Acórdão 247/2005/T. Const. - Processo 891/2003. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Michael John Burridge, com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 2085 e seguintes, que o condenou pela prática de dois crimes de actos homossexuais com adolescentes, previstos e punidos pelo artigo 175.º do Código Penal (CP), na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.
O recorrente pede a apreciação da constitucionalidade da norma deste artigo 175.º, por entender que viola os artigos 13.º, n.os 1 e 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), nomeadamente quando confrontado com o artigo 174.º do mesmo Código.
2 - Admitido o recurso, o recorrente apresentou alegações que concluiu nos seguintes termos:
"A) No requerimento de recurso interposto para o STJ, o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade do artigo 175.º do CP, face aos artigos 13.º, n.os 1 e 2, e 26.º, n.º 1, da CRP (na redacção que lhe foi dada pela revisão de 1997), nomeadamente quando aquele preceito é confrontado com o artigo 174.º do CP.
B) Efectivamente, o artigo 175.º do CP dispõe: 'Quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre os 14 e os 16 anos, ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.'
C) Por sua vez, o artigo 174.º dispõe: 'Quem, sendo maior, tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor entre os 14 e os 16 anos, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.'
D) Os dois artigos apresentam uma disparidade de requisitos que vai muito para além da simples exigência da inexperiência do menor.
E) Efectivamente, no campo das relações heterossexuais, para que um indivíduo maior seja punido por se relacionar com um menor de 14 ou 15 anos é necessário que tenha existido:
Cópula, coito anal ou coito oral;
Prática pelo próprio agente do crime;
Abuso da inexperiência do menor; e
Os requisitos são cumulativos.
F) Já no campo das relações homossexuais, para que um indivíduo maior seja punido por se relacionar com um menor entre os 14 e os 16 anos basta que pratique um acto sexual de relevo ou leve a que ele seja praticado pelo menor com outrem.
G) Ora, considerando que a jurisprudência do STJ e dos Tribunais da Relação de Lisboa e do Porto entende que um beijo na boca, uma carícia, um passar a mão pelas pernas com fins libidinosos são actos sexuais de relevo, um indivíduo maior que der um beijo na boca de um menor de 14 ou 15 anos do mesmo sexo e com o seu consentimento é automaticamente punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
H) Se estivermos no campo das relações heterossexuais, é necessário cópula, coito anal ou coito oral e, cumulativamente, abuso da inexperiência do menor.
I) É inegável que existe na lei um tratamento mais benevolente com as relações heterossexuais que, no entendimento do STJ, se justifica.
Leia-se no douto acórdão do STJ [...]: 'O legislador, ao proceder assim, não estabelece diferenciações sem fundamento material bastante, de forma irrazoável, movido por uma injustificada e arbitrária razão, antes trata de forma desigual à luz de um padrão objectivo o que o deve ser, e que são as relações homossexuais de relevo de pessoa maior com menores entre os 14 e 16 anos, quando comparativamente com actos entre pessoas de sexo diferente, entre menores de 14 e 16 anos e maior.' [...]
J) Salvo o devido respeito, o acórdão limita-se a evidenciar o que já era evidente: existe diferença entre os dois artigos!!!
Não justifica a razão de ser da disparidade de requisitos.
K) Embora tenha tentado fugir a concepções moralistas, o STJ mostra o que o motivou a não declarar a inconstitucionalidade do artigo 175.º do CP, quando afirma:
'A prática de actos homossexuais de adultos com menores é na envolvência cultural de hoje, encarada, em larguíssimos sectores sociais e humanos, na esmagadora maioria dos cidadãos, objectivamente mais grave do que a prática de actos heterossexuais com menores, pelos efeitos que conduz, repercutindo aquela uma prática de menor normalidade e a última, apesar de ainda condenável, maior normalidade.
As experiências homossexuais de adultos com menores, independentemente da experiência sexual da vítima, são substancialmente mais traumatizantes, por representarem um uso anormal do sexo, condutas altamente desviantes, por serem contrárias à ordem natural das coisas, comprometendo ou podendo comprometer a formação da personalidade e o equilíbrio mental, intelectual e social futuro da vítima desencadeando, também, colateralmente, efeitos danosos de um ponto de vista social, fenómenos disfuncionais em grau mais elevado, à partida, do que os actos heterossexuais com adolescentes, mesmo sem experiência sexual.'
L) Não se compreendem as afirmações dos Srs. Juízes Conselheiros do STJ, pois o artigo 175.º não contempla um crime de violação (este tem sede própria). Os actos que aí são contemplados são consentâneos.
M) Tanto A como B eram prostitutos.
N) Foram eles que tomaram a iniciativa de ir ao encontro do recorrente.
O) Os actos sexuais foram praticados voluntariamente por eles.
P) Estamos no domínio dos actos consensuais.
Q) Por outro lado, recurso a um critério de normalidade estatística é 'um argumento muito pouco convincente e de legitimidade constitucional assaz duvidosa'.
R) "Só uma concepção da homossexualidade como 'vício' - e portanto como 'imoral' - pode explicar a persistência da ideia (de todo infundada) de que é preciso proteger os jovens contra qualquer tipo de contactos homossexuais de molde a evitar que possam ser, como se lia na redacção originária do Código Penal vigente, desencaminhados para uma orientação sexual que não é a sua."
S) O direito penal deve estar desprovido de qualquer carácter moral.
T) Destaque-se Roxin, que afirma que 'ao legislador falta em absoluto a legitimidade para punir condutas não lesivas de bens jurídicos, apenas em nome da imoralidade'.
U) Por sua vez, Karl Prelhaz Natscheradetz afirma que, 'sendo objectivo do direito penal sexual garantir a maior liberdade possível nos comportamentos sexuais [e se] a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem - artigo 4.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão -, deverá exigir-se precisamente que os crimes sexuais tutelem o bem jurídico da liberdade individual, limitando-se assim o direito penal sexual à criminalização das condutas sexuais que mais gravosamente atentem contra a liberdade pessoal do ofendido, ou seja, que ofendam a liberdade sexual ou a livre autodeterminação sexual do ofendido, privando-o da disposição de um dos aspectos mais intimamente ligados à sua auto-realização pessoal, como é a actividade sexual'.
V) Aliás, o facto de os artigos 174.º e 175.º contemplarem relações consentâneas, leva o Professor Figueiredo Dias a defender, em comentário ao artigo 174.º, que 'na verdade parece ser de recomendar, em termos de jure dando, a descriminalização deste tipo de conduta, atribuindo a tutela do desenvolvimento da vida sexual adolescente, nesta parte, a outros meios de política social, nomeadamente de carácter moral, educativo e religioso'.
W) Do mesmo Professor também se lê que 'não é crime qualquer actividade sexual (qualquer que seja a espécie) praticada por adultos, em privado, e com consentimento' e "se é função do direito penal proteger bens jurídicos fundamentais da comunidade e só eles, decorre daí o mandamento de banir do seu âmbito todas e quaisquer 'excrescências moralistas' e permitir que ele se concentre, tanto quanto possível, no seu núcleo essencial. A este propósito se falará, então, com propriedade de exigência de destruição, no seio do direito penal, de todo o dogmatismo moral; da exigência de que se não punam condutas que, embora moralmente censuráveis, ou não põem em causa os restantes membros da comunidade, ou cuja punição acarretaria para esta maiores prejuízos do que vantagens, ou que encerram questões moralmente muito discutíveis e cuja valoração não é feita no mesmo sentido pela generalidade dos membros da comunidade.".
X) Como muito pertinentemente sublinha o Dig.mº Procurador-Adjunto Jorge Dias Duarte, "se considerarmos que o bem jurídico tutelado na secção em que este crime se insere é a autodeterminação sexual, ou seja, o direito de crescer até uma dada idade na 'relativa inocência' do que são contactos sexuais, até que, uma vez formada a personalidade, se possa livremente exercer a liberdade de escolha de parceiro(s)/parceira(s) e tipos de práticas sexuais em que cada um se decide envolver, não se entende que se tutele esse direito contra práticas homossexuais e não se faça idêntica tutela contra práticas heterossexuais; assim, e a título de provocação (?), pense-se que motivos poderão levar a perseguir jurídico-penalmente o jovem de 20 anos de idade que desafia o seu vizinho de 15 anos, do mesmo sexo, para com ele manter relações de sexo oral e que motivos poderão conduzir a que o mesmo jovem de 20 anos não seja perseguido se convidar a sua vizinha, também com 15 anos de idade e sexualmente 'experiente', a participar em jogos sadomasoquistas ..."
Y) Seguidamente conclui 'que uma sociedade que se pretenda neutral em termos de moralidade sexual apenas pode tratar de forma diversa aquilo que se apresente de forma diversa; assim apenas deverá ser penalmente perseguido o agente que conduza o menor entre os 14 e os 16 anos de idade à prática de actos homossexuais - de relevo - nos casos em que o mesmo actue de forma que seja posta em causa a liberdade de autodeterminação sexual desse menor, do mesmo modo que, em idênticas circunstâncias, deverá ser punido o agente que levar o mesmo menor à prática de actos heterossexuais de relevo, pois só desta forma se assegurará uma efectiva tutela de liberdade de escolha - futura - daquele concreto jovem no que se refere à sua orientação e consequente escolha de parceiros(as) sexuais'.
