Assento
Acordam, em sessão plenária, no Supremo Tribunal de Justiça:
Estoril-Sol, S. A. R. L., recorre para o tribunal pleno da decisão tomada pelo Acórdão de 25 de Julho de 1985 no recurso de agravo n.º 71821/2.ª Secção, no qual era autor e réu o Estado, fundamentando o seu recurso na existência de oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, entre a decisão ali tomada e a do Acórdão deste mesmo Tribunal de 13 de Fevereiro de 1985, ambos devidamente documentados nos autos e transitados em julgado.
Admitido em tempo oportuno um recurso, foi pela secção respectiva decidido que prosseguisse os seus termos por se verificar a oposição mencionada no n.º 1 do artigo 763.º do Código de Processo Civil (CPC).
A situação existente historia-se desta forma:
A autora, ao abrigo das disposições do Decreto-Lei 41562, de 18 de Março de 1956, artigo 4.º, obteve em 28 de Junho de 1958 o exclusivo da exploração da zona permanente de jogo no Estoril, sendo certo que na altura só uma outra zona permanente de jogo existia em pleno funcionamento, a do Funchal, para além de três outras temporárias, entre elas a da Figueira da Foz; em 24 de Julho de 1980, a autora intentou contra o Estado acção de simples apreciação, na qual solicita ao Tribunal para decidir que tal contrato de concessão de jogo importava o impedimento da criação de novas zonas ou modificação das zonas de jogo existentes à data do contrato.
Mas veio a desistir do pedido formulado nessa acção, desistência essa julgada válida por sentença de 5 de Janeiro de 1982.
Contudo, em 15 de Outubro de 1980 iniciara a sua vigência o Decreto-Lei 474/80, pelo qual a zona de jogo temporária da Figueira da Foz se transformou em permanente, pelo que a mesma autora intentava contra o Estado a acção agora em recurso, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a indemnização correspondente ao lucro que deixou e iria deixar de receber durante o período da concessão ainda a decorrer desde aquela data de 15 de Outubro de 1980.
Nessa acção, o réu contestou excepcionando com a existência de caso julgado, excepção logo no saneador julgada procedente e confirmado este julgamento pela relação e posteriormente por este Supremo - é o acórdão recorrido.
Ora, sucede, como aliás acima ficou dito, que este mesmo Tribunal já antes, e em relação a uma outra zona de jogo de novo permitida, havia decidido no sentido contrário, isto é, o Supremo, patentemente, proferiu decisões opostas sobre a mesma questão de direito e nas condições do artigo 763.º, n.º 1, do CPC.
Face a tudo quanto se narra, a recorrente concluiu desta forma a sua alegação:
a) A acção de simples apreciação tem origem e razão de ser na incerteza do direito; o pedido é um pedido de certificação de um direito;
b) A desistência desse pedido significa a desistência da certificação pretendida, não do direito;
c) O caso julgado forma-se sobre a causa de pedir invocada, a incerteza do direito;
d) A acção de condenação tem como causa de pedir um concreto acto ilícito;
e) Não é assim a mesma a causa de pedir nas duas acções;
f) E diversos são os efeitos jurídicos pretendidos - são diferentes os pedidos.
Por sua vez, o digno magistrado do Ministério Público, no seu douto parecer, entende que a decisão recorrida é a correcta, devendo negar-se provimento ao recurso e proferir assento cuja redacção propõe seja a seguinte:
Tendo-se desistido do pedido em acção declarativa que tinha por objecto dar certo sentido não expresso nas cláusulas contratuais, há ofensa de caso julgado ao pretender, em acção de condenação, fundar o pedido com essa pretendida interpretação do contrato.
Temos, pois, de tomar posição e optar entre duas soluções antagónicas, e para tal teremos de determinar o alcance de algumas disposições do CPC. Assim:
O CPC, artigo 4.º, n.º 2, alínea a), estabelece que as acções «de simples apreciação [têm por fim] obter unicamente a declaração da existência de um direito ou de um facto», ao passo que na alínea b), e quanto às acções de condenação, se exige «a prestação de uma coisa ou de um facto pressupondo [...] violação de um direito».
Entre parêntesis, relembramos ter sido a primeira acção proposta pelo recorrente daquele primeiro tipo e que a segunda já é de condenação.
Por outro lado, temos o comando do artigo 295.º, n.º 1, do CPC estabelecendo que «a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer» e, finalmente, o artigo 498.º define-nos as identidades do pedido e da causa de pedir, únicas em causa na nossa hipótese, com vista a considerar-se repetida a causa para efeitos de casos julgados - e é o que nesta acção interessa. Estatui: «Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico» e «há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico».
Com a desistência na acção de simples apreciação e face à disposição legal citada, ficou «extinto o direito que se pretendia fazer valer». Que direito foi esse?
A desistência do pedido implicou por parte da autora o reconhecimento de «não lhe assistir direito à sentença de mérito que pretendia» (conselheiro Rodrigues Bastos, Notas II, p. 81), ou, por outras palavras, as do Prof. Reis, no Comentário III, p. 474, na «desistência do pedido o autor reconheceu implicitamente que a sua pretensão é infundada».
Aplicando à hipótese dos autos estes ensinamentos, temos que Estoril-Sol, ao desistir na primeira acção, a de simples apreciação, reconheceu não ter o direito a que o Estado não possa criar novas zonas permanentes de jogo, não existentes à data do seu contrato.
