Acórdão 236/2004/T. Const. - Processo 92/2003. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Osvaldo Jesus Paulino dos Reis e o Estado Português foram condenados, por sentença de 29 de Novembro de 2002 do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a pagar uma indemnização a Maria José Henriques Jacinto Tomás e a Mafalda Sofia Jacinto Tomás, respectivamente viúva e filha de Armindo dos Reis Tomás, por danos patrimoniais e não patrimoniais, em virtude da morte deste causada por disparos de arma de fogo feitos pelo referido Osvaldo Reis no exercício das suas funções como agente da extinta Guarda Fiscal, actualmente GNR - Guarda Nacional Republicana.
Inconformado, o réu Osvaldo Jesus Paulino dos Reis interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo dito no requerimento de interposição de recurso que, "notificado da sentença de 29 de Novembro de 2002 e verificando que a mesma recusou a aplicação do regime resultante dos artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, na medida em que de tal regime resulta que o agente administrativo do Estado não responde civilmente perante terceiros por actos ilícitos meramente culposos praticados dentro dos limites das suas funções e no exercício destas, com fundamento em inconstitucionalidade (ou caducidade, por violação de norma constitucional) de tal regime, em função do disposto no artigo 271.º, n.º 1, da Constituição, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, em secção [artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei 28/82, de 15 de Novembro], restrito à questão da inconstitucionalidade em causa (artigo 71.º da mesma lei), ou seja, a não aplicação do regime resultante das disposições combinadas dos artigo 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, na medida em que de tal regime resulta que o agente administrativo do Estado não responde civilmente perante terceiros por actos ilícitos meramente culposos praticados dentro dos limites das suas funções e no exercício destas, em função do disposto no artigo 271.º, n.º 1, da Constituição, requerendo a sua admissão, com efeito e processamento legais".
Admitido o recurso, o réu Osvaldo de Jesus Paulino dos Reis apresentou as suas alegações, que concluiu como segue:
"1 - O regime do disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, de que resulta a não responsabilização civil do titular de órgão, funcionário ou agente pelos prejuízos causados por acto ilícito cometido no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente não é inconstitucional, pois não viola o disposto no artigo 271.º, n.º 1, da Constituição.
2 - Aliás, é o próprio n.º 2 desta norma que prevê expressamente uma situação de exclusão de responsabilidade do funcionário ou agente.
3 - O artigo 22.º da Constituição apenas impõe que, sempre que haja acto ilícito ou mesmo simples acto gerador de prejuízos (ainda que lícito), haja responsabilidade civil da pessoa colectiva pública, a qual será solidária com a do titular de órgão, funcionário ou agente, quando esta exista.
4 - É o próprio n.º 4 do artigo 171.º da Constituição que admite que, se 'a lei regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm o direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes', então a lei pode regular as situações em que não existe direito de regresso, isto é, não há responsabilidade solidária.
5 - O objectivo do n.º 1 do artigo 271.º da Constituição é tão-só impedir a existência de um regime de 'privilégio administrativo' ou 'garantia administrativa', em que a responsabilização civil, penal ou disciplinar de titular de órgão, funcionário ou agente possa depender de autorização.
6 - O artigo 271.º da Constituição deixa ao legislador ordinário o poder de definir as condições e situações em que, sem prejuízo da responsabilidade da pessoa colectiva pública, há também, solidária com esta, responsabilidade do titular de órgão, funcionário ou agente e, designadamente, o de isentar desta o titular do órgão, funcionário ou agente que agiu no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e declarada a não inconstitucionalidade do regime do disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, de que resulta a não responsabilização civil do titular de órgão, funcionário ou agente pelos prejuízos causados por acto ilícito cometido no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente, com consequente baixa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da decisão recorrida, que deve ser reformulada em função do juízo de não inconstitucionalidade do regime legal que recusou aplicar."
As recorridas contra-alegaram, concluindo:
"1 - As ora recorridas intentaram acção declarativa contra o ora recorrente e o Estado Português, pedindo a condenação destes no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
2 - A causa de pedir dessa acção residiu no facto de o ora recorrente (agente da Guarda Fiscal, hoje GNR) ter disparado seis tiros, quando se encontrava em exercício de funções, que atingiram, respectivamente, o marido e pai das recorridas, vindo o mesmo a falecer.
3 - O ora recorrente respondeu pelo crime que cometeu no 1.º Tribunal Militar Territorial de Lisboa (processo 99/93), tendo sido condenado pelo crime previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 207.º, n.º 1, alínea a), do Código de Justiça Militar (CJM) e 136.º, n.º 2 (negligência grosseira), do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 5.º do CJM, a cumprir uma pena de 18 meses de presídio militar.
4 - Os tribunais militares não são competentes para apreciar os pedidos de indemnização emergente dos processo-crime de que vierem a conhecer, pelo que as ora recorridas tiveram de intentar essa acção no Tribunal Administrativo de Círculo da Comarca de Lisboa.
5 - No âmbito desses autos (processo 1072/99, 4.ª Secção), foi proferida, em 29 de Novembro de 2002, decisão que, não obstante considerar que o ora recorrente agiu com negligência, determinou que o mesmo deveria ser responsabilizado pelo seu acto ilícito, solidariamente com o Estado, condenando-o no pagamento às ora recorridas dos danos patrimoniais e não patrimoniais por estas sofridos.
6 - Para tal, o M.mº Juiz a quo considerou que com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976 e face ao teor dos seus artigos 22.º (na redacção que lhe foi dada pela RC/82) e 271.º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89) a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos das entidades públicas e dos funcionários e agentes perante terceiros deixou de se circunscrever aos casos em que tivessem excedido os limites das sua funções ou que no exercício de tais funções tivessem procedido dolosamente.
