Acórdão 377/2002/T. Const./Processo 306/2001. - Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - O Banco Português do Atlântico, S. A., requereu no Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, na sequência de uma acção executiva, a declaração de falência de Manuel Fernando Lopes Neto.
Por despacho de 19 de Maio de 2000 (cf. fl. 52), foi determinado o prosseguimento da acção, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 25.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
Inconformado, Manuel Fernando Lopes Neto recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 8 de Março de 2001, a fl. 100, negou provimento ao recurso. Para o que agora releva, o Tribunal da Relação do Porto desatendeu a alegação de inconstitucionalidade orgânica do artigo 27.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, "aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril, publicado ao abrigo de autorização legislativa concedida pela Lei 16/92, de 6 de Agosto, e alterado pelo Decreto-Lei 315/98, de 28 de Outubro, quando interpretado e aplicado com o sentido e alcance de ser admissível a falência de devedores pessoas singulares não comerciantes", invocada pelo recorrente, com o fundamento de estar em causa matéria relativa à capacidade das pessoas e, portanto, situada no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República [artigo 168.º, n.º 1, alínea a) da Constituição, na versão relevante] e não coberta pela lei de autorização legislativa. Para o recorrente, esta lei não permitia a aplicação do regime da falência ao insolvente pessoa singular não comerciante.
O Tribunal da Relação do Porto considerou, em primeiro lugar, não estar em causa matéria relativa à capacidade das pessoas e, em segundo lugar, que o decreto-lei de aprovação do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência foi emitido "ao abrigo de lei habilitante emanada da AR", já que "o Governo ao legislar [não foi] além daquilo que estava autorizado a fazer pela aludida Lei 16/92".
2 - Manuel Fernando Lopes Neto veio então recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada "a [...] questão da inconstitucionalidade [...] do artigo 27.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril, quando interpretado e aplicado com o sentido e alcance de ser admissível a decretação de falência de pessoas singulares não comerciantes", por "violação do regime contido nos artigos 168.º, n.º 1, alínea a), e 164.º, alínea e), 169.º, n.º 3, e 168.º, n.º 2, da CRP".
3 - Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações.
O recorrente concluiu do seguinte modo:
"[...]
iii) É organicamente inconstitucional o regime de declaração de falência de devedor não titular de empresa, consagrado no artigo 27.º do CPEREF, porquanto,
iv) A declaração de falência respeita ao estado e capacidade das pessoas, matéria relativamente à qual existe reserva de competência legislativa relativa da Assembleia da República - artigo 168.º, n.º 1, alínea a) da CRP, na redacção da Lei Constitucional 1/89;
v) Por respeitar a questão da capacidade jurídica para o exercício de direitos, típica da tutela geral do direito da personalidade, consagrado no artigo 67.º do Código Civil;
vi) Não se enquadrando na mera limitação de direitos e liberdades, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP;
vii) O CPEREF foi editado mediante autorização legislativa concedida pela Lei 16/92, de 6 de Agosto, da Assembleia da República, pela qual o governo ficou autorizado - apenas - a a) alterar o regime sancionatório penal; b) conceder benefícios fiscais, e c) prever a inibição do falido para o exercício do comércio - artigos 1.º a 4.º da lei indicada;
viii) A autorização concedida não compreendia a inovação ou alteração dos regimes substantivos e adjectivos da, então, denominada insolvência civil, consagrada nos artigos 1313.º e seguintes do CPC;
ix) Pelo que estava o Governo impedido de legislar em matéria de decretação de falência e ou insolvência de pessoas singulares não comerciantes;
x) Sendo o diploma - na parte em que ultrapassa os limites, sentido e extensão da autorização - organicamente inconstitucional, por violação do regime contido nos artigos 168.º, n.º 1, alínea a), e 164.º, alínea e); 169.º, n.º 3, e 168.º, n.º 2, da CRP.
xi) Inconstitucionalidade do artigo 27.º do CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril, quando interpretado e aplicado com o sentido e alcance de ser admissível a decretação de falência de pessoas singulares não comerciantes, que expressamente se arguiu e deve ser declarada;
xii) Devendo ser declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 27.º, n.º 1, do Código de Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, quando interpretado e aplicado com o sentido e alcance de ser admissível a decretação de falência de pessoas singulares não comerciantes, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, na redacção da Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho.
xiii) E ordenada a reforma de decisão recorrida em conformidade com o juízo de constitucionalidade a proferir.
Como é de lei fundamental!"
