Assento
Acordam no pleno do Supremo Tribunal de Justiça:
Manuel Dias e mulher, Maria Inácia, recorreram para o tribunal pleno do acórdão deste Supremo Tribunal proferido em 26 de Março de 1985 (fl. 10), dizendo existir oposição acerca da mesma questão fundamental de direito entre tal acórdão e o acórdão também deste Supremo Tribunal de 10 de Abril de 1970, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 196, a fl. 203.
Alegam que ambos os acórdãos se pronunciaram sobre a questão da natureza pública dos caminhos, entendendo o acórdão recorrido que para um caminho ser considerado público basta o uso directo e imediato pelo público, e o Acórdão de 10 de Abril de 1970 ser necessário para a qualificação do caminho como público que o Estado ou qualquer pessoa colectiva de direito público se apodere e administre o caminho.
O acórdão a fl. 36 reconheceu a existência dos pressupostos do recurso para o tribunal pleno estabelecidos no artigo 763.º do Código de Processo Civil, nomeadamente a invocada oposição sobre a mesma questão fundamental de direito entre o acórdão recorrido e o Acórdão de 10 de Abril de 1970, pelo que ordenou o prosseguimento dos termos do recurso.
Pelos recorrentes foi apresentada alegação, na qual dizem dever conceder-se inteiramente provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido para lavrar assento em que se fixe:
Continua a vigorar o estatuído no artigo 380.º do Código Civil de 1867 no que concerne à definição de coisa pública;
É do domínio público aquele bem ou caminho que foi produzido ou legitimamente apropriado e administrado por qualquer pessoal colectiva de direito público;
Para que um caminho se integre no domínio público não basta que esteja no uso directo e imediato do público, ainda que desde tempos imemoriais;
A presunção de dominialidade pública de um caminho, nos casos de uso imemorial, não basta por si para que certo caminho se qualifique e integre no domínio público;
Só é do domínio público aquele caminho que foi produzido ou legitimamente apropriado e administrado por qualquer pessoa de direito público, ainda que tal caminho esteja no uso directo e imediato do público, e mesmo que o uso seja imemorial.
Na respectiva alegação, a recorrida Maria Luzia de Oliveira diz que no assento se deve adoptar a jurisprudência seguida pelo acórdão recorrido.
O Ministério Público, a fl. 56, afirmando a sua concordância com o acórdão recorrido, propõe a seguinte formulação para o assento:
São caminhos públicos os que se acham no uso directo e imediato do público, não sendo necessário, para esta caracterização, a prática de actos de apropriação, jurisdição e administração por parte de pessoa colectiva de direito público.
Tudo visto, cumpre decidir.
O reconhecimento da existência de oposição sobre a mesma questão fundamental de direito, em que se fundamenta o presente recurso para o tribunal pleno, não vincula o Tribunal (n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil), mas, pelas razões indicadas no acórdão da Secção proferido a fl. 36, entende-se verificar-se tal pressuposto do recurso.
O presente recurso tem por objecto determinar quais os requisitos que devem existir num caminho para que este seja considerado como caminho público.
Sobre a caracterização dos caminhos públicos não existe unanimidade na doutrina e na jurisprudência, havendo duas orientações.
Segundo uma delas - que foi a seguida no acórdão recorrido -, consideram-se públicos os caminhos sempre que eles estejam no uso directo e imediato do público.
A outra orientação - adoptada no Acórdão de 10 de Abril de 1970 - é a de que só devem considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se encontrarem no uso directo e imediato do público, tenham sido administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público e se encontrem sob a sua jurisdição.
Entendem aqueles que seguem esta última orientação que do artigo 380.º do Código Civil de 1867, conjugado com o artigo 1.º, alínea g), do Decreto-Lei 23565, de 12 de Fevereiro de 1934, resulta não bastar o uso público para caracterizar a dominialidade pública dos caminhos.
De acordo com o artigo 380.º, n.º 1, do citado Código Civil de 1867, pertencem à categoria das coisas públicas as estradas, pontes e viadutos construídos e mantidos a expensas públicas, municipais ou paroquiais.
O actual Código Civil não se refere às coisas públicas, limitando-se, no artigo 202.º, n.º 2, a estabelecer que se consideram fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
No Decreto-Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o Código Civil, dispõe-se que, desde que principie a vigorar tal Código, fica revogada toda a legislação civil relativa às matérias que esse diploma abrange.
Não sendo definidas as coisas públicas no Código Civil actual e não estando já em vigor o artigo 380.º do Código Civil de 1867 - cuja enumeração de coisas públicas é, aliás, exemplificativa -, verifica-se que a nossa lei nada estabelece quanto à caracterização das coisas públicas.
O Decreto-Lei 23565, de 12 de Fevereiro de 1934, no qual se regulou o cadastro dos bens do domínio público do Estado e que, no seu artigo 1.º, alínea g), dizia estarem incluídos em tais bens, além de outros, todos os demais bens que estivessem no uso directo e imediato do público, não é de atender, dado ter sido revogado pelo Decreto-Lei 477/80. de 15 de Outubro (artigo 18.º).
Este Decreto-Lei 477/80 enumera, para efeitos de inventário geral do património do Estado, os bens que estão no seu domínio público e privado.