Z) O artigo 175.º do CP não só viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.os 1 e 2, da CRP, como viola também o direito fundamental à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade do artigo 26.º, n.º 1, da CRP, na redacção que lhe foi dada após a revisão constitucional de 1997, no qual a doutrina não hesita em incluir a liberdade à autonomia de orientação sexual.
AA) Efectivamente, ao condenar os actos homossexuais com adolescentes, o legislador condiciona a própria autodeterminação sexual dos menores (e maiores) e a sua liberdade à autonomia de orientação sexual (e, consequentemente, o desenvolvimento da sua personalidade), dando uma clara indicação de que a heterossexualidade é a única via admitida.
BB) Mais, a criminalização dos actos homossexuais nos termos previstos no artigo 175.º do CP pode vir a ter (ou tem) efeitos nocivos para os próprios jovens que visa proteger.
CC) 'Aos adolescentes homossexuais - normalmente já a braços com as enormes dificuldades inerentes à compreensão e, sobretudo, à aceitação da sua orientação sexual - a mensagem que a simples existência do artigo 175.º do Código Penal lhes transmite é, assim, inquestionavelmente, de repulsa e condenação da homossexualidade e, portanto, deles próprios.'
DD) Cabe ainda destacar as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem nos casos 'S. L. vs. Áustria', em 9 de Janeiro de 2003, e 'Karner vs. Áustria', em 24 de Julho de 2003, que se pronunciaram pela ilegitimidade material do artigo 209.º do Código Penal austríaco (em tudo semelhante ao nosso artigo 175.º do CP) que punia a prática de actos homossexuais entre homens adultos e adolescentes com idade entre os 14 e os 18 anos, por violar os artigos 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
EE) Embora o Tribunal Constitucional Austríaco tivesse decidido pela inconstitucionalidade do artigo 209.º do CP austríaco (que foi revogado em 10 de Julho de 2002), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pronunciou-se acerca da ilegitimidade do artigo 209.º e condenou a Áustria a indemnizar os queixosos pelos danos decorrentes da violação da Convenção por ter considerado que os queixosos foram impedidos de se envolver, antes dos 18 anos, em relações sexuais correspondentes à sua orientação.
FF) Assim, com a decisão do Tribunal Constitucional da Áustria, Portugal inclui-se no grupo cada vez mais pequeno de países que continuam a regular penalmente de modo diverso os contactos heterossexuais e homossexuais.
Pelo exposto e com o douto suprimento, que se requer, deve o recurso ser considerado procedente e declarada a inconstitucionalidade do artigo 175.º do Código Penal, por violar os artigos 13.º, n.os 1 e 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (na redacção que lhe foi dada pela revisão de 1997), e ilegal, por violar os artigos 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, absolvendo-se o recorrente dos crimes pelos quais foi condenado."
3 - Contra-alegou o Ministério Público, concluindo:
"1 - Na definição dos tipos legais de crimes usufrui o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação, estando-lhe, contudo, vedado optar por soluções arbitrárias ou discriminatórias, sem que haja fundamento material suficiente para a diferença de tratamento.
2 - A infracção criminal prevista e punida pelo artigo 175.º do Código Penal, relativo à homossexualidade com adolescentes, não viola o princípio constitucional da igualdade quando cotejada com o tipo legal de crime do artigo antecedente do mesmo diploma legal, que abarca uma realidade diferente, menos exigente na punição de determinados comportamentos no âmbito da heterossexualidade.
3 - Não configura violação da Constituição, em sede de tutela do direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, o facto de o legislador ordinário, ainda no âmbito de autonomia que lhe é concedida, optar pela criminalização de determinados comportamentos entre indivíduos do mesmo sexo, sendo vítimas menores entre os 14 e os 16 anos, tal como o faz no crime do artigo 175.º do Código Penal.
4 - Nestes termos, não deverá proceder o presente recurso."
Tendo havido mudança de relator, em consequência de alteração da composição do Tribunal, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação. - 1 - A questão de constitucionalidade que o recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional foi, igualmente, sujeita ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, em termos praticamente idênticos aos que constam das alegações do presente recurso, tendo este Tribunal aplicado a norma do artigo 175.º do CP como ratio decidendi (o recorrente foi punido pela prática de dois crimes previstos e punidos por este preceito do CP), pelo que, reunidos os demais pressupostos processuais do recurso, nada obsta ao conhecimento do seu objecto.
A constitucionalidade da norma (artigo 175.º do CP) foi questionada no plano da violação do princípio da igualdade por suposto tratamento desigual, em termos incriminatórios, das relações homossexuais face às relações heterossexuais (artigo 174.º do CP), desigualdade essa que se traduziria na previsão no tipo legal de actos sexuais com adolescentes de um distinto conteúdo da acção, de uma específica modalidade típica da acção e de apenas uma modalidade da acção: no artigo 175.º incrimina-se o comportamento daquele que praticar actos homossexuais de relevo com menor entre os 14 e os 16 anos, bem como daquele que levar a que eles sejam por este praticados com outrem; no artigo 174.º pune-se o comportamento daquele que tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor entre os 14 e os 16 anos, abusando da sua inexperiência.
Não poderá, no entanto, o julgamento deste Tribunal (em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade) atender, no caso, à previsão típica de um distinto conteúdo da acção (actos homossexuais de relevo/cópula, coito anal ou coito oral) e à não previsão de uma outra modalidade de acção (ter cópula, coito anal ou coito oral/praticar actos homossexuais de relevo com menor ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem). O recorrente foi condenado pela prática de coito oral com menor entre os 14 e os 16 anos de idade - "actos sexuais de relevo", actos homossexuais de relevo, que igualmente integrariam o tipo legal de crime previsto no artigo 174.º do CP. E sendo assim, um eventual julgamento de inconstitucionalidade assente na previsão de um distinto conteúdo da acção ou de apenas uma modalidade da acção nunca teria qualquer incidência no julgado, o que seria contrário à instrumentalidade do recurso em sede de fiscalização concreta.
A questão, pois, que o Tribunal Constitucional deverá resolver é a de saber se ofende os artigos 13.º e 26.º, n.º 1, da CRP, a norma constante do artigo 175.º do CP enquanto pune a conduta (homossexual) aí prevista, ainda que não se abuse da inexperiência do menor, quando a norma do artigo 174.º apenas pune a conduta (heterossexual) nele prevista se ela for praticada com abuso da inexperiência do menor.
Quanto à alegada violação dos artigos 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, importa destacar que neles nada se diz que se não contenha já na CRP, pelo que, à semelhança do que este Tribunal já teve ocasião de afirmar, não se justifica apreciar a eventual desconformidade entre a norma de direito interno e as disposições da Convenção (cf. Acórdãos n.os 124/90, 186/92, 322/93, 223/95 e 121/97, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 8 de Fevereiro de 1991, de 18 de Setembro de 1992, de 29 de Outubro de 1993, de 27 de Junho de 1995 e de 30 de Abril de 1997, respectivamente).
2 - A invocação da inconstitucionalidade da norma impugnada, por violação do artigo 13.º da CRP, teve em conta a versão da Constituição anterior à que resultou da revisão de 2004, uma vez que a norma do artigo 175.º do CP foi aplicada, no caso, num momento em que vigorava, ainda, aquela versão e não a que resultou da Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Julho, que alterou a redacção daquele preceito, aditando ao seu n.º 2, como factor insusceptível de justificar privilégios, benefícios, prejuízos, privação de direitos ou isenção de deveres, a "orientação sexual".
Isto sem prejuízo de poder vir a considerar-se que a alteração constitucional introduzida em 2004 não consubstancia uma modificação substancial do artigo 13.º, n.º 2, da CRP, ficando apenas expresso o que já deveria ser lido na versão anterior, o que dispensará, então, a apreciação da constitucionalidade daquela norma do CP, à luz do regime de sucessão de normas constitucionais no tempo (sobre isto, cf., entre outros, os Acórdãos n.os 408/89 e 275/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., t. II, pp. 1147 e segs., e 39.º vol., pp. 597 e segs., respectivamente, 172/2000, in Diário da República, 2.ª série, de 25 de Outubro de 2000, e 556/2000, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48.º vol., pp. 559 e segs.).
3 - O artigo 175.º do CP, na redacção da Lei 65/98, de 2 de Setembro - "Quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menores entre os 14 e os 16 anos, ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias." -, integra a secção "Dos crimes contra a autodeterminação sexual" do capítulo "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual" do título "Dos crimes contra as pessoas". O que, por si só, é revelador de duas notas fundamentais que passaram a caracterizar os denominados "crimes sexuais", depois das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março.
