Acórdão
Recurso n.º 33695
Acordam, em tribunal pleno, no Supremo Tribunal de Justiça:
O Exmo. Procurador da República junto do Tribunal da Relação de Lisboa, invocando oposição, sobre a mesma questão fundamental de direito, entre o Acórdão da Relação de Lisboa, de 2 de Fevereiro de 1972, e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 15 de Março de 1966, recorreu para tribunal pleno, ao abrigo do disposto no artigo 669.º do Código de Processo Penal, a fim de se fixar a jurisprudência.
Já se decidiu, no acórdão de fl. 21, que existe, no caso, a invocada oposição, por isso que, enquanto o aresto da Relação de Lisboa resolveu que as falsas declarações do arguido em processo penal sobre os seus antecedentes criminais são punidas pelo artigo 242.º do Código Penal, a Relação de Coimbra, no acórdão acima mencionado, julgou-se que essas falsas declarações são punidas nos termos do artigo 22.º do Decreto-Lei 33725, de 21 de Junho de 1944.
O Exmo. Ajudante do Procurador-Geral da República junto da secção criminal deste Supremo Tribunal apresentou, oportunamente, a sua douta alegação de fls. 24 e seguintes, na qual se pronuncia no sentido de que deve ser firmado «assento» nos termos seguintes:
A falsidade nas respostas obrigatórias às perguntas feitas ao arguido em processo penal constitui o crime previsto no artigo 22.º do Decreto-Lei 33725, de 21 de Junho de 1944.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir:
Verifica-se o condicionalismo legal exigido para a admissão deste recurso pelo artigo 669.º do Código de Processo Penal.
O n.º 1 do artigo 254.º do mesmo Código, reproduzindo, aliás, nessa parte, o disposto no artigo 280.º, da primitiva redacção daquele diploma, dispõe que o arguido será perguntado pelo seu nome, estado, profissão, idade, naturalidade, filiação, última residência, se já esteve alguma vez preso, quando e porquê, se foi ou não condenado e porquê. Será advertido de que a falta de resposta a estas perguntas o fará incorrer na pena de desobediência e a sua falsidade na pena de falsas declarações.
Do mesmo modo, para a fase do julgamento, preceitua o artigo 425.º que o réu será interrogado pelo presidente do tribunal e perguntado primeiramente pelo seu nome, estado, filiação, idade, naturalidade, residência, se sabe ler e escrever, se já esteve preso ou respondeu e, no caso afirmativo, quando e por que motivo. A falta de resposta a estas perguntas fará incorrer o réu na pena de desobediência e a sua falsidade na pena de falsas declarações. Estabeleceu, assim, o legislador uma limitação ao princípio da liberdade de declaração atribuída ao arguido, no sentido da faculdade, que a este é reconhecida, de prestar ou não declarações, e de as prestar verídicas ou inverídicas. E que na parte em que se trata de o identificar, não está em causa o princípio da liberdade do arguido, mas a obrigação jurídica de cada cidadão se dar a conhecer em determinada situação jurídica, pelo complexo das características, atributos, títulos e qualidades, reconhecidos por lei, que fazem com que ele se distinga das outras pessoas, fixando-lhe a sua posição na comunidade social.
Ao tempo em que foi publicada a lei de processo acima referida, o preceito incriminador das falsas declarações, prestadas perante a autoridade pública, era o artigo 242.º do Código Penal, que, porém, só por si, não abrangia o caso em apreço, por que só previa a falsa declaração que recaísse «sobre algum facto relativo a outras pessoas ou ao Estado», e não a facto relativo ao próprio declarante, como acontece nos factos versados nas respostas que o arguido é obrigado a prestar perante as autoridades judiciárias.
Entenderam-se, portanto, aqueles preceitos como estabelecendo uma incriminação para as falsas declarações prestadas pelo arguido perante a autoridade judiciária, nas matérias ali mencionadas, incriminação a que correspondia a sanção prevista no artigo 242.º do Código Penal.
Sucede, porém, que, em 21 de Junho de 1944, foi publicado o Decreto-Lei 33725, que, além de regulamentar os cursos de identificação criados pelo Decreto 33214, contém várias disposições sobre identificação civil e repressão da prática de fraudes.
O seu artigo 22.º é assim redigido:
Aquele que declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, será punido com a prisão até seis meses.
§ 1.º À pena será de prisão até um ano quando as declarações se destinem a ser exaradas em documento oficial.
§ 2.º Se a falsidade a que se referem o corpo deste artigo e o § 1.º tiver sido cometida por negligência, aplicar-se-á a pena de multa até 1000$00.
Logo depois da publicação deste diploma legal criou-se, na jurisprudência, uma corrente de interpretação no sentido de que a remissão feita pela lei de processo penal para a punição da falsidade, que até ali havia sido entendida como referida ao artigo 242.º do Código Penal, passava a reportar-se, agora, ao ilícito prevenido e cominado pelo artigo 22.º do Decreto-Lei 33725, uma vez que pela publicação daquele decreto-lei passava a ser outra, quer a previsão, quer a punição dos crimes de falsas declarações prestadas perante qualquer autoridade pública, sobre factos relativos à identidade, estado ou outra qualidade pessoal dos declarantes ou de terceiros.
Essa foi a posição adoptada por este Supremo Tribunal de Justiça, em numerosos arestos, não se lhe conhecendo decisão em contrário.
Nas instâncias não se estabeleceu, porém, essa unanimidade de critério, como deste recurso se vê, continuando alguns a sustentar que as falsas declarações prestadas pelo arguido perante a autoridade judiciária, nos termos dos artigos 254.º e 425.º do Código de Processo Penal, deverão ser incriminadas pelo artigo 242.º do Código Penal.
