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Acórdão 27/2007, de 23 de Fevereiro

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.

Texto do documento

Acórdão 27/2007 Processo 784/05 Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Em 18 de Setembro de 2003, Maria Helena Pereira Botelho Janeira foi submetida a julgamento no Tribunal Criminal da Comarca do Porto e condenada por um crime de ofensas corporais simples, previsto e punido pelo artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de Euro 4, num total de Euro 480, uma vez que o crime de ameaças pelo qual também fora acusada foi amnistiado pela Lei 29/99, de 12 de Maio.

Foi também condenada no pagamento à ofendida de Euro 583,59, a título de danos patrimoniais, e de Euro 7500 a título de danos não patrimoniais.

A arguida recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, concluindo as alegações que apresentou aduzindo, entre o mais, o seguinte:

"[...] 11.ª A fundamentação da sentença produzida é insuficiente, porquanto esta deveria espelhar o teor e o sentido dos depoimentos que a arguida e as testemunhas de defesa fizeram em audiência, valorando-os, positiva ou negativamente, mas nunca deixando de os referir e de os examinar, ou de, pelo menos, afirmar que nenhuma relevância tiveram, sem o que a sentença recorrida não fez um exame crítico da prova produzida em audiência (artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), o que a torna nula nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

12.ª Aliás, o entendimento que se possa retirar do vertido nos artigos supra-citados no sentido de que o depoimento da arguida e das testemunhas não devem ser referidos na sentença nem dos mesmos ser feita uma análise crítica é violador do direito ao recurso e das garantias de defesa do arguido, violando tal entendimento o vertido no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa."

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 16 de Março de 2005, confirmou a decisão recorrida, dizendo, para o que agora interessa, o seguinte:

"[...] No nosso caso a decisão foi pródiga na fundamentação, aprofundando as razões que determinaram a formação da convicção do tribunal acerca do acervo fáctico que acolheu como assente. A motivação não se limita a enunciar e elencar os meios de prova relevantes e decisivos, antes procedeu a uma análise crítica dessas provas, de modo que possibilita, agora, um olhar retrospectivo, que reconstitua o iter percorrido na decisão recorrida. Assim, estando em causa, no essencial, conforme refere a recorrente no pórtico do recurso da decisão final, a acção delituosa e o nexo de causalidade, temos que a decisão recorrida analisou e reputou relevantes os depoimentos da assistente e das múltiplas testemunhas interrogadas, pessoas das suas relações de amizade e vizinhas, o teor das 11 cassetes áudio juntas aos autos e que foram escutadas em audiência de julgamento, bem como o teor dos documentos de fl. 40 a fl. 44, de fl.

87 a fl. 106, e a fls. 305 e 306, remetendo-se no mais para a pormenorizada motivação.

Da motivação resulta, e por aí fica a recorrente a saber, quais os factos provados, as razões pelas quais o Tribunal os deu como provados, permitindo à arguida todos os meios de defesa.

O exame crítico basta-se com o fornecimento das informações suficientes a permitir perceber o processo lógico que subjaz à formulação da convicção do julgador, deixando ver a razão do apreço que cada um desses meios de prova mereceu. No caso, o Exmo. juiz motivou a sua decisão ao longo de três páginas, retirando-se no essencial que determinante para o seu convencimento foi a audição das cassetes contendo as gravações das chamadas, o depoimento da ofendida, os depoimentos das testemunhas, sendo que estas disseram que a arguida foi a autora dos telefonemas, pois conhecem a sua voz e algumas até atenderam o telefone, que eram vizinhas e pessoas das relações da assistente e que a ofendida ficou nervosa e ansiosa, o seu estado de saúde piorou, em consequência da conduta da arguida.

Este exame crítico é suficiente para se concluir que a decisão recorrida assentou na prova produzida e não é fruto de qualquer discricionariedade, arbitrariedade ou de uma leitura caprichosa da prova por parte do julgador. Se esse fosse o caso, o seu defensor, por certo, teria deitado mão de outro modo de impugnação."

2 - A arguida apresentou então um requerimento dizendo que:

"[...] vem, nos termos dos artigos 69.º, 70.º, n.º 1, alínea b), n.os 2 e 3, 75.º, n.º 2, e 76.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional.

Com efeito, mostrando-se esgotados os recursos ordinários o recurso é admissível e tem a tramitação própria do recurso de apelação previsto pelo Código de Processo Civil, por força do artigo 69.º citado."

