Acórdão 564/2005/T. Const. - Processo 794/2005. - Acordam no Tribunal Constitucional:
1 - João Armando Saraiva Pereira de Almeida, na qualidade de "mandatário da candidatura do Partido Socialista às eleições autárquicas de 2005 no concelho de Mondim de Basto" dirigiu ao Tribunal Constitucional a seguinte petição, a que chama "recurso contencioso da legalidade de determinados actos praticados no contexto das supracitadas eleições":
"Dos factos:
1.º No decurso do acto eleitoral, na assembleia de voto n.º 1 da freguesia de Mondim de Basto, constatou-se que dois elementos da respectiva mesa de voto deslocaram-se para o exterior da assembleia de voto, para junto de uma carrinha monovolume Peugeot 807 da Santa Casa da Misericórdia de Mondim de Basto, transportando consigo os respectivos boletins de voto.
2.º O referido veículo transportava sete eleitores idosos, que exerceram o direito de voto no interior do próprio veículo, nos lugares em que se encontravam sentados, em simultâneo e sem assegurar os pressupostos da presencialidade e do segredo de voto.
3.º Dos factos relatados foi lavrada reclamação junto da mesa de voto pelo candidato do CDS-PP, a requisitar, e foi apresentada queixa à Comissão Nacional de Eleições pela candidatura do PS conforme documento junto.
4.º Na assembleia de voto da freguesia de Paradança foi lavrado protesto à mesa por ter sido admitido o exercício de voto a eleitores acompanhados que não aparentavam doença ou deficiência física notórias.
5.º Na assembleia de voto da freguesia de Ermelo constatou-se que as mesas de voto deliberaram que um mesmo cidadão podia acompanhar dois eleitores idosos a votar.
Do direito:
6.º Do supra-expendido resulta a violação de vários normativos da Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica 5-A/2001, de 26 de Novembro, que regulamenta a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais.
7.º Os factos relatados nos n.os 1.º e 2.º violam o disposto nos artigos 98.º, 101.º, 102.º e 115.º do diploma legal acima melhor identificado.
8.º Os factos relatados nos n.os 4.º e 5.º violam o disposto nos artigos 102.º e 115.º do supracitado diploma legal.
Nestes termos e nos mais de direito, ainda com o douto suprimento de V. Ex.ª, deve ser declarada a ilegalidade dos actos praticados e acima melhor explicitados e aplicadas todas as consequências legalmente previstas."
2 - Face ao que dispõe o n.º 1 do artigo 159.º da LEOAL, aprovada pela Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto, deverá o requerente, na sua petição, identificar a deliberação recorrida. No caso presente, o requerente denuncia três diferentes situações, que claramente tem por irregulares; mas, da descrição que faz, não é possível determinar os actos que pretende impugnar.
Vejamos: em primeiro lugar, na assembleia de voto n.º 1 da freguesia de Mondim de Basto, dois elementos da respectiva mesa ter-se-ão deslocado para fora da assembleia de voto levando consigo boletins de voto com a finalidade de permitir que sete eleitores votassem no interior do veículo automóvel onde se encontravam. Para além de nada dizer sobre a influência que os votos assim expressos teriam tido no resultado eleitoral, o certo é que nada se diz sobre o acto recorrido, por força do qual teriam sido validados tais votos.
Esta deficiência impede que o Tribunal Constitucional aprecie o pedido e, consequentemente, dê por verificada a irregularidade.
No segundo caso, na freguesia de Paradança, teria sido admitido o exercício de voto a eleitores acompanhados, embora eles não aparentassem doença ou deficiência física notórias; falta, desde logo, saber quantos teriam sido os votos assim ilegalmente obtidos para poder concluir pela influência que a irregularidade teria tido sobre o resultado final. Todavia, o certo é que também nada acrescenta que identifique o acto recorrido.
No terceiro caso, na freguesia de Ermelo, as mesas de voto terão deliberado que um mesmo cidadão podia acompanhar dois eleitores idosos a votar; nada se diz que possa fazer concluir que o facto teve influência no resultado da eleição, mas, fundamentalmente, o Tribunal fica sem poder determinar de que deliberação se recorre.
3 - Em face do exposto, decide-se não conhecer do pedido.
Lisboa, 24 de Outubro de 2005. - Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Vítor Gomes - Benjamim Rodrigues - Rui Moura Ramos - Gil Gaivão - Bravo Serra - Maria Helena Brito - Paulo Mota Pinto - Maria Fernanda Palma (vencida quanto à fundamentação do acórdão, no essencial, pelas razões constantes da declaração de voto do conselheiro Mário Torres, e retirando daí as devidas consequências quanto à decisão) - Mário Torres (com declaração de voto junta) - Artur Maurício.
Declaração de voto
1 - Da leitura conjugada das normas dos n.os 1 e 2 do artigo 156.º e dos artigos 157.º e 158.º da lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, aprovada pela Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto (doravante designada por LEOAL), resulta, a meu ver, o seguinte regime: i) todas as irregularidades ocorridas, quer no decurso da votação, quer no apuramento local, quer no apuramento geral, são susceptíveis de constituir objecto de impugnação contenciosa; ii) constitui requisito de admissibilidade dessa impugnação a apresentação de reclamação ou protesto (na votação: pelos delegados das listas ou por qualquer eleitor inscrito na assembleia de voto em causa - artigo 121.º; nos apuramentos local ou geral: pelos representantes das candidaturas - artigos 134.º, n.º 1, e 143.º) no acto em que a irregularidade tiver ocorrido (artigo 156.º, n.º 1); iii) têm legitimidade para a impugnação contenciosa não apenas o apresentante da reclamação mas qualquer candidato, mandatário, partido político, coligação ou grupo de cidadãos e seus delegados ou representantes intervenientes no acto eleitoral em causa (artigo 157.º); iv) o prazo de interposição do "recurso contencioso", a interpor perante o Tribunal Constitucional, é de um dia contado a partir do dia de afixação contendo os resultados do apuramento - entenda-se: apuramento geral - (artigo 158.º).
O n.º 2 do artigo 156.º da LEOAL, ao dispor que "das irregularidades ocorridas no decurso da votação ou do apuramento local pode ser interposto recurso contencioso, sem prejuízo da interposição de recurso gracioso perante a assembleia de apuramento geral no 2.º dia posterior ao da eleição", implica que a impugnação contenciosa a interpor perante o Tribunal Constitucional pode ter como objecto directo uma irregularidade ocorrida no decurso da votação ou do apuramento local. Da expressão "sem prejuízo da interposição de recurso gracioso perante a assembleia de apuramento geral" não resulta, a meu ver, que se vise a imposição de um recurso "gracioso" necessário para a assembleia de apuramento geral, hipótese em que só da deliberação desta sobre tal recurso caberia impugnação para o Tribunal Constitucional. Tal interpretação retiraria qualquer sentido útil à primeira parte deste n.º 2 do artigo 156.º Resulta, pois, deste preceito que, perante uma irregularidade ocorrida no decurso da votação ou do apuramento local, o interessado pode interpor "recurso contencioso" e também, facultativamente, "recurso gracioso" perante a assembleia de apuramento geral. Questão diversa é a do momento de subida do recurso contencioso, que, por força do artigo 158.º e pelas razões expendidas no Acórdão 585/2001 e reiteradas nos recentes Acórdãos n.os 521/2005, 522/2005 e 524/2005, se entende só dever ocorrer após a afixação do edital contendo os resultados do apuramento geral.
Esclareça-se, desde já, que quando se referiu que podem constituir objecto da impugnação contenciosa quaisquer "irregularidades" ocorridas no decurso da votação e no apuramento local, é óbvio que as irregularidades (no sentido de violações da lei eleitoral) constituem, em rigor, o fundamento da impugnação, e não, nesse sentido, o seu objecto. Mas o que importa sublinhar, nesta sede, é que o objecto do "recurso contencioso" não tem de ser, necessariamente, um acto jurídico expresso. Desde há muito que, no contencioso administrativo em geral, se admite que objecto de "recurso contencioso" podem ser, para além de actos administrativos expressos, não só omissões administrativas mas também operações materiais da Administração [cf., por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 15 de Outubro de 1998, p. 37 451 (relator: conselheiro Vítor Gomes), anotado por Carla Amado Gomes, "Era uma vez ... uma execução coerciva: O caso Société lmmobilière de Saint Just revisitado", Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 15, Maio-Junho de 1999, pp. 3-14, e, desta autora, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do Seu Controlo Jurisdicional, Coimbra, 1999].
Quando se impugnam contenciosamente "irregularidades" ocorridas no decurso da votação, o que, em rigor, se impugna é o comportamento das mesas das assembleias de voto de permitirem o exercício do sufrágio em alegada violação das normas legais aplicáveis, ou, se se preferir, é o acto de admissão de votos nessas condições. Apresentado protesto ou reclamação contra esse comportamento ou acto, está preenchido o requisito de admissibilidade do recurso contencioso, sem que se exija que, perante a decisão (ou falta dela) dessa reclamação ou protesto, por parte da mesa de assembleia de voto, o interessado tenha de formular nova reclamação ou protesto perante esse órgão ou que tenha de os repetir durante o apuramento local ou perante a assembleia de apuramento geral.
2 - Exposto o entendimento que extraio das normas dos artigos 156.º a 158.º da LEOAL, importa agora sublinhar que o n.º 1 do subsequente artigo 159.º apenas impõe que o recorrente especifique, na petição de recurso, os respectivos fundamentos de facto e de direito e junte os elementos de prova de que disponha, solicitando ao Tribunal Constitucional a requisição dos restantes.
Não tem suporte legal, a meu ver, a exigência de que o recorrente faça, na petição de recurso, uma exaustiva demonstração e prova da verificação de todos os requisitos positivos ou da inverificação de todos os requisitos negativos da admissibilidade do recurso, nem, muito menos, que tenha de alegar e provar que as irregularidades arguidas são susceptíveis de influir no resultado geral da eleição do respectivo órgão autárquico (artigo 160.º, n.º 1, da LEOAL). Este último não é sequer um requisito de admissibilidade do recurso, mas mera causa de paralisação do efeito invalidante da ilegalidade verificada, que o Tribunal aprecia oficiosamente, dado dispor de elementos (os resultados do apuramento geral) que lhe permitem aferir daquela possibilidade de influência. Aliás, nem todas as ilegalidades implicam anulação da eleição e repetição do acto eleitoral (cf., por exemplo, o recente Acórdão 545/2005, em que se concedeu provimento ao recurso eleitoral, determinando-se a rectificação de votos atribuídos a determinada lista, apesar de essa rectificação em nada afectar a atribuição de mandatos, já que, no caso, não havia necessidade de repetição do acto eleitoral, e o Acórdão 563/2005, desta data, proferido em caso em que ocorria diferença de um voto entre as 1.ª e 2.ª listas, e no qual, se o Tribunal Constitucional tivesse considerado válidos os dois votos na 2.ª lista que foram considerados nulos e objecto de protesto, também não determinaria a repetição do acto eleitoral mas antes que a assembleia de apuramento geral procedesse a novo apuramento, com a apontada alteração da qualificação dos votos, de que resultaria a vitória da lista recorrente).
Por isso, divergi do precedente acórdão enquanto aponta como deficiência da petição de recurso a omissão, pelo recorrente, de alusão à influência das irregularidades denunciadas sobre o resultado final.
Por outro lado, e também contrariamente ao decidido no precedente acórdão, entendo, face ao teor da petição de recurso apresentada pelo recorrente, "ser possível determinar os actos que pretende impugnar". Esses actos são, como se expôs supra, no n.º 1, os actos (ou comportamentos materiais) das mesas das três assembleias de voto identificadas que permitiram o exercício do direito de sufrágio em situações violadoras das normas legais aplicáveis, pondo em causa os pressupostos da presencialidade e do segredo de voto, isto é, em suma, o exercício livre e consciente do direito de voto.
Não constando dos autos as actas das assembleias de voto em causa, não existem elementos para tomar posição quer quanto à ocorrência de outros motivos impeditivos do conhecimento do mérito do recurso, quer quanto a este mérito. - Mário Torres.