7 - Pelo que os titulares e agentes do Estado e as demais entidades públicas respondem civilmente perante terceiros pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte a violação dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não só nos actos dolosos mas também nos actos negligentes, consciente ou inconsciente.
8 - Existindo por isso uma divergência sobre a compatibilidade dos artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, com o disposto nos artigos 22.º (na redacção que lhe foi dada pela RC/82) e 271.º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89), ambos da Constituição da República Portuguesa.
9 - E, sendo os preceitos constitucionais de aplicabilidade directa e de valor hierárquico superior aos consagrados no direito ordinário, recai sobre os artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, uma inconstitucionalidade superveniente de acordo com o plasmado no n.º 2 do artigo 290.º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89) da Constituição da República Portuguesa.
10 - Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso e, consequentemente, declarada a inconstitucionalidade superveniente do regime disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, por contrariarem o conteúdo e o alcance dos artigos 22.º (na redacção que lhe foi dada pela RC/82), 271.º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89) e 290.º, n.º 2 (na redacção que lhe foi dada pela RC/89), todos da Constituição da República Portuguesa, mantendo-se a decisão ora recorrida, seguindo-se os ulteriores termos até final."
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, concluindo:
"1.º Com a entrada em vigor da actual Constituição e face ao teor dos seus artigos 22.º e 271.º - que estabelecem categoricamente a regra da solidariedade passiva -, a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes das pessoas colectivas públicas deixou de se circunscrever aos casos em que hajam excedido os limites das suas funções ou, no exercício destas, tenham procedido com dolo, podendo fundar-se na referida norma constitucional - directamente aplicável - o regime de solidariedade no caso dos actos funcionais ilícitos, praticados com negligência do agente.
2.º Ocorrendo, deste modo, uma equiparação - quanto a este aspecto específico - entre o regime da efectivação da responsabilidade por actos de 'gestão pública' administrativa e de 'gestão privada' do Estado, face ao estatuído no artigo 501.º do Código Civil.
3.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade superveniente constante da decisão recorrida."
Cumpre apreciar e decidir.
2 - A sentença recorrida resolve a questão de saber se na acção proposta contra o Estado e um seu agente para efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito e culposo praticado pelo agente no exercício das suas funções este deve, ou não, responder.
Sustentou, com efeito, o réu não poder ser ele demandado na acção uma vez que o facto danoso lhe era imputado a título de negligência, pelo que, nos termos do regime definido nos artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei 48 051, não era civilmente responsável perante terceiros pelo ilícito cometido.
Não se põe em causa na sentença a tese de que, de acordo com tal regime, o agente não responde perante o lesado pelos danos causados por facto ilícito e meramente culposo praticado no exercício das suas funções.
Mas depois de se sintetizar esse regime, resultante dos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, acrescenta-se:
"Contudo, este diploma há-de compatibilizar-se com a Constituição da República Portuguesa."
E é nesse labor de compatibilização do Decreto-Lei 48 051 com a Constituição que a decisão recorrida conclui que, por aplicação directa do artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa e decorrendo efeitos derrogatórios imediatos sobre o direito ordinário que com tal preceito constitucional seja incompatível, se impõe a responsabilidade do agente ou funcionário, não apenas nos casos de actos funcionais dolosos a que se refere o artigo 3.º daquele diploma legal mas também nos de negligência, consciente ou inconsciente.
O que, em direitas contas, se faz na sentença recorrida é, afinal, desaplicar o regime instituído pelo Decreto-Lei 48 051 (máxime os artigos 2.º e 3.º, n.º 1) no ponto em que dele resulta a irresponsabilidade do agente, face ao lesado, por danos causados por acto funcional ilícito praticado com negligência.
Muito embora a desaplicação derive da caducidade da norma por incompatível com a Constituição, tal não impede que o Tribunal Constitucional conheça do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, como é jurisprudência consolidada deste Tribunal (cf., de entre outros, os Acórdãos n.os 2/84, 20/84, 29/84 e 31/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º vol., pp. 198, 385, 431 e 123, respectivamente).
E a questão a decidir é, pois, a de saber se a Constituição impõe que o agente do Estado responda directamente perante o lesado por actos ilícitos praticados no exercício das suas funções, com negligência, devendo considerar-se caducado o regime definido pelos artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051 por afrontar aquela imposição.
3 - São do seguinte teor as normas em apreço, constantes do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967:
"Artigo 2.º
1 - O Estado e as demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
[2 - Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo.]
Artigo 3.º
1 - Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e as demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.
2 - Em caso de procedimento doloso, a pessoa colectiva é sempre solidariamente responsável com os titulares do órgão ou agente."
4 - Antes de se apreciar a questão de constitucionalidade em causa, importa tecer algumas considerações, necessariamente breves, sobre a responsabilidade da Administração no nosso ordenamento jurídico, quer no plano constitucional quer no plano do direito infraconstitucional.
No domínio do direito público, começou por afirmar-se o princípio da irresponsabilidade do Estado "enquanto corolário directo da ideia de soberania e de uma inerente ausência de responsabilidade do rei", embora se admitisse que o particular prejudicado pudesse, em certos casos, ser ressarcido no âmbito do direito privado (cf. Paulo Otero, "Responsabilidade civil pessoal dos titulares de órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado", in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, III Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Marcial Pons, 1999, p. 490).