Por sua vez, o Banco Português do Atlântico formulou as seguintes conclusões:
"1.ª Vem o presente recurso interposto do douto acórdão da Relação do Porto que, negando provimento ao recurso de agravo interposto pelo ora recorrente, confirmou o douto despacho de prosseguimento da acção e que importou o prosseguimento do pedido de falência formulado contra aquele e que viria a culminar com a sua declaração de falência;
2.ª Contrariamente ao que defende o recorrente, não se verifica qualquer inconstitucionalidade orgânica do artigo 27.º do CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril, quando interpretado e aplicado com o sentido e alcance de ser admissível a decretação de falência de pessoas singulares não comerciantes;
3.ª A Lei de autorização legislativa n.º 16/92, de 6 de Agosto, concedeu ao Governo a necessária autorização para legislar sobre a matéria ora em apreço, possibilitando, nomeadamente, a decretação da falência de comerciantes não titulares de empresa;
4.ª Isto, pois que, logo no artigo 1.º da referida lei de autorização legislativa, se alertava quanto à "cessação da distinção entre insolvência e falência contida no futuro diploma relativo aos processos especiais de recuperação de empresa ou falência"; reportando-se inequivocamente ao então futuro decreto-lei que veio a ter o n.º 132/93, de 23 de Abril;
5.ª Desta forma, desapareceu a tradicional dicotomia falência/insolvência, pelo que, agora, o devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações patrimoniais se encontra em situação de insolvência, que se desdobra em dois regimes: um, a falência comum à generalidade dos devedores, e outro, a recuperação, alternativo, mas exclusivo das empresas - cf. CPEREF anotado por Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao artigo 1.º;
6.ª Ora, o artigo 4.º da referida lei de autorização legislativa, sob a epígrafe 'Inibição para o exercício do comércio', estipulou:
'Fica o Governo autorizado a determinar a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de actividade económica ou empresa pública.';
7.ª Não restam, assim, quaisquer dúvidas de que a lei de autorização legislativa, quando se refere a 'falido', fá-lo em termos amplos, abrangendo, assim, quer o titular quer o não titular de empresa;
8.ª Com efeito, o problema aqui levantado pelo recorrente reduz-se a uma simples questão de interpretação da lei de autorização legislativa, devendo assim fazer-se uso do disposto no artigo 9.º do Código Civil, tendo presente que 'o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei; interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão como também, de entre várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva' (Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, pp. 21 e 26);
9.ª A interpretação restritiva que o recorrente faz no ponto 10.º, c), das suas alegações não tem o mínimo de correspondência com o sentido, alcance e finalidade que claramente resultam do diploma legal (elementos sistemático, histórico e racional ou teleológico);
10.ª Com efeito, 'pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva ou mesmo a uma interpretação correctiva da lei, mas mesmo neste último caso será necessário que do texto 'falhado' se colha, pelo menos indirectamente, uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. E mesmo quando se socorre de elementos externos, o sentido só poderá valer se for possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto que se pretende interpretar' (J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, 189);
11.ª E, ainda que dúvidas houvesse, a verdade é que "se a norma comportar duas dimensões interpretativas possíveis, sendo uma incompatível e outra compatível com determinado texto constitucional, deve o intérprete e ou aplicador escolher a de sentido compatível, realizando, assim, uma operação de 'interpretação conforme à Constituição'" (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., 1992, pp. 235 e segs., e Vitalino Canas, Introdução às Decisões de Provimento do Tribunal Constitucional, 2.ª ed., 1994, pp. 81 e segs.) - cf. também Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 398/89, de 18 de Maio (in Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1989, a p. 9199; Boletim do Ministério da Justiça, 387.º, 208), 63/91, de 19 de Março (in Diário da República, 2.ª série, de 3 de Julho de 1991, a p. 6973), 351/91, de 4 de Julho (in Diário da República, 2.ª série, de 3 de Dezembro de 1991, a p. 12 341);
12.ª Contrariamente ao que pretende o recorrente, as limitações decorrentes do estado de falência não dizem respeito ao estado e capacidade das pessoas [artigo 168.º, n.º 1, alínea a), da CRP]. Na verdade, o estado e capacidade das pessoas está mais ligada às matérias da capacidade civil interdições, inabilitações e a maior parte do direito de família - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao respectivo preceito;
13.ª A autorização visou antes a alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º, ou seja, referiu-se aos direitos, liberdades e garantias, o que, in casu, tem mais a ver com as indisponibilidades decorrentes do estado de falência (não verdadeiras incapacidades);
14.ª Pelo que o artigo 27.º do CPEREF não sofre de qualquer inconstitucionalidade orgânica, já que se mostra editado ao abrigo de lei habilitante emanada da Assembleia da República, em cuja órbita de competência exclusiva cabia legislar, mas que autorizou o Governo a fazê-lo, e que este fez emitindo o Decreto-Lei 132/93, nos termos dos artigos 164.º, alínea e), 168 .º, n.os 1, alíneas b), c), i) e s), e 2, e 169 .º, n.º 3, da CRP;
15.ª Por todo o exposto, o douto acórdão recorrido fez uma correcta interpretação e aplicação do direito, não violou qualquer preceito legal e é inteiramente justo, bem fundado e acertado, devendo assim ser negado provimento ao presente recurso."
4 - Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que nunca do julgamento de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas pode resultar uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, como parece pretender o recorrente na conclusão xii); não se vai, pois, tomar em consideração tal pretensão.
Constitui, então, o objecto do presente recurso a norma, contida no artigo 27.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, cujo n.º 1 tem a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 315/98, de 20 de Outubro, quando interpretado "com o sentido e alcance de ser admissível a decretação de falência de pessoas singulares não comerciantes", por, conforme sustenta o recorrente, "violação do regime contido nos artigos 168.º, n.º 1, alínea a), e 164.º, alínea e); 169.º, n.º 3, e 168.º, n.º 2, da CRP".
Em síntese, o recorrente considera que o legislador governamental excedeu os limites da lei de autorização legislativa ao abrigo da qual aprovou o Código dos Processos Especiais da Recuperação da Empresa e de Falência, a Lei 16/92, que apenas o autorizou "a a) alterar o regime sancionatório penal; b) conceder benefícios fiscais, e c) prever a inibição do falido para o exercício do comércio; artigos 1.º a 4.º da lei indicada", não cobrindo "a inovação ou alteração dos regimes substantivos e adjectivos da, então, denominada insolvência civil, consagrada nos artigos 1313.º e seguintes do Código de Processo Civil". Ora, respeitando a falência a matéria de estado e capacidade das pessoas, está abrangida pela reserva de competência legislativa, como resulta do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, na versão em vigor à data da aprovação da versão inicial do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, e na alínea a) do n.º 1 do actual artigo 165.º da Constituição, já em vigor quando foi alterado o n.º 1 do artigo 27.º pelo Decreto-Lei 315/98.
5 - Para se poder concluir pela inconstitucionalidade sustentada pelo recorrente, haveria que demonstrar, em primeiro lugar, que a declaração de falência de uma pessoa singular não comerciante (repete-se que só nesta dimensão a norma constitui o objecto do presente recurso) afecta o seu estado ou a sua capacidade; em segundo lugar, que, admitindo que assim fosse, a nova lei, ao estender às pessoas singulares não comerciantes a aplicação do instituto da falência, introduziu, no domínio do estado ou da capacidade das pessoas agora abrangidas, alterações, relativamente ao regime de insolvência que anteriormente lhes seria aplicável. Só concluindo pela afirmativa quanto a estes dois pontos se torna necessário analisar a questão de saber se tais alterações estão ou não cobertas pela lei de autorização legislativa.
Fica, porém, desde já assente que não se vai curar autonomamente da necessidade ou desnecessidade de autorização legislativa para a aprovação do Decreto-Lei 315/98, uma vez que é manifesto, pelo simples confronto das duas redacções que teve o n.º 1 do artigo 27.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que nenhuma inovação foi nele introduzida pelo Decreto-Lei 315/98, relativamente à versão originária, no que respeita à questão de que nos ocupamos.
6 - Como se sabe, até à entrada em vigor do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril, a falência era um instituto privativo dos comerciantes; para os não comerciantes existia, com função semelhante, o da insolvência.
Os dois regimes constavam então dos artigos 1135.º e seguintes do Código de Processo Civil, justamente revogados pelo artigo 9.º do Decreto-Lei 132/93; e embora contivessem, naturalmente, regras diferentes, a verdade é que o (então) artigo 1315.º do Código de Processo Civil dispunha que "à insolvência são aplicáveis as disposições das subsecções anteriores (relativas à falência), na parte não relacionada com o exercício da profissão de comerciante e salvo o que vai prescrito nos artigos seguintes". Entre estes, encontrava-se, para o que agora releva, o artigo 1318.º, segundo o qual "A inibição do insolvente para administrar e dispor dos seus bens subsiste até liquidação total da massa e cumprimento da pena em que for condenado por a insolvência ser classificada de fraudulenta".
Não eram, todavia, diferentes os efeitos que, para o que interessa analisar, decorriam para o devedor quer da declaração de falência quer da declaração de insolvência.