Entre aqueles bens, ao referir-se a vias de comunicação terrestre, indica apenas as linhas férreas de interesse público, as auto-estradas e as estradas nacionais, com os seus acessórios, obras de arte, etc. [alínea e) do artigo 4.º].
As restantes vias de comunicação terrestre, como as estradas municipais e os caminhos públicos, não fazem parte do domínio público do Estado.
Ora, entende-se que, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente.
É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público.
Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.
Como bem se refere no acórdão recorrido, esta orientação é a que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar à apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados.
Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação.
É, assim, de manter o acórdão recorrido, que entendeu ser suficiente para um caminho ser considerado público o uso directo e imediato pelo público, não se tornando necessário que ele tenha sido apropriado ou produzido por pessoa colectiva de direito público e que esta haja praticado actos de administração, jurisdição ou conservação.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e formula-se o seguinte assento:
São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 19 de Abril de 1989. - João Solano Viana - Silvino Alberto Villa Nova - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Augusto Tinoco de Almeida - José Alfredo Soares Manso Preto - Manuel Augusto Gama Prazeres - José Manuel Meneres Sampaio Pimentel - Cláudio César Veiga da Gama Vieira - António de Almeida Simões - João Alcides de Almeida - António Alexandre Soares Tomé - Salviano Francisco de Sousa - Joaquim José Rodrigues Gonçalves - Mário Sereno Cura Mariano - Jorge de Araújo Fernandes Fugas - José Saraiva - José Isolino Enes Calejo - José Manuel de Oliveira Domingues - Eliseu Rodrigues Figueira Júnior - Mário Augusto Fernandes Afonso - Adelino Barbosa de Almeida - José Alexandre Paiva Mendes Pinto - Vasco Eduardo Cristiniano Correia de Lacerda Abrantes Tinoco - Afonso de Castro Mendes - Pedro de Lemos e Sousa Macedo - Flávio Parreira da Trindade Pinto Ferreira - Fernando Heitor Barros de Sequeiros - Jorge da Cruz Vasconcelos - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - José Henrique Ferreira Vidigal - Alberto Carlos Antunes Ferreira da Silva (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - Alberto Baltazar Coelho (vencido, conforme declaração de voto que junto).
Declaração de voto
O Decreto-Lei 23565, em que se inspirava a jurisprudência que conduziu ao assento, foi revogado pelo Decreto-Lei 477/80. Este último diploma não contém preceito idêntico ao artigo 1.º, alínea g), do Decreto-Lei 23565. Limita-se, após enumerar as coisas que integram o domínio público do Estado, a acrescentar «quaisquer outros bens do Estado sujeitos por lei ao regime do domínio público [artigo 4.º, alínea p)]. Não existe, pois, lei especial sobre a matéria. Daí que a doutrina do assento não assente em qualquer texto normativo ou mesmo em qualquer princípio geral de direito. O artigo 2.º do Decreto-Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966 (lei preambular do Código Civil), declara revogada toda a legislação civil relativa às matérias que o vigente Código Civil abrange, com ressalva da legislação especial a que se faça expressa referência. Mas o Código não se refere às coisas públicas, pelo que o artigo 380.º do Código Civil de 1867 não foi abrangido na fórmula revogatória, permanecendo em vigor. Daí que seja «indispensável para o reconhecimento da dominialidade pública de um caminho provar-se que foi produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público e que por ela é administrado, constituindo o uso público directo e imediato, desde que imemorial, mera presunção natural dessa dominialidade, ilidível por força em contrário» [cf. Marcelo Caetano, Manual, vol. II, 9 ª ed. (reimpressão), p. 924]. Com o que continua a proteger-se o interesse na sujeição ao domínio público de vias de comunicação, designadamente de interesse local. O assento devia, pois, ser tirado no sentido do acórdão fundamento, com o acrescento da presunção. - Alberto Carlos Antunes Ferreira da Silva.
Declaração de voto
Sem embargo de já ter aderido à tese que fez vencimento (cf. o Acórdão da Relação de Coimbra de 4 de Novembro de 1980, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 303, p. 274), a verdade é que, repensando o problema, tenho agora como acertada a contrária, ou seja, a de que o simples uso pelo público, mesmo imemorial, não basta para qualificar determinado caminho como público.
O assento acabado de tirar manterá, qualificando-os como caminhos públicos, inúmeros atravessadouros, com manifesto desrespeito do preceituado no artigo 1383.º do Código Civil, que, por razões ponderosas e conhecidas, acabou com aquela forma arcaica e economicamente injustificável de limitação ao direito de propriedade.
Por outro lado, o ponto de vista que fez vencimento vai prejudicar as relações de boa vizinhança que devem presidir à exploração da terra e que, inegavelmente, convém favorecer.
Na verdade, dele resultará, sem dúvida, a tendência de cada proprietário recusar a passagem dos vizinhos pelo seu prédio, não vá esse favor dar lugar à criação, nele, de um caminho público.
Claro que o assento ainda afronta o disposto no artigo 380.º do Código Civil de Seabra, que tenho como estando ainda em vigor.
Segundo esse normativo, que cumpre respeitar, para que determinado caminho possa ser considerado público é necessário que se verifiquem os requisitos dessa dominialidade, isto é, a sua apropriação ou produção pelo Estado e corporações públicas e a correspondente manutenção sob a sua administração (cf. P. Lima e A. Varela, Anotado, III, 2.ª ed., p. 281). - Alberto Baltazar Coelho.