Admitido o recurso no Tribunal a quo, foi proferido o despacho de aperfeiçoamento previsto no n.º 6 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional. A recorrente respondeu nos seguintes termos:

"O recurso de constitucionalidade vem interposto da interpretação que se extraiu do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal no sentido de que não é necessária a menção na sentença do teor do depoimento da arguida e das testemunhas de defesa e, como tal, também não é necessário o exame crítico dessa mesma prova.

Tal entendimento, no ver da recorrente, é inconstitucional por violação do direito ao recurso e das garantias de defesa (cf. o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).

A invocação da inconstitucionalidade da interpretação de tais normas consta das alegações de recurso da sentença e das conclusões 12.ª e 13.ª"

No Tribunal Constitucional, foi determinada a produção de alegações, "ficando o objecto do recurso circunscrito à apreciação da constitucionalidade dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é necessária a menção na sentença do teor do depoimento da arguida e das testemunhas de defesa".

A recorrente produziu alegações, onde concluiu:

"1.ª O acórdão recorrido não faz alusão expressa ao artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, que se acusa de violado pela interpretação que se fez dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, mas ainda que se considere que o tribunal recorrido não conheceu explicitamente da questão da constitucionalidade da interpretação de tais normas - o que não se concede -, o Tribunal Constitucional não está impedido de dela conhecer, porquanto "[a] aplicação da norma tanto pode ser expressa com implícita (Acórdãos n.os 88/86, 47/90, 253/93)", sendo certo que "o não conhecimento por parte de um tribunal da inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e devia fazê-lo, equivale a aplicação implícita da mesma (Acórdão 318/90)" - cf.

Breviário de Direito Processual Constitucional, de Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, 2.ª ed., pp. 44 (nota 38) e 45.

2.ª A Constituição impõe que as sentenças sejam fundamentadas na forma prevista na lei, mas a liberdade que desse modo é dada ao legislador ordinário não é discricionária, uma vez que "um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz" - cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, tomo III, Editorial Verbo, 2000, p. 293.

3.ª A sentença deve conter uma concisa exposição dos motivos de facto e de direito em que se baseia, com a indicação das provas que fundamentam a decisão e a enunciação das razões pelas quais o tribunal não considera atendíveis as provas contrárias, e a doutrina é unânime no sentido de que não basta a mera indicação dos meios de prova - cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, tomo III, Editorial Verbo, 2000, p. 293.

4.ª A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias: permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.

5.ª Além disso, "[n]o actual sistema processual penal português, os tribunais de recurso não podem substituir-se ao tribunal de julgamento em 1.ª instância na apreciação directa da prova, mas podem e devem apreciar, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, se o tribunal de 1.ª instância fez correcta aplicação dos princípios jurídicos em matéria de prova; devem poder julgar em recurso se houve ou não erro notório na apreciação da prova ou contradição insanável na fundamentação.

Para tanto, necessário se torna que a sentença indique a motivação dos juízos em matéria de facto, para que o tribunal de recurso possa apreciar da legalidade da decisão", pois '[a] não se entender assim, teríamos que o CPP frustraria o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, porque, no rigor dos princípios, é 'tão importante [...] reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto como da solução que haja sido dada à questão de direito' - cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 243/93, in Diário da República, 2.ª série, de 2 de Junho de 1993, e ainda neste mesmo sentido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito do processo 3668/04, da 4.ª Secção, o Acórdão do STJ, de 17 de Março de 2004, proferido no âmbito do processo 4026/03, da 3.ª Secção, publicado in Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª ed., 2005, p. 744, e ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Julho de 2003, proferido no âmbito do processo 2881/03, da 5.ª Secção, publicado in SASTJ, n.º 73, 154, todos supratranscritos.

6.ª "A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção" - cf. o Acórdão do STJ de 30 de Janeiro de 2002, proferido no âmbito do processo 3063/01, 3.ª Secção, in SASTJ, n.º 57, 69, e Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 15.ª ed., 2005, p. 743.

7.ª Não pode colher a tese do acórdão recorrido de que é praticamente insindicável por via do recurso, tendo em conta a falta de imediação, a matéria de facto assente, dado que o juiz do julgamento recolhe um sem número de impressões que não ficam registadas em acta, mas apenas na sua mente, uma vez que a fase de recurso é dominada pelo princípio da escrita, e é difícil, para não dizer impossível, avaliar da credibilidade de um depoimento em contraponto com outro diverso; sendo assim a matéria de facto torna-se, assim, verdadeiramente intangível, se o depoimento das testemunhas de defesa e da arguida não constarem da fundamentação da sentença.