Vieira de Andrade sintetiza este regime como de "irresponsabilidade pública, responsabilidade privada" (cf. "Panorama geral do direito da responsabilidade civil da Administração Pública em Portugal", in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, III Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Marcial Pons, 1999, p. 40).
Com a evolução histórica e, em especial, à medida que se foi evoluindo para um Estado de direito social, com uma interpenetração crescente entre Estado e sociedade civil, manifestada na descentralização administrativa, na multiplicação de poderes públicos e na política intervencionista em matéria de relações sociais, esta dicotomia viria a tornar-se insustentável na "sociedade técnica de massas" (cf. Rogério Ehrhardt Soares, in Direito Público e Sociedade Técnica, citado por Vieira de Andrade, loc. cit. e ob. cit.).
Já na Constituição de 23 de Setembro de 1822, embora se não consagrasse o princípio da responsabilidade directa ou indirecta da Administração por danos causados aos particulares em virtude do exercício das funções que lhe são próprias, não deixava de se estabelecer no artigo 14.º, integrado no título I, com a epígrafe "Dos direitos e deveres individuais dos Portugueses", que "todos os empregados públicos serão estritamente responsáveis pelos erros de ofício e abusos do poder, na conformidade da Constituição e da lei".
A Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826 manteve no essencial este princípio constitucional de responsabilidade dos funcionários públicos por "abusos e omissões" praticados no exercício das suas funções - é o que resulta do artigo 145.º, § 27, constante do título VIII da Carta.
A Constituição de 4 de Abril de 1838, no título III, artigo 26.º, manteve inalterado aquele princípio geral.
Com a implantação da I República, diferentemente do que vinha acontecendo no constitucionalismo monárquico, a Constituição de 21 de Agosto de 1911 não consagrou o princípio geral de responsabilidade dos funcionários públicos por actos ilícitos praticados no exercício das respectivas funções. Estatuía, porém, o artigo 3.º, § 30, que "todo o cidadão poderá apresentar aos poderes do Estado reclamações, queixas e petições, expor qualquer infracção à Constituição e, sem necessidade de prévia autorização, requerer perante a autoridade competente a efectiva responsabilidade dos infractores".
Da Constituição de 11 de Abril de 1933 não consta qualquer referência à responsabilidade dos funcionários/empregados públicos por actos ilícitos praticados no exercício das suas funções nem tão-pouco à efectivação da responsabilidade do autor de infracção à Constituição, estabelecendo-se, no entanto, quanto à reparação dos danos causados a outrem, que o cidadão português tem "o direito de reparação de toda a lesão efectiva conforme dispuser a lei, podendo esta, quanto a lesões de ordem moral, prescrever que a reparação seja pecuniária" (cf. o artigo 8.º, n.º 17).
A Constituição de 1976 consagrou pela primeira vez o princípio da responsabilidade das entidades públicas, contendo vários e importantes artigos em matéria de responsabilidade da Administração (por virtude do exercício da actividade administrativa) e do Estado em geral, atinentes ao exercício das outras funções que lhe incumbem (cf., para o último caso, os artigos 27.º, n.º 5, responsabilidade do Estado por privação da liberdade, 29.º, n.º 6, responsabilidade por danos causados por condenações injustas, 62.º, n.º 2, responsabilidade por requisição e expropriação por utilidade pública, 66.º, n.º 3, responsabilidade por lesão do direito ao ambiente, e 120.º, n.º 1, responsabilidade dos titulares dos cargos políticos).
As disposições constitucionais relevantes em matéria de responsabilidade da Administração constam dos artigos 22.º e 271.º da lei fundamental, a que mais adiante voltaremos.
No plano do direito infraconstitucional, começa por se salientar que o Código Civil de Seabra (1867) consagrou o princípio da irresponsabilidade do Estado nos artigos 2399.º e 2400.º, onde se dispunha que nem o Estado nem os funcionários eram responsáveis pelas perdas e pelos danos que causassem no desempenho das obrigações que lhes fossem impostas por lei, excepto se excedessem ou não cumprissem as disposições da mesma lei, caso em que responderiam pessoalmente como qualquer cidadão.
Relativamente aos actos de gestão privada, a doutrina e a jurisprudência da época entendiam que eles eram susceptíveis de gerar responsabilidade do Estado.
Com a importante revisão de 1930, o Código Civil, não deixando de manter o princípio da irresponsabilidade dos "empregados públicos" pelas perdas e pelos danos causados no desempenho das obrigações que lhes são impostas por lei, com a referida ressalva, estabeleceu, pela primeira vez, a responsabilidade solidária das "entidades" de que aqueles eram "serventuários" nos casos em que os "empregados públicos" respondessem.
No âmbito do direito público, o Código Administrativo de 1936-1940 estabeleceu a responsabilidade civil das autarquias locais por actos praticados com ofensa de lei pelos seus órgãos e agentes no âmbito das respectivas atribuições e competências, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais (cf. os artigos 310.º do Código Administrativo de 1936 e 366.º do Código Administrativo de 1940).
O Código previa ainda a responsabilidade pessoal dos titulares dos órgãos, agentes ou funcionários das autarquias locais por actos geradores de prejuízo que não tivessem sido praticados no âmbito das respectivas atribuições e competências, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais (cf. os artigos 311.º do Código Administrativo de 1936 e 367.º do Código Administrativo de 1940).
Importante marco na evolução do regime da responsabilidade civil da Administração no nosso ordenamento jurídico foi, sem margem para dúvidas, o Código Civil de 1966.