Assim, a falência implicava as seguintes consequências:
A inibição do falido para administrar e dispor dos seus bens, "havidos ou que de futuro lhe advenham" (artigo 1189.º, n.º 1); podia, no entanto, "adquirir pelo seu trabalho meios de subsistência" (n.º 2);
O falido passava a ser representado pelo administrador da falência "para todos os efeitos, salvo quanto ao exercício dos seus direitos exclusivamente pessoais ou estranhos à falência" (artigo 1189.º, n.º 3);
Era proibido ao falido "exercer o comércio, directamente ou por interposta pessoa, bem como desempenhar as funções de gerente, director ou administrador de qualquer sociedade civil ou comercial" (artigo 1191.º);
O falido não podia, no plano patrimonial, exercer a tutela (artigo 1933.º, n.º 2, do Código Civil), as funções de vogal do conselho de família (artigo 1953.º, n.º 1) ou de protutor (artigo 1955.º, n.º 1), nem ser administrador de bens [artigo 1970.º, alínea a), também do Código Civil].
Todas estas limitações se aplicavam ao devedor não comerciante cuja insolvência fosse decretada, como resultava do já citado artigo 1315.º do Código de Processo Civil.
Não era unânime a forma como a doutrina qualificava a limitação decorrente, quer para o falido, quer para o insolvente, deste regime. Se havia quem sustentasse implicar uma verdadeira incapacidade de exercício, com repercussão no estado do devedor (Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, reimpressão, Lisboa, 1988, pp. 175 e segs., seguindo a lição de Paulo Cunha), havia também quem entendesse criar antes, para o devedor, uma situação de ilegitimidade, resultante de uma situação de indisponibilidade relativa dos bens atingidos (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Coimbra, 19, p. 116, ou Mota Pinto, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 3.ª ed., Coimbra, 1988, pp. 250-251).
Fosse qual fosse a melhor qualificação, a verdade é que a declaração de falência ou de insolvência implicava sérias limitações aos poderes de actuação patrimonial dos visados.
7 - Analisado o regime anterior, cumpre agora verificar se, com a entrada em vigor do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência ocorreram alterações relevantes nos efeitos sofridos na possibilidade de actuação patrimonial por pessoas singulares não comerciantes que sejam declaradas falidas (e que, à luz do regime anterior, seriam insolventes).
Ora, rapidamente se verifica que isso não sucedeu.
Segundo o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a declaração de falência provoca:
A inibição do falido para administrar e dispor dos seus bens, "presentes ou futuros" (n.º 1 do artigo 147.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência); continua, porém, a ser-lhe lícito adquirir pelo seu trabalho meios de subsistência, como decorre do n.º 3 do artigo 148.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, na redacção resultante do Decreto-Lei 315/98, que corresponde ao anterior n.º 2;
A representação do falido "para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência", agora pelo liquidatário judicial (artigo 147.º, n.º 2);
A proibição de "exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa [...]" (artigo 148.º, n.º 1, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 315/98; não há, todavia, alterações, quanto ao que nos interessa, relativamente ao texto originário do mesmo artigo 148.º, n.º 1;
A impossibilidade de, no plano patrimonial, exercer a tutela (artigo 1933.º, n.º 2, do Código Civil) ou as funções de vogal do conselho de família (artigo 1953.º, n.º 1, do mesmo Código) ou de protutor (artigo 1955.º, n.º 1, do mesmo Código), bem como de ser administrador de bens [artigo 1970.º, alínea a), também do Código Civil].
Verifica-se, pois, como escreve Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, I, 3.ª ed., Lisboa, 2001, p. 374), fazendo o confronto entre os dois regimes, que "em boa verdade, salvas as limitações decorrentes dos novos órgãos da falência [refere-se à substituição do administrador de falência pelo liquidatário judicial e à atribuição ao juiz do processo e à comissão de credores das funções do antigo juiz síndico, como esclarece na nota 1 da mesma página], as limitações impostas ao falido, na sua actuação jurídica, são sensivelmente as mesmas. Por outro lado, mantém-se, na essência, o regime de suprimento [...]".
É todavia verdade que existem diferenças para além destas, como aponta Carvalho Fernandes em "O novo regime da inibição do falido para o exercício do comércio", in Direito e Justiça, XIII, 1999, t. 2, pp. 7 e segs. Não curando agora da maior alteração, que se prende com a extensão das inibições a entidades colectivas, quando o Código de Processo Civil as previa apenas para pessoas singulares, o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, relativamente à inibição de ser titular de órgãos de entidades colectivas, ampliou o âmbito da inibição, quer por abranger outras entidades para além das sociedades (cf. o artigo 1191.º do Código de Processo Civil na redacção anterior ao Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência), quer por abranger mais cargos sociais (o Código de Processo Civil apenas impedia o exercício das funções de administrador, director ou gerente).
Continua, portanto, a fazer sentido saber se estas limitações afectam ou não a capacidade ou o estado do devedor, nos mesmos termos; e mantém-se a divergência acima referida quanto à qualificação mais adequada a dar à situação do falido, como dão nota desenvolvida Carvalho Fernandes e João Labareda, no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, 3.ª ed., Lisboa, 1999, pp. 392 e 393. Assim, Oliveira Ascensão, por exemplo, "Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido", in Revista da Ordem dos Advogados, pp. 641 e segs. e 652, pronuncia-se no sentido de não ocorrer uma incapacidade, mas uma incompatibilidade; Carvalho Fernandes aponta para a existência de um "regime híbrido, com predominância de elementos próprios da incapacidade" (Teoria Geral do Direito Civil, I, 3.ª ed., Lisboa, 2001, p. 377); Calvão da Silva entende tratar-se de uma ilegitimidade ("Dos efeitos da falência sobre garantias de dívidas de terceiro", Ab uno ad omines, pp. 775 e segs. e 779).
Mas se é verdade que estas dúvidas se mantêm, é igualmente verdade que, seja qual for a opção tomada - deixando agora de lado as alterações apontadas relativamente ao âmbito da inibição de ser titular de cargos sociais, nos termos descritos -, se poderia desde logo entender que nunca procederia a alegação de inconstitucionalidade orgânica formulada pelo recorrente, por não existir inovação relativamente ao regime anterior. E esta conclusão é válida seja qual for a opção tomada relativamente à divergência de qualificação referida. Com efeito, os efeitos da declaração de falência são, pelo menos, e do ponto de vista que nos interessa - delimitação da competência legislativa entre a Assembleia da República e o Governo - equivalentes aos de uma incapacidade de exercício.
O Tribunal Constitucional, aliás, já teve a oportunidade de afastar a alegação de inconstitucionalidade orgânica por, desde logo, repetirem o regime anterior, das normas contidas no n.º 1 do artigo 147.º e no artigo 149.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, no seu Acórdão 194/2001 (Diário da República, 2.ª série, de 17 de Julho de 2002). Note-se que o artigo 149.º não foi referido atrás por conter apenas uma obrigação de natureza processual, já que impõe ao falido a obrigação de comparecer em tribunal para prestar os esclarecimentos julgados necessários pelo juiz ou pelo liquidatário (cf. o Acórdão 479/98 deste Tribunal, in Diário da República, 2.ª série, de 24 de Novembro de 1999, para além do já citado Acórdão 194/2001).
9 - De todo o modo, não é exacto que a Lei 16/92 não tenha autorizado o Governo a unificar o regime de forma a fazer aplicar ao devedor pessoa singular não comerciante o instituto da falência.
Com efeito, no n.º 1 do artigo 1.º prevê-se expressamente a "cessação da distinção entre insolvência e falência contida no futuro diploma relativo aos processos especiais de recuperação de empresa e de falência". A circunstância de este preceito versar sobre matéria penal em nada releva quanto ao ponto que interessa, e que é o da unificação do regime da falência para comerciantes e não comerciantes, já que era nessa distinção - e não na circunstância de estarem em causa pessoas singulares ou não - que assentava a "distinção entre insolvência e falência" utilizada no regime anterior.
Aliás, quanto à questão de saber se a Lei 16/92 autorizaria o Governo a abranger pessoas singulares no novo regime, como já se escreveu no Acórdão 479/98, "se da declaração de falência porventura decorressem, para pessoas singulares, determinados efeitos com incidência na sua capacidade, nem por isso o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, quanto a esse particular, poderia ser visto como padecendo do vício de desconformidade orgânica com a Constituição, tendo em conta o que se dispõe no artigo 4.º da Lei 16/92, e 6 de Agosto, segundo o qual ficava o Governo autorizado "a determinar a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio [...]".
Finalmente, cumpre observar que este artigo 4.º da lei, ao autorizar o Governo a prever a inibição para o exercício do comércio, permite o alargamento aqui operado pelo já referido n.º 1 do artigo 148.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
Assim, ainda que estivesse em causa matéria compreendida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, e ainda que tivesse havido inovação relativamente ao regime anterior, ou na medida em que essa inovação tiver ocorrido, nunca o Governo teria excedido a autorização que lhe foi concedida pela Lei 16/92 para a aprovação do artigo 27.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 26 de Setembro de 2002. - Maria dos Prazeres Beleza - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida.