, das matérias objecto de alteração. Não vejo em que tal possa afectar as competências deliberativas da Assembleia da República, atento precisamente o disposto nos n.os 2 e 4 do artigo 226.º (poder de rejeição e poder de alteração por parte da AR). - Maria Lúcia Amaral.
Declaração de voto
Votei vencido a declaração de inconstitucionalidade do artigo 4.º, n.º 4, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, que prevê a utilização da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania que estejam situadas naquela Região, por entender que essa previsão se encontra abrangida pela reserva estatutária.Assumindo os Estatutos a forma de lei estruturante da organização e funcionamento das colectividades regionais, num papel complementar em relação à Constituição, devem incluir a definição e protecção dos símbolos da região (v., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, p. 291, ed. de 2007, Coimbra Editora, e Rui Medeiros, Tiago Freitas e Rui Lanceiro, em «Enquadramento da reforma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, pp. 179-180, ed. pol. de Dezembro de 2006), aí estando definidas as regras essenciais da sua utilização.
Se é certo que a imposição do hasteamento da bandeira regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania situadas na região interfere com a apresentação e gestão destas, encontrando-se essas instalações em território da região, os Estatutos Político-Administrativos são o diploma legislativo adequado para contemplar tal matéria, na lógica de uma autonomia cooperativa (v., neste sentido, Rui Medeiros, Tiago Freitas e Rui Lanceiro, ob. cit., p. 181).
A circunstância de nessas instalações ser também hasteada a bandeira nacional, tal como é hasteada nas instalações onde funcionam serviços da administração das regiões autónomas, nos termos impostos pelo artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 150/87, de 30 de Março, não é impeditivo que seja o Estatuto a determinar que nessas instalações seja também hasteada a bandeira regional.
Na verdade, se o regime dos símbolos nacionais deve ser definido por lei da Assembleia da República [artigo 164.º, alínea s), da CRP], nessa reserva de regime não se inclui a admissão da utilização da bandeira regional, nos mesmos edifícios onde é hasteada a bandeira nacional.
Ao incluir-se essa matéria no regime dos símbolos nacionais, com o argumento de que lhe compete escolher a «companhia» para a bandeira nacional, já não se estaria a regular a utilização dos símbolos nacionais, mas sim a utilização da bandeira regional.
Se deve ser o regime dos símbolos nacionais a definir os termos como deve ser compatibilizada a utilização nas mesmas instalações da bandeira nacional com outras bandeiras, nomeadamente as regionais, como faz o artigo 8.º do Decreto-Lei 150/87, de 30 de Março, não pode ser subtraído aos Estatutos o poder de admitir o hasteamento da bandeira regional nas instalações situadas na região, mesmo naquelas onde deva ser hasteada a bandeira nacional.
É o regime dos símbolos regionais que está em causa, o qual está incluído na reserva estatutária, pelo que o artigo 4.º, n.º 4, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, no meu entendimento, não é inconstitucional. - João Cura Mariano.
Declaração de voto
Votei no sentido da não inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 4.º, n.º 4, primeira parte, e 140.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.1 - Não acompanho a fundamentação do presente acórdão por entender que a norma constante do artigo 4.º, n.º 4, primeira parte, se limita a regular a utilização de um símbolo regional nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região.
Ainda que a regra de utilização da bandeira regional em questão contenda com regras de utilização da Bandeira Nacional, sendo matéria da exclusiva competência da Assembleia da República o regime dos símbolos nacionais [artigo 164.º, alínea s), da Constituição], tal regra consta de lei deste órgão de soberania (Lei 2/2009, de 12 de Janeiro, que aprova a terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores).
2 - Relativamente ao artigo 140.º, n.º 2, votei vencida pelas razões constantes da declaração de voto do conselheiro Mário Torres. - Maria João Antunes.