Como revelam os respectivos trabalhos preparatórios, o legislador tinha a intenção de regular toda a matéria da responsabilidade extracontratual da Administração Pública, mas a orientação que acabou por prevalecer foi a de regular apenas a responsabilidade por danos causados no "exercício da actividade de gestão privada" (cf. o artigo 501.º), deixando para as leis administrativas a disciplina da responsabilidade da Administração no "domínio dos actos de gestão pública". Foi o que veio a acontecer, pouco tempo depois, com a publicação do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, que ainda hoje se mantém em vigor.
Com efeito, no seu artigo 1.º, este decreto-lei determina que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública se passa a reger pelo que nele se dispõe.
Na parte que nos interessa - responsabilidade por facto ilícito -, o regime então instituído (que exclui implicitamente a matéria relativa aos danos causados por actos pessoais dos funcionários) pode sintetizar-se nos seguintes termos:
Pelos danos causados por actos ilícitos e culposos (negligência) praticados pelos titulares dos órgãos e pelos agentes administrativos do Estado e pelas demais pessoas colectivas públicas no exercício das suas funções e por causa desse exercício respondem, directa e exclusivamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas (artigo 2.º, n.º 1);
Pelos danos causados por actos praticados por aqueles mesmos entes (titulares de órgãos ou agentes administrativos) nas mesmas condições (no exercício das suas funções e por causa destas), mas cometidos com dolo, respondem, solidariamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas e o lesante (artigo 3.º, n.os 1 e 2);
Pelos actos praticados ainda pelos mesmos entes "se tiverem excedido os limites das suas funções" responde, exclusivamente, perante o lesado, o lesante (artigo 3.º, n.º 1).
No âmbito das relações internas, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas que tiverem satisfeito qualquer indemnização gozam de direito de regresso contra os lesantes, nos casos em que estes agiram "com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo" (artigo 2.º, n.º 2).
Como refere Carlos Cadilha (intervenção produzida em conferência sobre "responsabilidade civil extracontratual do Estado", publicada pelo Ministério da Justiça, sob o título A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, p. 238), configuram-se, assim, as seguintes situações:
"a) Responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados com culpa leve);
b) Responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos praticados com negligência grave);
c) Responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo);
d) Responsabilidade exclusiva dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes (actos que excedam os limites das funções)."
É a conformidade à Constituição deste regime que tem vindo a ser objecto de controvérsia na doutrina e na jurisprudência, sendo que, para o caso, nos importa exclusivamente o que concerne à responsabilidade do funcionário por acto funcional ilícito e negligente. E isto porque a sentença recorrida - disse-se já - resolve a questão de constitucionalidade ponderando apenas a situação, que entende em causa, da responsabilidade do funcionário perante o lesado, no âmbito das relações externas, por danos causados por acto funcional ilícito e culposo, sendo certo que ela não distingue o grau de culpa (grave ou leve) imputado ao agente e não o qualifica no caso.
5 - É a primeira vez que o Tribunal Constitucional se confronta, directamente, com a questão (a Comissão Constitucional afrontou lateralmente a questão no seu parecer 22/79, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 9.º, p. 40), o que não pode deixar de significar - considerando a obrigatoriedade do recurso para o Tribunal Constitucional por parte do Ministério Público em caso de recusa de aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade - que ou os autores não têm demandado, nas pertinentes acções, os funcionários e agentes ou os nossos tribunais não têm geralmente julgado contrário à Constituição o regime instituído pelo Decreto-Lei 48 051, enquanto prescreve a irresponsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes do Estado por actos funcionais ilícitos e culposos no âmbito das relações externas.
E, com efeito, da jurisprudência conhecida dos nossos tribunais superiores dá-se apenas nota de dois arestos que, no aspecto em causa, julgaram inconstitucional o referido regime, por a Constituição ter passado a impor a responsabilidade directa do lesante: um proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 6 de Maio de 1986, in Boletim do Ministério da Justiça, ano 357, p. 392, e o outro prolatado pelo Supremo Tribunal Administrativo em 3 de Maio de 2001 (processo 47 084).
A verdade é que, ao menos na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, o citado acórdão mantém-se isolado na doutrina que professa. Com doutrina oposta - no sentido de que a Constituição não fez caducar aquele regime - v. os Acórdãos de 22 de Maio de 1990 (processo 28 120), de 29 de Outubro de 1992 (processo 29 994), de 29 de Abril de 1999 (processo 40 503) e, como mais recente, o de 28 de Fevereiro de 2002 (processo 48 178).
Na doutrina, a divergência é mais acentuada, com clara dominância da tese em que assentou a sentença recorrida.
Não sendo inteiramente líquida a posição adoptada quanto à questão que ora nos ocupa, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Português Anotada, 3.ª ed., p. 22) parecem, no entanto, apontar para a incompatibilidade do regime do Decreto-Lei 48 051 com o artigo 22.º da Constituição, uma vez que, depois de acentuarem, relativamente ao problema da imputação, "a atribuição, a título directo, às entidades públicas da responsabilidade por danos causados pelos titulares dos seus órgãos ou pelos funcionários ou agentes", entendem que "daqui deriva também a forma solidária da responsabilidade, podendo o cidadão lesado demandar quer o Estado, quer os funcionários ou agentes, quer ambos conjuntamente", o que implicará o afastamento das normas do Decreto-Lei 48 051 que isentam de responsabilidade, nas relações externas, o titular do órgão, funcionário ou agente que aja com culpa.
