Acórdão 106/2003/T. Const. - Processo 497/2002. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Carlos Jorge Rodrigues dos Santos e mulher, identificados nos autos, recorrem para este Tribunal, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alíneas b) e f), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a fls. 415 e seguintes, pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma contida no artigo 1381.º, alínea a), do Código Civil, que, segundo os recorrentes, viola o disposto nos artigos 81.º, alínea g), 93.º, n.º 1, alínea a), e 95.º da Constituição.
Produziu alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões úteis, que se transcrevem textualmente:
"n) No artigo 81.º da Constituição aparece a incumbência de 'reordenar o minifúndio'. É, por isso, um princípio constitucional a que há-de obedecer a lei ordinária.
Estatuição que, de entre outras, encontra expressão nos artigos 1380.º e seguintes do Código Civil nas leis do emparcelamento rural.
Também assim os artigos 93.º, n.º 1, alínea a), e 95.º da Constituição da República Portuguesa.
o) A política de construção, ou de indústria desenfreada, não pode fazer lei que ateste o expressamente consignado nos diplomas legais.
p) O aliás douto acórdão recorrido esquece que a lei para invocar razões de ordem político-social para justificar uma decisão com a qual parece também não concordar.
q) Aos tribunais cabe fazer a melhor interpretação da lei que sirva a ratio legis que lhe está subjacente, e não inconformisticamente aceitar a sua derrogação pelo vandalismo, os fundamentalismos e outros 'ismos' que tais.
r) Dig.mºs Conselheiros, as interpretações formuladas nos acórdãos recorridos é para um jurista uma afronta à independência de quem julga.
s) A interpretação dada aos preceitos legais está claramente em contradição com os princípios constitucionais, e daí que os acórdãos recorridos enfermam de inconstitucionalidade.
t) Assim, verifica-se que o artigo 1381.º, alínea a), do Código Civil enferma claramente de inconstitucionalidade por violação dos princípios estatuídos nos artigos 81.º, 93.º, n.º 1, alínea a), e 95.º da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito ao redimensionamento da propriedade agrícola, pelo que a mesma ofende os princípios constitucionais ali ratificados e que são de aplicação directa."
Em contra-alegações, a recorrida particular, Sociedade de Construção Civil de Alcainça, Lda., pugna pelo improvimento do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - Como se relatou, o recurso vem interposto simultaneamente ao abrigo das alíneas b) e f) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC.
Mas ele só pode ser conhecido ao abrigo da primeira das alíneas citadas, uma vez que se não verificam os pressupostos exigidos pela segunda dessas alíneas - não se invoca, nem se suscitou perante o tribunal que proferiu a decisão impugnada, a ilegalidade da norma do artigo 1381.º, alínea a), do Código Civil, com qualquer dos fundamentos previstos nas alíneas c), d) e e) do artigo 70.º, n.º 1, da LTC.
3 - O presente recurso emerge de uma acção de preferência intentada pelos recorrentes contra a ora recorrida e outros, na qualidade de proprietários de prédio rústico confinante com prédio igualmente rústico adquirido pela recorrida.
Ficou provado na acção que o referido prédio adquirido pela recorrida se destinava a construção, razão por que, com fundamento no disposto no artigo 1381.º, alínea c), do Código Civil, a acção foi julgada improcedente, decisão que se manteve inalterada nas sucessivas instâncias percorridas em recursos pelos ora recorrentes; na última decisão - o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, agora impugnado - a pronúncia limitou-se, por razões processuais que não interessam ao caso, à questão de constitucionalidade que é objecto do presente recurso.
4 - O artigo 1381.º, alínea c), do Código Civil insere-se na secção VII do capítulo III, título II, livro III, daquele Código, secção que tem como epígrafe "Fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos".
O conjunto de dispositivos que integram esta secção do Código tem o seu antecedente histórico na Lei 2116, de 14 de Agosto, que regulou igualmente a matéria do fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos.
Visa este complexo normativo a finalidade económica e social de reordenamento da propriedade fundiária, com o objectivo de os terrenos aptos para cultura terem (ou não deixarem de ter) uma dimensão mínima (unidade de cultura) adequada a uma exploração economicamente viável.
Assim, do mesmo passo que se proíbe o fraccionamento dos terrenos em parcelas de área inferior à unidade de cultura fixada para cada zona do País (artigo 1376.º), concede-se aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior àquela unidade, reciprocamente, direito de preferência nos casos de venda e dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante (artigo 1380.º)
A estes princípios abre o Código excepções com o mesmo sentido: enquanto o artigo 1377.º, alínea a), exceptua da proibição de fraccionamento os terrenos que se destinem a algum fim que não seja o da cultura, o artigo 1381.º, alínea a), não confere o aludido direito de preferência aos proprietários de prédios confinantes "quando algum dos terrenos [...] se destine a algum fim que não seja a cultura".
As excepções - e agora em particular a que nos ocupa -, na lógica do sistema, têm uma óbvia justificação: se aqueles princípios visam um determinado redimensionamento dos terrenos aptos para cultura, e no interesse da exploração agrícola, a sua aplicação deixa de justificar-se nos casos em que o prédio confinante se destina a outro fim, nomeadamente o da construção.
Não pode este Tribunal sindicar o acerto do decidido quanto ao se ter dado como provado que, no caso, o terreno adquirido pela recorrida se destinava a construção e quanto à interpretação (no estrito plano do direito infraconstitucional) não ter de constar da escritura de compra e venda aquele destino, nem muito menos quanto à decisão administrativa de viabilizar - de acordo, aliás, com o respectivo plano director municipal - a construção num prédio inscrito como rústico.
O que o Tribunal pode e deve apreciar é apenas a questão de saber se a referida norma, ao não conferir o direito de preferência ao proprietário do prédio rústico confinante quando o terreno se não destina a fins de cultura, ofende os preceitos constitucionais citados pelo recorrente.
E a essa questão o Tribunal responde, sem qualquer dúvida, negativamente.
5 - A norma infraconstitucional em causa há muito que vigorava quando a Constituição foi aprovada; e, nesta medida, ela só "caducaria" se fosse contrária aos princípios consignados na Constituição, de acordo com o disposto no artigo 290.º, n.º 2, da lei fundamental.
Ora, os preceitos constitucionais que os recorrentes consideram violados, todos inseridos na parte II da Constituição, "Organização económica", estabelecem, o primeiro [artigo 81.º, alínea g)], como incumbência prioritária do Estado, "eliminar os latifúndio e reordenar o minifúndio", o segundo [artigo 93.º, n.º 1, alínea a)], como objectivo da política agrícola, "aumentar a produção e a produtividade da agricultura, dotando-a das infra-estruturas e dos meios humanos, técnicos e financeiros adequados, tendentes ao reforço da competitividade e a assegurar a qualidade dos produtos, a sua eficaz comercialização, o melhor abastecimento do País e o incremento da exportação" e, o último (artigo 95.º), a obrigação de o Estado promover "nos termos da lei, o redimensionamento das unidades de exploração agrícola com dimensão inferior à adequada do ponto de vista dos objectivos da política agrícola, nomeadamente através de incentivos jurídicos, fiscais e creditícios à sua integração estrutural ou meramente económica, designadamente cooperativa, ou por recuso a medidas de emparcelamento".
Se todos estes princípios conferem ao legislador uma larga margem de conformação para atingir os fins constitucionalmente visados, na dependência de conjunturas e opções políticas diversas, seguramente que eles o não vinculam, com o objectivo de aumentar ou melhorar a produção e a produtividade agrícolas e de dotar a agricultura dos meios necessários para o efeito ou de redimensionar o minifúndio, a conferir, em qualquer caso e circunstância, um direito de preferência dos proprietários de prédios rústicos confinantes quando algum dos terrenos se destine a fim que não seja o da cultura agrícola.
A norma em causa insere-se, aliás, como se disse, na regulação de fraccionamento e emparcelamento dos prédios rústicos, constituindo uma opção política do legislador, constitucionalmente admissível.
E isto, decisivamente, até porque as incumbências constitucionais do Estado se não limitam ao sector agrícola, impondo-se que ele as concilie de modo social e economicamente integrado, para obter um desenvolvimento harmónico e equilibrado de todos os sectores de actividade.
Ora, de entre as tarefas que ao Estado incumbe, não são das menores as que, para assegurar o direito à habitação, estão plasmadas no artigo 65.º, n.º 2, da Constituição; e o desempenho dessas incumbências legitima que, de acordo com planos de ordenamento do território, se possa condicionar a aprovação de medidas que promovessem a melhoria do sector agrícola e, particularmente, o redimensionamento do minifúndio. Se aqueles planos são ou não adequados é outra questão que já nada tem a ver com a constitucionalidade da norma em causa ...
Em suma, pois, não contraria os citados preceitos constitucionais a norma ínsita no artigo 1381.º, alínea a), do Código Civil.
6 - Decisão. - Pelo exposto, e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta de justiça.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2003. - Artur Maurício (relator) - Maria Helena Brito - Pamplona de Oliveira - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.