Acórdão doutrinário
Processo 59465. Autos de recurso para o tribunal pleno. - Recorrente, D. Ivone Feliciana Maria da Silva Carvalho. Recorrida, D. Feliciana Lambertina Simões Oeiras Domingos.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.
D. Ivone Feliciana Maria da Silva Carvalho recorreu para o tribunal pleno do Acórdão de 10 de Julho de 1962 (Boletim n.º 119, 493), alegando que a decisão nele proferida está em oposição com a constante do Acórdão deste tribunal de 12 de Outubro de 1954, que transitou em julgado (Boletim n.º 45, 265), verificando-se a oposição sobre questão fundamental de direito e tendo sido proferidas estas decisões sobre o domínio da mesma legislação.
A fl. 17 foi proferido acórdão admitindo o recurso para o tribunal pleno, por se ter verificado o condicionalismo determinado no artigo 763.º do Código de Processo Civil.
A questão fundamental de direito no objecto do recurso é a de saber se o artigo 1236.º do Código Civil sòmente se aplica aos bens herdados pelo pai ou pela mãe de filho falecido depois de o pai ou a mãe ter passado a segundas núpcias ou se também é aplicável no caso de tais bens serem herdados durante a viuvez.
O acórdão recorrido decidiu a questão no sentido de o preceituado ser aplicável ao caso de o pai ou a mãe do filho falecido se encontrar no estado de primeira viuvez. O Acórdão de 12 de Outubro de 1954 decidiu que é aplicável aos bens pelo bínubo herdados de filho falecido depois de aquele passar a segundas núpcias, e não aos herdados de filho falecido durante a simples viuvez.
É esta a questão, contraditòriamente decidida nos dois arestos.
De há muito se faz sentir a necessidade de providência legislativa ou judicial que torne certa a aplicação do disposto no artigo 1236.º do Código Civil, pelo que respeita ao destino hereditário dos bens que na hipótese dos autos se contempla.
É conhecida a génesis do preceito; não nos ocuparemos, pois, da sua história, nem das vicissitudes da sua interpretação.
Entramos directamente no problema, que se situa no instituto da sucessão e do direito sucessório.
Convém, para a inteligência do que vai expor-se, fixar determinados princípios sobre que assenta a expressão do nosso entendimento.
Um deles, expressamente exarado na lei, comum a todas as espécies de sucessões, é o de que a herança se abre pela morte do seu autor - do que consequentemente deriva fixar-se no momento da morte do autor da herança a transmissão do seu domínio e posse para os herdeiros, quer instituídos quer legítimos.
Assim o dispõem os artigos 2009.º e 2011.º do Código Civil.
Outro dominante princípio, também expresso na lei, inerente a este instituto, é o da ordem da sucessão legítima, determinada no artigo 1969.º, na redacção do Decreto 19126.
E relativamente à ordem legal da sucessão dos herdeiros legitimários convém ter presente a característica da sua inalterabilidade, visto que a lei fulmina de inexistente ou como não escrita qualquer convenção ou disposição que a altere - artigo 1103.º
A par destas regras preponderantes no instituto das sucessões, não deixaremos de recordar uma outra que domina o direito de propriedade, constituindo o preceito do artigo 2170.º, assim concebida: «O direito de propriedade não tem outros limites se não aqueles que lhe forem assinados pela natureza das coisas, por vontade do proprietário ou por disposição da lei».
Por último deixamos consignado que, ainda por expressa disposição da lei, a propriedade resolúvel é a que, conforme o título da sua constituição, está sujeita a ser revogada, independentemente da vontade do proprietário, e que os efeitos da resolução da propriedade são declarados nos títulos relativos à sua constituição - artigos 2171.º e 2174.º
Todos estes princípios se encontram fixados em preceitos legais, caracterizadamente de interesse e ordem pública, por serem destinados a garantir e defender os interesses da colectividade, as condições fundamentais da vida moral e jurídica da sociedade - na expressão do Dr. José Tavares (Princípios, 1.º, 142).
E por serem de interesse e ordem pública, não podem estas leis ser alteradas por mero alvedrio dos indivíduos.
Fixados estes princípios, entremos na apreciação da matéria em causa, com o seu fulcro no disposto no artigo 1236.º
Temos a convicção de que pròpriamente a letra do preceito, na sua primitiva redacção, não podia sugerir dúvidas sobre a pessoa a quem se referia: o varão ou a mulher que contrair segundas núpcias, tendo filhos de matrimónio anterior.
Apesar da clareza do texto, o certo é que uma forte corrente jurisprudencial, apoiada no parecer de eminentes doutrinários, esquecidos dos princípios que se deixaram enunciados e sem atenção ao ensinamento inserto no projecto do código civil francês, concebido na fórmula «quando uma lei é clara não se deve pôr de parte a sua letra sob o pretexto de penetrar o seu espírito», passou a decretar que o dito varão não era apenas o que tinha contraído segundas núpcias mas ainda o que se encontrava em circunstâncias de as poder contrair, ou seja o que se encontrava no estado de viúvo.
E fez carreira uma volumosa corrente firmando a doutrina da existência da condição resolutiva da propriedade dos bens deixados pelos filhos falecidos, ficando a propriedade dependente da celebração do novo casamento dos pais.
É a doutrina fixada no Acórdão deste Tribunal de 10 de Julho de 1962 - in Revista de Legislação e Jurisprudência 95, 329 -, para referir o último aresto que a contém.
São conhecidos os fundamentos em que assenta. Preponderantemente se salienta a defesa das estirpes. De supor é que as decisões proferidas, firmando esta doutrina, tenham sido influenciadas pelo assento de 29 de Março de 1955, que o ilustre Prof. Doutor Pires de Lima assim sintetizou: «O artigo 1236.º deve aplicar-se sempre que os bens recebidos do cônjuge pré-defunto possam beneficiar um novo consorte do sobrevivo ou a sua descendência de um segundo ou posterior leito».
Em vão tentou o legislador de 1930 pôr termo à controvérsia que o artigo suscitou, imprimindo-lhe nova redacção. Nem a substituição das palavras «varão ou mulher» pela palavra «bínubo», nem a nota explicativa que acompanhou o Decreto 19126, impuseram jurisprudência uniforme, como era de supor. Manteve-se a divergência de julgados - como todos sabem.
A mens legis e a mens legislatores - o forte argumento da defesa das estirpes - continuaram a dominar sobre o imperativo texto legal.
Oferece-se-nos oportunidade para transcrever estas luminosas expressões do Doutor Pires de Lima, extraídas da notável oração de sapiência, proferida na Universidade de Coimbra:
Os tribunais tendem a perder o respeito devido à lei, deixam de lhe obedecer e, dominados por uma falsa equidade, pela justiça aparente do caso concreto, criam uma situação intolerável, que é a incerteza do direito.
Salienta o ilustre professor que o juiz, em face de um código com princípios antiquados, descurando o direito e procurando a solução que lhe parece mais justa e equitativa, esquece-se de que está a fomentar a insegurança, a incerteza, a intranquilidade na vida jurídica, que deve ser disciplinada por normas objectivas.
E depois de preconizar a disciplina jurídica, cujo conteúdo só ao Estado, por intermédio de outros órgãos que não os jurisdicionais, cabe fixar, anota que se torna necessário que a jurisprudência não assuma funções que lhe não pertencem, não devendo cair na casuística, nas soluções particulares, dominadas pelos interesses especiais de cada caso e não pelos interesses sociais em jogo, que só a norma abstracta sabe definir e proteger.
E não nos furtamos ao prazer daquela passagem que refere o pedido dos povos de Sabóia a Francisco I de França, para que se proibisse aos juízes o julgar conforme a equidade, querendo antes ser julgados segundo os termos precisos da lei.
Esta transcrição fizemos, por grata ao nosso espírito. É que sempre entendemos estar vedado ao intérprete, e nomeadamente ao julgador, a aplicação da norma por maneira abertamente contrária ao sentido, à própria expressão que nela se contém.
No caso particular que nos ocupa, tendo em atenção em primeiro lugar o próprio dispositivo, os princípios legais que imperativamente dominam o instituto que contém o objecto do recurso, condensados em preceitos de interesse e ordem pública e ainda os princípios que presidem na actividade da interpretação das leis, afirmamo-nos no conceito de que os pais viúvos não são bínubos e de que só são bínubos os pais que passaram a segundas núpcias. E na consideração de que a herança se abre pela morte do seu autor e que é nesse momento da morte que se verifica a transmissão do domínio e posse da herança para os herdeiros - os quais sucedem em todos os direitos e obrigações do seu autor; e de que nenhum preceito legal cerceia a propriedade absoluta que estava no direito do de cujus, que assim se transmitiu para os seus herdeiros; e de que o pai, viúvo, é o sucessor legítimo do filho falecido sem descendentes, não podemos aceitar a aplicabilidade do preceito por forma contrária a todos esses princípios e à sua própria letra.
Nestes termos, se acorda em conceder provimento ao recurso e firmar o seguinte assento:
O artigo 1236.º do Código Civil refere-se sòmente aos bens herdados pelo viúvo, depois de ter contraído novas núpcias.
Lisboa, 12 de Maio de 1964. - Alberto Toscano - Fragoso de Almeida - Albuquerque Rocha - Lopes Cardoso - Fernando Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Lucena e Vasconcelos - João Caldeira - Torres Paulo - Tovar de Lemos - Albino Resende Gomes de Almeida - José Meneses (vencido. A razão de ser do artigo 1236.º do Código Civil aconselha a que o seu regime se aplique mesmo que os bens sejam herdados durante o período da viuvez) - Simões de Carvalho (vencido, porque, em meu entender, nem a letra da lei nem a sua história impõem necessàriamente a solução adoptada, a qual contraria a sua razão de ser - evitar que os bens de uma estirpe vão parar a outra completamente diferente. Esta razão subsiste quer os bens sejam herdados na viuvez quer na binubez).
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Maio de 1964. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.