Por seu turno, Freitas do Amaral (intervenção produzida na citada conferência sobre "Responsabilidade civil extracontratual do Estado", pp. 44 e segs.) afirma categoricamente que o Decreto-Lei 48 051 se tornou "em parte inconstitucional quando a Constituição, no artigo 22.º, veio estabelecer o princípio geral da responsabilidade solidária entre o Estado e os seus órgãos, agentes ou representantes. Como todos sabemos, os artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei 48 051 não previam para todos os casos de responsabilidade o regime de solidariedade, e agora a Constituição obriga a rever essa matéria". Quando, porém, prefigura o quadro de alternativas que se abrem ao legislador ordinário, admite que se mantenha "um sistema de responsabilidade exclusiva do agente em certos casos e de responsabilidade solidária em todos os demais" ou uma "ideia [...] de uma responsabilidade exclusiva do Estado em caso de culpa leve, apenas com responsabilidade solidária propriamente dita para os casos de culpa grave e dolo", reconhecendo que tal pode não resultar do artigo 22.º da Constituição mas, sim, do artigo 271.º da Constituição da República Portuguesa.
Para Rui de Medeiros (Acções de Responsabilidade, p. 37), o artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 48 051 consagra uma solução "num contexto hoje já inexistente de responsabilidade exclusiva da pessoa colectiva pública perante o terceiro lesado"; no seu "Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos" escreve que "a crítica mais certeira que podia fazer-se ao regime consagrado no artigo 2.º do Decreto-Lei 48 051 era a de que a irresponsabilidade do funcionário perante o lesado, nos casos de negligência, não se harmonizava com a função pedagógico-educativa da responsabilidade civil e, sobretudo, não protegia o direito de indemnização dos particulares. Por isso, correctamente, a Constituição de 1976 estabelece a regra da solidariedade" (p. 93); e, mais adiante, diz que o artigo 22.º da Constituição, "ao recusar uma responsabilidade exclusiva do Estado, visa tornar mais efectivo o direito à reparação dos danos e, indirectamente, estimular a diligência dos servidores do Estado" (p. 98). Em suma, o artigo 2.º do Decreto-Lei 48 051 ter-se-ia tornado inconstitucional (p. 99).
Jorge Miranda afirma que o Decreto-Lei 48 051 continua em vigor, "salvo, porventura, na parte caducada por inconstitucionalidade superveniente (por não estender a todas as formas de actuação ilícita com culpa a regra da solidariedade" ("A Constituição e a responsabilidade civil do Estado", in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, p. 932).
Para Fausto Quadros (intervenção produzida na citada conferência sobre "Responsabilidade civil extracontratual...", cit., pp. 59 e 60), "deve pôr-se termo à inconstitucionalidade por omissão do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, resultante da violação ao artigo 22.º da Constituição, acolhendo-se formalmente o princípio da responsabilidade solidária entre a Administração e os funcionários ou agentes. Nesse caso, deve, porém, assegurar-se o dever de regresso da Administração, e não apenas o seu direito de regresso, sempre que o agente tenha agido com culpa grave ou dolo".
Carlos Cadilha (intervenção cit., p. 239), assinalando a "impossibilidade que directamente decorre da directiva constitucional de fazer incidir sobre os funcionários ou agentes uma responsabilidade pessoal exclusiva, mesmo em relação a danos que resultem de actos em que estes tenham excedido os limites das suas funções", entende que "a alternativa que se depara ao legislador ordinário é a de estender a esses casos o regime do direito de regresso por parte da Admi nistração, em paralelo com o que já hoje sucede com os danos derivados de actos funcionais praticados com diligência grave ou dolo"; na nota (8), deixa claro que "as entidades públicas, em virtude da sua responsabilidade solidária, funcionam como garante do pagamento da indemnização, independentemente do grau de culpa que possa imputar-se à conduta lesiva do funcionário ou agente. Daí que o credor possa exigir a prestação integral à Administração ou ao seu servidor, ou contra ambos conjuntamente, cabendo o direito de regresso, por parte do demandado, nos termos que vierem a ser fixados na lei regulamentadora".
Para Paulo Otero ("Responsabilidade civil pessoal dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado", in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, cit., pp. 489 e segs.), "o princípio da solidariedade na responsabilidade civil permite ao administrado que tenha sido lesado intentar uma acção administrativa de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito contra a entidade pública integrante da Administração Pública, contra o autor do facto ou contra ambos, solicitando em qualquer das três hipóteses (dolo e negligência consciente ou inconsciente) o ressarcimento integral do prejuízo sofrido. Quando for demandado por culpa leve, o funcionário pode exercer o direito de regresso".
Pode dizer-se que toda esta orientação doutrinária se constrói, no essencial, com base no segmento normativo do artigo 22.º da Constituição, que se refere à "forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes" em que o Estado e as demais entidades públicas respondem civilmente perante os lesados.
Com efeito, no âmbito dos actos ou omissões ilícitos e culposos praticados no exercício das funções e por causa desse exercício - e só estes agora nos interessam -, o Decreto-Lei 48 051 estabelece a irresponsabilidade dos funcionários, no plano das relações externas, em todos os casos de culpa (grave ou leve), só respondendo, nesse mesmo plano, se tiverem excedido os limites das suas funções ou tiverem procedido com dolo.
Por outro lado, o Estado, neste mesmo plano, ou responde exclusivamente, em caso de culpa dos funcionários, gozando, porém, de direito de regresso quando se tratar de culpa grave, ou solidariamente, em caso de dolo.
Ou seja: no regime do diploma de 1967, por actos praticados no exercício das funções ou por causa desse exercício, nem o Estado responde solidariamente em todos os casos nem os funcionários podem ser directamente demandados também em todos os casos (só, aliás, podem sê-lo por terem excedido os limites das funções ou por terem procedido com dolo).