Mas dir-se-á: na segunda acção, a autora abandonou o pedido inicial, o daquela primeira acção, substituindo-o por outro: a condenação do Estado a indemnizá-la dos prejuízos. Simplesmente, na segunda acção, para chegar à condenação, o Tribunal teria de apreciar o direito alegado pela autora na acção precedente, isto é, tinha de decidir previamente se o Estado, pelo contrato com a Estoril-Sol, estava inibido ou não de criar novas zonas permanentes de jogo, e logo esbarrava com o caso julgado anterior, o da desistência, onde, através dela, reconhecia o «infundado» da sua pretensão ou que lhe não assistia tal direito.
De facto, é pertinente a observação de Anselmo de Castro, no Direito Processual Civil Declaratório, o qual, depois de fazer notar que «as acções de simples apreciação são meios de tutela de direito em que não é posta em causa a sua violação (p. 126), e fazendo o paralelo entre estas acções e as de condenação, que «pressupõe uma situação de lesão (efectiva ou provável) ou violação do direito, e visam assegurar a sua efectivação», não deixa de acentuar que «nas [acções] de simples apreciação, se logicamente o que se pretende é que o juiz diga se uma dada relação jurídica ou um facto existe ou não, então o caso julgado compreenderá [...] toda a relação jurídica, co-envolvendo todas as possíveis causas de pedir» (p. 125), que no nosso caso seria a incerteza do direito mais a violação pelo Estado do contrato com a autora pactuado.
Quer dizer, não atendendo ao que fica escrito e transcrito, o Tribunal ficaria colocado na alternativa ou de reproduizr uma decisão anterior ou de a contradizer. Contradiria essa decisão - a que resultou da desistência da acção de simples apreciação - se viesse a condenar o Estado, uma vez que, para isso, teria de decidir em contrário, face àquela acção: tinha de basear a sua condenação na circunstância de a autora poder exigir do Estado que este não crie novas zonas permanentes de jogo enquanto vigorar o seu contrato; repetiria a decisão anterior - a que resultava da desistência, repete-se - se não condenasse o Estado, pois para isso tornaria a sentenciar poder ele criar novas zonas permanentes de jogo, mesmo na vigência do contrato com a recorrente.
Sendo assim, como é, uma conclusão se impõe: confirmar a decisão recorrida, formulando-se o seguinte assento:
O desistente do pedido de simples apreciação prescinde do conhecimento do respectivo direito, e, por isso, o caso julgado impedi-lo-á de estruturar nele um pedido de condenação.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 15 de Junho de 1988. - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Licínico Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Augusto Tinoco de Almeida - Júlio Carlos Gomes dos Santos - Fernando Pinto Gomes - Manuel Augusto Gama Prazeres - João Alcides de Almeida - António Alexandre Soares Tomé - Abel Pereira Delgado - Salviano Francisco de Sousa - Joaquim José Rodrigues Gonçalves - Cesário Dias Alves - Jorge de Araújo Fernandes Fugas - António Poças - Eliseu Rodrigues Figueira Júnior - Adelino Barbosa de Almeida - José Alexandre Paiva Mendes Pinto - Vasco Eduardo Crispiniano Correia de Lacerda Abrantes Tinoco - Manuel Alves Peixoto - João Solano Viana - Mário Sereno Cura Mariano - José Saraiva - José Alfredo Soares Manso Preto (vencido. Entendo, com efeito, não existir nas duas acções identidade de causa de pedir nem de pedido. Na acção de simples apreciação, a causa de pedir é a incerteza do direito invocado; na acção de condenação, a violação do contrato; por sua vez, o pedido na primeira acção é a certificação da certeza do direito solicitado e na segunda o pedido é a condenação em indemnização.
De resto, a redacção do assento não se harmoniza com a questão posta, tal como esta emerge da oposição verificada entre os dois acórdãos) - José Manuel Meneres Sampaio Pimentel (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Manso Preto) - Cláudio César Veiga da Gama Vieira (vencido, pelas razões expressas no voto do Exmo. Conselheiro Manso Preto) - António de Almeida Simões (vencido, para o que me louvo no voto do Exmo. Conselheiro Manso Preto) - José Isolino Enes Calejo (vencido, pelo fundamento do conselheiro Manso Preto) - José Manuel de Oliveira Domingues (vencido, pelos fundamentos expressos no voto do Exmo. Conselheiro Manso Preto) - João de Deus Pinheiro Farinha [vencido, pelas razões constantes do voto do Exmo. Conselheiro Manso Preto, sendo certo que na formulação do assento se foi além e se curou de objecto diverso do pedido (da questão em aberto resultante da oposição dos acórdãos)] - João Augusto Pacheco e Melo Franco (vencido, pelos fundamentos constantes do voto do Exmo. Conselheiro Manso Preto) - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo (vencido, pelos fundamentos constantes das declarações de voto que antecedem) - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny (vencido, não propriamente quanto à doutrina fixada, mas por entender que o «assento» extravasou dos limites da oposição verificada entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, em que apenas fora posta em causa a procedência, ou não, da excepção de caso julgado, que é coisa diferente da força de caso julgado, que acaba por ser reconhecida na redacção dada ao assento.
Para proceder à excepção de caso julgado faltava a necessária identidade entre os pedidos e as causas de pedir, quanto à primeira e às segundas acções).