8.ª A convicção do tribunal é formada dialecticamente, querendo com isto dizer-se que se "busca a verdade por meio de oposição e reconciliação de contradições (lógicas ou históricas)" - cf. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, p. 808.

9.ª Com efeito, já Hegel, ao afirmar que a dialéctica era o motor da história, defendia que a verdade surgiria do confronto da "tese" com a "antítese" que iria resultar numa "síntese", pelo que se na fundamentação de uma sentença apenas vemos espelhada a "tese", mas já não a "antítese", não se conseguirá discernir qual o raciocínio lógico que serviu de base à conclusão (ou à síntese) a que se chegou.

10.ª Nem se diga que o recorrente podia ter impugnado a decisão sobre a matéria de facto nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Penal, uma vez que ocorreu a gravação da prova e que o defensor do recorrente deveria ter lançado mão desse modo de impugnação se entendesse que a prova produzida seria fruto da discricionariedade, arbitrariedade ou de uma leitura caprichosa da prova por parte do julgador, desde logo porque é jurisprudência unânime dos tribunais da relação que o direito ao segundo grau de recurso em matéria de facto não corresponde a um segundo julgamento.

11.ª A faculdade que é atribuída às partes no processo penal de sindicar a matéria de facto conforme o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal em nada afecta o dever de fundamentar a sentença conforme o disposto nos artigos 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e 205.º, n.º 1, da Constituição.

12.ª No âmbito do Acórdão 680/98 julgou-se inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal por violação do dever de fundamentação das decisões dos Tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205.º da Constituição, bem como quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º também da Constituição, sendo certo que o caso dos autos em tudo se enquadra na decisão supramencionada deste Tribunal.

13.ª É que não se mencionando na sentença sucintamente o teor do depoimento do arguido e das testemunhas de defesa e, além disso, se não se fizer o seu exame crítico, torna-se, do mesmo passo, impossível sindicar "o processo de formação da convicção do Tribunal" e, por consequência, é comprimido o direito ao recurso e das garantias de defesa.

14.ª Acresce que, como se expende nesse mesmo acórdão, "a fundamentação das sentenças penais - especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas - deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador [...]", pelo que através da fundamentação da sentença deverá poder-se aquilatar do porquê que se tiveram por credíveis determinados meios de prova, mas também se deverá poder aquilatar do que levou o Tribunal a descredibilizar ou a não atribuir relevância a outros.

15.ª Assim, deve julgar-se inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é necessária a menção na sentença do teor do depoimento do arguido e das testemunhas de defesa e o seu exame crítico, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais, do direito ao recurso e das garantias de defesa, insertos nos artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição."

O Ministério Público contra-alegou concluindo do seguinte modo:

"Na ausência de um dos pressupostos para o conhecimento do mérito do recurso, consistente em ter ocorrido uma interpretação e aplicação normativa alegadamente desconforme à Constituição, tal como o recorrente as recorta, não deverá o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre o mesmo."

Maria Teresa de Magalhães Ramalhão, assistente nos presentes autos, apresentou também contra-alegações, nas quais sustentou, a final, que não deve "ser declarada inconstitucional a interpretação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, no sentido de que, no caso dos autos, não é necessária a menção do teor do depoimento da arguida e das testemunhas de defesa, por tal interpretação não violar o dever de fundamentar as decisões dos tribunais nem colocar em causa os direitos ao recurso e às garantias de defesa."

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos. - 3 - O Ministério Público suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso, por a interpretação impugnada pela recorrente não ter sido aplicada pela decisão recorrida.

Verifica-se, porém, que a decisão recorrida, apesar de ter analisado em pormenor a forma como na decisão de 1.ª instância se motivara a decisão em matéria de facto, efectivamente não mencionou especificamente o teor ou conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa (mas apenas que estes existiram e que foram considerados), o mesmo se verificando na decisão da 1.ª instância. Esta conclusão resulta da leitura da respectiva fundamentação (designadamente de fls. 376 a 379) e da própria transcrição do acórdão de que se recorre, no ponto em que este se deteve sobre essa particular questão, em que se lê:

"[...] No caso o Exmo. Juiz motivou a sua decisão ao longo de três páginas, retirando-se no essencial que determinante para o seu convencimento foi a audição das cassetes contendo as gravações das chamadas, o depoimento da ofendida, os depoimentos das testemunhas, sendo que estas disseram que a arguida foi a autora dos telefonemas, pois conhecem a sua voz e algumas até atenderam o telefone, que eram vizinhas e pessoas das relações da assistente, e que a ofendida ficou nervosa e ansiosa, o seu estado de saúde piorou, em consequência da conduta da arguida."

A dimensão normativa impugnada foi, pois, aplicada pela decisão recorrida.

Pelo que improcede, portanto, a questão prévia suscitada, passando a tomar-se conhecimento do presente recurso.

4 - Está em causa a conformidade constitucional da norma extraída dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não impor menção específica na sentença (não só da existência, mas) do teor ou conteúdo do depoimento da arguida e das testemunhas de defesa - e não a segunda parte do artigo 374.º, n.º 2, do mesmo Código, norma que versa sobre a valoração da prova produzida em julgamento ou a expressão suficiente do seu exame crítico na fundamentação da decisão.

Em particular, a dimensão normativa em causa é confrontada com o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, constante do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição.

Deste dever de fundamentação das decisões judiciais decorre que, nas decisões sobre matéria de facto, é obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A imposição constitucional referida só fica satisfeita com a explicitação das razões dessa decisão, feita pelo seu próprio autor, em termos de habilitar o seu destinatário a, ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou impugná-la de forma consciente e eficiente. O exame crítico das provas credibiliza a decisão, viabiliza o recurso e permite revelar "o raciocínio lógico do tribunal relativamente à própria decisão", como foi sublinhado já na Conferência Parlamentar sobre a Revisão do Código de Processo Penal, em 7 de Maio de 1998 (cf. as intervenções de Luís Nunes de Almeida, Germano Marques da Silva e Eduardo Maia Costa, entre outros, em Código de Processo Penal - Processo Legislativo, 2.º vol., t. 2, ed. da Assembleia da República, 1999, pp. 68, 85, 86, 90 e 95 e segs.).

Ocupando essa garantia de fundamentação das decisões judiciais um lugar central no sistema de valores nos quais se deve inspirar a administração da justiça no Estado democrático moderno (cf. Michele Taruffo, "Notte sulla garanzia costitutionale della motivazione", in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 55.º vol., 1979, pp. 29 e segs.). Ela deve ser susceptível, como se escreveu já em acórdão deste Tribunal, "de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida" (cf. o Acórdão 680/98, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 5 de Março de 1999).

A respeito da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, pode ler-se também no Acórdão 61/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):

"Foi a primeira revisão constitucional (1982) que, com a inserção do novo n.º 1 do então artigo 210.º da CRP, veio proclamar que "As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei", formulação que, sem alteração de redacção, transitou, com a segunda revisão constitucional (1989) para o n.º 2 do artigo 208.º A remissão para a lei, não apenas da modulação dos termos, mas também da definição dos casos em que a fundamentação das decisões dos tribunais era devida (muito embora sempre se entendesse que "a discricionariedade legislativa nesta matéria não [era total], visto o dever de fundamentação [ser] uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (cf. o artigo 2.º), ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso"), representando "a falta de consagração constitucional de um dever geral de fundamentação das decisões judiciais", surgia como "pouco congruente com o princípio do Estado de direito", para além de não se compreender que "a garantia de fundamentação seja constitucionalmente menos exigente quanto às decisões judiciais do que quanto aos actos administrativos (artigo 268.º, n.º 3)"

(J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 798-799) - preceito este último que impunha a "fundamentação expressa" dos "actos administrativos [...] quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos".

Foi a revisão constitucional de 1997 que deu à norma em causa a sua localização (artigo 205.º, n.º 1) e formulação ("As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei") actuais.

Estabeleceu-se, assim, com dignidade constitucional, a regra geral do dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, com a única excepção das de mero expediente, remetendo-se para a lei ordinária a definição, já não dos casos em que a fundamentação é devida, mas tão-só da forma de que se pode revestir.

O alcance desta alteração foi salientado por este Tribunal, no Acórdão 680/98, nos seguintes termos:

"7 - Dispõe a Constituição, no n.º 1 do artigo 205.º, que 'as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei'. Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o n.º 1 do artigo 208.º, que determinava que 'as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei'. A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas 'nos termos previstos na lei' para o serem 'na forma prevista na lei'. A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação."

Também o Acórdão 147/2000 salientou que a "actual redacção do artigo 205.º, n.º 1, imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde a Constituição remetia para a lei os 'casos' em que a fundamentação era exigível, passou a concretizar-se que ela se impõe em todas as decisões 'que não sejam de mero expediente', mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à 'forma' que ela deve revestir", acrescentando:

"Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controlo mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.

De todo o modo, a persistência daquela remessa para a lei faz com que o mandado constitucional de fundamentação continue a ser um mandado aberto à actuação constitutiva do legislador, a quem incumbirá definir a 'forma' em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado (cf. o Acórdão 59/97, in Diário da República, 2.ª série, n.º 65, de 18 de Março de 1997) - qualquer que seja essa forma, ela terá sempre que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.

[...] Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judiciais naquele domínio.""

A exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais tem uma função não apenas endoprocessual, mas também dirigida ao exterior do processo: ela visa explicitar a ponderação que integrou o juízo decisório e permitir às partes - no caso, ao arguido - o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a possibilidade de optar pela reacção (impugnatória ou não) que entendam mais adequada à defesa dos seus direitos (e por esta via, a obrigação de fundamentação possibilita também, mediatamente o exercício do direito ao recurso que possa caber no caso). Mas a exigência de fundamentação visa também possibilitar o próprio conhecimento pela comunidade das razões que levaram a uma determinada decisão, e, pela via da exigência de lógica ou racionalidade da fundamentação (contida na exigência de fundamentação), contribui também para a própria legitimação da actividade decisória dos Tribunais.

5 - O tribunal do julgamento tem, pois, que explicitar as razões que o levaram a convencer-se de que o arguido praticou os factos que deu como provados.

Importa, porém, notar que, como este Tribunal também já afirmou, "a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética" (Acórdão 258/2001, com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Nem, por outro lado, a fundamentação tem de obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do tribunal.

Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Constituição não impõe, na verdade, um modelo único de fundamentação, com descrição ou, ainda mais, transcrição, de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do conteúdo de cada um deles. Estes depoimentos, mesmo quando são depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa, podem, com efeito, não ter sido decisivos para a formação da convicção do tribunal, podendo então bastar que o tribunal indique aqueles que o foram. Isto, sendo certo que, por um lado, o que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que este se baseou, e que, por outro lado, não compete ao Tribunal Constitucional controlar a forma como concretamente o tribunal formou a sua convicção. Como se referiu, não está, aliás, em causa no presente recurso o controlo do exame crítico das provas feito na decisão em causa, nem uma admissão da mera elencagem "tabelar" das provas produzidas.

O que resulta da transcrição acima feita do teor da decisão recorrida é, antes, no que ora interessa, que o tribunal do julgamento se socorreu, para formar a sua convicção, fundamentalmente da audição das cassettes contendo as gravações das chamadas, do depoimento da ofendida e dos depoimentos das testemunhas, remetendo-se para a decisão da 1.ª instância: "o Exmo. juiz motivou a sua decisão ao longo de três páginas, retirando-se no essencial que determinante para o seu convencimento foi a audição das cassettes contendo as gravações das chamadas, o depoimento da ofendida, os depoimentos das testemunhas", dizendo-se também aquilo que estas depuseram. Pelo que se entendeu que na sentença foram efectivamente mencionadas as provas em que o tribunal se baseou, com indicação da respectiva intervenção e teor do depoimento, apenas não se fazendo menção específica do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa. Tal entendimento não pode, porém, só por si, considerar-se violador da exigência de fundamentação das decisões judiciais (ou, mediatamente, das garantias de defesa do arguido, incluindo o seu direito ao recurso).

Conclui-se, deste modo, que a dimensão normativa dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal impugnada nos presentes autos não viola os artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição, pelo que há que negar provimento ao presente recurso.

III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa;

b) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;

c) Consequentemente, condenar a recorrente em custas, sendo a taxa de justiça fixada em 20 UC.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2007. - Paulo Mota Pinto - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2007/02/23/plain-207008.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/207008.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1999-05-12 - Lei 29/99 - Assembleia da República

    Decreta o perdão genérico e amnistia de pequenas infracções.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2017-11-21 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 8/2017 - Supremo Tribunal de Justiça

    «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código.»

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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