Assento
Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto Distrital junto do Tribunal da Relação de Lisboa interpôs o presente recurso extraordinário para o plenário deste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no artigo 669.º do Código de Processo Penal, visando a uniformização da jurisprudência sobre a questão de direito que ali tem sido controversa de saber se em julgamento de processo correccional efectuado à revelia do réu, e condenado este em prisão efectiva, é lícito ordenar a imediata passagem de mandados de captura ou se, antes, essa ordem só pode ser dada após o trânsito em julgado da respectiva sentença.
Na verdade, segundo uma daquelas orientações - a adoptada pelo Acórdão de 27 de Janeiro de 1982 - «na sentença penal, proferida em processo correccional de ausente que haja condenado o réu, julgado à sua revelia, em pena de prisão correccional (efectiva) pode ser ordenada a sua captura, mesmo antes de transitada em julgado a decisão condenatória». E segundo a outra - perfilhada no Acórdão de 12 de Maio do mesmo ano - «em caso de condenação em pena de prisão efectiva, em processo correccional, de um réu revel, julgado nos termos dos artigos 570.º e 571.º ambos do Código de Processo Penal, não pode ser ordenada, na sentença, a captura do dito réu antes de a mesma transitar em julgado».
Por aplicação das disposições combinadas dos artigos 668.º e seu § único e 669.º do referido Código e 766.º e seguintes do Código de Processo Civil, ouviu-se o Digmo. Magistrado do Ministério Público nesta Secção Criminal, tendo depois sido colhidos os vistos de cada um dos juízes aqui em serviço, após o que se veio a decidir, em Acórdão de 23 de Novembro de 1982, estarem verificados os pressupostos necessários ao seu prosseguimento.
Depois disso emitiu o mesmo magistrado seu douto parecer no sentido de que deve tirar-se assento a confirmar a orientação adoptada na primeira daquelas decisões postas em confronto, isto é, de que em tais casos pode ser ordenada a captura do réu, independentemente do trânsito em julgado da respectiva sentença condenatória.
Correram depois todos os vistos legais, cumprindo agora decidir.
Como nos impõe o preceituado no artigo 763.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, há que reapreciar nesta altura a questão preliminar, porquanto aquela primeira decisão não é vinculativa.
Não oferece a menor dúvida que os 2 citados acórdãos assentaram em soluções opostas e no domínio da mesma legislação; no mais antigo decidiu-se ser lícita a ordem de captura dada na própria sentença que em processo correccional condenou o réu à sua revelia em pena de prisão; na mais recente adoptou-se a solução contrária, ou seja, a de que em tais casos aquela ordem só pode ser dada após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
E também é inquestionável que as 2 decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação.
Realmente, a solução do problema posto circunscreve-se a determinar o verdadeiro sentido das regras contidas nos artigos 450.º, § 4.º, e 571.º do Código de Processo Penal e 27.º, n.os 2 e 3, 32.º, n.º 2, e 210.º, n.º 3, da Constituição da República. Os primeiros não sofreram modificação alguma no período que nos interessa; e os últimos também não sofreram alteração, pela revisão de 1982, que possa interessar directa ou indirectamente na resolução da questão agora controvertida, pois se limitou a acrescentar à expressão «ninguém pode ser privado da liberdade» as palavras «total ou parcialmente» e a acrescentar o carácter de urgência nos julgamentos.
Está, portanto, satisfeita a exigência contida no artigo 763.º, n.º 2, já citado.
Claro é também que os 2 acórdãos foram tirados em processos diferentes: o mais antigo diz respeito ao recurso penal n.º 9866, proveniente da comarca de Oeiras, em que foi recorrente o ministério público e recorrido o réu Manuel Gouveia; o mais recente, ao recurso penal n.º 9987, proveniente da mesma comarca, interposto pelo referido magistrado contra o réu Manuel Carlos Fonseca Albino.
Exige mais a lei (citado artigo 669.º) que de nenhum dos acórdãos postos em confronto fosse possível recurso ordinário para o Supremo Tribunal.
Para além da presunção que emana do n.º 4 daquele artigo 763.º, é de notar que qualquer deles emergiu somente da parte da sentença em que se ordenou (ou não ordenou) a passagem dos mandatos de captura, nada tendo interferido com o julgamento na parte relativa à acusação que ali fora apreciada.
Poderá talvez pôr-se em dúvida a oportunidade da subida daqueles recursos interpostos em primeira instância, uma vez que, podendo o ministério público recorrer desde logo da sentença final, com o qual subiriam os demais, o réu só o podia fazer depois de notificado da condenação. E enquanto essa notificação se não mostrasse feita não devia subir o recurso porventura interposto por aquele magistrado.
Mas a verdade é que o recurso, em qualquer desses processos, tratou unicamente da questão marginal da possibilidade ou impossibilidade da ordem de passagem imediata dos mandados de captura contra o réu para cumprimento da pena que acabava de lhe ser imposta. E o Tribunal da Relação conheceu dessa matéria em qualquer dos 2 processos, tendo as respectivas decisões finais sido notificadas e nada se tendo requerido depois disso, o que, portanto, ocasionou o seu trânsito em julgado.
Convém referir ainda que esse trânsito não se operou apenas por inacção das partes; como nenhuma dessas decisões revestiu a natureza de condenatória nem deu lugar à terminação do processo, tornaram-se ambas legalmente irrecorríveis em face do disposto no n.º 6.º do artigo 646.º do Código de Processo Penal, quer em face da redacção dada pela Lei 2138, de 14 de Março de 1969, quer com a actual, dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 402/82, de 23 de Setembro.
De concluir, portanto, como também se concluiu no acórdão preliminar, que realmente existe entre os 2 mencionados acórdãos a oposição que serve de base ao recurso interposto para o tribunal pleno, pelo que há que tirar assento, com valor tão-somente para a fixação da jurisprudência, como resultado do já citado artigo 669.º, na sua parte final.
A norma contida no § 4.º do artigo 450.º do Código de Processo Penal impõe ao juiz a obrigação de ordenar na sentença a recolha do réu à cadeia (naturalmente por meio dos respectivos mandados) se o houver condenado em pena privativa da liberdade e ele estiver presente ao julgamento.
Mas esta disposição, que foi incluída nas regras gerais sobre a audiência de julgamento, tanto deve ser aplicável ao caso de este ter sido efectuado com a presença do réu como à sua revelia, pois em preceito algum ela é afastada, designadamente nas disposições legais que especialmente regulam a tramitação do processo à revelia dos réus.
É também certo que o § 2.º do artigo 571.º do mesmo diploma ordena a notificação pessoal da sentença ao réu julgado à revelia, para assim lhe ser facultado o exercício do direito de interpor recurso dela ou, no caso de ter sido condenado em pena maior, requerer novo julgamento.
Mas também é de considerar que essa notificação, nos termos do mesmo preceito legal, só deve ser efectuada depois de o réu ter sido preso ou se ter apresentado em juízo. Pressupõe, sem dúvida, uma ordem de prisão a anteceder aquela sua captura ou apresentação, e essa ordem só na sentença condenatória podia ter sido dada.
Até à entrada em vigor do Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, podia argumentar-se ainda que aquela ordem de prisão se justificava somente para os casos que houvessem sido julgados com a presença do réu e em que ele tivesse renunciado previamente ao recurso, e não também para os ausentes, pois só quanto aos primeiros a sentença se considerava transitada e era desde logo exequível.
A objecção também não procede.
Para além de aquela norma legal não fazer qualquer distinção, a sentença tanto podia não transitar no caso de o réu (ou a parte adversa) ter declarado não renunciar ao recurso, como no de o réu ter sido julgado à revelia. E a proceder a objecção teríamos de considerar ilícita a ordem de prisão no primeiro destes 2 casos, o que manifestamente importava violação daquele § 4.º
Mas com a entrada em vigor daquele decreto-lei a objecção perdeu ainda mais qualquer consistência que pudesse ser-lhe atribuída.
É que hoje não há sentenças com trânsito imediato. Se se tiver feito declaração prévia de não renúncia ao recurso, este é admissível tanto em matéria de facto como de direito; caso contrário, por força do artigo 20.º desse diploma, haverá recurso circunscrito à matéria de direito.
Ora, havendo sempre recurso das decisões proferidas em processo correccional, nada justifica que só nas sentenças lavradas em processos com a presença do réu seja lícito ordenar a sua prisão.
Mais uma objecção se faz a esta interpretação. Segundo se dispõe nos artigos 116.º do Código Penal de 1886 e 5.º do Decreto-Lei 402/82, de 23 de Setembro, o cumprimento das penas só tem início após o trânsito em julgado da sentença condenatória, o que parece inculcar que só depois desse trânsito pode ser passada a ordem de prisão.
Mas também esta não colhe.
Na verdade, muito embora seja exacto que o cumprimento das penas só naquele momento se inicia, não é menos certo que a própria lei, nos artigos 117.º do Código velho e 80.º do novo, manda que seja descontada a totalidade da prisão preventiva porventura sofrida pelos condenados, e tanto no caso de ter antecedido a formação da culpa como de lhe ser posterior.
Portanto, com a prisão efectuada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, nenhum prejuízo pode resultar para o réu, até porque, com a interposição de recurso dela, bem pode continuar em liberdade.
Há ainda quem pense que a prisão anterior ao trânsito em julgado da sentença condenatória colide com o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, quando ali se dispõe que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória».
Esta norma não pode, todavia, ser interpretada isoladamente, havendo que lançar mão do elemento sistemático.
E o certo é que outros preceitos existem nesse diploma fundamental a conduzirem-se a interpretação diferente, entre os quais podem citar-se os artigos 27.º, n.os 2 e 3, e 210.º, n.os 2 e 3.
O primeiro estabelece a regra geral sobre a liberdade e a segurança dos indivíduos e de que ninguém pode ser privado daquela a não ser em consequência de decisão judicial condenatória. E o segundo a de que as decisões dos tribunais são obrigatórias, tanto para as entidades públicas como para as privadas, remetendo para a lei geral a regulamentação dos termos da respectiva execução dessas normas.
E em nenhuma dessas disposições se faz qualquer referência ao trânsito em julgado das sentenças, o que seria essencial se na verdade se tivesse querido consagrar o sistema de só permitir a prisão dos condenados após esse trânsito.
Acresce que a própria Constituição consagra também a possibilidade de os indivíduos serem privados da liberdade, até sem culpa formada, como se vê das várias alíneas do n.º 3 daquele artigo 27.º, o que manifestamente constitui excepção àquela regra contida no artigo 32.º, n.º 2. E então diríamos que seria incongruente permitir a prisão preventiva, até sem culpa formada, com base em indícios, e não a autorizar quando já houvesse uma sentença condenatória, ainda que não transitada em julgado.
E nós temos de partir do princípio de que o legislador consagrou nos textos as soluções mais acertadas, como expressamente consta do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil.
Podemos assim concluir que tem inteiro apoio na lei a ordem de prisão imediata a incluir nas sentenças que em processo correccional julgado à revelia imponham pena privativa da liberdade.
Nos termos que ficam expostos, decide-se conceder provimento ao recurso e, consequentemente, proferir o seguinte assento:
Em processo correccional deve, na sentença que imponha prisão a réu julgado à revelia, ordenar-se a sua captura, independentemente do trânsito em julgado.
Não é devido imposto de justiça.
Lisboa, 10 de Abril de 1984. - Antero Pereira Leitão - Licurgo Augusto dos Santos - António Judice de Magalhães Barros Baião - Abel Vieira Campos Carvalho Júnior - António Miguel Caeiro - Avelino da Costa Ferreira Júnior - Octávio Dias Garcia - Rui de Matos Corte Real - Amílcar Moreira da Silva - João Augusto Pacheco e Melo Franco - João Solano Viana - José Fernando Quesada Pastor - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo - Orlando de Paiva Vasconcelos de Carvalho - Manuel Amaral Aguiar - Manuel dos Santos Carvalho - José dos Santos Silveira - Manuel Baptista Dias da Fonseca - Silvino Alberto Villa-Nova - João Fernandes Lopes Neves - Raul José Dias Leite Campos - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Américo Fernando de Campos Costa (vencido quanto à questão prévia pelas razões constantes na declaração de voto anexa) - Manuel Flamino dos Santos Martins (concordo com o voto do colega Campos Costa) - João de Sá Alves Cortês (vencido, por continuar a entender, como explicitei no acórdão de que fui relator, que os artigos 27.º, n.os 1, 2 e 3, e 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa impõem que contra o réu condenado à revelia em processo correccional não podem ser emitidos mandatos de captura antes do trânsito em julgado da respectiva sentença, visto que a prisão preventiva só é possível quando for aplicável pena de prisão maior, agora pena de prisão superior a 3 anos).
Declaração de voto
Desde que o recurso do acórdão recorrido foi, bem ou mal, mandado subir imediatamente à Relação (aliás, com o fundamento de que a sua retenção o tornaria absolutamente inútil - artigo 734.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 649.º do Código de Processo Penal), é seguro que dele podia igualmente recorrer-se desde logo para o Supremo.
E não se diga que, nos termos do artigo 646.º, n.º 6.º, do Código de Processo Penal, no caso não há recurso para o Supremo, em razão de a admissibilidade do recurso dos acórdãos condenatórios da Relação não abranger os arestos condenatórios na parte em que se ocupem de questões marginais, como a de o juiz se cingir a ordenar a prisão imediata do réu, sem embargo de a sentença ainda não haver transitado.
É que a tal doutrina se podem opor 3 ordens de considerações:
Em primeiro lugar, a letra da lei não faz qualquer restrição, já que autoriza amplamente que se recorra para o Supremo dos acórdãos condenatórios das relações, qualquer que seja, portanto, o tema de que ele se ocupe.
Em segundo lugar, em matéria de recursos, na dúvida, as leis não devem ser objecto de uma interpretação limitativa da sua letra.
Acresce, por fim, que uma interpretação restritiva apenas se justificaria se o ratio legis o aconselhasse, o que não acontece. Pelo contrário, a ratio da permissão do recurso para o Supremo apenas dos acórdãos condenatórios tem que ver com a circunstância de só eles afectarem o direito à liberdade reconhecido no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição da República. Ora, o direito à liberdade não é atingido unicamente na parte em que as decisões condenam os réus em determinadas penas, pois igualmente o é, sem sombra de dúvida, na parte em que o juiz ordena a prisão imediata dos réus sem aguardar o trânsito em julgado das respectivas sentenças condenatórias.