Daí que - aceite que a norma constitucional atribui ao Estado, a título directo, a responsabilidade por danos causados pelos seus funcionários - a interpretação daquele segmento da norma constitucional, no sentido de que a utilização do conceito de solidariedade visa designar as pessoas responsáveis, conduza à conclusão de que os funcionários passam a responder, sempre, perante o lesado, qualquer que seja o grau de culpa com que tenham agido; e é assim que se considera supervenientemente inconstitucional a norma, ou o complexo normativo, do Decreto-Lei 48 051 de que resulta a irresponsabilidade dos funcionários, no plano das relações externas, por conduta culposa.
É, aliás, nesta linha que se insere a doutrina da decisão recorrida ao recusar a aplicação dos artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, como também a tese sustentada pelos recorridos, chamando ainda à colação o disposto no artigo 271.º da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos se é assim, não deixando de reconhecer que a Comissão Constitucional, como se referiu já, no seu parecer 22/79 (que é a única pronúncia sobre a matéria na jurisprudência constitucional), não deu por inquestionável e adquirida aquela tese, afirmando que "não será de todo impossível compatibilizar as referidas normas do Decreto-Lei 48 051 com o disposto no artigo 21.º, n.º 1, da Constituição (preceito a que actualmente corresponde o artigo 22.º): quando este fala da 'forma solidária' sob a qual responderão o Estado e os seus agentes, não é absolutamente necessário a adopção do estrito esquema das 'obrigações solidárias' do direito civil, antes será porventura possível entender que a responsabilidade, sem deixar de ser solidária, pode depender de diferentes pressupostos, consoante ela se afira em relação ao Estado ou aos seus agentes".
6 - A norma do artigo 22.º da Constituição de 1976 constitui uma inovação relativamente aos textos constitucionais anteriores, elevando ao nível supralegal (constitucional) princípios que até então haviam apenas sido acolhidos no direito infraconstitucional, máxime no Decreto-Lei 48 051.
Ela veio a ser inscrita na parte I da Constituição da República Portuguesa, referente aos "Direitos e deveres fundamentais", e no título I, que contempla os "Princípios gerais" sobre a matéria.
Trata-se, pois, de uma norma que respeita aos direitos, liberdades e garantias, o que, obviamente, não basta - como não basta a sua qualificação como princípio geral - para uma caracterização rigorosa do tipo de norma em causa. Com efeito, como assinala Maria Lúcia Amaral (Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, p. 430), "estas mesmas normas podem ser ainda de tipos diversos, consoante atribuem ou não atribuem verdadeiros direitos subjectivos aos particulares".
Certo é que, antes mesmo desta operação qualificativa, o que, desde logo, se impõe ao intérprete é a circunstância de se tratar de uma norma com uma previsão inequívoca (e não só pela expressão da epígrafe, "Responsabilidade das entidades públicas"): "o Estado e as demais entidades públicas[...]"; o que se torna ainda mais impressivo pelo facto de outra norma constitucional, já não inserida na parte referente aos "direitos fundamentais" - o artigo 271.º -, dispor directamente sobre a "responsabilidade dos funcionários e agentes".
Isto desde logo legitima a "circunspecção" de Sinde Monteiro ("Aspectos particulares da responsabilidade médica", in Direito de Saúde e Bioética, pp. 133 e segs.) face a interpretações da mesma norma que dela retiram regras precisas sobre a responsabilidade de funcionários e agentes, quando escreve: "deverá ser-se em extremo prudente, ou mesmo circunspecto, na leitura desta disposição de uma forma tal que resultem afinal disciplinados os pressupostos do dever de responder dos próprios funcionários, que já não somente das 'entidades públicas'. Tecnicamente, isso equivale a encontrar uma estatuição para algo (uma hipótese de facto) que não aparece incluído na previsão da norma".
Sucede, na verdade, que a interpretação em causa vai buscar à estatuição da norma - responsabilidade das entidades públicas, em forma solidária, pelos danos - um alargamento da previsão, apenas pela razão da "solidariedade" (que é sempre uma modalidade das obrigações em que cada um dos devedores responde pela totalidade da dívida, supondo a existência de mais de um devedor), e esquece que o preceito dispõe sobre a responsabilidade das entidades públicas com os titulares de órgãos, funcionários ou agentes, e não destes com aquelas, sendo certo que ele pode obrigar as primeiras a responder civilmente sempre que os segundos responderem, mas já não impor a responsabilidade directa dos segundos em todos os casos em que as entidades públicas devam responder.
Trata-se, aliás, de um entendimento que causa sérios embaraços a quem queira ver consagrada na norma também a responsabilidade das entidades públicas por actos lícitos, ou pelo risco, onde seria de todo desrazoável, ou mesmo absurdo, co-responsabilizar os titulares de órgãos, funcionários e agentes (cf., neste sentido, Vieira de Andrade, Panorama Geral do Direito da Responsabilidade da Administração Pública em Portugal, cit., p. 54).
Para além de que, seguindo o mesmo entendimento, e - repete-se - numa norma que visa consagrar um princípio geral de responsabilidade das entidades públicas, acabaria por se estabelecer, de uma forma insidiosa, o agravamento automático da responsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, no plano das relações externas, o que, a ser essa a intenção do legislador constituinte, teria o seu lugar próprio no artigo 271.º da Constituição da República Portuguesa (cf. a intervenção de Margarida Cortez in conferência sobre "A responsabilidade civil extracontratual do Estado", cit., p. 259, e "Responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado", p. 30), o que, como se verá, não acontece neste último preceito (Sinde Monteiro, ob. cit. e loc. cit., p. 144).
A verdade é que, ao estabelecer apenas um regime de solidariedade, não é inevitável que a norma do artigo 22.º da Constituição seja lida em termos de designar os responsáveis, independentemente dos pressupostos da obrigação de indemnizar de cada um dos obrigados. Escreve, a este respeito, Sinde Monteiro (loc. cit., p. 142):
"A expressão 'em forma solidária' conota sem dúvida uma certa modalidade das obrigações, caracterizada (a pars debitoris) principalmente pela responsabilidade de cada um dos devedores pela prestação integral (artigos 512.º e segs. do Código Civil). Mas uma coisa é a modalidade (regime) da obrigação, e coisa diferente a fonte do vínculo obrigacional. Normalmente, quando a lei civil declara vários sujeitos solidariamente responsáveis, está a pressupor que na pessoa de cada um deles se reúnem os requisitos do dever de indemnizar, quer de carácter geral quer os particularmente atinentes à fattispecie em causa."
Por isto, diz o mesmo autor - e com razão - que "faz pois sentido ler o texto do artigo 22.º da Constituição deste modo: 'o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares [...]', desde que sobre estes recaia a obrigação de indemnizar". E, sendo a norma omissa quanto aos pressupostos desta obrigação, é à legislação ordinária - no caso, ao Decreto-Lei 48 051 (artigos 2.º e 3.º) que deve apelar-se para saber em que condições respondem, directamente, os funcionários e agentes por actos ilícitos e culposos praticados no exercício e por causa das suas funções, estendendo-se, então, às entidades públicas (em termos solidários) a mesma responsabilidade.
É, alias, esta incompletude da norma do artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa ["Que pressupostos devem estar reunidos para que possamos afirmar esta mesma existência (a existência do direito à indemnização)? Que condições devem ser verificadas para que possamos anuir quanto à sua titularidade concreta? Que parâmetros de decisão devem ser utilizados para que possamos condenar o Estado a indemnizar danos que os seus actos tenham provocado?") uma das principais razões que leva Maria Lúcia Amaral (ob. cit., p. 439) a concluir que ela não é uma norma atributiva de um direito, entendendo que as normas constitucionais que atribuem direitos, liberdades e garantias, com o regime próprio constante do artigo 18.º da Constituição, "não podem deixar de ser dotadas de uma particular densidade de estrutura", e escrevendo a propósito:
"Por causa das imposições de vinculatividade e de aplicabilidade directa fixadas no n.º 1 do artigo 18.º, as normas atributivas de direitos, liberdades e garantias têm de ser, no que diz respeito à atribuição do direito, normas dotadas daquele tipo de eficácia máxima que é próprio das chamadas regras self-executing."
Reconhece-se, com a mesma autora, que a configuração do instituto da responsabilidade civil extracontratual da Administração, com a consagração do dever público de indemnizar e os respectivos pressupostos, foi obra do Decreto-Lei 48 051, no termo de uma evolução feita ao nível do direito infraconstitucional, e que o artigo 22.º da Constituição acaba por acolher o instituto que a legislação ordinária modelara, conferindo-lhe dignidade constitucional.
Tal constitucionalização garantiu o instituto (ou o seu núcleo essencial - o princípio da imputação directa ao Estado dos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes), condicionando o legislador ordinário a não retroceder "até àquele nível histórico de desenvolvimento em que se desconhecia o instituto e em que se recusava ao particular a titularidade do direito subjectivo" (Maria Lúcia Amaral, ob. cit., p. 449).
A norma do artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa - dirigindo-se ao legislador, com vista a garantir o instituto, e implicando limites à sua conformação pela lei ordinária - parece, assim, justificar a qualificação de norma de garantia institucional que a mesma autora lhe atribui (no mesmo sentido, Vieira de Andrade, loc. cit., p. 53, e Manuel Afonso Vaz, "A responsabilidade civil do Estado. Considerações gerais sobre o seu estatuto constitucional", n. 14, p. 9, ao afirmar que adoptaria tal qualificação, "não fosse o facto da figura da garantia institucional não merecer o consenso da doutrina quanto à sua aplicabilidade directa").
Nesta conformidade, as situações de responsabilidade exclusiva do Estado e das entidades públicas, no plano das relações externas, que o Decreto-Lei 48 051 consagra, no ponto em que cumprem princípios de justiça (formal e substancial) não ficam comprometidas com o disposto no artigo 22.º da Constituição. E o que esta norma impõe será apenas que o Estado e as demais entidades públicas respondam sempre ao lado dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes por actos funcionais, quando a lei impuser a responsabilidade directa destes (é o caso, por exemplo, do disposto na primeira parte do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 48 051), sem, contudo, contender - repete-se - com as imposições normativas (de lei ordinária) de responsabilidade exclusiva do Estado.
Cumpre-se, deste modo, a principal função do instituto da responsabilidade civil - a função reparadora que especialmente garante aos particulares o ressarcimento dos danos causados pelos actos praticados pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado e de entidades públicas.
Não seria, com efeito, a responsabilidade directa destes últimos, em todos os casos - como resulta da tese da decisão recorrida -, que iria reforçar, de modo relevante (a ponto de merecer a tutela constitucional), a garantia dos particulares. Tal reforço só poderia admitir-se pelas supostas dificuldades burocráticas na execução das decisões condenatórias do Estado e entidades públicas - pressuposto que seria inadmissível na Constituição de um Estado de direito -, sendo certo que é ao legislador ordinário que cumpre obviar a esses constrangimentos, como de resto sucedeu já com a recente reforma do contencioso administrativo.
Dir-se-ia, em contrário, que a exigência da responsabilização dos titulares de órgãos, funcionários e agentes, nas relações externas, decorre da função preventiva do instituto e da garantia dos princípios da legalidade e da eficiência administrativa.
Certo é, porém, que, e em primeiro lugar, não resulta necessariamente da responsabilidade exclusiva da Administração, no plano das relações externas, a irresponsabilização dos titulares de órgãos, funcionários e agentes; a responsabilidade destes pode ser accionada por via do direito de regresso, como desde logo o demonstra o disposto no artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 48 051, abrindo-se ainda ao legislador, a coberto do disposto no artigo 271.º, n.º 4, da Constituição, a possibilidade de regular esse direito em termos de abranger outras situações.
Por outro lado, se ainda for rigorosamente efectivada a responsabilidade penal e disciplinar a que se refere o disposto no artigo 271.º, n.º 1, da Constituição, não deixa de se assegurar o sancionamento de condutas ilegais e culposas, com o inerente efeito de compelir os titulares dos órgãos, funcionários e agentes à observância do princípio da legalidade a que estão constitucionalmente sujeitos na sua actuação funcional.
Por último, não deixa de se assinalar que o acolhimento da tese segundo a qual o artigo 22.º da Constituição impõe, em todos os casos, a responsabilidade directa dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, por actos ilícitos e culposos praticados no exercício e por causa das suas funções, gera problemas graves na regulação de situações de culpa leve, onde, para a generalidade da doutrina, se reconhece a inconveniência de tal responsabilidade.
Com efeito, a dispor-se nesse sentido - irresponsabilidade em caso de culpa leve, como acontece na proposta de lei 88/IX, in Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 2, de 20 de Setembro de 2003, que retoma a proposta n.º 95/VIII, do anterior Governo, in Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 18 de Julho de 2001 -, e na consideração de que o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa consagraria um direito fundamental do particular com aquele alcance, sempre se introduziria uma restrição desse direito que dificilmente encontrará justificação na tutela constitucional de outros direitos, bens ou valores.
Resta acrescentar - sem que, no entanto, se considere relevante para a resolução da questão de constitucionalidade - o que alguns autores têm salientado (cf. Margarida Cortês, ob. cit., p. 29, e Sinde Monteiro, ob. cit., p. 145): o Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março (muito posterior, portanto, à Constituição), definiu a responsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes das autarquias em termos muito idênticos aos do Decreto-Lei 48 051, o que implicitamente revela que a tal se não opuseram vinculações constitucionais.
Em suma, pois, nada se retira do artigo 22.º da Constituição que imponha a inconstitucionalidade superveniente das normas do Decreto-Lei 48 051 de que resulta a irresponsabilidade dos funcionários do Estado, no plano das relações externas, por danos causados por actos ilícitos e culposos (culpa leve ou grave) praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício (artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2).
7 - Mas se isto é assim tendo como parâmetro de constitucionalidade o disposto no citado artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa, nada a este propósito se altera considerando o que consagra o artigo 271.º, n.º 1, da mesma lei fundamental.
É esta a posição de Sinde Monteiro quando afirma que o artigo 271.º "não estabelece expressis verbis uma regulação incompatível com o direito anterior", embora condescenda em que a letra do n.º 1 "é compatível com um sistema diferente" (ob. cit., p. 145, e n. 24).
E é também o que defende Margarida Cortez ("Responsabilidade civil da Administração...", cit., p. 30) ao dizer que "o legislador podia, por ocasião da regulação da responsabilidade dos funcionários e agentes (artigo 271.º), ter agravado a posição destes face ao lesado, mas não o fez".
Trata-se, com efeito, de uma norma que se limita a estabelecer a responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas por actos e omissões praticados no exercício das suas funções.
Mas, tal como acontecia com o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa, também aqui o preceito deixa, desde logo, em aberto a questão de saber quais os pressupostos do dever de indemnizar e perante quem é efectivada a responsabilidade (o Estado e as entidades públicas, por via de regresso, ou os particulares lesados?), elementos que estão, por agora, concretizados no Decreto-Lei 48 051.
Com tal abertura, o preceito deve ser interpretado em termos de deixar para o legislador um espaço que permite adaptar o instituto às necessidades e exigências de momento - nomeadamente o de prever a responsabilidade dos funcionários e agentes em casos de culpa (leve ou grave) -, garantindo, de qualquer modo e sempre, o direito de o particular ver ressarcidos os danos sofridos por actos ilícitos e culposos cometidos no exercício da função administrativa.
E não deixará de dizer-se, como acentua Sinde Monteiro (loc. cit., p. 145), que o direito de regresso previsto no n.º 4 do mesmo artigo 271.º da Constituição da República Portuguesa "se compatibiliza mal com um regime regra de responsabilidade directa dos agentes, só fazendo plenamente sentido num sistema de condenação prévia do Estado".
8 - Decisão. - Pelo exposto, e em conclusão, decide-se:
a) Não julgar supervenientemente inconstitucionais as normas dos artigos 2.º e 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 48 051, enquanto eximem de responsabilidade, no plano das relações externas, os titulares de órgãos, funcionários e agentes do Estado e as demais entidades públicas por danos causados pela prática de actos ilícitos e culposos (culpa leve ou grave) no exercício das suas funções e por causa delas;
b) Conceder, consequentemente, provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 13 de Abril de 2004. - Artur Maurício (relator) - Rui Manuel Moura Ramos - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida.