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Acórdão 102/2016, de 29 de Março

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Sumário

Julga inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 333/97, de 27 de novembro (direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo)

Texto do documento

Acórdão 102/2016

Processo 676/15

I. Relatório 1 - O Ministério Público e a CDA - Cooperativa de Gestão dos Direitos dos Artistas, Intérpretes ou Executantes recorreram para o Tribunal Constitucional da Sentença do Tribunal da Comarca de Lisboa - Instância Central - 1.ª Secção Cível - J20 que, julgando procedente a ação de anulação de decisão arbitral, decidiu

« não aplicar o disposto no artigo 7.º n.º 3 do DL 333/97, de 27.11, por organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165.º n.º 1 alínea p) da CRP »

(fls. 914).

O recurso do Ministério Público é obrigatório, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.os 1, alínea a), e 3, todos da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional (doravante, “LTC”) (fls. 919).

No seu recurso, a CDA peticiona que o Tribunal Constitucional julgue a norma em causa não inconstitucional (fls. 927/928).

2 - Admitidos os recursos, foram as partes notificadas para alegar, o que todas fizeram. modo:

3 - As alegações do Ministério Público concluem do seguinte

«

[...] O presente recurso de constitucionalidade do Ministério Público tem por objeto a douta sentença da 11.ª Vara Cível de Lisboa, de 23 de abril de 2015, no segmento em que recusou a aplicação da norma contida no artigo 7.º, n.º 3 do DL 333/97, de 27 de novembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea p) da Constituição.

QUESTÃO PRÉVIA Questão suscitada no requerimento alegatório de recurso apresentado pela Ré:

a sentença, objeto do presente recurso, ao conhecer da inconstitucionalidade orgânica da norma contida no artigo 7.º, n.º 3 do DL 333/97, violou caso julgado formado no processo com o Acórdão saneador arbitral, proferido em 12 de outubro de 2011, exceção dilatória que o Tribunal Constitucional deverá oficiosamente conhecer, não admitindo, em consequência, o recurso.

O recurso de constitucionalidade respeita necessariamente a questões de inconstitucionalidade normativa (arts. 280.º, n.º 6 da CRP e 71.º, n.º 1 da LOFPTC), tendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, com uniformidade, afirmado que lhe não cabe intrometer-se na correção das decisões das instâncias, conhecendo da inconstitucionalidade ou da ilegalidade da decisão judicial em si mesma.

A Ré, ao alegar que a sentença recorrida, ela mesma, insofrivelmente padece de nulidades e inconstitucionalidade, questões que exorbitam do poder de cognição do Tribunal Constitucional, tal alegação apenas poderá fundar recurso para a Relação, que no caso caberá (quanto às primeiras, conforme artigo 615.º, n.º 4 do CPC).

A Ré oferece, paralelamente, uma dimensão normativa da sentença recorrida:

inconstitucionalidade, não da sentença em si mesma, mas da interpretação que nela é feita do artigo 27.º, n.º 1, alínea a), da LAV de 1986, violadora do princípio da intangibilidade do caso julgado, inerente ao modelo de Estado de direito democrático.

Acontece que a alegada dimensão normativa da sentença recorrida, podendo, porventura, determinar a não admissão do presente recurso e o seu não conhecimento, não foi objeto de recurso para o Tribunal Constitucional, não devendo, portanto, em princípio, ser por este apreciada.

A questão, ademais, não poderia ser objeto de recurso para o Tribunal Constitucional:

tratar-se-ia de recurso apenas passível de ser enquadrado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LOFPTC e, como tal, condicionado ao prévio esgotamento dos meios recursórios ordinários (n.º 2 do mesmo artigo), no caso cabendo recurso para a Relação, como referido.

Importa, todavia, saber - como vem defendido pela Ré, invocando diversos arestos do Tribunal Constitucional-, se, não obstante, deverá o Tribunal Constitucional oficiosamente conhecer da questão da violação de caso julgado, nos termos conjugados dos arts. 69.º da LOFPTC e 578.º do CPC (artigo 495.º do CPC de 1961), à margem, portanto, do quadro recursório definido nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 70.º, bem como nos arts. 71.º, n.º 1 e 79.º-C, todos da LOFPTC.

O que em todos os invocados arestos - e a que, naturalmente, é dada resposta positiva - é uma questão distinta, a possibilidade de o Tribunal Constitucional sindicar a eventual violação de caso julgado relativamente às suas próprias decisões anteriormente proferidas no processo, nos termos do n.º 1 do artigo 80.º da LOFPTC.

Não estando em causa no presente recurso alcance de decisão proferida pelo próprio Tribunal Constitucional anteriormente no processo, não compete a este, à margem do quadro recursório estabelecido nos citados arts. 70.º, n.º 1, 71.º, n.º 1 e 79.º-C da LOFPTC, e como questão prévia, conhecer do acerto, da nulidade ou da inconstitucionalidade, designadamente por violação de caso julgado, da sentença recorrida.

Improcede, deste modo, a questão prévia suscitada relativamente à inadmissibilidade do recurso, nada parecendo que deva obstar ao conhecimento do seu objeto.

DO OBJETO DO RECURSO Estabelece o n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97 que a resolução de litígio em matéria de autorização da retransmissão por cabo fica sujeita a arbitragem - arbitragem necessária-, cuja disciplina, nada vindo aí especialmente determinado, é remetida para as disposições gerais constantes dos arts. 1082.º a 1085.º do CPC (arts. 1525.º a 1528.º do CPC de 1961) e, por via deste último artigo, para a LAV.

A resolução de litígio por via arbitral, prevista no n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97, não é matéria coberta pela Lei 99/97, de 3 de setembro, lei de autorização legislativa ao abrigo da qual aquele diploma foi emitido, nem integra a Diretiva 93/83/CEE, que o mesmo diploma visou transpor.

O preceito em causa procede, desse modo, à instituição - instituição inovatória - de uma dada instância arbitral necessária, cuja competência é unicamente definida em razão da matéria (litígio em matéria de autorização da retransmissão por cabo).

A instituição da nova instância arbitral não se reconduz, nem se confunde, com a criação de uma determinada instância em concreto - cada um dos novos casos que a ela passará a estar sujeito é que criará em concreto a sua própria instância (diferentemente do que ocorre no sistema jurisdicional do Estado, em que, em razão da matéria, do território e da hierarquia, se assiste à criação ou à extinção de cada tribunal em concreto).

Vem no processo defendida a constitucionalidade da criação da nova instância arbitral pelo n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97, interconexionada com a competência dos tribunais do Estado, à luz de uma visão, ditagradualista, presente na jurisprudência constitucional.

A criação da nova instância arbitral pelo n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97, desde logo pela total ausência aí verificada de disciplina especial em matéria de organização e de sindicabilidade das suas decisões, não suscita questões de constitucionalidade quanto ao direito de acesso aos tribunais e ao princípio de tutela jurisdicional efetiva, matéria que não está em causa no recurso.

Importa acentuar que a LC 1/89 aditou no final da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição [nas numerações e redações anteriores, sucessivamente, alínea j) do n.º 1 do artigo 167.º e alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º] o segmento

«

…, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos

»:

passou, então, a ficar claro que a instituição e definição da competência de tribunal arbitral, obrigatório ou voluntário, é matéria da reserva relativa da Assembleia da República.

Examinada a génese e o quadro de desenvolvimento da denominada tese ou visão gradualista, verifica-se que ela corresponde a uma etapa histórica da jurisprudência constitucional, de superação da tese de que os tribunais arbitrais não podiam, sem mais, ser considerados abrangidos pela reserva da competência da Assembleia da Republica estabelecida na alínea q) do n.º 1 do artigo n.º 168.º da Constituição [precedentemente, alínea j) do n.º 1 do artigo 167.º; na redaçãoatualmente vigente, alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º].

Tal jurisprudência, ao acolher a possibilidade de divergências conceptuais acerca da natureza dos tribunais arbitrais e de valorações diversas quanto ao seu relacionamento com os tribunais estaduais, faculta o ingresso daqueles na zona de reserva de competência da Assembleia da República, mas demodo indireto ou reflexo e com conta, peso e medida -

« a reserva do artigo 168.º, alínea q), ainda aí opera indiretamente, na medida em que exige uma intervenção da Assembleia da República sempre que a legislação sobre aqueles tribunais afete ou contenda com a definição da competência dos tribunais estaduais. Com a definição dessa competência - bem entendido - naquele nível ou grau em que ela entra na reserva parlamentar - e que não será um qualquer »

(da declaração de voto junta ao Ac. 230/86, reiteradamente transcrito na jurisprudência considerada).

Após a integração expressa das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos na previsão final da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, através da LC 1/89, deixou de ter sustentação na clareza da letra constitucional a tese em causa (in claribus non fitinterpretatio).

A delimitação da reserva de competência da AR passa a ser claramente determinada não por razão de poder judicial (tribunais do Estado, enquanto

« órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo »

- n.º 1 do artigo 202.º da CRP), mas por razão de função judicial (nesta naturalmente englobadas as entidades não jurisdicionais de composição de conflitos).

Conclui-se, deste modo, que, o n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97, ao instituir uma nova instância arbitral necessária para resolução de litígios em matéria de autorização da retransmissão por cabo, não coberta pela autorização contida na Lei 99/97, sofre de vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.

O vício de inconstitucionalidade orgânica que inquina o n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97 não se pode ter por sanado e a norma por convalidada, à luz do disposto no n.º 3 do artigo 28.º da Lei 83/2001, de 3 de agosto (diploma entretanto revogado pelo artigo 62.º da Lei 26/2015, de 14 de abril).

Termos em que, nessa parte se confirmando a douta sentença recorrida, deve ser declarada a inconstitucionalidade orgânica da norma contida no n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97, de 27 de novembro, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea p) da Constituição.

»

4 - A recorrente particular CDA, por seu turno, não apresenta conclusões explícitas nas suas alegações. Transcreve-se, por isso, a parte das mesmas em que se suscita a intervenção do Tribunal Constitucional:

«

Nestes termos, requer-se que:

(i) O Tribunal Constitucional não admita os recursos interpostos:

(i) o presente recurso, e (ii) o recurso obrigatório interposto pelo Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 28O., n.º 3 da CRP e artigo 72.º, n.º 3 da Lei 28/82, de 15 de novembro;

(ii)Seja ordenado que se retomem os prazos de recurso ordinários e, só após decisão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre as questões a apreciar, caso ainda seja necessário, se aprecie a constitucionalidade da norma em crise;

(iii) Subsidiariamente, caso se admitam os recursos para o Tribunal Constitucional, que a Ré assuma nele a posição de Recorrente, de forma a que seja apreciada a questão de inconstitucionalidade da interpretação que o Tribunal a quo faz do artigo 27.º da Lei de Arbitragem Voluntária de 1986; bem como para demonstrar que o artigo 7.º, n.º 3 do Decreto Lei 333/97, de 27 de novembro, é conforme à Constituição.

»

5 - Também a recorrida MEO - Serviços de Comunicações e Multimédia, S. A. contra alegou, concluindo:

«

1.ª Os presentes autos de recurso de constitucionalidade têm por origem a interposição de recurso, quer pela Recorrente quer pelo Ministério Público, da sentença da 11.ªVara Cível de Lisboa, de 23 de abril de 2015,no segmento em que recusou aplicar a norma contida no n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97 com fundamento na respetiva inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea p) da CRP.

(i) Quanto à questão prévia de inadmissibilidade levantada pela

Recorrente 2.ª O recurso apresentado pelo Ministério Público é tempestivo e a sua interposição obrigatória, nos termos dos artigos 280.º n.º 3 da CRP e 72.º n.º 3 da LOFPTC, pois está em causa a desaplicação de uma norma contida em ato legislativo com fundamento em inconstitucionalidade.

3.ª O facto de o Acórdão Arbitral Saneador se ter pronunciado sobre a constitucionalidade orgânica do artigo 7.º n.º 3 do DL 333/97 não afeta a referida tempestividade.

4.ª A Recorrida requereu a anulação da decisão arbitral final nos termos legalmente previstos (artigo 27.º, n.º 1, alíneas (a) e (b), da LAV), nada impedindo que os fundamentos de anulação da sentença arbitral que invocou (não submissão do litígio à arbitragem e irregularidade da constituição do Tribunal Arbitral) sejam, por sua vez, fundados no mesmo juízo de inconstitucionalidade orgânica do artigo 7.º n.º 3 do DL 333/97.

5.ª Não há, nos presentes autos, exceção dilatória de caso julgado não conhecida pelo Tribunal a quo e da qual o Tribunal Constitucional deveria conhecer, desde logo porque o Tribunal a quo analisou a exceção de caso julgado invocada e concluiu pela não verificação da mesma.

6.ª Ainda que assim não se entendesse, os recursos de fiscalização concreta para o Tribunal Constitucional são restritos à questão da inconstitucionalidade em causa (cf. artigo 280.º, n.º 6 da CRP e artigo 71.º, n.º 1 da LOFPTC) e só as questões de inconstitucionalidade normativa podem ser objeto de recurso (o Tribunal Constitucional tem entendido pacificamente não dever imiscuir-se na correção das decisões das ins-tâncias, não devendo conhecer da inconstitucionalidade ou ilegalidade da decisão judicial em si mesma).

7.ª A existirem as invocadas nulidades e a invocada inconstitucionalidade da sentença do Tribunal a quo por não ter - alegadamente - apreciado a exceção de caso julgado invocada pela aqui Recorrente, as mesmas poderão ser objeto de reapreciação em sede de recurso ordinário para o Tribunal da Relação, após o decurso do presente recurso de constitucionalidade (cf. artigos 78.º, n.º 4, e 75.º, n.º 1, da LOFPTC).

8.ª O Tribunal Constitucional não tem que conhecer oficiosamente da alegada exceção dilatória de caso julgado, porque a fiscalização concreta da constitucionalidade reconduz-se unicamente ao julgamento da inconstitucionalidade da norma aplicada ou recusada (cf. artigos 70.º, n.º 1, 71.º n.º 1 e 79.º-C da LOFPTC).

9.ª A jurisprudência constitucional tem entendido que a sindicância de eventual violação de caso julgado pelo Tribunal fora do enquadramento específico do artigo 70.º n.º 1 da LOFPTC tem lugar apenas relativamente às suas próprias decisões, que fazem caso julgado no processo e cujo acatamento o Tribunal tem competência para avaliar (cf. artigo 80.º n.º 1 da LOFPTC). Manifestamente, não é o caso da exceção suscitada pela Recorrente.

10.ª O Tribunal Constitucional não pode conhecer da questão nova trazida aos autos pela Recorrente no seu requerimento de interposição de recurso - inconstitucionalidade da interpretação efetuada pelo Tribunal a quo do artigo 27.º, n.º 1 alínea a) da LAV-, porque não integra a matéria objeto do recurso e porque não cumpre os requisitos para interposição de recurso ao abrigo do artigo 70.º n.º 1 alínea b) da LOFPTC.

11.ª A Recorrente não cumpriu a regra de suscitação prévia desta questão de inconstitucionalidade e não se verifica nos Autos qualquer das exceções reconhecidas pela jurisprudência do Tribunal Constitucional a esta regra.

12.ª Além do mais, não foram esgotados, a respeito da sentença recorrida, todos os recursos ordinários possíveis, o que se impunha que tivesse ocorrido nos termos do artigo 70.º, n.º 2, da LOFPTC.

13.ª A alegada inconstitucionalidade da interpretação que a sentença recorrida faz do artigo 27.º, n.º 1, alínea a), da LAV não pode ser admitida nem apreciada pelo Tribunal Constitucional, por não estarem reunidos os requisitos legais para tanto necessários.

14.ª Atenta a improcedência das questões prévias suscitadas pela Recorrente, o recurso do Ministério Público deve ser apreciado pelo Tribunal Constitucional e, nessa sede, deve ser considerada a alegação da Recorrente, em observância do princípio do contraditório.

(ii) Quanto à inconstitucionalidade orgânica do artigo 7.º n.º 3

15.ª A norma constante do artigo 7.º, n.º 3 do Decreto Lei 333/97, de 27 de novembro está incluída na reserva relativa de competência da Assembleia da República.

16.ª É hoje aceite pela doutrina e constitui já jurisprudência constante do Tribunal Constitucional que a criação de tribunais arbitrais necessários, bem como a atribuição de competência a estes tribunais se encontra incluída na reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, à luz da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.ºda CRP.

17.ª O problema da inclusão direta ou indireta dos tribunais arbitrais no âmbito da competência legislativa exclusiva da Assembleia da República ficou definitivamente resolvido no primeiro sentido quando, na primeira revisão constitucional de 1989, a atual alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º passou a fazer referência expressa à “as entidades não jurisdicionais de composição de conflitos”.

18.ª Não tem hoje relevância prática a tese gradualistaque a Recorrente invoca para procurar afastar a inconstitucionalidade orgânica do artigo 7.º n.º 3 do DL 333/97, tese desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional para superação da tese de que os tribunais arbitrais não podiam, sem mais, ser considerados abrangidos pela re-serva de competência da Assembleia da República, pelo que sê-lo-iam, então, na medida em que afetassem a definição da competência dos tribunais estaduais.

19.ª O DL 333/97foi decretado, conforme decorre do seu próprio preâmbulo, no “uso da autorização legislativa concedida pela alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 99/97, de 3 de setembro”.

20.ª O respetivo artigo 7.º, n.º 3 visou consagrar um regime de arbitragem necessária, i.e. de obrigatoriedade legal dos sujeitos destinatários da norma de recorrerem a uma instância arbitral para a resolução dos respetivos litígios, pelo que só poderia encontrar suporte constitucional na indicada lei de autorização legislativa.

21.ª Não obstante, a Lei 99/97 nada prevê sobre a matéria constante do n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97, não incluindo qualquer passagem referente a arbitragem ou a tribunais arbitrais.

22.ª Nestes termos, urge concluir que o n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97 se encontra notoriamente ferido de inconstitucionalidade orgâ-nica, facto que não é alterado pela circunstância de estarmos perante a transposição de uma Diretiva europeia. do DL 333/97

23.ª Este juízo de inconstitucionalidade não se altera com o (hipo-tético) argumento de natureza histórica apresentado pela Recorrente, relativo aos trabalhos preparatórios da lei de autorização legislativa, não se encontrando nenhum elemento nos autos que permita aferir que a Assembleia “tinha absoluta consciência de que a matéria constante do n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97 não se continha na sua reserva de competência”, e demonstrando os restantes elementos interpretativos exatamente o contrário:

que a matéria constante do n.º 3 do artigo 7.º se incluía, efetivamente, na reserva de competência da Assembleia da República.

24.ª Este juízo de inconstitucionalidade também não se altera com a posterior aprovação da Lei 83/2001, de 3 de agosto, nomeadamente o seu artigo 28.º, n.º 3, já que esta Lei apenas estabelece uma previsão geral para os casos em que, de forma válida perante o ordenamento jurídico português, um outro diploma legal tenha sujeitado um determinado litígio a arbitragem necessária, não definindo o âmbito material da “arbitragem obrigatória” a que faz referência, questão que sempre terá de constar de outra lei da Assembleia da República ou de um decretolei, desde que devidamente autorizado por aquela.

25.ª Por fim, este juízo de inconstitucionalidade não se altera devido ao princípio da presunção da constitucionalidade das normas, uma vez que qualquer presunção sobre a natureza da norma conforme com a constituição foi ilidida nos presentes autos.

26.ª Em conclusão, resulta de todo o exposto que a norma constante do artigo 7.ºn.º 3 do DL 333/97 está, efetivamente, ferida de inconstitucionalidade orgânica, não podendo ser aplicada, nos termos do artigo 204. º da CRP, devendo por isso ser confirmada a decisão do Tribunal a quo na parte em que decidiu pela referida não aplicação.

»

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos 6 - Antes de proceder à apreciação de constitucionalidade propriamente dita, há que ponderar uma questão prévia que, a ser afirmativamente resolvida, implicaria o não conhecimento do objeto do recurso. A recorrida CDA sustenta que o Tribunal Constitucional deveráconhecer oficiosamente da questão da violação de caso julgado pela Sentença do Tribunal da Comarca de Lisboa, para tal invocando as normas dos artigos 69.º da LTC e 578.º do Código de Processo Civil - o mesmo vale por dizer, fora do âmbito definido nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 70.º, bem como nos artigos 71.º, n.º 1 e 79.º-C, todos da LTC.

Para tanto convoca a recorrida diversa jurisprudência do Tribunal. Porém, tal invocação faz pouco sentido, uma vez que toda a jurisprudência indicada (Acórdãos n.os 532/99, 340/2000 e 150/2001) respeita à possibilidade de o Tribunal sindicar a eventual violação de caso julgado relativamente às suas próprias decisões, anteriormente proferidas no processo, nos termos do n.º 1 do artigo 80.º da LTC.

O que a recorrente pretende, porém, não é isso, mas algo bem diverso:

que o Tribunal se pronuncie sobre a ofensa do caso julgado formado com base no acórdão arbitral.

Ora, não estando em causa no presente recurso alcance de decisão proferida pelo próprio Tribunal Constitucional anteriormente no processo, não compete a este, à margem do quadro estabelecido nos citados artigos 70.º, n.º 1, 71.º, n.º 1, e 79.º-C da LTC, e como questão prévia, conhecer de hipotética violação de caso julgado pela sentença recorrida. Como bem refere o Ministério Público:

«

A existirem as invocadas nulidades e a invocada inconstitucionalidade da sentença do Tribunal a quo por não ter - alegadamente - apreciado a exceção de caso julgado invocada pela aqui Recorrente, as mesmas poderão ser objeto de reapreciação em sede de recurso ordinário para o Tribunal da Relação, após o decurso do presente recurso de constitucionalidade (cf. artigos 78.º, n.º 4, e 75.º, n.º 1, da LOFPTC).

[...] 8.ª O Tribunal Constitucional não tem que conhecer oficiosamente da alegada exceção dilatória de caso julgado, porque a fiscalização concreta da constitucionalidade reconduz-se unicamente ao julgamento da inconstitucionalidade da norma aplicada ou recusada (cf. artigos 70.º, n.º 1, 71.º n.º 1 e 79.º-C da LOFPTC).

9.ª A jurisprudência constitucional tem entendido que a sindicância de eventual violação de caso julgado pelo Tribunal fora do enquadramento específico do artigo 70.º n.º 1 da LOFPTC tem lugar apenas relativamente às suas próprias decisões, que fazem caso julgado no processo e cujo acatamento o Tribunal tem competência para avaliar (cf. artigo 80.º n.º 1 da LOFPTC). Manifestamente, não é o caso da exceção suscitada pela Recorrente

»

.

Decidida a questão prévia, há que apreciar e decidir a questão de constitucionalidade.

7 - A norma cuja constitucionalidade se julga consta do n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Lei 333/97, de 27 de novembro. Nela se escreve:

«

[...] 3 - Na falta de acordo sobre a autorização da retransmissão por cabo, o litígio resolver-se-á por via arbitral, nos termos da lei.

Registe-se que esta norma, ao determinar que o litígio se resolverápor via arbitral, impõe a via arbitral como obrigatória para tal resolução. Dela resulta ser a arbitragem necessária, no sentido habitualmente dado a este termo de que a matéria sobre que irá incidir a decisão arbitral escapa à jurisdição de qualquer tribunal do Estado:

dela apenas se pode ocupar o tribunal arbitral.

A acusação de inconstitucionalidade orgânica dirigida à norma resulta de ela, alegadamente, se incluir na reserva relativa de competência da Assembleia da República. Na verdade, ela parece abrangida pela alínea p) do n.º 1 do artigo 165.ºda CRP, disposição que se refere à

« organização e competência dos tribunais e do Ministério Público, e estatuto dos respetivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos. »

8 - Mas não é, evidentemente, bastante a demonstração de que a norma do n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Lei 333/97 se inclui na reserva relativa de competência da Assembleia da República para concluir pela respetiva inconstitucionalidade orgânica. Precisamente porque (a) está em causa a reserva relativa e (b) se trata de norma constante de diploma legal autorizado (cf. preâmbulo do Decreto Lei 333/97, onde se refere explicitamente, a norma habilitante - no

« uso da autorização legislativa concedida pela alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 99/97, de 3 de setembro »

), é indispensável demonstrar que a norma sob juízo escapa ao âmbito da habilitação; complementarmente, e de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, é ainda determinante que a norma legal em causa tenha inovado na ordem jurídica (cf., designadamente, o Acórdão 859/2014):

«

Por outro lado, de acordo com a jurisprudência reiterada do Tribunal, para que se afirme a inconstitucionalidade orgânica não basta que nos deparemos com produção normativa não autorizada do Governo em determinado domínio onde este órgão só poderia intervir com credencial parlamentar bastante. O facto de o Governo aprovar atos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas por vício de inconstitucionalidade orgânica. Desde que se demonstre que tais normas não criaram um ordenamento diverso do então vigente, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente, o Tribunal vem entendendo não existir invasão relevante da esfera de competência reservada.

»

Tal demonstração é fácil:

desde logo, em ponto algum da Lei 99/97 se faz qualquer referência ao modo de resolução de eventuais litígios. Depois, porque os litígios em causa não se encontravam anteriormente submetidos a arbitragem, sendo evidente a inovação.

Parece, assim, confirmar-se, a pertinência da acusação de inconstitucionalidade orgânica.

9 - E dizemos, “parece”, porque há ainda que ponderar os argumentos aduzidos pelos recorrentes - e contrariados pela recorrida - para infirmar tal conclusão. E começamos por apreciar o que assenta numa suposta presunção da constitucionalidade das leis. Nas palavras de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (cit., p. 529:

«

É duvidoso que se deva admitir uma utilização acrítica e indiferenciada de uma pretensa presunção geral e inderrogável de constitucionalidade perante qualquer situação de dúvida de inconstitucionalidade [...] Em qualquer caso, como princípio indicativo, pode admitir-se que impenda sobre quem pretenda arguir a violação de princípios fundamentais de um Estado de direito material o ónus da respetiva demonstração.

»

Por outras palavras:

não existe uma verdadeira presunção de constitucionalidade das leis - que seria contrária ao comando do artigo 204.º da CRP, sendo, evidentemente, por isso, que o excerto que se transcreveu integra a anotação a este preceito constitucional. Apenas se poderá admitir uma espécie de “ónus” de demonstração da inconstitucionalidade, uma vez que esta, a inconstitucionalidade, também não se presume. Aquele que invoca a inconstitucionalidade deve explicar por que razão, em seu entender, a matéria em causa integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, daí resultando a necessidade de autorização legislativa ou a incompetência do legislador governamental.

10 - Vejamos, em segundo lugar se e em que medida este juízo de inconstitucionalidade sofre o impacto do argumento de índole histórica relativo aos trabalhos preparatórios da lei de autorização legislativa, no sentido de que a Assembleia da República

« tinha absoluta consciência de que a matéria constante do n.º 3 do artigo 7.º do DL 333/97 não se continha na sua reserva de competência »

.

Este argumento, porém, somente faria algum sentido se constasse do processo, ou pudéssemos aceder, a algum elemento suscetível de clarificar o sentido da “consciência” da Assembleia da República. Não conseguimos, todavia, alcançar nenhum.

11 - Em terceiro lugar, ponderaremos a eventual relevância, no plano da constitucionalidade, da circunstância de o Decreto Lei 333/97 concretizar a transposição de três diretivas da União Europeia, relevando no caso a Diretiva n.º 93/83(CEE).

A resposta é simples:

não tem relevância alguma. Na verdade, é entendimento do Tribunal Constitucional, expresso, designadamente, no Acórdão 75/2013:

«

A circunstância de os decretoleis em causa procederem a uma mera transposição de ato legislativo da União Europeia que, nessa qualidade, vincula o Estado português não desonera o Governo da República de acautelar o estrito cumprimento das regras constitucionais de distribuição de competência legislativa. Apesar de tal transposição poder ocorrer mediante “lei”, “decreto-lei” ou “decreto legislativo regional” (artigo 112.º, n.º 8, da CRP), tal não significa que haja uma liberdade incondicionada de opção pela forma de ato legislativo, antes se impondo aos órgãos constitucionais com competência legislativa a adoção do ato adequado, segundo as normas constitucionais de distribuição de competência. Tal já foi, aliás, afirmado por este Tribunal, a propósito da transposição de diretivas pelas assembleias legislativas das Regiões (cf. Acórdão 423/2008, disponível in www.tribunalconstitucional. pt/tc/acordaos/). Em suma, a verificação de um dever internacional de adequação do ordenamento jurídico português a normas de fonte europeia não desonera o Governo da República de acatar o sistema constitucional de distribuição de competências legislativas.

»

Quer isto dizer, sem margem para quaisquer dúvidas, que nenhuma especificidade apresenta no plano do controlo da constitucionalidade orgânica a circunstância de nos encontrarmos perante um diploma legal de transposição de diretivas da EU. E, se tal não bastasse, acresce que a norma do n.º 1 do artigo 11.º da diretiva em causa se limita a impor aos Estadosmembros a obrigação de estabelecerem, nas respetivas legislações nacionais, um mecanismo de mediação, nenhuma referência fazendo à arbitragem - nem facultativa, nem necessária. Aí se escreve:

«

Sempre que não seja possível chegar a acordo sobre a autorização de retransmissão de uma emissão de radiodifusão por cabo, os Estados-membros garantirão que todas as partes interessadas possam recorrer a um ou mais mediadores.

»

Ou seja:

a inclusão da arbitragem não resulta do imperativo de transposição da diretiva, tendo antes sido o resultado de uma opção legislativa autónoma do Governo português.

12 - Em quarto lugar, há que analisar as eventuais repercussões da aprovação da Lei 83/2001, de 3 de agosto, - entretanto revogada pela Lei 26/2015, de 15 de abril, que deixou de prever a arbitragem - nomeadamente do n.º 3 do seu artigo 28.º, na norma sob juízo. Nesta disposição, em artigo com a epígrafe Arbitragem voluntária, prevê-se que

« a comissão exerce a arbitragem obrigatória que estiver prevista na lei. »

Na tese sustentada pela recorrida, o vício orgânico de que eventualmente sofresse o n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Lei 333/97 teria sido sanado por aquela outra norma, essa constante de lei da Assembleia da República.

Por outras palavras:

a referência à arbitragem obrigatória

« prevista na lei » da Assembleia da República em 2001 cobriria a disposição governamental não autorizada de 1997 no sentido de que
«

[...] o litígio resolver-se-á por via arbitral, nos termos da lei

»

.

Ora, como bem refere o Ministério Público, por um lado, não nos encontramos no âmbito da apreciação parlamentar dos DecretosLeis, estabelecido no artigo 169.º da CRP; por outro, não se trata de reprodução por uma lei da Assembleia da República de normas legais anteriores afetadas de inconstitucionalidade orgânica (v. supra).

A principal jurisprudência do Tribunal Constitucional que se pronunciou sobre situações em que a Assembleia da República havia atuado sobre Decretos-Leis afetados de inconstitucionalidade orgânica enquadrou-se sempre em contextos de apreciação parlamentar de DecretosLeis do Governo ou de aprovação de leis parlamentares que incorporaram normas originais daqueles.

E foi exclusivamente nestes contextos que, manifestando embora dúvidas dogmáticas, tal jurisprudência se inclinou no sentido de que as referidas situações, se não eliminavam a inconstitucionalidade orgânica, pelo menos punham em causa a sua invocabilidade futura.

Assim, no Acórdão 786/1996:

«

A possibilidade, efetivamente utilizada, de uma discussão na especialidade das normas impugnadas e da sua reafirmação num novo processo legislativo assegura a iniciativa parlamentar e ilustra uma verdadeira vontade legislativa. Através do uso de tal faculdade, a não recusa de ratificação não se esgota numa vontade política, assumindo-se como verdadeira intenção legislativa.

Assim, embora num plano lógicoformal seja questionável qualquer superação da inconstitucionalidade orgânica por esta assunção legislativa (porque, na realidade, também a recusa de ratificação apenas faz cessar a vigência do diploma após a sua publicação) e não se possa atribuir a esta vontade legislativa uma eficácia sanatória ou uma supressão retroativa da inconstitucionalidade, também é verdade que a justificação da invocação da inconstitucionalidade orgânica, num plano funcional, não se verifica.

»

No Acórdão 368/2002:

«

Da jurisprudência transcrita - que se não vê razão para infletir e aqui se reitera - retira-se que, tendo em conta “a função de controlo parlamentar da decisão legislativa”, a aprovação de uma lei de emendas, ao abrigo do antigo artigo 172.º da Constituição, tem como efeito a ininvocabilidade futura da inconstitucionalidade orgânica de, pelo menos, as seguintes normas constantes do decretolei alterado por essa mesma lei de emendas.

»

E no Acórdão 490/2011:

«

Como se referiu no Acórdão deste Tribunal n.º 321/2004 (in Diário da República, 2.ª série, de 20 de julho de 2004) se a lei de alteração e um decretolei vier a reproduzir normas organicamente inconstitucionais, “é inegável que a Assembleia da República assume ou adota tais normas como suas ao mantêlas inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respetiva fonte”.

»

Em suma, é imprestável a invocação desta jurisprudência para defender a tese de que a inconstitucionalidade orgânica de que eventualmente sofresse o n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Lei 333/97 teria sido sanada pelo n.º 3 do seu artigo 28.º da Lei 83/2001.

Acresce, por último, que, como acertadamente se escreve no parecer de fls. 514 do processo arbitral, uma vez que

« a definição do que seja o âmbito material da “arbitragem obrigatória” não consta da Lei 83/2001, não pode deixar, por essa razão, de constar de uma outra lei da Assembleia da República ou de um decretolei autorizado »

.

Na verdade, aquela lei apenas estabelece uma previsão geral para os casos em que, de forma válida perante o ordenamento jurídico português, um outro diploma legal tenha sujeitado um determinado litígio a arbitragem necessária, não definindo o âmbito material da “arbitragem obrigatória” a que faz referência, questão que sempre terá de constar de outra lei da Assembleia da República ou de um decretolei, desde que devidamente autorizado por esta.

13 - Por último, avaliaremos se a chamada tese gradualista,que a Recorrente invoca para procurar afastar a inconstitucionalidade orgânica do n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Lei 333/97, desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional para ultrapassar uma dificuldade resultante de anterior texto da Lei Fundamental, entretanto modificado, ainda apresenta hoje relevância prática.

Recordem-se os dados da questão. O texto constitucional vigente antes da revisão constitucional de 1989 possibilitava uma interpretação segundo a qual os tribunais arbitrais não podiam, sem mais, ser considerados abrangidos pela reserva da competência da Assembleia da Republica estabelecida na então alínea q) do n.º 1 do artigo n.º 168.º da Constituição. Tal norma dispunha que integravam a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a

« organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respetivos magistrados »

.

A dúvida suscitada por esta formulação esteve na origem do voto de vencido subscrito, no Acórdão 230/1986, pelos Conselheiros Cardoso da Costa e Messias Bento, onde se pode ler:

«

É que - e esse, justamente, o nosso ponto de vista - a reserva do artigo 168.º, alínea q), ainda aí opera indiretamente, na medida em que exige uma intervenção da Assembleia da República sempre que a legislação sobre aqueles tribunais afete ou contenda com a definição da competência dos tribunais estaduais. Com a definição dessa competência - bem entendido - naquele nível ou grau em que ela entra na reserva parlamentar - e que não será um qualquer. Este último ponto, contudo, não carecerá de ser exaustivamente esclarecido:

bastará dizer que a esse nível se situam seguramente as normas que, v. g., distribuiu a competência contenciosa entre as diferentes ordens de jurisdição estaduais, delimitem genericamente o respetivo âmbito material de competência ou ainda estabeleçam o tipo de conexão que há de interceder entre os tribunais do Estado e os tribunais arbitrais.

»

O subsequente Acórdão 32/1987 veio retomar o debate, parecendo mais sensível à tese que havia anteriormente ficado vencida:

«

Se as coisas seriam entendidas (ou de entender) ou não assim - isto é, se a doutrina estabelecida pelo Acórdão 230/86 seria igualmente perfilhada (ou de perfilhar), ou não, face ao texto inicial da Constituição - é ponto, todavia, que não importa esclarecer.

E não importa porque, ainda quando se não perfilhe tal doutrina - e ainda que se a não perfilhe, como acontece com vários dos subscritores do presente aresto, mesmo face à redação atual da Constituição (cf. declarações de voto anexas ao Acórdão citado) - sempre haverá de entender-se que a reserva da alínea j) do artigo 167.º [hoje, do artigo 168.º, alínea q)] não pode deixar de operar quanto à legislação sobre tribunais arbitrais (voluntários ou necessários) sempre que essa legislação “afete ou contenda com a definição da competência dos tribunais estaduais assim se exprime uma das declarações de voto referidas) sempre que contenda com a definição dessa competência - sublinhou-se na mesma declaração - “naquele nível ou grau em que ela entra na reserva parla-mentar”. E nesse nível situam-se seguramente - exemplificou-se ainda na declaração referida - “as normas que, v. g., distribuam a competência contenciosa entre as diferentes ordens de jurisdição estaduais, delimitem genericamente o respetivo âmbito material de competência, ou ainda estabeleçam o tipo de conexão que há de interceder entre os tribunais do Estado e os tribunais arbitrais”.

Assim, normas que, embora visando diretamente os tribunais arbitrais, uma certa categoria deles ou até só e uma dessas instâncias, todavia interfiram com a regulamentação de qualquer das matérias antes enunciadas (ou outras que devam considerar-se no mesmo plano), caem necessariamente na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, estabelecida inicialmente pelo artigo 167.º, alínea j), e agora pelo artigo 168.º, alínea q), da Constituição.

»

14 - Foi esta a origem da chamada “tese gradualista”, que sustentava que a circunstância de um decretolei não autorizado instituir tribunais arbitrais ou regular a respetiva competência não gerava ipso facto o vício de inconstitucionalidade orgânica, havendo de comprovar-se, ainda, que as suas normas afetavam, efetivamente, a

« organização e competência dos tribunais »

.

Sublinhe-se, para melhor se compreender o problema, que estávamos numa época em que ainda existia controvérsia acerca da natureza dos tribunais arbitrais e do seu relacionamento com os tribunais do Estado. Não obstante, no mencionado Acórdão 230/1986, considerado o disposto no então n.º 2 do artigo 212.º da CRP, não se manifestaram quaisquer dúvidas a este respeito:

«

É que, por um lado, mesmo que os tribunais arbitrais não se enquadrem na definição de tribunais enquanto órgãos de soberania (artigo 205.º), nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais, visto serem constitucionalmente definidos como tais e estarem constitucionalmente previstos como categoria autónoma de tribunais

»

Também entre a doutrina se encontrava quem, refletindo sobre o Acórdão 230/1986, sustentasse que a reserva de competência legislativa parlamentar relativa à organização e competência dos tribunais abrangia diretamente os tribunais arbitrais (cf. MIGUEL GALVÃO TELES, Recurso para Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais arbitrais, « in

»

Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Volume I, Coimbra, 2010, pp. 646-647).

Em suma, o objetivo da “tese gradualista” era, como refere o Ministério Público, fazer ingressar os tribunais arbitrais

« na zona de reserva de competência da Assembleia da República mas de modo indireto ou reflexo e com conta, peso e medida »

.

15 - Sucede que a revisão constitucional de 1989 introduziu uma alteração na, hoje, alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP. No artigo delimitador da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, onde se referia a

« organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respetivos magistrados » acrescentou-se
« bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos »

.

Através desta alteração, « torna-se inequívoca a competência reservada da AR quanto à organização e competência de entidades não jurisdicionais de composição de conflitos [...], como os tribunais arbitrais e comissões arbitrais, e outras instâncias afins [...] (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra, 1993, p.675; no mesmo sentido, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, p.117).

Acresce que hoje, pelo menos parte da doutrina entende que

« os tribunais arbitrais estão, também eles, subordinados ao regime da categoria dos tribunais judiciais »

(Idem, p. 115).

Quer isto dizer que a tentativa da tese gradualista de salvar da inconstitucionalidade orgânica quaisquer DecretosLeis não autorizados do Governo em matéria de organização e competência de tribunais arbitrais deixou de fazer sentido:

a instituição de uma nova instância arbitral necessária para resolução de litígios, fora do âmbito de imprescindível e adequada autorização legislativa, é causa do vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.

Assim e em conclusão, o n.º 3 do artigo 7.º do Decreto Lei 333/97, de 27 de novembro, ao instituir uma nova instância arbitral necessária para resolução de litígios em matéria de autorização da retransmissão por cabo, instituição essa não coberta pela autorização legislativa contida na Lei 99/97, de 3 de setembro, sofre do vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.

III - Decisão Tendo em consideração tudo quanto se acaba de expor, o Tribunal Constitucional decide:

a) Julgar inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei 333/97, de 27 de novembro, por ofensa do preceito da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa; e, em conformidade

b) Confirmar a sentença recorrida. Lisboa, 23 de fevereiro de 2016. - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral - Lino Rodrigues Ribeiro - Maria de Fátima Mata-Mouros - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209456024

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2548690.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-12 - Acórdão 230/86 - Tribunal Constitucional

    Declara-se, com força obrigatória geral, e com referência ao disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição, a inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 243/84, de 17 de Julho.

  • Tem documento Em vigor 1997-09-03 - Lei 99/97 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a legislar em matéria de direito de autor e direitos conexos, fixando o objecto, extensão e sentido, bem como o prazo da referida autorização, que é de 90 dias sobre a data da entrada em vigor da presente Lei. A legislação a aprovar ao abrigo do presente diploma destina-se a transpor para a ordem jurídica nacional as directivas do Conselho nºs 92/100/CEE (EUR-Lex), de 18 de Novembro, 93/83/CEE (EUR-Lex), de 27 de Setembro e 93/98/CEE (EUR-Lex), de 29 de Outubro, introduzindo, para tal, de (...)

  • Tem documento Em vigor 1997-11-27 - Decreto-Lei 333/97 - Ministério da Cultura

    Transõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 93/83/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 27 de Setembro de 1993, relativa à coordenação de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo. Prevê que o disposto no presente diploma produz efeitos desde 1 de Janeiro de 1995.

  • Tem documento Em vigor 2001-08-03 - Lei 83/2001 - Assembleia da República

    Regula a constituição, organização, funcionamento e atribuições das entidades de gestão colectiva do direito de autor e dos direitos conexos.

  • Tem documento Em vigor 2015-04-14 - Lei 26/2015 - Assembleia da República

    Regula as entidades de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos, inclusive quanto ao estabelecimento em território nacional e a livre prestação de serviços das entidades previamente estabelecidas noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu e revoga a Lei n.º 83/2001, de 3 de agosto

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