Por um lado, estes crimes passaram a ser vistos como crimes contra as pessoas, contra o valor estritamente individual da liberdade de determinação sexual, deixando de ser considerados como crimes contra valores e interesses da vida em sociedade, como crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social, iluminados por bens jurídicos supra-individuais, da comunidade ou do Estado; por outro, apesar de uma consideração unitária destas incriminações, procede-se à distinção entre crimes contra a liberdade sexual e crimes contra a autodeterminação sexual, com o sentido específico de permitir a extensão da protecção em razão da idade da vítima - uma criança ou, em todo o caso, um menor de certa idade (assim, Figueiredo Dias, "Nótula antes do artigo 163.º", in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, t. I, Coimbra Editora, 1999, § 1 e seg. Cf., ainda, Rui Pereira, "Liberdade sexual na reforma do Código", in Sub Judice, n.º 11, 1996, pp. 44 e seg.).
3.1 - Mediante autorização concedida pela Lei 35/94, de 15 de Setembro, na sequência da proposta de lei 92/VI, apresentada pelo Governo (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 24, de 24 de Fevereiro de 1994), o CP foi revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, que pôs termo à integração dos "crimes sexuais" na secção II do capítulo I ("Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais") do título II ("Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade") do livro II ("Parte especial") daquele Código.
Na verdade, o CP de 1982, na sua versão primitiva, não deixou de ligar os "crimes sexuais" (assim qualificados pela primeira vez) aos sentimentos gerais de moralidade sexual, mostrando-se esta característica ao nível dos tipos incriminadores: o artigo 202.º ("Violação da mulher inconsciente"), ao delimitar o âmbito das vítimas deste crime, refere-se, no n.º 1, à mulher portadora de anomalia psíquica que lhe tire a capacidade para avaliar o sentido moral da cópula ou se determinar de harmonia com essa avaliação; o artigo 204.º ("Estupro") incrimina o comportamento daquele que tiver cópula com maior de 14 anos e menor de 16 anos, abusando da sua inexperiência ou mediante promessa séria de casamento; o artigo 205.º ("Atentado ao pudor com violência"), no n.º 3, define "atentado ao pudor" como o comportamento pelo qual outrem é levado a sofrer, presenciar ou praticar um acto que viola, em grau elevado, os sentimentos gerais de moralidade sexual; o artigo 206.º ("Atentado ao pudor com pessoa inconsciente"), ao delimitar o âmbito das vítimas deste crime, refere-se, no n.º 1, a pessoa portadora de anomalia psíquica que lhe tire a capacidade para avaliar o sentido moral do atentado ao pudor ou se determinar de harmonia com essa avaliação; o artigo 207.º ("Homossexualidade com menores") incrimina o comportamento daquele que, sendo maior, desencaminhar menor de 16 anos do mesmo sexo para a prática de acto contrário ao pudor, consigo ou com outrem do mesmo sexo; o artigo 212.º ("Exibicionismo e ultraje público ao pudor") pune aquele que, publicamente e em circunstâncias de provocar escândalo, praticar acto que ofenda gravemente o sentimento geral de pudor ou de moralidade sexual; o artigo 213.º ("Ultraje ao pudor de outrem"), no n.º 1, incrimina o comportamento daquele que ofender outra pessoa, praticando com ela, ou diante dela, acto atentatório ao seu pudor; o artigo 215.º ("Lenocínio") pune aquele que fomentar, favorecer ou facilitar a prática de actos contrários ao pudor ou à moralidade sexual, relativamente a certas pessoas, incorrendo na mesma pena quem explorar o ganho imoral de prostituta, vivendo, total ou parcialmente, a expensas suas. De todo o modo, incriminações que já em muito se distanciavam do CP de 1886.
Este Código, fiel a uma concepção de responsabilidade criminal assente na obrigação de reparar o dano causado na ordem moral da sociedade (artigo 27.º), dedicava um dos seus capítulos - o capítulo IV do título IV do livro II - aos crimes contra a honestidade, subdividindo-o em quatro secções: "Ultraje público ao pudor", "Atentado ao pudor, estupro voluntário e violação", "Adultério" e "Lenocínio". Com intuitos meramente exemplificativos, destaque-se que este Código fazia depender o preenchimento do tipo legal de "estupro" (artigo 392.º) da acção de estuprar mulher virgem, maior de 12 e menor de 18 anos, e da utilização do meio sedução, dependendo o preenchimento do tipo legal de "violação" (artigo 393.º) da acção de ter cópula ilícita com qualquer mulher. Note-se, ainda, que este diploma obrigava o criminoso a dotar a ofendida, nos casos de estupro e de violação de mulher virgem, ainda que com ela casasse; fazia corresponder ao casamento o termo da acusação da parte ofendida e da prisão preventiva, prosseguindo a acção pública à revelia até julgamento final; e previa a suspensão da condenação, que caducaria se, passados cinco anos sobre o casamento, não houvesse divórcio ou separação judicial por factos somente imputáveis ao marido, pois, caso contrário, o réu cumpriria a pena - artigo 400.º ("Dote da ofendida e efeitos do casamento").
Comparando estas disposições legais com as correspondentes do CP de 1852, também quanto àquelas se pode concluir que já se distanciavam destas, muito embora não haja diferenças a assinalar do ponto de vista da sistematização de um e de outro diploma. Neste Código incriminava-se o comportamento daquele que estuprasse mulher virgem ou viúva honesta, maior de 12 e menor de 17 anos (artigo 392.º), bem como ainda o daquele que por meios fraudulentos de sedução estuprasse mulher virgem ou viúva honesta, maior de 17 e menor de 25 anos (artigo 393.º); o artigo 394.º fazia depender o preenchimento do tipo legal de crime de violação da acção de ter cópula ilícita com uma mulher, desde que fosse honesta; e o artigo 400.º obrigava o criminoso a dotar a mulher ofendida, nos casos de estupro e de violação, cessando, porém, toda a pena se casasse com ela.
3.2 - A divisão do capítulo V do CP em duas secções - "Crimes contra a liberdade sexual" e "Crimes contra a autodeterminação sexual" - tem o sentido específico de garantir a protecção da liberdade e da autodeterminação sexual de todas as pessoas, independentemente da idade (secção I) e de alargar esta protecção a casos que ou não seriam crime se praticados entre adultos, ou o seriam dentro de limites menos amplos, ou assumiriam em todo o caso uma menor gravidade (secção II). Assim, um menor de idade pode ser vítima de um crime de coacção sexual ou de violação (artigos 163.º, 164.º e 177.º, n.º 4, do CP), bem como o pode ser de um crime de abuso sexual de crianças ou de abuso sexual de menores dependentes (artigos 172.º, n.os 1 e 2, e 173.º do CP), vítima da prática de actos sexuais de relevo que não seriam considerados crime se ocorridos entre adultos; de um crime de tráfico de menores (artigo 176.º, n.º 2, do CP), de um comportamento que se levado a cabo entre adultos só seria considerado crime se o agente usasse um dos meios típicos descritos no artigo 169.º do CP; ou vítima de um crime de lenocínio agravado (artigo 176.º, n.º 3, do CP), de um comportamento que seria menos punido se ocorrido entre adultos.
Significa o exposto que o bem jurídico protegido na secção "Crimes contra a autodeterminação sexual" é também o da liberdade e da autodeterminação sexual, relacionado, de forma muito particular, com o bem jurídico do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, num exercício de ponderação dos diferentes graus de desenvolvimento desta personalidade. Ponderação que se traduz numa tutela diferenciada da liberdade e da autodeterminação sexual dos menores, em razão da idade: até aos 14 anos (artigo 172.º); entre os 14 e os 16 anos (artigos 174.º, 175.º e 176.º), e entre os 14 e os 18 anos (artigo 173.º).
4 - É neste enquadramento que deve ser perspectivado o artigo 175.º - "Actos homossexuais com adolescentes" - , o único preceito do Código Penal que pune, especificamente, a prática de actos homossexuais de relevo, quando o agente é maior e a vítima menor, entre os 14 e os 16 anos de idade.
Tal incriminação corresponde, na versão primitiva do CP de 1982, à que aí se previa no artigo 207.º, embora com significativas diferenças, as quais são também notórias quando confrontamos este artigo com o 253.º do projecto de código penal de 1979, já que este estendia a punição à homossexualidade habitual entre adultos. Sobre aquele artigo escreveu Lopes Rocha ("O novo Código Penal português. Algumas questões de política criminal", in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 322, pp. 59 e seg.) que "[...] o interesse protegido não é a moralidade sexual mas o das vítimas potenciais à preservação da sua liberdade na matéria, considerando a lei que até aos 16 anos elas são particularmente vulneráveis a influências que podem comprometer uma vontade livre e consciente de se determinarem sexualmente".
A verdade, porém, é que, para além da já referida inserção sistemática do preceito, a incriminação não deixa de revelar resquícios de uma opção político-criminal que se não desprende da tutela de sentimentos gerais de moralidade sexual, como se mostra, desde logo, pela utilização do conceito de "acto contrário ao pudor" e, depois, pela caracterização da conduta do agente, como sendo a de quem "desencaminha" o menor para aquela prática - "um preceito que tem sido, com razão, frequentemente dado como exemplo paradigmático do direito penal sexual, ainda de contornos moralistas contido no CP de 1982" (Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, t. I, Coimbra Editora, 1999, § 1). Significativamente, Carmona da Mota ("Dos crimes sexuais", Revista do Ministério Público, ano 4.º, 14.º vol., pp. 32 e seg.) compara o artigo 207.º com o n.º 2 do artigo 206.º da seguinte forma: "a razão da diferença acentuada das sanções correspondentes ao atentado ao pudor sem violência contra menor de 16 anos e ao descaminho homossexual de menor de 16 anos reside, por um lado, no elemento típico adicional deste último (o descaminho), e, sobretudo, no facto de o primeiro ser livre e, em regra, heterossexual [...] e de o outro ser ou não livre e, sempre, homossexual (e, por isso, culturalmente contra naturam, isto é, perverso ou pervertido e, eventualmente, perversor)".
É só com a revisão de 1995 que a incriminação é depurada daqueles conceitos, com a substituição do conceito de "acto contrário ao pudor" por "actos homossexuais de relevo" e a eliminação da referência ao "descaminho" do menor. Já as alterações introduzidas pela Lei 65/98, de 2 de Setembro, incidiram apenas sobre a epígrafe do preceito, que de "Homossexualidade com menores" passa a "Actos homossexuais com adolescentes", mantendo-se inalterada a descrição típica.
A criminalização do comportamento daquele que, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre os 14 e os 16 anos, bem como ainda daquele que levar a que tais actos sejam por este praticados com outrem, é demonstrativa de que o legislador terá partido do pressuposto de que a prática daquele tipo de actos, ainda que não haja abuso da inexperiência do menor, pode ser prejudicial para o livre desenvolvimento da sua personalidade, nomeadamente numa das suas vertentes essenciais - a orientação sexual. Tratar-se-á de assegurar ao menor um desenvolvimento sem perturbações no que à esfera sexual diz respeito, especialmente quando se trata de maiores a praticar actos homossexuais de relevo com menores de certa idade, já que estas experiências poderão ser traumatizantes e fonte de prejuízos sérios para o desenvolvimento psíquico, intelectual e social do jovem. Em causa estará, então, a protecção de bens jurídicos constitucionalmente tutelados: a autodeterminação sexual e, em geral, o livre desenvolvimento da personalidade, tudo com claro assento no disposto no artigo 26.º, n.º 1, da CRP.
Anote-se, contudo, que o que se deixa dito se reporta ao crime previsto no artigo 175.º do CP, isoladamente considerado, ou seja, sem a ponderação do seu lugar relativo no contexto da punição dos crimes sexuais de que são vítimas adolescentes, em particular dos que incriminam condutas heterossexuais.
5 - De resto, o recorrente suscita a questão de constitucionalidade da norma penal em causa numa perspectiva comparatista, na sua relação com a incriminação prevista no artigo 174.º do CP e é nessa sede que ele entende violado o princípio da igualdade. Se bem apreendemos o sentido de uma tal alegação, ela assenta no que se considera ser uma desigualdade de tratamento do relacionamento sexual do maior com menores entre os 14 e os 16 anos de idade, tendo como único fundamento o carácter homossexual ou heterossexual dos actos sancionados, com desfavor dos primeiros, o que o disposto nos artigos 13.º e 26.º da CRP vedaria; esse desfavor residiria precisamente no facto de ser penalmente sancionada a prática de actos homossexuais de relevo com adolescente, ainda que o maior não abuse da inexperiência do menor, enquanto a prática de actos heterossexuais de relevo com menor do mesmo escalão etário só é punível quando o agente abuse da inexperiência da vítima.
É esta a questão que se passa a apreciar, desde já com a advertência de que a conclusão a que se chegou sobre o bem jurídico protegido com a punição constante do artigo 175.º do CP, na análise isolada deste preceito, não implica, necessariamente, improcedência da questão de constitucionalidade. A comparação dos dois tipos legais de crime é susceptível de fazer emergir uma discriminação negativa fundada em categoria ou factor em razão dos quais a Constituição não permite diferenças de tratamento jurídico.
Vejamos, pois, se a diferença de tratamento passa, com sucesso, o teste constitucional da igualdade.
6 - A diferente incriminação da prática, por maior, com menor entre os 14 e os 16 anos de idade, de cópula, de coito anal ou de coito oral (artigo 174.º do CP) e de actos homossexuais de relevo (artigo 175.º do CP) é inquestionável: no primeiro caso, o tipo legal de crime só está preenchido quando o agente abuse da inexperiência do menor; no segundo, é irrelevante o facto de haver, ou não, abuso da inexperiência deste.
6.1 - Com frequência, o Tribunal Constitucional se tem pronunciado sobre o princípio da igualdade, firmando uma jurisprudência que nos dispensa aqui de considerações adicionais.
Escreveu-se, entre muitos outros, no Acórdão 563/96 (Diário da República, 1.ª série-A, de 16 de Maio de 1996):
"1.1 - O princípio da igualdade do cidadão perante a lei é acolhido pelo artigo 13.º da CRP, que, no seu n.º 1, dispõe, genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais perante a lei, especificando o n.º 2, por sua vez, que 'ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social'.
Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., p. 129), o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da 'atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição)' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamente, o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual a situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual das situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais) - cf., entre tantos outros, e além do já citado Acórdão 186/90, os Acórdãos n.os 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, 1.ª série, de 3 de Março de 1988, e 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990, de 30 de Julho de 1993, de 6 de Outubro do mesmo ano e de 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respectivamente.
1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, 'razoável, racional e objectivamente fundadas', sob pena de, assim não sucedendo, 'estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes', no ponderar do citado Acórdão 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como 'princípio negativo de controlo' ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 127, e, por exemplo, os Acórdãos n.os 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (tertium comparationis). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, p. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, p. 425; Acórdão 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 381; Alves Correia, ob. cit., p. 402), o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da 'diferença', de modo que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
O n.º 2 do artigo 13.º da CRP enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente - presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade -, mas que são enunciados a título meramente exemplificativo: cf., v. g., os Acórdãos n.os 203/86 e 191/88, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Agosto de 1986, e 1.ª série, de 6 de Outubro de 1988, respectivamente, na esteira do parecer 1/86 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º vol., pp. 5 e segs., maxime p. 11. A intenção discriminatória em situações como a presente, não expressamente aludida naquele catálogo, não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalísticos, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade.
Importa, a esta luz, decidir se a normação em causa é materialmente fundada ou, pelo contrário, se mostra inadequada, desproporcionada e, no fim de contas, arbitrária."
Será, pois, de acordo com esta doutrina que se apreciará a alegada violação do princípio da igualdade, não deixando, desde já, de salientar alguns traços da concepção do princípio que vem sendo adoptada e que, no caso, são especialmente convocáveis.
Assim:
O diferente tratamento jurídico de situações de facto essencialmente iguais só pode assentar em razões que, objectivamente, assentem em valores constitucionalmente relevantes;
O referencial que há-de servir para a comparação das situações fácticas e jurídicas em confronto nunca poderá traduzir-se em algum dos factores enumerados no artigo 13.º, n.º 2, da CRP;
O artigo 13.º, n.º 2, da CRP não contempla um elenco fechado de categorias ou factores insusceptíveis de fundamentar diferenças de tratamento jurídico, devendo considerar-se como meramente exemplificativo o enunciado que aí se faz.
Ora, como princípio e direito fundamental que tem (também) como destinatário o legislador, o princípio da igualdade vincula esse mesmo legislador na formulação do conteúdo das normas penais.
A propósito, escreveu Rui Pereira ("O princípio da igualdade em direito penal", in O Direito, n.os 1 e 2, 1998, pp. 131 e seg.) que, "quando se afirma que a lei penal se funda na Constituição em sentido material, pretende significar-se que todas as normas constitucionais, a começar pelas que estabelecem o regime de direitos liberdades e garantias, na medida em que exprimem opções axiológicas fundamentais, devem ser consideradas pelo legislador penal [...] A Constituição estabelece, de forma expressa ou implícita, um conjunto de princípios de política criminal que se fundamentam em valores essenciais da ordem jurídica por si própria tutelados. Devem considerar-se princípios de política criminal, o princípio da culpa [...] e o princípio da igualdade".
Constituindo a legislação penal um domínio em que o respeito pelo direito à liberdade é mais directamente posto à prova e cabendo ao legislador a escolha, no quadro constitucional, das condutas merecedoras de sancionamento penal - opção onde não deixa de se reconhecer alguma margem de discricionariedade -, compreende-se, de resto, o papel fundamental do princípio da igualdade, onde a consideração de vários direitos e liberdades em presença, frequentemente conflituantes, impõe soluções de complexa harmonização.