Não parece de alterar a jurisprudência até agora tão uniformemente seguida por este Supremo Tribunal, antes devendo aproveitar-se o ensejo para a sua fixação.
Na verdade, não se afiguram consistentes as críticas que se lhe tem dirigido.
Pretende-se, em primeira linha, que, sendo o Decreto-Lei 33725 um diploma que versa sobre matéria de serviços de identificação, não pode concluir-se, do seu relatório e das suas disposições, que tiversse em vista englobar hipóteses estranhas à identificação civil propriamente dita.
Este argumento parece não resistir ao simples exame do texto do artigo 22.º, acima transcrito, que, pela referência directa que faz à autoridade pública ou a funcionário no exercício de funções, revela a generalidade atribuída ao preceito que, para ter o âmbito limitado que se lhe pretende atribuir, teria de conter alguma expressão que restringisse o seu comando às falsas declarações prestadas em determinado serviço público, o que, de modo algum, acontece.
De resto, aquele artigo 22.º deve ter tido como fonte imediata a primeira parte do artigo 495.º do Código Penal Italiano de 1930, assim concebido:
Aquele que declarar ou atestar falsamente a um funcionário público, em acto público, a identidade, o estado ou outra qualidade, própria ou alheia, será punido com prisão até três anos.
Trata-se, como se vê, da reprodução literal de um preceito da lei geral italiana, sem qualquer limite quanto à sua aplicação. E que é este o preceito que, na Itália, pune as falsas declarações de que nos estamos ocupando, vê-se da alínea 2.ª da terceira parte do mesmo artigo, que estabelece uma agravação de pena, que nunca será inferior a um ano, «se a falsa declaração sobre a identidade, o estado, ou sobre outra qualidade pessoal do próprio declarante for prestada por um arguido à autoridade judiciária, ou se, por efeito dessa falsa declaração, vier a inscrever-se, sob falso nome, no registo criminal, uma decisão penal».
Não se explica por que razão o legislador - se fosse sua intenção regular apenas a reacção penal a adoptar quanto às falsas declarações prestadas exclusivamente em matéria de identificação civil - teria reproduzido o texto do artigo 495.º, que, nem directa nem indirectamente, contém expressão verbal que permita essa limitação.
Tem-se defendido, por outro lado, a inaplicabilidade do aludido artigo 22.º, quanto às declarações prestadas pelo arguido em processo penal, com a afirmação de que as falsas declarações sobre antecedentes criminais não são abrangidas pela previsão do texto.
Mas também este argumento não parece que possa proceder.
Na verdade, a citada norma, ao aludir a «qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos», está directamente a referir-se, entre outros aspectos qualificativos da pessoa do arguido, ao dos seus antecedentes criminais, tomando-se aquele termo «qualidade» no seu sentido genérico daquilo que faz com que uma pessoa (ou uma coisa) se distinga de outras.
De resto, na doutrina italiana é unânime a opinião, em face do disposto no artigo 495.º do Código Penal, de «que entre as qualidades pessoais do arguido se incluem também os seus precedentes penais, tanto mais que a lei lhes atribui efeitos jurídicos» (Manzini, Diritto Penale, ed. 1950, vol. IV, p. 872), opinião que é, igualmente, seguida pela jurisprudência dos respectivos tribunais. Outro tanto nos parece dever entender-se entre nós, relativamente ao artigo 22.º do Decreto-Lei 33725, que usa exactamente as expressões empregadas pela lei italiana.
Como bem observa o ilustre representante do Ministério Público, embora no caso concreto dos acórdãos em oposição a falsidade seja só atribuída à parte das declarações dos arguidos que incidiram sobre os seus antecedentes criminais, o problema de direito posto pelo recurso é o de fixar a incriminação correspondente às falsas declarações prestadas pelo arguido quando é obrigado a responder, com veracidade, nos termos dos artigos 254.º e 425.º do Código de Processo Penal.
Pelas razões expostas, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, reunidos em tribunal pleno, em decidir o conflito de jurisprudência de que tratam os autos pela formulação do seguinte assento:
A falsidade nas respostas obrigatórias às perguntas feitas ao arguido em processo penal constitui o crime previsto e punido pelo artigo 22.º do Decreto-Lei 33725, de 21 de Junho de 1944.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 18 de Julho de 1973. - Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos - Daniel Jaime Ferreira - Aleixo António Xavier José Ludovico da Costa - Acácio de Oliveira Carvalho - João dos Santos Carvalho Júnior - Eduardo Bogarim Correia Guedes - Adriano Vieira de Campos de Carvalho - Manuel José Fernandes Costa - António Pedro Sameiro - José António Fernandes - João Augusto Fonseca de Moura - Manuel Falcão Nunes Garcia - Eduardo Augusto Arala Chaves. - Adriano Vera Jardim vencido. Entendo que as falsas declarações do arguido em processo penal sobre os seus antecedentes criminais integram o crime do artigo 242.º do Código Penal, e isto, essencialmente, porque uma falsa declaração sobre aquela não se refere a qualidade alguma de pessoa e o Decreto-Lei 33725 fala em estado ou qualidade. Qualidade, na verdade, significa, em direito, título segundo o qual se figura um acto jurídico, num processo, ou então, título ao qual uma pessoa tem direito em razão do seu nascimento, da sua função, ou da sua profissão, por efeito da lei.
Por outro lado, parece-me manifesto que aquele decreto-lei teve em vista a identificação da pessoa para os fins nele indicados, e só esta - e ter sido condenado ou ter estado preso não é elemento de identificação. - Francisco José dos Santos Vaz Bruto da Costa (vencido pelos mesmos fundamentos).
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Julho de 1973. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.