Acórdão 615/2003/ T. Const. - Processo 861/2003. - Acta. - Aos 16 de Dezembro de 2003, achando-se presentes o Exmo. Juiz Conselheiro Presidente Luís Nunes de Almeida e os Exmo.s Juízes Conselheiros José Manuel de Sepúlveda Bravo Serra, Gil Manuel Gonçalves Gomes Galvão, Maria Helena Barros de Brito, Maria Fernanda dos Santos Martins Palma Pereira, Mário José de Araújo Torres, Carlos José Belo Pamplona de Oliveira, Benjamim Silva Rodrigues, Rui Manuel Gens de Moura Ramos, Artur Joaquim de Faria Maurício, Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza, Paulo Cardoso Correia da Mota Pinto e Vítor Manuel Gonçalves Gomes, foram os presentes autos trazidos à conferência pelo Presidente, nos termos do disposto no artigo 52.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Após debate e votação, e apurada a decisão do Tribunal, foi pelo Exmo. Presidente ditado o seguinte acórdão:
1 - Um grupo de oito deputados à Assembleia Legislativa Regional da Madeira requereu ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do artigo 2.º do Decreto-Lei 318-E/76, de 30 de Abril (Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira), na redacção que lhe foi dada pela Lei 11/2000, de 21 de Junho, e do artigo 15.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho, e alterado pela Lei 130/99, de 21 de Agosto, e pela Lei 12/2000, de 21 de Junho.
Segundo os requerentes, as normas em causa - que definem os círculos eleitorais para a eleição da Assembleia Legislativa Regional, bem como as regras de determinação do número de mandatos em cada círculo - violam quer o princípio da representação proporcional, consagrado nos artigos 113.º, n.os 1 e 5, e 231.º, n.º 2, da Constituição da República, quer o princípio da igualdade de sufrágio, resultante do preceituado nos artigos 13.º e 10.º, n.º 1, da mesma lei fundamental.
2 - O pedido foi formulado com invocação do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição, onde se dispõe que, entre outros, podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, "um décimo dos deputados à respectiva Assembleia Legislativa Regional, quando o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos das Regiões Autónomas".
Verifica-se, assim, que o poder conferido aos deputados às Assembleias Legislativas Regionais (e, bem assim, às outras entidades referidas na mesma alínea - Ministros da República, Assembleias Legislativas Regionais e respectivos Presidentes e Presidentes dos Governos Regionais) - pressupõe que esteja "necessariamente em causa uma eventual violação de direitos das Regiões em face do Estado nacional, na medida em que esses direitos tiverem consagração constitucional, isto é, conformarem constitucionalmente de modo directo a autonomia político-administrativa das Regiões" (cf. Acórdão 198/2000, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º vol., pp. 85 e segs.).
Neste mesmo sentido, já a Comissão Constitucional, no Parecer 25/80 (Pareceres da Comissão Constitucional, 13.º vol., pp. 143 e segs.), havia afirmado:
"Não cabe, porém, aqui considerar a constitucionalidade de todas essas disposições. Cabe tão-só considerar aquelas que possam relevar da perspectiva de direitos das Regiões consagrados na Constituição, já que o poder de impugnação conferido às Assembleias das Regiões Autónomas pelos artigos 229.º, n.º 2, e 281.º, n.º 1, é um poder circunscrito na natureza e no objecto: poder instrumental, de garantia dos poderes substantivos em que se traduz o regime político-administrativo dos Açores e da Madeira, destina-se à defesa das correspondentes normas constitucionais e só pode incidir, portanto, sobre normas legislativas ou outras que com elas, porventura, colidam."
Posteriormente, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 264/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º vol., pp. 169 e segs.), salientou:
"No que respeita à primeira parte do preceito, escrevem a propósito Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., pp. 535 e 536, que 'a fiscalização abstracta não está configurada como verdadeiro recurso directo de inconstitucionalidade [...], visto que as entidades com legitimidade para requerer a declaração de inconstitucionalidade [...] não são titulares de direitos ou interesses subjectivos na declaração de inconstitucionalidade', pelo que, quanto a essas entidades (Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Provedor de Justiça, Procurador-Geral da República e um décimo dos deputados à Assembleia da República), 'a legitimidade para requerer a declaração de inconstitucionalidade [...] depende, não de qualquer interesse pessoal na questão, mas sim da titularidade de determinados cargos'.
Mas já no que respeita à segunda parte do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da CRP, e quanto à fiscalização abstracta nela contemplada, escrevem os mesmos autores, ob. cit., vol. cit., p. 535, que aí 'não se pode deixar de ver uma certa componente da figura do recurso de constitucionalidade [...] na definição do elenco de entidades com direito a requerer a declaração de inconstitucionalidade de normas por violação dos direitos constitucionais das Regiões Autónomas', entidades essas (Assembleias Regionais e Presidentes dos Governos Regionais) em relação às quais 'é claramente visível um elemento de defesa dos interesses regionais contra o Estado'.
Daqui decorre que, no domínio da fiscalização abstracta de constitucionalidade, a legitimidade das Assembleias Regionais e dos Presidentes dos Governos Regionais - ao contrário do que sucede com as demais entidades categorizadas no artigo 281.º, alínea a), da CRP - não tem por pressuposto apenas tal qualidade. Antes a sua legitimidade está condicionada pela presença de um quid adicional: que em causa estejam direitos regionais constitucionalmente previstos [é, de facto, indubitável que hão-de ser direitos desta ordem, pois, se o não fossem, se fossem direitos meramente estatutários, então a sua infracção por outras normas não daria lugar a inconstitucionalidade, como é pressuposto pelo artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da CRP, mas geraria antes simples ilegalidade - artigo 281.º, n.º 1, alínea c), da CRP].
[...] Deste modo, as Assembleias Regionais e os Presidentes dos Governos Regionais só serão partes legítimas se esses direitos, dados como infringidos pelas normas cuja declaração de inconstitucionalidade é peticionada, tiverem realmente cobertura constitucional (o conhecimento de mérito limitar-se-á então ao apuramento da violação ou não daqueles direitos por parte das normas questionadas)."
E, mais tarde, no Acórdão 403/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., t. I), reafirmou-se:
"[...] o exercício pelos órgãos regionais da faculdade de impugnação da inconstitucionalidade de normas dimanadas de órgãos de soberania pressupõe uma legitimidade qualificada pela violação de direitos das Regiões. É precisamente a circunstância de ser accionado, por esta via, um poder de garantia dos poderes das Regiões, que fornece o critério de determinação do âmbito do pedido. Só têm de (devem) ser consideradas as normas que, segundo a alínea c) do n.º 1 do artigo 281.º da CRP, violem direitos constitucionalmente conferidos às Regiões e na medida em que essas normas se destinem a nelas ser aplicadas [...]."
A doutrina geral fixada na jurisprudência atrás referida - por último, como se assinalou, no Acórdão 198/2000, quanto à questão de inconstitucionalidade aí decidida - deve ser mantida.
Essa mesma doutrina fora já, aliás, a adoptada por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. rev., nota VIII ao artigo 281.º, p. 1035):
"[...] Os MRs e as autoridades e deputados regionais só têm legitimidade para requerer a fiscalização da constitucionalidade ou da legalidade nos casos que digam respeito às respectivas Regiões, a saber, a inconstitucionalidade com fundamento em violação dos direitos das Regiões e a ilegalidade com fundamento em violação do estatuto regional ou das leis gerais da República. Por 'direitos das Regiões' devem entender-se os direitos constitucionalmente reconhecidos às Regiões face à República."
Daí resulta que só com fundamento em normas constitucionais que definam poderes jurídicos conferidos às Regiões Autónomas enquanto pessoas colectivas territoriais, em concretização do princípio da autonomia político-administrativa regional, podem as entidades mencionadas no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição, requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas.
3 - Ora, tal não é manifestamente o caso das normas constitucionais atinentes ao princípio da igualdade de sufrágio ou ao princípio da representação proporcional, já que aí não se definem poderes das Regiões, face a outras entidades que lhes são externas - máxime, o Estado.
Nesta conformidade, as normas constitucionais que fixam princípios gerais de direito eleitoral não podem ser tidas como normas consagradoras de direitos das Regiões Autónomas. Consequentemente, não podem fundar um pedido de declaração de inconstitucionalidade por parte das entidades previstas no artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da CRP.
Nestes termos, haverá que concluir pela ilegitimidade dos requerentes.
4 - De acordo com o estabelecido no artigo 52.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, "o pedido não deve ser admitido quando formulado por pessoa ou entidade sem legitimidade".
Nesta conformidade, decide-se não admitir o pedido.
Bravo Serra - Gil Galvão - Benjamim Rodrigues - Maria Helena Brito - Maria Fernanda Palma - Mário Torres - Benjamim Rodrigues - Rui Moura Ramos - Artur Maurício - Maria dos Prazeres Beleza - Mota Pinto - Vítor Gomes - Pamplona de Oliveira (com a declaração de voto que divirjo do entendimento dominante. O n.º 2 do artigo 281.º da Constituição permite fazer incluir nos direitos das Regiões o respectivo estatuto eleitoral.) - Luís Nunes de Almeida.