Também neste domínio - e não obstante, como dá conta o autor citado, no mesmo estudo, ser raro o tratamento autónomo do princípio da igualdade por parte da dogmática penal - o Tribunal Constitucional tem aferido a constitucionalidade de normas penais perante aquele princípio. Fê-lo, entre outros, nos Acórdãos n.os 370/94 e 958/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28.º vol., p. 169, e 34.º vol., p. 397, respectivamente). E deles há que especialmente evidenciar o repúdio de diferenças baseadas em critérios de valor meramente subjectivos e a identificação da proibição do arbítrio com discriminações não devidamente justificadas nas especialidades fácticas de imediato significado valorativo "compatível com o quadro de valores constitucionais".
6.2 - Do confronto dos artigos 174.º e 175.º do CP resulta que as duas incriminações têm em vista a tutela do mesmo bem jurídico a autodeterminação sexual do menor entre os 14 e os 16 anos de idade, através da punição de actos sexuais de relevo susceptíveis de afectar o livre desenvolvimento da sua personalidade em matéria sexual. Incriminações que constituem uma excepção à regra, norteadora do capítulo "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual", de que só até aos 14 anos é que a prática de actos sexuais prejudica o desenvolvimento global do menor, à regra de que atingidos os 14 anos de idade o menor é livre de se decidir quanto ao seu relacionamento sexual (assim, Teresa Beleza, "O conceito legal de violação", in Revista do Ministério Público, ano 15, n.º 59, 1994, p. 56, e Eliana Gersão, "Crimes sexuais contra crianças. O direito penal português à luz das resoluções do Congresso de Estocolmo contra a Exploração Sexual das Crianças para Fins Comerciais", in Infância e Juventude, 97.2, p. 15). Ao mesmo tempo que constituem um desvio à regra geral segundo a qual o maior de 14 anos de idade possui o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento por si prestado (artigo 38.º, n.º 3, do CP), já que os comportamentos que supõem constrangimento da vítima levam antes ao preenchimento de outros tipos legais de crime, nomeadamente os de coacção sexual e de violação (artigos 163.º e 164.º do CP).
Se do lado da vítima é o direito à autodeterminação sexual que justifica as incriminações, do lado do agente da prática do crime perfila-se o direito (conflituante) à livre expressão da sua sexualidade, restringido em nome do respeito daqueloutro direito do menor entre os 14 e os 16 anos de idade. Direitos constitucionalmente consagrados nos artigos 1.º e 26.º, n.º 1, da CRP, por força do reconhecimento dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade.
Recordando que se considerou irrelevante, nesta fiscalização concreta de constitucionalidade, a especificação que o artigo 174.º faz dos actos sexuais de relevo (cópula, coito anal e coito oral) e a admissão de apenas uma modalidade da acção (quem tiver ...), a diferença que importa assinalar no confronto das duas incriminações é que é irrelevante que o agente da prática do crime não tenha abusado da inexperiência do menor no crime por que foi punido o recorrente. Com a consequência de ter lugar a punição, mesmo que não haja "abuso da inexperiência" da vítima, diferentemente do que sucede com o tipo legal de crime previsto no artigo 174.º do CP, cujo preenchimento depende da verificação de que ocorreu um tal abuso.
Impõe-se, desde já, afastar, na indagação das razões da assinalada diferença, qualquer hipótese de ponderação de um pretenso objectivo de prevenção de riscos de aproveitamento das situações de carência social e económica das vítimas que, muitas vezes, estão presentes nos casos de condutas homossexuais com menores. Com efeito, é inquestionável que o artigo 175.º do CP não confere qualquer relevância, na construção do tipo legal, àquelas situações de carência.
Por outro lado, não se verifica diferença de tratamento jurídico assente em distinção de sexos ou de idades - ambos os crimes podem ser praticados por homens ou mulheres, desde que maiores. Tão-pouco releva, para aferir da observância do princípio da igualdade, a consideração de que o diferente tratamento assenta em realidades diversas, uma vez que os agentes que praticam actos homossexuais com menores de 14 a 16 anos são punidos da mesma forma que aqueles que praticam actos de "cópula", "coito anal" ou "coito oral" nos termos do artigo 174.º - pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
Na verdade, a categoria que aqui releva como tertium comparationis, referencial face ao qual se hão-de "comparar" as situações em presença, é a da orientação sexual que todos os cidadãos têm o direito de escolher livremente, sendo que, para uns (os que praticam actos heterossexuais de relevo com menores entre os 14 e os 16 anos) a restrição do direito à livre expressão da sua sexualidade tem como limite o "abuso da inexperiência" do menor e para outros (os que praticam actos homossexuais de relevo com menores entre os 14 e os 16 anos) a restrição é total. Não sendo despiciendo considerar, neste contexto, o direito do próprio adolescente de livremente exprimir a sua sexualidade, nomeadamente escolhendo de forma livre a sua orientação sexual. Um direito que é restringido ao menor entre os 14 e os 16 anos que pretenda praticar actos homossexuais de relevo com um maior, sem haver qualquer abuso da inexperiência do primeiro, uma vez que tal prática está incriminada, diferentemente do que sucede com o adolescente que pretenda praticar actos heterossexuais de relevo com um maior nas mesmas circunstâncias. Um aspecto que já foi levado ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Case of S. L. vs. Austria e Case of Sutherland vs. the United Kingdom), muito embora relativamente a disposições legais do direito austríaco e do direito inglês que previam idades diferentes para a não punição dos comportamentos homossexuais, por um lado, e comportamentos heterossexuais e lésbicos, por outro.
É aquela diferença restritiva que, para ser conforme ao princípio da igualdade, há-de justificar-se em valores constitucionalmente protegidos e nunca em factores que a Constituição considera insusceptíveis de fundamentar diferenças de tratamento jurídico. Para tanto, a ponderação das razões que podem fundamentar uma maior amplitude da tutela conferida aos direitos dos menores na incriminação constante do artigo 175.º do CP deve constituir o cerne da fundamentação da resposta à questão de constitucionalidade. Disse-se já que o artigo 13.º, n.º 2, da CRP, nas categorias subjectivas que elenca como insusceptíveis de constituírem razão de privilégio, benefício, prejuízo, privação de direito ou isenção de dever, é meramente exemplificativo.
6.3 - Os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, postulados pelo respeito da dignidade da pessoa humana, traduzem-se no direito dos cidadãos à sua auto-realização como pessoas, onde se compreende o direito à autodeterminação sexual (cf. Paulo Mota Pinto, "O direito ao livre desenvolvimento da personalidade", in Stvdia Ivridica - Portugal-Brasil. Ano 2000, Coimbra Editora, pp. 205 e segs.), nomeadamente enquanto direito a uma actividade sexual orientada segundo as opções de cada um dos seus titulares. E, relativamente àqueles direitos, a Constituição garante, expressamente (artigo 26.º, n.º 1, in fine), a sua "protecção legal contra quaisquer formas de discriminação".
Isto significa que estes direitos não podem ser restringidos de forma diferenciada, assente em factores que constituam elementos nucleares do seu conteúdo, como seja, no caso, o tipo de orientação sexual que o seu titular adoptou. Nesta medida e sem embargo de se reconhecer que, nestes termos, a protecção do direito a uma actividade sexual orientada segundo as opções de cada um dos seus titulares está já assegurada no citado artigo 26.º, n.º 1, da CRP, deve, ainda, entender-se que a "orientação sexual" é uma categoria subjectiva que, embora não enunciada expressamente no artigo 13.º, n.º 2, da CRP, se deve colocar ao lado das que neste preceito se consideram insusceptíveis de fundamentar diferenças de tratamento jurídico - e, em tal conformidade, a alteração do preceito operada pela Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Julho, relevará apenas enquanto explicita o que se retirava já da versão anterior (assim, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, Coimbra Editora, 2005, anotação ao artigo 13.º, ponto II).
Certamente que se não pretende dizer que o direito referido se não deva restringir na medida necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses legalmente protegidos, de acordo com o disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. Ponto é que, na suposta defesa de direitos ou interesses conflituantes, de igual valor constitucional, a norma restritiva não acabe por ter, como sua verdadeira razão de ser, uma concepção de desfavor relativamente à orientação sexual em causa, ou - o que é o mesmo - fundamentos de cariz subjectivista, sociológicos ou outros, constitucionalmente imprestáveis para justificar a desigualdade.
6.4 - O abuso da inexperiência do menor, referida no artigo 174.º e ausente no artigo 175.º do CP, significa a exploração (o aproveitamento) da inexperiência sexual da vítima e, consequentemente, a menor força de resistência que por isso terá diante dos actos sexuais de relevo especificados naquele artigo, com prejuízos para o livre desenvolvimento da vida sexual do adolescente, nomeadamente para a sua orientação sexual (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, t. I, Coimbra Editora, 1999, artigo 174.º, § 16). Por conseguinte, o legislador admite situações em que, por razões diversas, o menor entre os 14 e os 16 anos ou já tem experiência sexual ou embora não a tendo não há abuso da sua inexperiência, não ocorrendo então qualquer dano ou perigo para o livre desenvolvimento da personalidade do menor, no que diz respeito à esfera sexual, o que justifica a especificação da modalidade típica de acção abusar da inexperiência do menor. A não especificação desta equivaleria, naqueles casos em que não há abuso da inexperiência, a uma incriminação que não tutelaria qualquer bem jurídico.
Que sentido poderá, assim, ter - nesta perspectiva de análise comparativa das incriminações - a irrelevância do abuso da inexperiência do menor na incriminação estabelecida no artigo 175.º do CP? Aparentemente um só: da prática de actos homossexuais de relevo entre um maior e um menor entre os 14 e os 16 anos de idade resultará sempre dano ou perigo para a autodeterminação sexual deste. O legislador terá partido do pressuposto de que os actos homossexuais em que intervenham maiores de idade e menores entre os 14 e os 16 anos de idade serão prejudiciais ao livre desenvolvimento da personalidade destes últimos, já que neste tipo legal de crime apenas releva a natureza homossexual dos actos sexuais.
Mas isto, afinal, porquê?
Uma explicação possível para um tratamento distinto dos comportamentos em função da natureza heterossexual ou homossexual dos actos sexuais de relevo pode ser encontrada nos trabalhos preparatórios, os quais apontam para a admissão do desvalor especial da homossexualidade e para a ideia de que a heterossexualidade é que representa a situação mais normal, havendo naquela algo de estatisticamente anormal, mesmo nos países onde se reconhece com latitude o direito à diferença (cf. Código Penal. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, p. 264). Seriam, assim, razões ligadas à maior "normalidade" dos comportamentos heterossexuais (e, consequentemente ao algo de "anormal" que existe nos comportamentos homossexuais) e ao "desvalor especial da homossexualidade" que justificariam a especial punição prevista no artigo 175.º do CP.
Ora, estes parâmetros de normalidade/anormalidade, extraídos, aparentemente, de uma observação "estatística" da sociedade, afiguram-se imprestáveis para justificar a diferença de tratamento jurídico, face aos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição. É precisamente no tratamento de situações que se inserem em categorias socialmente minoritárias ou sociologicamente desfavorecidas que o princípio constitucional da igualdade cobra a sua principal força, tutelando, sempre ou de algum modo, um direito "à diferença" ou "de diferença". Justificar uma diferença na ampliação de normas restritivas de direitos fundamentais com a protecção de outros na base de uma presumível lesão causada - e só causada - por uma determinada prática sexual que não é - e por não o ser - estatisticamente normal traduz-se, afinal, em tratar discriminatoriamente uma situação resultante da orientação sexual adoptada, inerente ao direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, ou seja, com violação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP. Está, assim, a admitir-se um "desvalor especial" relativo à homossexualidade, como não deixou de ser reconhecido nos trabalhos preparatórios já mencionados.
Se se defender que não é a orientação homossexual que, em si mesma, se trata desfavoravelmente, nem é o facto de ela representar uma orientação minoritária, ou anormal, que, também em si mesmo, releva - por ela ser minoritária, o grau de consciência requerido ao adolescente é que se torna mais exigente -, então deve reconhecer-se que a diferença carece de fundamento racional. Não se vê, de facto, razão para se entender que o menor entre os 14 e os 16 anos de idade pode saber o que quer, por que quer e com quem quer relacionar-se, quando consente em práticas heterossexuais, mas nunca quando consente em práticas homossexuais.
E se se atender ao risco previsível de reflexos nocivos no livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual, compreendida a orientação sexual do menor, não parece racionalmente sustentável que a experiência de relacionamento homossexual, sem abuso da inexperiência sexual do menor, afecte mais gravemente tal desenvolvimento (e orientação) do que a experiência heterossexual nas mesmas circunstâncias. Nada, de resto, a este respeito, tem hoje qualquer base científica credível (cf., infra, n.º 6.6). Apelar ao efeito "traumático" ou "mais traumático" da prática de actos homossexuais não tem, aliás, melhor préstimo, não deixando até de revelar, mais claramente, um juízo de desvalor, pejorativo, da prática sexual (homossexual) "traumatizante", na base da qual se pretenda justificar a diferença de tratamento jurídico.
Mas é este mesmo juízo que transparece no acórdão recorrido quando se diz que "as experiências homossexuais de adultos com menores, independentemente da experiência sexual da vítima, são substancialmente mais traumatizantes, por representarem um uso anormal do sexo, condutas altamente desviantes, por serem contrárias à ordem natural das coisas, comprometendo ou podendo comprometer a formação da personalidade e o equilíbrio mental, intelectual e social futuro da vítima, desencadeando, também, colateralmente, efeitos danosos de um ponto de vista social, fenómenos disfuncionais em grau mais elevado, à partida, do que os actos heterossexuais com adolescentes, mesmo sem experiência sexual".
6.5 - Na verdade, pressupor que a prática de acto homossexual livre requer um grau de maturidade superior ao necessário para a prática de acto heterossexual de relevo carece de fundamento racional (assim, Rui Pereira, "Liberdade sexual ...", in ob. cit., p. 46, referindo-se embora ao projecto da Comissão de Revisão do Código Penal, onde se previa que a vítima do crime fosse menor entre os 14 e os 18 anos de idade).
É de destacar, de resto, que a incriminação prevista no artigo 175.º do CP foi, desde logo, alvo da crítica da doutrina, precisamente por ser irrelevante o abuso da inexperiência do menor, num juízo que, não deixando de ter presente a comparação com o artigo 174.º, acabava por questionar a incriminação de um ponto de vista jurídico-constitucional. Dúvidas quanto à legitimidade material da incriminação que foram desde logo levantadas em sede de trabalhos preparatórios, chegando a equacionar-se a eliminação do artigo e a reconhecer-se alguma incongruência lógica na incriminação (cf. Código Penal. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, p. 264, e Reforma do Código Penal. Trabalhos Preparatórios II, Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, 1995, p. 40).
Assim, Mouraz Lopes (Os Crimes contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, após a Revisão de 1995, Coimbra Editora, 1995, p. 67), depois de salientar que o crime previsto no artigo 175.º do CP é o único onde a homossexualidade é relevante para efeitos de incriminação de uma conduta, escreveu que, "poderá por isso questionar-se constitucionalmente o tratamento desigual que é dado à homossexualidade, face a outras formas de sexualidade, com a criminalização das condutas em causa neste crime".
Teresa Pizarro Beleza ("A revisão da parte especial na reforma do Código Penal: legitimação, reequilíbrio, privatização, 'individualismo'", in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1998, pp. 91 e seg., e "Sem sombra de pecado. O repensar dos crimes sexuais na revisão do Código Penal", in Jornadas de Direito Criminal. Revisão do Código Penal I, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa 1996, p. 181), acentuando que, em matéria de crimes sexuais, é "a protecção da liberdade que deve estar em causa e não a conduta moral normativizada", situa o artigo 175.º do CP no conjunto dos preceitos incriminadores "particularmente discutíveis", e isto porque "provoca uma discriminação da responsabilidade no contacto sexual precoce na faixa dos 14-16 anos", acrescentando que "seria preferível" deixar "apenas vigente a incriminação 'geral' do abuso (quer homossexual, quer heterossexual)". A autora questiona "a manutenção da incriminação da homossexualidade com menores", considerando que se trata de "um argumento muito pouco convincente e de legitimidade constitucional assaz duvidosa" basear "na regra estatística da heterossexualidade" a razão da autonomização da incriminação "como coisa distinta do abuso sexual de adolescentes".
Jorge Dias Duarte ("Homossexualidade com menores. Artigo 175.º do Código Penal", in Revista do Ministério Público, ano 20, n.º 78, 1999, pp. 106 e seg.) conclui "não existir actualmente qualquer motivo válido que leve a que se faça a distinção plasmada actualmente no artigo 175.º do Código Penal, a qual surge, assim, como uma reminiscência moralista, traduzindo ainda - mais que implícita, explicitamente - o desvalor com que a homossexualidade é, ainda hoje, entre nós, encarada em determinados meios sociais".
Maria João Antunes (Comentário Conimbricense ..., § 4), depois de destacar que o que releva no artigo 175.º é "apenas o carácter homossexual dos actos sexuais de relevo [...] havendo um tratamento distinto dos comportamentos consoante a natureza heterossexual ou homossexual dos actos sexuais de relevo, o que é revelador 'do desvalor especial da homossexualidade' e da convicção de que só as relações heterossexuais é que são 'normais'", considera que "este tratamento distinto, a assentar exclusivamente na natureza homossexual dos actos sexuais de relevo, levanta dúvidas sobre a legitimidade material da incriminação [...] chegando até a colocar-se a questão da legitimidade do ponto de vista jurídico-constitucional".
6.6 - Abonam também no sentido de não haver fundamento racional para um tratamento distinto dos actos homossexuais de relevo o que as legislações penais estrangeiras vêm actualmente dispondo sobre esta matéria, bem como alguma jurisprudência que pode considerar-se de referência, nomeadamente a do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Para além da perspectiva de direito comparado que nos é dada por Jorge Dias Duarte ("Homossexualidade com menores...", in ob. cit., pp. 90 e segs.), relativamente a países, com raízes culturais e civilizacionais próximas do nosso que tratam de modo indiferenciado as práticas sexuais (homossexuais ou heterossexuais), atente-se que na Alemanha, em 31 de Maio de 1994, foi expressamente revogado o § 175 do CP (Homosexuelle Handlungen) e alterado o § 182, o qual deixou de prever o crime de sedução (Verführung), em que a vítima era necessariamente um menor de 16 anos do sexo feminino, para passar a prever o crime de abuso sexual de adolescentes (Sexueller Missbrauch von Jungendlichen), em que a vítima é um menor de 16 anos, sem qualquer diferenciação em função do sexo; e que na Áustria, em 14 de Agosto de 2002, foi expressamente revogado o § 209 do CP, que punia os actos homossexuais consentidos entre homens de idade superior a 19 anos e adolescentes entre os 14 e os 18 anos de idade, com a consequente introdução do actual § 207b, o qual abrange indistintamente actos heterossexuais, homossexuais ou lésbicos.
Estas alterações do CP austríaco ocorreram na sequência da decisão do Tribunal Constitucional, de 21 de Junho de 2002, que julgou inconstitucional aquele § 209, por violação do princípio da igualdade, por não se poder ter como objectivamente justificada a incriminação. Julgamento de inconstitucionalidade e alterações legislativas que estiveram presentes no julgamento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 9 de Janeiro de 2003 (Case of L. and V. vs. Austria), já que perante este Tribunal foi alegado e por ele reconhecido que a vigência do § 209 do CP austríaco e as condenações que a norma permitiu foram discriminatórias e violadoras do direito ao respeito pela vida privada (artigos 8.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Do conteúdo da decisão ressalta, apesar das especificidades das queixas apresentadas, a adesão à conclusão a que chegou a Comissão no Case of Sutherland vs. the United Kingdom: na falta de qualquer justificação objectiva e racional para a manutenção de uma idade superior do consentimento para actos homossexuais é violado o artigo 14.º em conjugação com o artigo 8.º da Convenção. Conclusão que foi sensível a investigações recentes de acordo com as quais a orientação sexual é, em regra, estabelecida antes da puberdade quer em relação a rapazes quer a raparigas, bem como à circunstância de a generalidade dos países do Conselho da Europa preverem idades iguais quando considerado o consentimento para a prática de actos homossexuais e heterossexuais (§ 47). Entendimento seguido depois no Case of S. L. vs. Austria (§ 39).
6.7 - Posições doutrinais e jurisprudenciais e ensinamentos de direito comparado que foram abrindo caminho para a defesa, entre nós, de alterações legislativas: "[...] parece seguro que o direito penal português do futuro deve caminhar no sentido de não discriminar as relações homossexuais, nomeadamente exigindo também que o agente abuse da inexperiência do menor [...] Mas preferível será sempre a solução de haver um só tipo legal de crime que, não distinguindo a natureza homossexual ou heterossexual dos actos sexuais de relevo, proteja o bem jurídico que merece tutela, ou seja, o livre desenvolvimento do menor no que à sua esfera sexual diz respeito. Desenvolvimento este que [...] poderá ser perturbado quando um maior pratica actos sexuais de relevo com menores entre os 14 e os 16 anos de idade, abusando da sua inexperiência" (Maria João Antunes, Comentário Conimbricense ..., § 5).
Alterações a que foram sensíveis os autores das propostas de lei n.os 80/VII e 160/VII, onde nas respectivas exposições de motivos se justificou a proposta de alteração do artigo 175.º do CP - elemento do crime aí previsto seria, também, o abuso da inexperiência da vítima por parte do agente com o fim de "harmonizar as incriminações do estupro e dos actos homossexuais com menores". Alteração que viria a ser eliminada por proposta do Partido Socialista, sem que se tornassem públicas as razões que levaram a tal, na discussão e votação, na especialidade, da proposta de lei 160/VII, ocorridas na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 1 de Julho de 1998). Isto, apesar de, aparentemente, só o deputado Guilherme Silva se ter insurgido contra tal alteração: "Manter no artigo 174.º e introduzir no artigo 175.º o requisito do abuso da inexperiência do menor vítima, como requisito do crime, e não como mero factor a ponderar na valoração da pena, parece-nos de todo inadequado, quando se quer acentuar o combate à pedofilia." (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 13 de Março de 1998.)
Mais recentemente, a proposta de lei aprovada em Conselho de Ministros em 24 de Junho de 2004 e a proposta de lei 149/IX (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 20 de Novembro de 2004) propõem mesmo a revogação do artigo 175.º e a alteração do artigo 174.º, no sentido de ser punida a prática, por um maior, de quaisquer actos sexuais de relevo com adolescente, independentemente da natureza heterossexual ou homossexual do acto, sempre que haja abuso da inexperiência do menor. A primeira proposta chega mesmo, na respectiva exposição de motivos, a "destacar que o Acórdão de 9 de Janeiro de 2003 do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [...] considerou que um preceito, entretanto revogado, do Código Penal austríaco, semelhante ao actual artigo 175.º, atentava contra direitos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem".
7 - Em suma, pois, conclui-se que o artigo 175.º do CP, no ponto em que, contrariamente ao que se dispõe no artigo 174.º do mesmo Código, torna irrelevante o abuso da inexperiência da vítima, viola o disposto nos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição: estabelece uma diferença de tratamento jurídico com base na orientação sexual (homossexual) e sem fundamento racional.
Não deixa, por último, de se acentuar que o juízo de inconstitucionalidade assenta exclusivamente na análise comparativa do tratamento diferenciado que é dado, em termos de incriminação, às práticas de actos homossexuais com menores de 14 a 16 anos de idade face ao que merecem, nos mesmos termos, as práticas heterossexuais com adolescentes de idêntico escalão etário.
Nesta perspectiva, ele não tem implícito - e não poderia ter - qualquer juízo sobre a conformidade ou desconformidade constitucional do disposto no artigo 175.º do CP isoladamente considerado; o que significa que dos estritos limites do juízo agora feito não decorrerá, necessariamente, a eventual inconstitucionalidade de uma solução legislativa que viesse a igualar o tratamento jurídico-criminal das situações confrontadas ao nível do que agora é dado à prática de actos homossexuais, questão esta que, no caso, está fora dos poderes cognitivos do Tribunal.
III - Decisão. - Pelo exposto e em conclusão decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 175.º do Código Penal, na parte em que pune a prática de actos homossexuais com adolescentes mesmo que se não verifique, por parte do agente, abuso da inexperiência da vítima;
b) Conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformulado de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Maio de 2005. - Maria João Antunes (com declaração de voto) - Rui Moura Ramos - Maria Helena Brito - Pamplona de Oliveira (vencido, conforme declaração) - Artur Maurício.
Declaração de voto. - Votaria ainda a declaração de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 175.º do Código Penal (CP) por violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), pelas razões seguintes:
Se se estabelece uma diferença de tratamento jurídico com base na orientação sexual e sem fundamento racional e se do elemento típico "abuso da inexperiência" decorre a legitimação da intervenção penal por só nestas circunstâncias poder haver dano ou perigo para o bem jurídico da autodeterminação sexual, forçoso será então concluir, ainda no plano da comparação das duas incriminações, que a intervenção penal não é necessária quando esteja em causa a prática de actos homossexuais de relevo que envolva um maior e um menor entre os 14 e os 16 anos sem haver abuso da inexperiência deste.
Dito de outra forma, nestas circunstâncias não é necessário restringir o direito à livre expressão da sexualidade (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) e o direito à liberdade, enquanto direito necessariamente implicado na punição (artigo 27.º, n.os 1 e 2, da CRP), para salvaguardar o direito à autodeterminação sexual do adolescente, uma vez que não haverá dano ou perigo para o livre desenvolvimento da personalidade deste. Pelo que, havendo tal restrição, ela é ilegítima à luz do que dispõe o artigo 18.º, n.º 2, da CRP: "A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos."
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/95 (Diário da República, 2.ª série, de 24 de Junho de 1995), "o que justifica a inclusão de certas situações no direito penal é a subordinação a uma lógica de estrita necessidade das restrições de direitos e interesses que decorrem da aplicação de penas públicas (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição). E é também ainda a censurabilidade imanente de certas condutas, isto é, prévia à normativação jurídica, que as torna aptas a um juízo de censura pessoal.
Em suma, é, desde logo, a exigência de dignidade punitiva prévia das condutas, enquanto expressão de uma elevada gravidade ética e merecimento de culpa (artigo 1.º da Constituição, do qual decorre a protecção da essencial dignidade da pessoa humana), que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas (e não só da subsidiariedade do direito penal e da máxima restrição das penas que pressupõem apenas, em sentido estrito, a ineficácia de outro meio jurídico" (cf., ainda, no sentido de o artigo 18.º, n.º 2, ser critério para aferir da legitimidade constitucional das incriminações, os Acórdãos n.os 634/93, 650/93, in Diário da República, 2.ª série, de 31 de Março de 1994, e 958/96, in Diário da República, 2.ª série, de 19 de Dezembro de 1996).
A evolução legislativa dos denominados "crimes sexuais" ilustra, expressivamente, a aproximação do direito penal - como conjunto de princípios e regras que, mais directamente, afectam o direito à liberdade (artigo 27.º, n.os 1 e 2, da CRP) - a um paradigma de intervenção mínima: a que é necessária para a tutela de bens jurídicos, que não obtêm protecção suficiente e adequada através de outros meios de política social.
Uma evolução, aliás, já há muito reclamada pela nossa doutrina. Segundo Figueiredo Dias, "[...] a 'necessidade social' torna-se em critério decisivo da intervenção do direito penal: este, para além de dever limitar-se à tutela de bens jurídicos [...] só deve intervir como ultima ratio da política social" ["Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro", in Revista da Ordem dos Advogados, ano 43.º (1983), p. 16]. Autor para quem é de "concluir que um bem jurídico político-criminalmente tutelável existe ali - e só ali - onde se encontre reflectido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que 'preexiste' ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua vez significa que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal - jurídico-penal - dos bens jurídicos tem por força de verificar-se uma qualquer relação de mútua referência. Relação que não será de 'identidade', ou mesmo só de 'recíproca cobertura', mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência de sentido e - do ponto de vista da sua tutela - de fins [...] É por esta via - e só por ela, em definitivo - que os bens jurídicos se 'transformam' em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal" (Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2004, pp. 114 e seg.).
Um direito penal que assume apenas a tarefa de preservação das condições fundamentais da mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade. E a esta conclusão conduz, "por um lado, uma correcta solução da questão da legitimação do direito de punir estatal: esta provém muito simplesmente da exigência - já claramente inscrita no paradigma do 'contrato social' de que o Estado só deve tomar de cada pessoa o mínimo dos seus direitos e liberdades que se revele indispensável ao funcionamento sem entraves da comunidade. A ela conduz, por outro lado, a regra do Estado de direito democrático, segundo a qual o Estado só deve intervir nos direitos e liberdades fundamentais na medida em que isso se torne imprescindível ao asseguramento dos direitos e liberdades fundamentais dos outros ou da comunidade enquanto tal. A ela conduz, ainda por outro lado, o carácter pluralista e secularizado (laico) do Estado de direito contemporâneo, que o vincula a que só utilize os seus meios punitivos próprios para tutela de bens de relevante importância da pessoa e da comunidade e nunca para a instauração ou reforço de ordenações axiológicas transcendentes de carácter religioso, moral, político, económico, social ou cultural. É só isto - mas também tudo isto - que quer significar o artigo 18.º, n.º 2, da CRP ao dispor que as restrições de direitos, liberdades e garantias devem 'limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos'" (Figueiredo Dias, Direito penal..., pp. 117 e seg. No mesmo sentido, entre outros, Costa Andrade, "Constituição e direito penal", in A Justiça nos Dois Lados do Atlântico. Teoria e Prática do Processo Criminal em Portugal e nos Estados Unidos da América, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 1997, pp. 201 e seg., e Rui Pereira, "O princípio da igualdade em direito penal", in O Direito, 1998, n.os 1 e 2, p. 132, para quem o "princípio da necessidade da pena e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.os 2 e 3)" se inclui nos "princípios constitucionais de política criminal").
Uma evolução legislativa que aproxima o direito penal a um paradigma de intervenção mínima que se mostra de forma irrecusável na redacção vigente do artigo 40.º do CP e de forma muito particular nas opções legislativas que foram tomadas, em 1995 e em 1998, no capítulo "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual". O relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre a proposta de lei 92/VI (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 30 de Junho de 1994) acentua, incisivamente, de entre os princípios que norteavam a reforma então proposta, "o princípio da vinculação à defesa dos bens jurídicos", como uma das linhas de força do artigo 40.º: "A encimar o acervo de finalidades das penas que enuncia, coloca o artigo 40.º a protecção de bens jurídicos. Subjaz ao princípio vertente a ideia de limitar o poder punitivo do Estado, na linha, também, do n.º 2 do artigo 12.º [18.º] da Constituição, segundo o qual as restrições a direitos, liberdades e garantias se limitarão 'ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' [...] O bem jurídico assim entendido, limite e fundamento da criação de normas penais, tem suporte constitucional - também a Constituição concebe a entrada em cena do direito penal como ultima ratio, e estritamente reportado a lesões importantes dos fundamentos da convivência social." Pois, como não deixou mais tarde de se concluir no relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre a proposta de lei 160/VII (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 14 de Março de 1998), "embora existam muitos bens constitucionais cuja desprotecção penal não seria compreensível (direito à vida, à integridade pessoal, ao bom nome e à reputação), a verdade é que, traduzindo-se as penas num sacrifício imposto ao condenado, é a penalização que normalmente carecerá de justificação quanto à sua necessidade e quanto à proporcionalidade da medida da pena, devendo entender-se, desde logo, que só podem ser objecto de protecção penal os direitos e interesses constitucionalmente protegidos. Entende-se ainda que só deve haver sanção criminal quando tal se mostre necessário para salvaguardar esses bens constitucionais.".
Em face destas proposições político-criminais, compreende-se que o capítulo "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual", constante da proposta de lei 92/VI, tenha seguido, no essencial, aquilo que, já há algum tempo, Karl Prelhaz Natscheradetz (O Direito Penal Sexual: Conteúdo e Limites, Almedina, 1985, pp. 89 e segs.) defendia como devendo ser o objecto de protecção do direito penal sexual, nomeadamente atenta toda a discussão doutrinal gerada em torno de documentos como o Wolfenden Report, inglês, de 1957, o Model Penal Code, norte-americano, de 1962, o projecto governamental alemão, de 1962, e o projecto alternativo alemão, de 1968 (cf., especialmente, pp. 22 e segs. e 123 e segs.). Da mesma forma, se compreende que a proposta e a redacção vigente do artigo 175.º do CP tenham sido, desde logo, objecto de críticas negativas que levaram mesmo a duvidar da sua legitimidade material, de um ponto de vista jurídico-constitucional. Com efeito, uma e outra não são compatíveis com "o princípio de que só a liberdade e a autodeterminação de expressão sexual podem figurar como bem jurídico penalmente tutelado", já que este princípio tem como corolários, "por um lado, a igualdade entre os sexos e, por outro lado, a neutralidade face às diversas modalidades de orientação sexual, não devendo estabelecer-se tratamentos diferenciados para as condutas homossexuais e heterossexuais" [Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal (Contributo para a Fundamentação de Um Paradigma Dualista), Coimbra Editora, 1990, p. 388]. - Maria João Antunes.
Declaração de voto. - No Acórdão 25/84 (Diário da República, 2.ª série, de 4 de Abril de 1984) ponderou este Tribunal o seguinte:
"Os problemas de conformidade ou desconformidade com a Constituição têm de ser confinados aos limites postos à actividade legislativa por este diploma. Ora, não sendo a Constituição um código detalhado das relações que refere, mas apenas um código de parâmetros dentro dos quais se há-de desenvolver o poder legislativo na sua obra de conformação das relações sociais, mesmo no que toca aos direitos fundamentais, deixa a este uma margem de liberdade ou de poder discricionário mais ou menos amplo, sobretudo quando o sentido daquela é ambíguo ou equívoco, e, assim, o Tribunal Constitucional só poderá censurar juridicamente tal uso quando ele contraria manifestamente a ordem constitucional de valores, quando o legislador adopte valorações inequivocamente refutáveis ou manifestamente erróneas."
Mais à frente, escreveu-se:
"Este entendimento das coisas revela-se prenhe de consequências. Tanto no plano material - a ilegitimidade constitucional de criminalizar/descriminalizar em contravenção dos princípios sumariamente expostos - como no plano orgânico-formal.
Quanto a este último, importa, acima de tudo, salvaguardar o 'primado político do legislador' (Bachoff) nos espaços de discricionariedade decorrente do princípio da subsidiariedade. A sub-rogação de qualquer outro órgão neste domínio, designadamente o Tribunal Constitucional, representaria uma questionável transposição das fronteiras entre o jurídico e o político e uma violação do princípio da separação de poderes.
Como refere Bachoff, deve reservar-se ao legislador a competência para definir os objectivos políticos e os critérios de adequação, bem como para assumir os riscos pelas expectativas ou prognósticos sobre cuja antecipação assentam as suas decisões normativas."
Estou inteiramente de acordo com esta doutrina, que se me afigura ser plenamente aplicável ao caso dos autos, razão pela qual não acompanho a posição que fez vencimento no acórdão. - Pamplona de Oliveira.