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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 8/2017, de 21 de Novembro

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Sumário

«As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código.»

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2017

Proc. n.º 895/14.0PGLSB.L1-A.S1

FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

1. RELATÓRIO

1. O arguido André Lopes da Silva interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 5 de abril de 2016, transitado em julgado, que negara provimento ao recurso que interpusera do acórdão do Tribunal Coletivo da Instância Central - 1.ª Secção Criminal da Comarca de Lisboa que o condenara como autor material de crime de abuso sexual de criança p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e como autor material de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.os 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, nas penas de 5 anos de prisão e de 8 anos e 6 meses de prisão, tendo sido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 10 anos de prisão.

Alegou então que o mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado, «encontra-se em oposição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07/02/2011, proferido no âmbito do Processo 224/07.0GAPTL.G, já transitado em julgado, disponível em http://www.dgsi.pt, sobre a mesma questão de direito e ao abrigo da mesma legislação», pois que:

«no acórdão recorrido estava em causa que não foram lidas em julgamento, nem se encontram transcritas as declarações para memória futura da ofendida Bruna, tendo-se decidido que "... garantindo essencialmente o contraditório, naturalmente que as declarações para memória futura podem ser levadas em linha de conta em julgamento, independentemente da sua leitura..." e que "... Não corresponde, assim, à realidade que o Tribunal a quo tenha, de alguma forma, baseado a sua decisão em prova, por violação dos princípios da oralidade e da imediação, consagrados no art. 355º do C.P.Penal."

(...) Porém, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07/02/2011, proferido no âmbito do Processo 224/07.0GAPTL.G, já transitado em julgado, decidiu que: "... os depoimentos para memória futura não podem ser excluídos em audiência de julgamento do contraditório, do exame critico dos sujeitos processuais, não bastando que estes tenham conhecimento das declarações prestadas antecipadamente para memória futura.", e como tal "...Para poderem ser tomadas em consideração na formação da convicção do Tribunal, as declarações para memória futura devem ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento...", decidindo assim que "... Perante o incumprimento do art. 356º, n.º 2, al. a) do C.P.Penal ocorre violação do disposto no art. 355º do C.P.Penal, ou seja, valorou-se um meio de prova que a lei não permite."».

2. Por acórdão de 11 de janeiro de 2017, o Supremo Tribunal de Justiça julgou verificada a oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão apresentado como fundamento, proferido pelo Tribunal da relação de Guimarães, em 7 de fevereiro de 2011, no âmbito do processo 224/07.0GAPTL.G, e ordenou o prosseguimento do recurso, nos termos do artigo 441.º do Código de Processo Penal, doravante CPP.

3. Notificados os sujeitos processuais, nos termos e para os efeitos do artigo 442.º, n.º 1, do CPP, foram apresentadas alegações, quer pelo arguido, quer pelo Ministério Público.

3.1. O arguido rematou as suas alegações com as conclusões que se transcrevem:

«CONCLUSÕES

1 - O acórdão recorrido viola o disposto nos arts. 355.º, 356.º, n.º 2, al. a) e 125.º do CPP e o art. 32.º, n.º 5 da CRP, e ainda o artigo 327.º, n.º 2 também do CPP, numa interpretação extensiva.

2 - Atento [o disposto] nos artigos 355.º, 356.º, 2, al. [a)], em que se manifesta o princípio da imediação e do contraditório, as declarações para memória futura [têm] obrigatoriamente de ser ouvidas e examinadas em audiência de discussão e julgamento para que possam ser valoradas.

3 - O facto de as declarações para memória futura serem prestadas perante o juiz de instrução, que não é o mesmo do julgamento, indicia de forma clara a violação do princípio da imediação.

4 - O ficheiro áudio onde constam as declarações para memória futura da lesada Bruna não são um documento em si, mas o documento é o suporte das declarações.

5 - O tribunal a quo fundou a sua decisão em matéria de facto dada como provada essencialmente com base nas declarações para memória futura da ofendida, valorando deste modo prova que não foi produzida em audiência.

6 - Tendo-se valorado um meio de prova que a lei não permite, o que se configura como uma nulidade, nos termos do artigo 122.º, 1 do CPP, pelo que tornam inválido o ato em que ocorreram, e os atos subsequentes que o considerem.

7 - Assim sendo o acórdão condenatório é nulo, assim como todo o julgamento efetuado.

Nestes termos (...) deverá ser uniformizada a jurisprudência discordante atrás identificada, no sentido de estabelecer que as declarações para memória futura só poderão valer em julgamento, nomeadamente para efeitos da formação da convicção do Tribunal, se tiverem sido lidas, vistas ou escutadas em audiência de discussão e julgamento, e julgando nulo e de nenhum efeito o acórdão recorrido e o correspondente julgamento.»

3.2. O Ministério Público formulou as seguintes conclusões, mantendo-se os trechos destacados e em itálico no original:

«CONCLUSÕES

1 - A tomada de declarações para memória futura é admitida em situações em que tomar declarações à pessoa se torna, previsivelmente, muito difícil ou impossível ou em que, em função da natureza dos crimes, é necessária uma especial proteção à vítima atendendo à sua particular vulnerabilidade

2 - O recurso a esta produção antecipada de prova visa garantir a aquisição e validação da prova, sob pena da sua irremediável perda.

3 - O instituto tem subjacente o interesse público na descoberta da verdade material.

4 - As declarações para memória futura são uma exceção ao princípio da imediação sendo através deste que o juiz usufrui de todas as vantagens ligadas à relação de proximidade comunicante entre os intervenientes processuais.

5 - O artº 355º nº 1 do CPP estabelece a regra de que, para efeito de convicção do tribunal, são proibidas provas que não sejam produzidas ou examinadas em audiência.

6 - No artº 355º nº 2 estabelecem-se exceções à regra do nº 1 donde decorre, em conjugação com o artº 356º, que as provas contidas em atos processuais cuja leitura seja permitida - como sucede com as declarações para memória futura - valem em julgamento, para o efeito de formação da convicção do tribunal, mesmo que não tenham sido produzidas em audiência.

7 - A leitura de declarações tomadas para memória futura é permitida mas não é obrigatória (artº 356º nº 2 alª a) do CPP).

8 - Não decorrendo, implícita ou expressamente, da lei a obrigatoriedade da leitura de tais declarações mas uma mera faculdade, seria uma contradição manifesta com o disposto no artº 355º nº 2 fazer depender a validade dessa prova da sua leitura em audiência.

9 - O direito de defesa do arguido, em particular o contraditório, em nada fica prejudicado pelo hiato temporal que se verifica entre o momento em que são colhidas as declarações para memória futura e a audiência.

10 - Na audiência de julgamento, mesmo que as declarações para memória futura não sejam lidas, o arguido, tendo conhecimento das mesmas, pode contrariá-las, infirmar o que foi dito, descredibilizar, reforçar ou confirmar tais declarações podendo também requerer a inquirição de outras testemunhas ou de outros meios de prova.

11 - O princípio do contraditório prende-se unicamente com a necessidade de evitar que concorram para a formação do tribunal provas que não tenham sido apresentadas e juntas ao processo pelos intervenientes e não que tenham de ser obrigatoriamente reproduzidas em audiência ou formalmente apresentadas.

12 - O ato de tomada de declarações para memória futura é uma verdadeira 'antecipação parcial da audiência de julgamento; presidida pelo juiz; com conhecimento do dia, hora e local da prestação de depoimento ao Ministério Público, arguido, defensor e representantes do assistente e partes civis; com a comparência obrigatória do Ministério público e do defensor, ainda que não haja arguido constituído; e com obediência ao princípio do contraditório, onde aqueles podem aqueles fazer diretamente perguntas.

13 - Não afeta as garantias de defesa do arguido o facto de serem tomadas em conta, para efeitos de convicção do tribunal, depoimentos prestadas para memória futura sem que os autos que os integram sejam lidos e examinados em audiência.

14 - A mera leitura, em audiência, nada acrescenta e nem nada subtrai ao normal desenrolar do julgamento.

Nestes termos, deve ser fixada jurisprudência no seguinte sentido:

"As declarações para memória futura, tomadas nos termos do artigo 271º do CPP, para que possam ser tomados em conta e valorados como meio de prova, não têm de ser lidas em audiência de julgamento, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º e 356º, nº 2, alínea a) do CPP".»

4. Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do Pleno das Secções Criminais, cumprindo decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Oposição de julgados

1.1. Como se referiu, em conferência da 3.ª Secção, foi deliberado que estavam reunidos os pressupostos formais e substanciais para admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Quanto aos pressupostos de natureza formal, foi reconhecida a legitimidade do recorrente (artigo 437.º, n.º 5, do CPP), que o recurso foi interposto, em 24 de maio 2016, dentro do prazo de 30 dias, estabelecido no artigo 438.º, n.º 1, do CPP, contado da data do trânsito do acórdão recorrido verificada em 11 de maio de 2016, e que o acórdão indicado como fundamento transitou em julgado.

Quanto aos pressupostos de natureza substancial, indagou-se da oposição de acórdãos, identidade da legislação à luz da qual as respetivas decisões antagónicas foram proferidas e uma conjugação factual idêntica em ambos os acórdãos.

Como decorre do artigo 692.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 4.º do CPP, o Pleno não está vinculado a tal decisão, pelo que importa reapreciar a verificação dos pressupostos do recurso.

1.2. Sendo indiscutível a verificação dos pressupostos formais, há que reponderar a questão da oposição de julgados, tarefa a empreender de seguida, para o que se convocam as considerações tecidas, a propósito, no acórdão preliminar da Secção.

No acórdão recorrido, datado de 05-04-2016, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu-se «que as declarações prestadas para memória futura podem ser levadas em linha de conta em julgamento, independentemente da sua leitura, que nenhum efeito prático passaria a ter (...), pelo que não se verifica, no caso, que o Tribunal a quo tenha, de alguma forma, baseado a sua decisão em prova proibida, por violação dos princípios da oralidade e da mediação consagrados no art. 355.º do C.P.Penal».

No acórdão fundamento, datado de 07-02-2011, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no Proc. n.º 224/07.0GAPTL.G1, decidiu-se, e citamos do respetivo sumário, que «Para poderem ser tomadas em consideração na formação da convicção do tribunal, as declarações para memória futura devem ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento, sendo irrelevante, para o efeito, que os mandatários declarem prescindir de tal leitura».

1.3. Por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11-01-2017, foi decidida a verificação de oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, determinando-se o prosseguimento do recurso, nos termos do disposto nos artigos 441.º, n.º 1, e 442.º do CPP.

Concluiu-se nesse acórdão:

«Os acórdãos recorrido e fundamento apresentam manifesta similitude quanto aos contextos problemáticos sobre que incidiram. Com efeito, eles examinam a relevância das declarações para memória futura prestadas nos termos do disposto no artigo 271.º do CPP e a sua sujeição ao contraditório na audiência de julgamento. A questão de facto, fundamental, tratada em ambos os acórdãos é semelhante pois se contempla a situação em que a vítima prestou declarações para memória futura, que não foram lidas em julgamento.

Sendo opostas as soluções jurídicas adotadas num e noutros dos referidos acórdãos.

O acórdão fundamento entendeu que «[a]tentas as disposições conjugadas dos arts. 355.º e 356.º, n.º 2, al. a), ambos do C.P.Penal, em que se manifesta o princípio do contraditório, as declarações para memória futura têm obrigatoriamente de ser lidas e examinadas em audiência de julgamento para que possam ser valoradas». Os depoimentos para memória futura, lê-se ainda no mesmo acórdão, «não podem ser excluídas em audiência de julgamento do contraditório, do exame crítico dos sujeitos processuais, não bastando que estes tenham conhecimento das declarações prestadas antecipadamente para memória futura».

Ora, na situação aí apreciada, as declarações para memória futura da ofendida não foram lidas na audiência de discussão e julgamento, onde também não foi inquirida, sendo que o tribunal recorrido formou a sua convicção essencialmente com base nas declarações da ofendida, valorando deste modo, afirma-se ali, prova que não foi produzida em audiência.

E, quanto às consequências a retirar da falta de leitura em audiência das declarações para memória futura, o acórdão fundamento entendeu que «ocorre violação do disposto no art. 355.º do C.P.Penal, ou seja, valorou-se um meio de prova que a lei não permite», sendo que, «o direito português associou as proibições de prova à figura e regime de nulidades, o que significa que, nos termos do art. 122.º do CPP, tornam inválido o ato em que se verificarem bem como os que dele dependerem». Deste modo, prossegue o mesmo acórdão, «a nulidade de valoração de prova não produzida em audiência invalida todos os atos que dela dependam - art. 122.º do C.P.Penal - pelo que o acórdão recorrido é nulo, assim como todo o julgamento, o que implica a sua repetição. A nulidade da valoração de provas proibidas é uma nulidade insanável (...) pelo que é irrelevante que os mandatários tenham prescindido da leitura das declarações para memória futura».

Consequentemente, foi deliberado anular o acórdão recorrido e o julgamento, devendo ser efetuado novo em que sejam lidas em audiência as declarações para memória futura.

Ao invés, no acórdão recorrido, sobre a «suposta violação do estatuído no art. 355.º do C.P.Penal, uma vez que as declarações da ofendida (...) não foram lidas em julgamento, nem se encontram transcritas nos autos», entendeu, expressamente, que porque garantido na sua plenitude o contraditório, no momento em que elas foram recolhidas, as declarações para memória futura «podem ser levadas em linha de conta em julgamento, independentemente da sua leitura, que nenhum efeito prático passaria a ter».

Como se afirma no mesmo acórdão, o depoimento para memória futura prestado pela menor B... foi especificamente enumerado enquanto elemento de convicção, consignando-se que «a convicção final se gerou com base num meio lícito, precisamente ancorando-se na prestação de depoimento "como se em julgamento" tivesse ocorrido (cfr. art. 271.º, n.os 1 a 6 e 8, do CPP», pelo que, conclui-se ali, «Não corresponde, assim, à realidade que o Tribunal a quo tenha, de alguma forma, baseado a sua decisão em prova proibida, por violação dos princípios da oralidade e da imediação, consagrados no art. 355.º do CPP.»

A situação de facto fundamental é em todo semelhante em ambos os acórdãos em confronto: a vítima prestou declarações para memória futura que não foram lidas em julgamento.

O tratamento da questão operou-se também num semelhante enquadramento jurídico, sob a previsão dos artigos 271.º, 355.º e 356.º, todos do CPP.

E a questão mereceu soluções opostas, pois no acórdão fundamento decidiu-se que a não leitura das declarações prestadas para memória futura inquinou, de nulidade insanável, o julgamento e a decisão condenatória proferida, enquanto que no acórdão recorrido, decidiu-se que a não leitura das declarações prestadas para memória futura não integram qualquer nulidade insanável que contamine a decisão recorrida e/ou o julgamento realizado.

A situação de facto é em todo semelhante em ambos os Acórdãos em confronto, o enquadramento jurídico é o mesmo e a mesma questão de direito recebeu solução oposta, não se mostrando relevante para a decisão ora a proferir sobre oposição de julgados que no Acórdão fundamento se registe que os advogados prescindiram da leitura em julgamento das declarações prestadas pela vítima para memória futura, ao abrigo do art. 271º do CPP e, no caso do Acórdão recorrido, apenas no recurso interposto pelo arguido seja suscitada a questão da não leitura em julgamento das declarações prestadas pela vítima para memória futura.

A questão de facto, fundamental, é semelhante em ambos os casos, a vítima prestou declarações para memória futura, que não foram lidas em julgamento.

O enquadramento jurídico é o mesmo, contemplado nos arts. 271º, 355º e 356º, todos do CPP.

A decisão sobre a mesma questão de direito foi expressa e antagónica. No Acórdão fundamento decidiu-se que a não leitura das declarações prestadas para memória futura inquinou, de nulidade insanável, o julgamento e a decisão condenatória proferida. No Acórdão recorrido, decidiu-se que a não leitura das declarações prestadas para memória futura não integram qualquer nulidade insanável que contamine a decisão recorrida e/ou o julgamento realizado.»

1.4. Resulta do exposto ser patente a verificação dos pressupostos deste recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Os acórdãos conflituantes (fundamento e recorrido) foram proferidos no âmbito da mesma legislação, aludem a uma situação de facto idêntica e concluem diferentemente relativamente à questão de direito, ocorrendo, portanto, oposição de julgados.

2. Enquadramento jurídico da questão

2.1. A questão agora aqui em apreço está em saber se, perante o disposto nos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do CPP, as declarações para memória futura, tomadas nos termos do artigo 271.º do CPP, têm de ser lidas em audiência de julgamento para que os depoimentos possam ser tomados em conta e valorados como meio de prova para a formação da convicção do tribunal.

Conforme resulta do confronto dos acórdãos que deram origem à oposição de julgados verificada, as disposições legais que geram divergências de interpretação são essencialmente as que se contêm no artigo 271.º do CPP, que trata das declarações para memória futura, e as que se reportam à valoração das mesmas para efeitos de formação da convicção do tribunal, constantes do artigo 355.º «proibição de valoração das provas», e do artigo 356.º «reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações».

Vejamos então estes preceitos

Dispõe o artigo 271.º do CPP, na sua atual redação, conferida pela Lei 48/2007, de 29 de agosto, que alterou o n.º 2 deste preceito:

«Artigo 271.º

Declarações para memória futura

1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.

3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.

5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º

7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.

8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»

Sob a epígrafe «Proibição de valoração de provas», estabelece o artigo 355.º do CPP, na atual versão resultante da Lei 48/2007, de 29 de agosto):

«Artigo 355.º

Proibição de valoração de provas

1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.

2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.»

Dispõe, por sua vez, o artigo 356.º do CPP (na atual versão resultante da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro):

«Artigo 356.º

Reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações

1 - Só é permitida a leitura em audiência de autos:

a) Relativos a atos processuais levados a cabo nos termos dos artigos 318.º, 319.º e 320.º; ou

b) De instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas.

2 - A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida tendo sido prestadas perante o juiz nos casos seguintes:

a) Se as declarações tiverem sido tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º;

b) Se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura;

c) Tratando-se de declarações obtidas mediante rogatórias ou precatórias legalmente permitidas.

3 - É também permitida a reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária:

a) Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou

b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias.

4 - É permitida a reprodução ou leitura de declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.

5 - Verificando-se o disposto na alínea b) do n.º 2, a leitura pode ter lugar mesmo que se trate de declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal.

6 - É proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.

7 - Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.

8 - A visualização ou a audição de gravações de atos processuais só é permitida quando o for a leitura do respetivo auto nos termos dos números anteriores.

9 - A permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da ata, sob pena de nulidade»

2.2. A Lei 48/2007, de 29 de agosto, veio a introduzir algumas alterações ao artigo 271.º do CPP, relativo às declarações para memória futura, de que cumpre dar nota.

- Foi alterado o n.º 1 do preceito, acrescentando a possibilidade de declarações para memória futura para casos de vítima de crime de tráfico de pessoas e não apenas para casos de vítima de crimes sexuais.

- Passou a ser obrigatória a tomada de declarações para memória futura do ofendido (menor) no decurso do inquérito, no caso de processos por crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, sendo esta tomada de declarações realizada em ambiente informal e reservado, devendo o menor ser assistido por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento (n.os 2 e 4).

- Passou a ser obrigatória a comparência, na inquirição, do Ministério Público e do defensor do arguido (n.º 3).

A inquirição é feita pelo Juiz, podendo os intervenientes processuais (Ministério Público, advogados do assistente e das partes civis e o defensor) formular perguntas adicionais. Estes intervenientes processuais passaram a poder formular perguntas diretamente, sem prévia solicitação/autorização, ou intermediação do juiz (n.º 5).

- Passou a prever-se expressamente que o tribunal pode ordenar o afastamento do arguido durante a prestação das declarações (n.º 6) e que a tomada de declarações para memória futura não prejudica a prestação do depoimento em audiência de julgamento, mediante determinados requisitos (sempre que for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar).

2.3. Foram significativas estas alterações aportadas à tomada de declarações para memória futura.

Por um lado, o legislador, ciente da necessidade de uma especial proteção da vítima em razão da sua particular vulnerabilidade, passou a determinar a obrigatoriedade de tomada de declarações para memória futura, no decurso do inquérito, para o caso de vítimas menores de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, tendo ampliado a possibilidade de tomada de declarações para memória futura relativamente a vítimas de crime de tráfico de pessoas, o mesmo sucedendo em relação a testemunhas de crimes previstos na Lei de Proteção de Testemunhas (Lei 93/99, de 14 de julho).

Conforme refere MAIA COSTA (et alii, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina), «[i]nicialmente pensado pelo legislador como meio preventivo de recolha de prova suscetível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, o âmbito de recolha das declarações para memória futura foi posteriormente ampliado, já não para prevenir o perigo de perda da prova, mas para proteção das vítimas, especialmente das menores», sublinhando que «[n]os crimes de tráfico de pessoas e contra a liberdade e autodeterminação sexual, a recolha antecipada de declarações funciona como meio de proteção da vítima, procedendo-se portanto a essa recolha mesmo que não seja previsível a impossibilidade de comparência das vítimas em audiência de julgamento. Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, a antecipação das declarações de vítima menor de 18 anos, nos termos deste artigo, é sempre obrigatória (n.º 2). (...) A norma é evidentemente ditada por uma especial preocupação do legislador na proteção da vítima menor» (pp. 917-918).

Por outro lado, acentua-se uma preocupação do legislador em jurisdicionalizar o ato de tomada de declarações para memória futura, na medida em que é comunicado aos vários intervenientes processuais para comparecerem, o que permite aí uma intervenção participada dos mesmos, num contraditório mais efetivo, impondo-se uma comparência obrigatória do Ministério Público e do defensor do arguido, com a possibilidade de formulação de perguntas adicionais diretamente.

Salienta ainda MAIA COSTA que «[a] recolha de declarações para memória futura constitui uma exceção ao princípio da imediação, pois as provas recolhidas sob a égide do juiz de instrução podem ser tomadas em conta no julgamento. Trata-se, no fundo, de uma antecipação parcial do julgamento. E daí o caráter contraditório que é conferido à diligência, em que é obrigatória a presença do MP e do defensor» (ob. cit., p. 917, referindo, a propósito, que «[o] formalismo da diligência é paralelo ao da audiência de julgamento» (idem, p. 919).

Também ficou previsto que é possível a prestação de depoimento em audiência de julgamento, daquela pessoa a quem já tenham sido tomadas declarações para memória futura.

Subjacente à admissibilidade deste instituto - declarações para memória futura - está o interesse público da descoberta da verdade material, a conservação da prova e o interesse da vítima.

O legislador nas alterações que introduziu, evidenciou um objetivo claro de concordância prática entre todos estes interesses e a salvaguarda dos direitos fundamentais do arguido, garantindo-se o exercício do contraditório e um debate oral - seja com a obrigatoriedade de comparência do defensor do arguido e do Ministério Público, seja com a possibilidade de formulação direta de perguntas ao declarante.

Como consta da exposição de motivos da proposta de lei 109/X, que esteve na base da Lei 48/2007 (DAR, II Série A, n.º 31, de 23 de dezembro de 2006):

«Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, passa a ser obrigatória a recolha de declarações para memória futura (hoje prevista como facultativa), durante o inquérito. Em todos os casos de declarações para memória futura, passa a garantir-se o contraditório na sua plenitude, uma vez que está em causa uma antecipação parcial da audiência de julgamento. Assim, admite-se que os sujeitos inquiram diretamente, nos termos gerais, as testemunhas (artigo 271.º)».

Decorre do trecho transcrito que a tomada de declarações para memória futura é configurada como uma antecipação parcial da audiência de julgamento, assumindo o legislador que se garante um contraditório na sua plenitude.

Ou seja, aceita o legislador que as declarações prestadas constituem um meio de prova com um contraditório pleno e que, se necessário, podem ser valoradas no julgamento, apresentando-se o ato de recolha daquelas declarações como uma antecipação parcial da audiência.

Neste sentido, o entendimento de VINÍCIO RIBEIRO, em anotação ao artigo 271.º do CPP, ao referir que, «em face da nova disciplina traçada no presente normativo [artigo 271.º], as declarações para memória futura são tramitadas em ambiente com as regras de um autêntico julgamento» (Código Processo Penal - Notas e Comentários, 2.ª Edição, Coimbra Editora, p. 724).

2.4. Posto isto, vejamos agora como se articulam as declarações para memória futura e as regras sobre valoração da prova subjacentes a um julgamento.

Sob a epígrafe «Garantias de processo criminal», estabelecem os n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição da República que:

«1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

[...]

5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.»

De acordo com estes preceitos, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, encontrando-se a audiência de julgamento subordinada ao princípio do contraditório.

Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em anotação ao citado artigo 32.º:

«Não é inteiramente líquido o âmbito normativo-constitucional do principio do contraditório. Relativamente aos destinatários, ele significa: (a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afetados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efetiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, direito do arguido de intervir no processo, e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; d) proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respetivos fundamentos.

Quanto à sua extensão processual, o princípio abrange todos os atos suscetíveis de afetar a sua posição, e em especial, a audiência de discussão e julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar, devendo estes ser selecionados sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa do arguido» (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, pp. 522-523).

2.5. Em consonância com a nossa lei fundamental, o legislador ordinário estabeleceu no artigo 355.º n.º 1, do CPP, acima transcrito, a regra da proibição de valoração relativamente às provas que não hajam sido produzidas ou examinadas em audiência.

Por sua vez, e no mesmo sentido, estabelece o artigo 327.º, n.º 2, do CPP que «Os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal».

O artigo 355.º do CPP é um afloramento, tanto dos princípios da imediação e oralidade, como dos princípios da publicidade e do contraditório, tendo estes dois últimos, como já se deu nota, consagração constitucional:

A audiência de julgamento está subordinada ao princípio do contraditório - artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República e é, por regra, pública - artigo 206.º do mesmo Diploma.

Num processo de estrutura acusatória, a audiência de julgamento, e em especial a produção da prova, assume o lugar central no processo penal. É em audiência de julgamento que o juiz, de forma privilegiada, tem contacto direto com os intervenientes processuais, apreendendo das provas que lhe são trazidas e discutidas, as certezas e as dúvidas dos factos transmitidos, numa dialética de resposta e contrarresposta.

A audiência de julgamento é, em regra, «o palco» onde se desenvolvem os factos e se apresentam os vários contornos possíveis do litígio. Por isso, salienta JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, que «[a] produção da prova que deva servir para fundar a convicção do julgador, tem de ser a realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova» ("O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento (arts. 356.º e 357.º do CPP)", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 7, Fasc. 3.º, Julho-Setembro de 1997, p. 405).

Também MOURAZ LOPES acentua «o momento crucial da audiência de julgamento como palco único da apreciação dos factos imputados onde se apresentam e debatem as provas adquiridas ao longo das fases preparatória, se contraditam e finalmente são valoradas de acordo com esse debate». A audiência, prossegue o autor, «é o "sítio" processual onde resulta a aplicação dos princípios do processo, por virtude do enfrentamento e colaboração necessários de todos os sujeitos intervenientes», referindo mais adiante que [a] prova idónea a orientar e fundamentar a deliberação forma-se em audiência de julgamento e, não obstante algumas exceções, exclusivamente neste momento seguindo os princípios da oralidade, da imediação, do contraditório e da publicidade. Porque a prova não designa o veículo - testemunhas, documentos, etc. - mas o êxito cognoscitivo, claramente a ser efetuado no momento e por quem legitimamente o deve fazer." ("A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português", Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra, 2005, Coimbra Editora, pp. 31-32).

Tendo em consideração estes princípios constitucionais e a estrutura acusatória do processo penal, prescreve o artigo 355.º, n.º 1, do CPP que só possam ser utilizadas para formar a convicção do tribunal as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento.

Porém, esta regra deve ser conjugada com as duas disposições contidas nos artigos 356.º e 357.º do CPP, onde se ressalvam as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição sejam permitidas.

Tais disposições contemplam exceções à regra supra referida, de que toda a prova deve ser produzida em audiência de julgamento.

Uma destas ressalvas diz respeito às declarações para memória futura, cuja leitura é permitida de acordo com o disposto no artigo 356.º, n.º 2, alínea a), do CPP. Com esta exceção, é permitida, a leitura das declarações para memória futura, em audiência de julgamento, não obstante as mesmas terem sido produzidas em sede inquérito ou instrução.

O n.º 2 do artigo 355.º (na redação conferida pela Lei 48/2007, que introduziu alteração cingida apenas ao alargamento do conceito de leitura, englobando a leitura, visualização e audição de provas contidas em atos processuais) é assim uma exceção à regra do n.º 1, considerando que valem, para efeito de formação da convicção do tribunal, provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência, mais concretamente, as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos do artigos 356.º e 357.º.

Conforme refere OLIVEIRA MENDES, «[n]o n.º 1 [do artigo 355.º do CPP] estabelece-se a regra geral de proibição de valoração relativamente a todas as provas que não hajam sido produzidas ou examinadas em audiência», pretendendo-se com tal limitação, «assegurar que o julgamento se realiza com rigorosa observância dos princípios da imediação e do contraditório, com todas as garantias de defesa.

No n.º 2 abre-se exceção àquela regra relativamente a certas e determinadas provas, concretamente às contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição sejam permitidas nos termos do art. 356.º e 357.º» (Código de Processo Penal Comentado, cit., p. 1071).

2.6. Configurando-se o meio de prova em apreço - declarações para memória futura (artigo 271.º do CPP) - uma das exceções à regra ínsita no n.º 1 do artigo 355.º do CPP, impõe-se ou não a obrigatoriedade de leitura/audição dessas declarações em audiência de julgamento?

A maioria da doutrina e alguma da jurisprudência (maioritariamente dos Tribunais da Relação) defendem que as declarações para memória futura, para que possam ser valoradas pelo tribunal, têm que ser efetivamente lidas (à leitura é equiparada a audição do registo magnetofónico e a visualização do registo audiovisual) em audiência de julgamento. Entendem, grosso modo, que a leitura das declarações para memória futura, em audiência, visa suprir a ausência da pessoa declarante, e é assim uma exigência inelutável dos princípios da imediação, da oralidade, do contraditório e da publicidade.

2.6.1. Na doutrina, sustentando este entendimento, podem apontar-se com relevância:

- ANTÓNIO MIGUEL VEIGA considera «inquestionável estar subjacente à tomada de depoimentos ou de declarações para memória futura uma cedência do princípio da imediação da audiência de julgamento [cfr. art. 356.º, n.º 2, al. a) do CPP] e, assim, a demonstração de que este mesmo princípio (da imediação) não tem uma projeção ou validade absolutas no processo penal. Mas daí não poderemos inferir que não deva cingir-se a cedência do princípio da imediação ao mínimo indispensável, sobretudo se puder obter-se, no todo ou em parte, a prova através da sua produção ou exame em audiência e desde que os valores essenciais visados com a produção antecipada de prova não sejam postos em causa.

A questão, prossegue o autor, «tem mais que ver, por um lado, com a efetiva "vivificação" do contraditório, em sede de audiência de julgamento, relativamente ao conteúdo dos depoimentos ou das declarações para memória futura. Com efeito, à luz do comando constitucional do art. 32.º, n.º 1, C.R.P. [«o processo criminal assegura todas as garantias de defesa (...)»], importará convocar um especial juízo crítico a propósito de eventuais "tentações" de utilização dos depoimentos (ou das declarações) para memória futura na audiência de julgamento (na qual, aliás, deverá ser efetuada a respetiva leitura), sem preocupação de concatenação e apreciação de tais elementos no contexto de tudo o que, dinamicamente, vai sendo produzido nessa mesma audiência de julgamento.

Está aqui em causa, ao cabo e ao resto, a tentativa de obstar a que o contraditório, no específico domínio dos depoimentos ou das declarações para memória futura, não seja para os sujeitos processuais - maxime, o arguido - um mero "direito platónico".

[...]

Não, basta que cogitemos a hipótese - que frequentemente ocorre - de, existindo embora um arguido no processo, serem os depoimentos ou as declarações prestadas em momento anterior ao da dedução da acusação criminal.

Neste último caso, pode bem acontecer que a verificação do contraditório aquando da realização da diligência prevista no art. 271.º, n.º 2, C.P.P. não garanta, por si só, uma eficaz defesa do arguido.

A mera consignação do conteúdo dos depoimentos ou das declarações prestadas antecipadamente carecerá, porventura, de uma confrontação posterior, em sede de audiência final, no contexto de uma definição (obviamente) entretanto feita para a dedução da acusação criminal»» ("Notas sobre o âmbito e a natureza dos depoimentos (ou declarações) para memória futura de menores vítimas de crimes sexuais (ou da razão de ser de uma aparente "insensibilidade judicial" em sede de audiência de julgamento)", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 19, n.º 1, Janeiro- março de 2009, Coimbra Editora, pp.101 a 121).

- ANTÓNIO GAMA expressa-se no sentido de que «a ressalva legislativa à proibição de valoração de provas que não tiverem sido reproduzidas ou examinadas em audiência, constante dos artºs. 356.º e 357.º ex vi art. 355.º, n.º 2 do CPP não permite ou possibilita que esses meios de prova - no caso os depoimentos para memória futura - sejam subtraídos em audiência de julgamento ao contraditório, ao exame crítico dos sujeitos processuais, nos casos em que não ocorrer (repetição de) prestação de depoimento em audiência. É para nós claro, que nessa situação, o contraditório tem que ser entendido e perspetivado tendo em conta que o depoente que fez o relato, não está presente, que apenas temos um depoimento em gravação magnefónica ou audiovisual, artºs. 363.º, 364.º ex vi art. 271.º, n.º 6. Neste contexto o contraditório exerce-se e satisfaz-se com o «jogo de ataque e resposta», possibilitando aos sujeitos processuais, à acusação e à defesa e também ao tribunal - ao abrigo do princípio da investigação, art. 341.º do CPP - quer através de outros depoimentos, ou mesmo outros meios de prova, influir, pôr em causa, contraditar, infirmar, descredibilizar, reforçar, confirmar, etc. - conforme o interesse da acusação ou da defesa - os diversos depoimentos recolhidos em inquérito para memória futura» ("Reforma do Código de Processo Penal: Prova testemunhal, declarações para memória futura e reconhecimento", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n.º 19, Julho-Setembro de 2009, p. 399).

- CRUZ BUCHO, no seu Estudo "Declarações Para Memória Futura, Elementos de Estudo", 2002, disponível em (www.trg.pt/ficheiros/estudos/declaracoes_para_memoria_futura.pdf), entende que «não obstante a produção antecipada de prova ter sido encarada como uma "antecipação parcial da audiência de julgamento", existem importantes desvios às regras que imperam em audiência. Entre esses desvios ou limitações conta-se a ausência de publicidade, a existência de um contraditório necessariamente incompleto ou mitigado, na medida em que só o Ministério Público conhece a totalidade dos atos de inquérito em segredo de justiça já realizados e em que a inquirição das testemunhas é sempre feita pelo juiz, com supressão da cross examination, e as severas restrições ao poder de investigação do juiz de instrução, no confronto com os do juiz de julgamento.

Todas estas limitações aliadas aos efeitos decorrentes da exceção ao princípio da imediação, isto é, às consequências de a prova ser produzida perante um juiz diferente daquele que a vai valorar, já levaram inclusivamente alguma doutrina a atribuir menor valor probatório à prova antecipada, por a considerar de qualidade inferior àquela que é produzida em audiência» (p. 178). «No direito português, prossegue este autor, como, de resto, nos demais regimes processuais estrangeiros que conhecemos, a prova antecipada tem o mesmo valor que a prova produzida ou realizada em audiência de julgamento», pelo que, «assim, uma vez lidas e submetidas a debate contraditório, as declarações para memória futura são livremente valoradas pelo juiz (artigo 127.º), podendo fundamentar uma condenação» (pp. 181-182).

- Para GERMANO MARQUES DA SILVA, «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (art. 355.º). O art. 362, n.º 1, al. d) dispõe por sua vez que a ata contém «a identificação das testemunhas, dos peritos, dos consultores técnicos e dos intérpretes e a indicação de todas as provas produzidas ou examinadas em audiência. Com esta nota queremos referir apenas que prova que não seja examinada em audiência, ou simplesmente lida, em conformidade com a exceção do n.º 2 do art. 355.º do CPP, não deve valer para formar a convicção do tribunal». Pode argumentar-se, acrescenta o autor, «com o disposto no n.º 2 do art. 355.º do CPP, ao dispensar do exame em audiência das "provas contidas em atos processuais cuja leitura em audiência seja permita", mas parece-nos que o argumento não procede, porque dispensada a produção ou exame da prova em audiência, aquele normativo não dispensa a leitura dos autos que contenham provas, dispensa é o seu exame. É nesse momento, da admissão da leitura, que o tribunal decidirá se a prova requerida é admissível ou proibida, manifestamente supérflua ou irrelevante (art. 340.º do CPP), pois a nossa lei não prevê outro momento para que o tribunal decida sobre quais as provas admissíveis».

Para o mesmo autor, «[n]o plano da prova, o contraditório representa a tradução, em termos objetivos, da imparcialidade jurisdicional», sendo que «a falta de exame ou leitura em audiência de todas as provas, incluindo por isso os documentos, viola o contraditório na perspetiva referida da garantia objetiva, condição de regularidade do processo e não apenas como direito das "partes", e viola também o princípio da publicidade, enquanto meio de fiscalização e controlo da função jurisdicional. Parece-me que a jurisprudência não tem tido em conta a alteração introduzida na al. d), do n.º 1 do art. 362.º do CPP e desconsiderado a relevância da publicidade da audiência, não obstante a sua restrição ter caráter excecional. (art. 87.º, n.º 2, do CPP)» ("Produção e valoração da prova em processo penal", Revista do CEJ, 1.º semestre 2006, n.º 4, pp. 44-45).

- JOAQUIM MALAFAIA, acentuando o princípio do contraditório em processo penal, «traduzido na «faculdade que cada sujeito processual tem de discutir questões de facto e de direito, de oferecer as suas provas e de controlar as provas oferecidas pelos outros que o possam afetar» e que [a] produção de prova para formar a convicção do julgador tem de ser realizada na audiência de discussão e julgamento segundo os princípios de um processo de estrutura acusatória: os princípios de imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova», referencia as exceções a esta regra, «nomeadamente, as estatuídas no artigo 355.º, n.º 2, do CPP que permite a leitura em audiência de provas que apesar de não serem aí produzidas podem ser lidas e valoradas livremente».

Quanto às declarações para memória futura realizadas no inquérito, conclui este autor: «para que não haja a violação da estrutura acusatória do processo penal, o que tornaria o artigo 271.º do CPP inconstitucional, uma vez que a entidade que investiga não é quem julga e a entidade que julga não investiga, o Ministério Público tem de definir o objeto do processo, para que o juiz possa fazer a inquirição das testemunhas e os demais sujeitos processuais saibam e se preparem para exercer o contraditório a essa inquirição. (...) Realizadas declarações para memória futura ou recolhida prova nos atos instrutórios, para que as declarações prestadas possam ser valoradas em audiência de discussão e julgamento, é necessário que sejam lidas e que a permissão da leitura e a sua justificação fique a constar da ata, sob pena de nulidade, conforme preceitua o artigo 356.º, n.º 8 ("O acusatório e o contraditório nas declarações prestadas nos atos de instrução e nas declarações para memória futura", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 14, n.º 4, Outubro-Dezembro de 2004, pp. 537-539.

- JOSÉ DAMIÃO DA CUNHA, examinando o regime das declarações para memória futura, sustenta que, com base na ocorrência do pressuposto do recurso a esta forma de produção antecipada de prova - a existência de um juízo de prognose (previsibilidade), quanto a uma impossibilidade (futura) de o declarante estar presente na audiência de julgamento ou, eventualmente, subsistir receio de o declarante não ter as faculdades necessárias para prestar declarações, no momento da audiência de julgamento - «é, então, pensável a leitura destas declarações. Mas, não significa isto que, tendo sido admitida a antecipação da prova, seja necessariamente admitida a leitura da declaração na audiência de julgamento. Tal resulta fundamentalmente do facto de a decisão de admissão de produção de prova assentar num juízo de prognose quanto à impossibilidade de produção (oral) de declarações em audiência de julgamento e ainda num juízo de prognose de tais declarações poderem configurar-se como relevantes para descoberta da verdade. Falhando, pois, a prognose e verificando-se a possibilidade de presença do declarante, aquela produção antecipada perderá sentido por desnecessidade.

Por outro lado, a admissão da leitura estará ainda sujeita às regras mais gerais de produção de prova em audiência de julgamento: assim, pode estar sujeita a regras de admissibilidade (art, 340.º, nºs 3 e 4 a) e c)), e a leitura deve corresponder à ordem de produção de prova prevista no art. 341.º» ("O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento (arts. 356.º e 357.º do CPP", cit., pp. 407-410).

- Segundo PAULO DÁ MESQUITA, «As declarações para memória futura não constituem um simples meio de conservação da prova testemunhal nos casos de "doença grave ou deslocação para o estrangeiro" da fonte de prova, mas representam um "direito que aos sujeitos processuais é conferido de garantir aquela prova". Desde o final dos anos 90 do século passado, as declarações para memória futura passaram também a poder constituir um instrumento de proteção das próprias fontes de prova. As declarações para memória futura são, ainda, uma via que, em termos de efeitos colaterais, minora os problemas epistemológicos da produção de prova derivados do afastamento temporal entre a perceção e o momento de prestação do testemunho. Integradas na política de separação funcional do julgamento em relação às anteriores fases processuais com dimensão prescritiva sobre a formação da prova testemunhal, as declarações para memória futura preservam a matriz do CPP sendo reguladas como medidas com determinadas garantias, ato singular e bem determinado de antecipação da prova. Atos funcionalizados à dispensa de repetição do depoimento na audiência de julgamento em que se assegura um procedimento com algumas garantias de contraditoriedade, determinante para a superveniente reprodução na audiência e para as declarações poderem valer para efeito de formação da convicção do tribunal. Desde a entrada em vigor do Código assiste-se a uma tendência legislativa de ampliação dos casos em que se pode recorrer à antecipação do contraditório em inquirições funcionalmente dirigidas à utilização futura no julgamento que acentua, no plano da produção e reprodução de prova, a autonomia entre as exigências de contraditório e o ideal de uma imediação perspetivada como «princípio de contacto direto do juiz com a prova». Salientando, em nota de rodapé, que «[a] importância das declarações para memória futura centra-se na derrogação da regra de proibição de utilização probatória das declarações prestadas nas fases anteriores o que não dispensa a obrigatoriedade de reprodução (art. 355.º, n.º 2, do CPP» (A prova do crime e o que se disse antes do julgamento - estudo sobre a prova no processo penal português à luz do sistema norte-americano, Coimbra Editora, pp. 596-615 e nota n.º 286).

- SANDRA OLIVEIRA E SILVA, após considerar o julgamento, a «sede própria da aquisição e valoração probatórias, onde se formam as provas que devem sustentar o convencimento do julgador», onde se criam «as condições para os sujeitos processuais codeterminarem efetivamente a decisão final do processo», entende que a [a] conciliação destas importantes exigências com finalidade de descoberta da verdade e realização do interesse punitivo do Estado está na base da previsão de um círculo restrito de hipóteses de leitura permitida dos autos, verdadeiras exceções à proibição de valoração do seu conteúdo», dando nota de que «a efetiva leitura dos protocolos escritos é requisito indispensável para que as declarações neles cristalizadas possam integrar a convicção do tribunal. Na verdade só os meios de prova legalmente adquiridos no processo podem ser valorados; ora a aquisição dos depoimentos consignados em auto dá-se apenas com a leitura» (A Proteção de Testemunhas no Processo Pena, Coimbra Editora, 2007, p. 246).

2.6.2. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, podemos apontar, com especial relevância, os seguintes acórdãos, de cujos sumários, disponíveis em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, extraímos os seguintes trechos:

A - Acórdão de 22-09-2005 (Proc. n.º 2239/05 -5.ª Secção):

«VI - As declarações para memória futura constituem um incidente processual admissível mesmo no caso de à data da diligência não haver ainda arguido constituído. Doutro modo, poder-se-ia frustrar a utilidade do ato processual, como aconteceria, por exemplo, no caso de a testemunha (que poderia ser até a única que assistiu à prática do crime) sofrer de doença com a previsibilidade dum período de vida curto e o suspeito não ser localizável.

VII - O dever de, na falta do interveniente, proceder à leitura em audiência das declarações para memória futura (arts. 355.º e 356.º, n.º 2, al. a), do CPP), permite assegurar o contraditório, cuja observância só é verdadeiramente alcançada quanto, perante o juiz do julgamento, seja levado a efeito o debate entre a acusação e a defesa, apresentando cada um dos sujeitos as suas razões, de facto e de direito, oferecendo as suas provas, controlando ou contraditando as provas do adversário pronunciando-se sobre umas e outras.»

B - Acórdão de 09-05-2007 (Proc. n.º 247/07 -3.ª Secção):

«A tomada de tais declarações [para memória futura], podendo servir de meio de prova, há de conformar-se ao princípio do contraditório - defendem de forma unânime a doutrina e a jurisprudência -, só assim podendo ser valoradas em julgamento, precedendo a sua leitura, ficando a sua permissão a constar da ata - art. 356.º, n.º 8, do CPP.

No caso concreto, ao ser requerida a prestação antecipada de prova, partiu-se do previsível pressuposto da impossibilidade de comparência da testemunha em julgamento; por isso e para ser lido em julgamento e aí contraditado, se reduziu a auto, nos termos do art. 271.º, n.º 5, do CPP, de modo que o contraditório não deixou de poder ser atuado.

(...)

As garantias de defesa do arguido e o princípio estruturante do processo penal do contraditório são plenamente alcançadas com a circunstância de esta prova antecipada ser produzida perante um juiz, que dirige essa produção, com a faculdade de o arguido ser assistido por defensor e com o facto de a prova poder ser aproveitada, examinada e impugnada por quaisquer outras provas, e, consequentemente, descredibilizada, em audiência de julgamento. Por tal razão, nem necessário se torna que o defensor do arguido compareça, sendo facultativo tal ato processual.

E apesar de tal prova ser produzida, ou poder ser, à margem da presença do arguido e seu defensor, ela pode ser valorada em julgamento, dadas as especiais cautelas de que a lei faz rodear a sua produção, constando de auto, presidida por um juiz, podendo os interessados intervir na diligência.»

C - Acórdão de 17-05-2007 (Proc. n.º 1608/07 - 5.ª Secção):

Embora não emita expressa pronúncia sobre a questão, implicitamente dá como adquirida a necessidade da leitura das declarações para memória futura na audiência de julgamento, como parece resultar do seguinte segmento textual do sumário:

«Tal incidente [depoimento para memória futura] tem de respeitar, também, o princípio do contraditório, que é assegurado pela comunicação, ao MP, ao arguido, ao defensor, aos advogados do assistente e das partes civis, do dia e hora da inquirição, para que possam estar presentes, se o desejarem, bem como concedendo-lhes a possibilidade de sugerir, no ato, ao juiz, a formulação de perguntas. Todavia, a observância do contraditório vai ser verdadeiramente alcançada quando, perante o juiz do julgamento, for levado a efeito o debate entre a acusação e a defesa, apresentando cada um dos sujeitos as suas razões, de facto e de direito, oferecendo as suas provas, controlando ou contraditando as provas do adversário, pronunciando-se sobre umas e outras, conforme se refere no Ac. de 22-09-2005, Proc. n.º 2239/05.»

2.6.3. Ao nível da jurisprudência dos Tribunais da Relação, podem convocar-se, entre outros, os seguintes acórdãos, disponíveis nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt., de cujos sumários se retiram os seguintes excertos:

A - Acórdão da Relação do Porto, de 04-07-2001 (Proc n.º 1096/01), publicado na Coletânea de Jurisprudência, Ano XXVI, Tomo 4, p. 222:

«I - As declarações para memória futura só podem ser prestadas perante o juiz, e este só as pode tomar se for previsível que os inquiridos não possam comparecer na audiência de julgamento, em razão de doença grave ou de deslocações para o estrangeiro.

II - Verificando-se a impossibilidade de comparência dos inquiridos na audiência, as declarações que antes foram tomadas para memória futura têm que ser aí lidas.

III - Se tais declarações não forem lidas na audiência, o tribunal não pode utilizá-las para fundamentar a sua convicção. Se o fizer, serve-se de prova proibida, e isso implica a nulidade da sentença.

IV - Esta nulidade é insanável e de conhecimento oficioso, e afeta todo o julgamento, que, por isso, tem que ser repetido.»

B - Acórdão da Relação do Porto, de 17-11-2004 (Proc. n.º 0414002):

«III - É nula, por valoração de prova não produzida em audiência de julgamento (arts. 355 e 125 do CPP), a decisão sobre a matéria de facto que atende exclusivamente às declarações para memória futura, anteriormente prestadas, sem que tais declarações tenham sido lidas (como o permitia o art. 356, n.º 2, al. a) do CPP) em audiência de julgamento.»

Aí constando aposto voto de vencido, com o seguinte teor:

«O artº 356º, nº 2, alínea a), do CPP não impõe a leitura na audiência das declarações tomadas para memória futura; apenas a permite.

E, nos termos do artº 355º, n.os 1 e 2, do mesmo Código, as declarações cuja leitura é permitida na audiência valem como prova, mesmo que não sejam aí lidas. Logo, as declarações tomadas à testemunha (...) ao abrigo do artº 271º do CPP, apesar de não terem sido lidas na audiência, valem como prova.»

C - Acórdão da Relação de Coimbra, de 06-04-2005 (Proc. n.º 108/05), publicado na Coletânea de Jurisprudência, Ano XXX, Tomo 2, p. 44:

«I - Havendo produção antecipada de depoimentos, em declarações para memória futura, e se mostrarem as testemunhas impedidas de estar presentes em audiência, é obrigatório proceder à leitura desses depoimentos, de forma a que os sujeitos processuais possam controlar a prova contra si oferecida, impugnando-a ou contraditando-a por outras provas, no sentido de a verem abalada, se assim o entenderem.

II - A valoração pelo tribunal de depoimentos e declarações produzidos antecipadamente cuja leitura não foi feita em audiência de julgamento afeta a sentença em que se verifica a nulidade, de conhecimento oficioso e que só se convalida com o trânsito em julgado da decisão final.»

D - Acórdão da Relação do Porto, de13-07-2005 (Proc. n.º 0540595), onde se lê:

«A nível penal o princípio do contraditório traduz-se na estruturação da audiência de julgamento e dos atos instrutórios que a lei determinar em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa; acusação e defesa são chamados a deduzir as suas razões de facto e de direito, a oferecer provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear sobre o valor e resultado probatórios de umas e outras. O art.º 327º n.º 2 do Código Processo Penal é paradigmático: os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal. Daí resulta que, estando a audiência de julgamento subordinada ao princípio do contraditório, as provas hão de ser produzidas ou discutidas em audiência, ficando excluída a possibilidade de condenação com base em elementos probatórios que não tenham sido discutidos em audiência, ainda que constantes dos autos [Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, pág. 360; F Dias, Direito Processual Penal, 1988-9, pág. 110 e Direito Processual Penal, 1974, pág. 149]. Expresso e terminante nesse sentido o art.º 355º do Código Processo Penal ao proibir a valoração de quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência [Outras manifestações do princípio do contraditório encontram-se nos artºs 321º n.º 3 e 360 n.os 1 e 2 do Código Processo Penal].

Com este pano de fundo [...], entendemos que a ressalva legislativa a essa proibição, constante dos artºs 356º e 357º do Código Processo Penal ex vi art.º 355º n.º 2 do Código Processo Penal, não permite ou possibilita que esses meios de prova - no caso os depoimentos para memória futura - sejam subtraídos em audiência de julgamento ao contraditório, ao exame crítico dos sujeitos processuais. É para nós claro que esse contraditório tem que ser entendido e perspetivado tendo em conta que o depoente que fez o relato, não está presente, que apenas temos um depoimento escrito. Neste contexto o contraditório exerce-se e satisfaz-se com o «jogo de ataque e resposta» [Gil Moreira dos Santos, O Direito Processual Penal, 2002, pág. 58-9], possibilitando-se aos sujeitos processuais, à acusação e à defesa e também ao tribunal - ao abrigo do princípio da investigação judicial, art.º 341º do Código Processo Penal -, quer através de outros depoimentos, ou mesmo outros meios de prova, influir, pôr em causa, "contraditar", infirmar, descredibilizar, reforçar, confirmar, etc. - conforme o interesse da acusação ou da defesa - os diversos depoimentos recolhidos em inquérito para memória futura.»

E - Acórdão da Relação do Porto, de 22-03-2006 (Proc. n.º 0544312):

«Os depoimentos para memória futura recolhidos noutro país, através de carta rogatória, só podem valer como prova se forem lidos na audiência, com vista ao exercício do contraditório.»

F - Acórdão da Relação de Lisboa, de 13-01-2016 (Proc n.º 899/12.8GCFAR.L1-3):

«1. Não se verifica a nulidade insanável prevista pelo artº 119º, al. c), do Código de Processo Penal se o defensor oficioso do arguido foi notificado e esteve presente na tomada de declarações para memória futura prestadas pela ofendida, conforme exige o artº 64º, nº 1, al. f), do C.P.P.

2. Com a tomada de declarações para memória futura da menor, em sede de crime de abuso sexual pretendeu o legislador evitar que a ofendida tivesse de repetir o depoimento no futuro - sendo este gravado e ouvido em audiência - evitando-se a revitimização e minimizando-se tanto quanto possível as repercussões psicoemocionais na menor visando ainda, possível, garantir a veracidade e espontaneidade das respostas da menor ofendida.»

2.7. O Tribunal Constitucional, bem como a maioria e mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e alguma jurisprudência dos Tribunais da Relação, defendem que não é obrigatória a leitura das declarações para memória futura, prestadas com respeito pela estrutura acusatória do processo e pelo contraditório, em audiência de julgamento para que as mesmas possam ser valoradas pelo tribunal, designadamente para fundamentar a convicção relativamente à matéria de facto.

2.7.1. Assim, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, podem convocar-se, como particularmente relevantes, os seguintes acórdãos, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt/.

A - Acórdão 399/2015, de 25-08-2015:

Não julga inconstitucionais as normas constantes dos artigos 271.º, n.os 6 e 8, 355.º, n.os 1 e 2, e 356.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido segundo o qual se não exige a leitura em audiência de julgamento de um depoimento prestado para memória futura, quando o Ministério Público prescindiu da sua leitura e, ou, a defesa a requereu, para que as mesmas possam constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal.

B - Acórdão 367/2014, de 06-05-2014:

Não julga inconstitucional o artigo 271.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, no segmento segundo o qual não é obrigatória, em audiência de discussão e julgamento, a leitura das declarações para memória futura.

C - Acórdão 110/2011, de 02-03-2011:

Não julga inconstitucionais as normas do n.º 1 do artigo 355.º, do n.º 2 do artigo 327.º e do n.º 2 do artigo 340.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o tribunal pode suportar uma decisão condenatória num documento que, embora integre os autos desde o inquérito, não foi indicado na acusação, nem tão-pouco apresentado e discutido na audiência de julgamento.

2.7.2. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, podem convocar-se, com relevância, os seguintes arestos:

A - Acórdão de 07-11-2007 (Proc. n.º 3630/07 -3.ª Secção), igualmente disponível em texto integral nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.:

«- As declarações para memória futura, verificados os pressupostos em que a produção é processualmente admitida (art. 271.º, n.º 1, do CPP), constituem um modo de produção de prova pessoal, submetido a regras específicas para acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo, nomeadamente o respeito pelo princípio do contraditório.

- O princípio do contraditório - com assento constitucional no art. 32.º, n.º 5, da CRP - impõe que seja dada oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afete, designadamente que seja dada ao acusado a efetiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.

(...)

- No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as exceções a esta regra não poderão, no entanto, afetar os direitos de defesa, exigindo o art. 6.º, § 3.º, al. b), da Convenção que seja dada ao acusado uma efetiva possibilidade de confrontar e questionar diretamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cf., v.g., entre muitas referências, o acórdão Vissier c. Países Baixos, de 14-02-2002).

- Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio, comportando exceções, aceita-as sob reserva da proteção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento; nesta perspetiva, os direitos da defesa mostram-se limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar ou fazer interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência. São estes os princípios elaborados pela jurisprudência do TEDH a respeito do art. 6.º, §§ 1 e 2, al. d), da CEDH (cf., v.g., acórdãos Craxi c. Itália, de 05-12-2002, e S. N. c. Suécia, de 02-07-2002).

- Em certas circunstâncias pode ser necessário que as autoridades judiciárias recorram a declarações prestadas na fase do inquérito ou da instrução, nomeadamente quando a impossibilidade de reiterar as declarações é devida a factos objetivos, como sejam a ausência ou a morte, ou a circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa (crimes sexuais); se o arguido tiver oportunidade, adequada e suficiente, de contraditar tais declarações posteriormente, a sua utilização não afeta, apenas por si mesma, o contraditório, cujo respeito não exige, em termos absolutos, o interrogatório direto em cross-examination.

- O princípio do contraditório tem, assim, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspetiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afete o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que os outros sujeitos processuais (a "parte" adversa).

- O modo de prestação de declarações para memória futura respeita os elementos essenciais do contraditório, dadas as garantias que o n.º 2 do art. 271.º do CPP estabelece: o arguido pode estar presente na produção, e assegura-se a possibilidade de confrontação em medida substancialmente adequada ao exercício do contraditório (art. 271.º, n.os 2 e 3, do CPP).

- Para salvaguarda do exercício do contraditório também não é necessária a leitura das declarações em audiência, nem dela depende a validade da prova para memória futura.

- No caso das declarações para memória futura, o princípio da imediação mostra-se respeitado sempre que a prova é apreciada pelo conjunto e não elemento a elemento, pressupondo a conjugação sistémica com todos os elementos de prova processualmente admissíveis e produzidos nas condições da lei.»

B - Acórdão de 25-03-2009 (Processo 486/09 - 3.ª Secção), acessível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.

«A leitura em audiência de julgamento de declarações prestadas para memória futura não é absolutamente indispensável para que possam ser consideradas válidas e valoradas pelo Tribunal, designadamente para fundamentar a convicção relativamente à matéria de facto, desde que aquelas sejam prestadas com respeito pela estrutura acusatória do processo e seja assegurado um processo equitativo, com igualdade de armas, e respeito pelos princípios do contraditório e da imediação da prova (arguido e seu defensor presentes, com possibilidade de intervirem e formularem) - arts. 355.º, n.º 2, e 356.º do CPP.

[...]

Numa situação em que:

- à data em que foram prestadas as declarações para memória futura o arguido ainda não havia sido constituído como tal no processo;

- o defensor do arguido foi notificado do despacho que declarou aberta a instrução;

- o arguido tomou contacto com o processo, formal e substancialmente, quando foi sujeito a primeiro interrogatório judicial;

- as testemunhas não foram inquiridas em audiência de julgamento;

- podemos concluir que foram salvaguardados e respeitados os direitos de defesa do arguido, designadamente o contraditório - enquanto expressão do direito a um processo equitativo - e que não estamos perante prova proibida ou que não pudesse ser atendida e valorada pelo tribunal a quo, não tendo sido violados quaisquer preceitos constitucionais, nomeadamente os arts. 32.º, n.os 1 e 5, e 20.º, n.º 4, da CRP.

Com efeito, o arguido teve oportunidade de contraditar a credibilidade e os depoimentos daquelas testemunhas quer na instrução (onde esteve presente e representado por advogado) quer em sede de audiência de julgamento, apresentando os meios de prova que entendesse necessários (designadamente testemunhas) - cf., neste sentido, Ac. do STJ de 16-06-2004, in www.dgsi.pt, sendo certo que o contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório direto em cross examination.»

C - Acórdão de 20-06-2012 (Proc. n.º 258/01.8JELSB.C1.S1 - 3.ª Secção):

«O conceito de prova pré-constituída refere-se aos meios de prova antecipada, como é o caso das declarações para memória futura, previstas nos arts. 271.º e 294.º do CPP, ou dos meios de prova obtidos em inquérito com as garantias processuais adequadas. A relevância probatória dos meios de obtenção de prova realizados em inquérito está dependente, num primeiro momento, da legalidade da sua constituição e, em segundo lugar, da fase processual em que se utiliza a prova obtida por aquele meio. Da conjugação dos arts. 355.º, n.º 2, e 356.º, n.º 1, al. b), do CPP, resulta que as provas obtidas por tais meios valem em sede de julgamento, não obstante não terem sido ali produzidas.

Questão distinta é a admissibilidade de um meio de prova sem o ter sujeito ao crivo do contraditório, afetando o direito de defesa do arguido. Nada impede que sejam considerados provados factos a que ninguém se referiu em audiência, pois que esta não configura o único e exclusivo lugar de evanescência da mesma prova. O que se exige é que a prova que fundamenta a convicção do juiz, seja qual fora o momento em que se produziu, tenha sido sujeita do exercício do contraditório e do direito de defesa.»

D - Acórdão de 23-04-2014 (Proc. n.º 68/08.1GABNV.L1.S1 - 3.ª Secção), de cujo sumário, acessível nos Sumários de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, se retiram os seguintes excertos:

«- O princípio do contraditório impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões, antes de ser tomada qualquer decisão que o afete.

- Os elementos de prova devem, por princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, mas as exceções a esta regra, como as declarações para memória futura previstas no art. 271.º do CPP, não podem afetar os direitos de defesa.

- O direito de o arguido contrariar a prova decorrente das declarações para memória futura pode abranger o conteúdo do depoimento e os fatores que possam afetar a credibilidade da testemunha, como também as circunstâncias e o modo da sua prestação.

- Este direito deve ser exercido no ciclo processual próprio, ou seja, quando as declarações são prestadas e para as quais o defensor do arguido é convocado.

- Não ocorre violação do princípio do contraditório se o advogado de defesa foi notificado e compareceu ao ato processual de prestação de declarações para memória futura, onde teve a possibilidade de se pronunciar e de contribuir para a sua conformação.»

2.7.3. Na jurisprudência dos Tribunais da Relação, podem mencionar-se os seguintes acórdãos, igualmente disponíveis nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, de cujos sumários reproduzimos os seguintes trechos:

A - Acórdão da Relação do Porto, de 29-10-2008 (Proc. n.º 0814505):

«As declarações para memória futura, se tiverem sido tomadas sem integral respeito pelo contraditório, só valem como prova em julgamento se ali forem lidas.»

Sobre a questão de saber «se a não leitura das declarações [para memória futura] em julgamento configura nulidade que importa a anulação do julgamento», considera-se neste acórdão que se devem distinguir duas situações relativas ao momento da recolha de tais declarações.

Assim, defende-se aí que «[s]e as declarações tivessem sido tomadas após a entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29 de agosto, que deu nova redação ao artigo 271º, a resposta seria negativa», na medida em que com a alteração introduzida ao n.º 3 do artigo 271º do CPP passou a garantir-se o contraditório na sua plenitude, uma vez que está em causa uma antecipação parcial da audiência de julgamento. «Garantido integralmente o contraditório, naturalmente que as declarações para memória futura podem ser levadas em linha de conta em julgamento, independentemente da sua leitura, que nenhum efeito prático passaria a ter [-]. O julgamento parcial já ocorrera, com integral respeito pelos direitos da defesa», situação que não ocorria anteriormente.

B - Acórdão da Relação de Coimbra, de 17-10-2012 (Proc. n.º 58/09.7GFCVL.C1):

A validade da prova para memória futura não depende da leitura das declarações em audiência, nem esta é necessária para o exercício do contraditório.

C - Acórdão da Relação de Guimarães, de 04-03-2013 (Proc. n.º 746/11.8PBGMR.G1):

«A norma do art. 355.º, n.º 1, do CPP, nos termos da qual "não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência", visa apenas evitar que concorram para a formação da convicção do tribunal provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo com respeito pelo princípio do contraditório. Não exige que todas as provas tenham de ser reproduzidas na audiência de julgamento.»

D - Acórdão da Relação do Porto, de 11-02-2015 (Proc n.º 2246/11.7JAPRT.P1):

Depois de examinar desenvolvidamente o princípio do contraditório, o seu alcance e a sua específica aplicação no âmbito da produção das provas, o acórdão aceita, acompanhando a fundamentação constante do acórdão deste Supremo Tribunal, de 07-11-2007, já mencionado, que:

«As declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação e, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório, e que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram.

Pode não ser o contraditório pleno, dada a fase processual em que se encontra o processo e as limitações à consulta integral do mesmo, mas é o contraditório possível e suficiente para assegurar os direitos de defesa do arguido.

Também não é necessária para o exercício do contraditório, nem a validade da prova para memória futura depende da leitura das declarações em audiência. A prova está validamente produzida e pode ser administrada independentemente da leitura em audiência.»

E - Acórdão da Relação do Porto, de 25-02-2015 (Proc n.º 1582/12.0JAPRT.P1)

«Na renovação da prova a efetuar no Tribunal da Relação não cabe o pedido de produção de um meio de prova que podendo ser pedido e ser efetuado na 1ª instância não foi pedido nem produzido.

- Não pode ter lugar nem ser pedida a renovação da prova se não é invocado nenhum dos vícios do artº 410º2 CPP.

- Não é obrigatória a leitura em audiência das declarações prestadas para memória futura, nem tal falta viola o direito de defesa e o princípio do contraditório.

O artº 271.º, n.º 8 CPP não é inconstitucional.»

F - Acórdão da Relação de Lisboa, de 19-02-2008 (Proc. n.º 7877/07.5):

«A imediação é apreciada pelo conjunto e não elemento a elemento, e pressupõe a conjugação sistémica com todos os elementos de prova processualmente admissíveis e produzidos nas condições da lei, como são as declarações para memória futura cuja validade não depende da leitura das declarações em audiência (itálico no original) (...).»

2.7.4. Na doutrina, apontam-se os entendimentos, expressos em comentários ao Código de Processo Penal, no sentido da não obrigatoriedade da leitura das declarações para memória futura na audiência de julgamento para que as mesmas possam ser utilizadas para a formação da convicção do tribunal.

Assim, para MAIA COSTA, «não é obrigatória a leitura em audiência de julgamento dos depoimentos prestados para memória futura, não havendo qualquer violação do princípio do contraditório, que não exige o contraditório direto em "cross examination"» (Código de Processo Penal Comentado, cit,, p. 920).

Também OLIVEIRA MENDES considera que «[p]ara além dos autos processuais enumerados nos arts. 356.º e 357.º (observado o formalismo legal previsto), também é permitida a valoração da prova documental constante do processo (aqui se incluindo o certificado de registo criminal, o relatório social, os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e interceções telefónicas), independentemente de leitura, visualização ou audição em audiência, quando indicada como meio de prova na acusação deduzida, quando referenciada no requerimento acusatório, quando contraditada pelo arguido em fase anterior do processo ou quando se conclua que o arguido conhece ou tem obrigação de conhecer» (Código de Processo Penal Comentado, cit., p. 1071).

FERNANDO GAMA LOBO, a propósito da sua leitura em audiência, considera:

«Tomadas declarações para memória futura, podem as mesmas ser posteriormente reproduzidas/lidas em audiência, nos termos do art. 356-2-a) para integral e rigoroso cumprimento do art. 355. Reproduzidas, se objeto de gravação áudio ou áudio visual. Lidas, se tiver havido transcrição. Em todo o caso, é jurisprudência constante que não é obrigatório proceder à reprodução/leitura em audiência de provas pré-constituídas (quaisquer que elas sejam) para que as mesmas possam ser apreciadas e valoradas pelo tribunal de julgamento. Encontrando-se elas transcritas nos autos, ou em registo áudio, estão na disponibilidade de todos os intervenientes, advogados inclusive, que têm livre acesso à consulta do processo e do sistema, pelo menos na fase de julgamento e deles se podem servir ou não, exigindo a sua reprodução/leitura e discussão ou não, pelo que desta forma fica cumprido o contraditório (destaques no original)» (Código de Processo Penal Anotado, Almedina, p. 496).

2.8. Em síntese, conforme resulta do que acabámos de enumerar, defende a maioria da doutrina e alguma jurisprudência, maioritariamente dos Tribunais da Relação (sendo que alguns dos acórdãos foram proferidos antes das alterações introduzidas ao artigo 271.º do CPP), que é necessário a leitura, em audiência de julgamento, das declarações para memória futura, para que as mesmas possam ser utilizadas para formar a convicção do tribunal, sendo tal uma exigência dos princípios da imediação e oralidade, contraditório e da publicidade.

Vejamos então se tais princípios nucleares do processo penal, enquanto garantias essenciais de defesa do arguido, são violados com a utilização de declarações para memória futura para formar a convicção do tribunal, sem a leitura das mesmas em audiência de julgamento. Convocaremos também a jurisprudência constitucional sobre o balizamento destes princípios.

Conforme já se salientou, temos como certo que num processo de estrutura acusatória, a regra de que o lugar natural para o debate sobre a produção e valoração da prova é a audiência de julgamento.

Assim, por regra, toda a prova deve ser produzida e examinada em audiência de julgamento.

Todavia, existem exceções à produção da prova em audiência de julgamento. Será o caso das declarações para memória futura previstas no artigo 271.º do CPP, pontuais e justificadas por uma ideia de concordância prática entre os vários interesses envolvidos.

É verdade que a utilização das declarações para memória futura importa sempre uma compressão dos princípios de imediação, oralidade, contraditório e publicidade subjacentes à audiência de julgamento, na medida em que a tomada de declarações da pessoa não ocorre em audiência de julgamento, perante o juiz do julgamento.

Todavia, também não se poderá ignorar que esta compressão encontra-se justificada ou legitimada perante outros interesses ou valores, também eles, fundamentais, como a proteção do interesse da vítima - quanto a declarações para memória futura de crimes contra a liberdade ou autodeterminação sexual e crime de tráfico de pessoas - e/ou do interesse público da descoberta da verdade material - mormente quanto às declarações para memória futura por doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento (conservação da prova).

Consideramos que o legislador, com as alterações de 2007, alcançou um equilíbrio nesta dicotomia de interesses e valores envolvidos, numa concordância prática, perante os requisitos a que devem obedecer as declarações para memória futura para poderem valer em julgamento: o caráter pontual e limitado das mesmas (aplicável apenas às situações expressamente previstas na lei); a existência e reforço de contraditório (princípio do contraditório) - seja pela notificação dos sujeitos processuais e pela presença obrigatória do Ministério Público e do defensor do arguido, seja pela formulação direta de questões (principio da oralidade - debate oral); por último, a possibilidade do declarante ser ouvido em audiência de julgamento, mediante determinadas circunstâncias (artigo 271.º, n.º 8, do CPP - principio da imediação - cross examination).

Refira-se ainda a Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, sobre a aplicação das regras da audiência de julgamento quanto à documentação das declarações oralmente prestadas que deverá ser efetuada, por regra, através de registo áudio ou audiovisual, consignando-se na ata o início e o termo da gravação, nos termos do artigo 364.º do CPP.

São, pois, várias as exigências legalmente previstas para que as declarações para memória futura possam, se necessário, valer em julgamento, funcionando as mesmas como uma verdadeira antecipação parcial do julgamento.

Neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 397/2014, já citado, onde se lê:

«O imperativo constitucional de concordância prática entre o interesse da vítima, o interesse da descoberta da verdade material e a salvaguarda dos direitos fundamentais do arguido (cfr. o artigo 18.º, n.º 2, da CRP) reclama naturalmente que as cedências ou compressões de cada um destes direitos ou interesses constitucionalmente protegidos se limite ao indispensável para a realização dos demais, asserção que desvela, no domínio das declarações para memória futura, uma série de consequências normativas (cfr. Maria João Antunes, «O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coação», Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1238).

Na verdade, esta atividade probatória, porque realizada fora do seu locus "natural" - a audiência de julgamento - implica evidentes prejuízos para o princípio do contraditório (cfr. artigo 32.º, n.º 5, da CRP), bem como para os princípios da oralidade, da imediação e da publicidade. Destarte, a validade desta "antecipação" da fase de julgamento está dependente, como é bom de ver, do cumprimento escrupuloso de um conjunto de requisitos, mormente de exigências associadas ao princípio do contraditório. Assim se explica o disposto nos n.os 2 e 4 do artigo 271.º, do CPP, bem como a necessidade de redução a auto das declarações prestadas, vertida no n.º 1 do artigo 275.º, do mesmo diploma (cfr. José António Mouraz Lopes, A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Studia Ivridica, 83, 2005, p. 161, e José Damião da Cunha, «O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento», RPCC, ano 7, 1997, p. 410).

(...) Neste contexto, é inequívoca a compressão que as declarações para memória futura importam para os princípios assinalados, porquanto ainda que tal atividade probatória decorra no mesmo "cenário" processual em que terá lugar a audiência de julgamento, não será o juiz desta fase do processo a "usufruir" das vantagens ligadas à relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes processuais. Por outras palavras, as garantias que rodeiam a prestação das declarações não aplacam o facto de elas chegarem ao juiz de julgamento sob a forma de atos escritos ou gravados, elaborados nas fases iniciais do processo (Sandra Oliveira e Silva, A proteção de testemunhas no processo penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 234).

Todavia, essa compressão justifica-se em nome da proteção do interesse da vítima e, indiretamente, em razão do interesse público da descoberta da verdade material, sendo de sublinhar o balanceamento gizado no n.º 8 do artigo 271.º, do CPP, que viabiliza a prestação de depoimento em audiência de julgamento, "sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar" (cfr. António Gama, «Reforma do Código de Processo Penal: a prova testemunhal, declarações para memória futura e reconhecimento», RPCC, ano 19, 2009, pág. 402)».

Constituindo a previsão de prestação de declarações para memória futura, per se, uma compressão dos princípios da imediação, e da oralidade, certo é que, como também se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/2015, «tal compressão, para além de não ser mitigada pela obrigatoriedade da leitura daquelas declarações em audiência de julgamento, encontra-se constitucionalmente justificada; e o desenho do regime legal que a traduz assegura (...) que, nos casos concretos, sejam eficientemente garantidas as exigências decorrentes dos n.os 1 e 5 do art. 32.º da CRP».

2.9. Enfrentando a questão subjacente aos acórdãos em conflito, importa, pois, determinar se será obrigatória a leitura das declarações de memória futura.

2.9.1. O artigo 355.º n.º 1, do CPP contempla a regra segundo a qual só podem ser utilizadas para formar a convicção do tribunal as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento.

O n.º 2 do mesmo preceito ressalva, no entanto, as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, remetendo para as disposições excecionais contidas nos artigos 356.º e 357.º, onde se incluem as declarações para memória futura, conforme artigo 356.º, n.º 2, alínea a).

Numa interpretação literal e conjugada dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do CPP, podemos concluir que, sendo a leitura das declarações para memória futura expressamente permitida na alínea a) do n.º 2 do artigo 356.º, tratando-se de uma situação que se integra na ressalva do n.º 2 do artigo 355.º, está-se perante uma exceção à regra do n.º 1 deste preceito: mesmo não tendo sido produzida ou examinada em audiência, tal prova poderá ser valorada para o efeito de formação da convicção do tribunal.

O artigo 356.º, nº 2, alínea a), do CPP não impõe a leitura na audiência das declarações tomadas para memória futura; apenas a permite. E, nos termos do artigo 355.º, as declarações (para memória futura) cuja leitura é permitida na audiência valem como prova, mesmo que não sejam aí lidas (produzidas ou examinadas).

Decorre desta "permissão" que a leitura dos atos processuais ali mencionados traduz-se numa faculdade, atribuída aos sujeitos processuais, de o poderem fazer ou requerer. Não se impõe uma obrigatoriedade de leitura.

Como bem assinala a Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, «[n]ão decorrendo, implícita ou expressamente, da lei a obrigatoriedade da leitura de tais declarações mas uma mera faculdade, seria uma contradição manifesta com o disposto no artº 355º, nº 2 fazer depender a validade dessa prova da sua leitura em audiência».

Se o legislador entendesse que não se tratava de uma permissão de leitura mas de uma obrigatoriedade de leitura, certamente o teria explicitamente referido. Nos termos do n.º 9 do citado artigo 356.º do CPP, a permissão de uma leitura, visualização ou audição tem que possuir justificação legal, ficando essa justificação legal a constar da ata, sob pena de nulidade. Decorre desta disposição que não se pode confundir a obrigatoriedade de justificar a permissão de leitura, com obrigatoriedade de leitura das declarações para memória futura, para valerem em julgamento, para efeitos de formação de convicção do tribunal.

2.9.2. Porém, muito mais importante do que o contributo que se possa extrair do elemento textual das normas mencionadas, será determinar se a não obrigatoriedade de leitura das declarações para memória futura, em audiência de julgamento, colide, de forma constitucionalmente inadmissível, com os princípios da imediação e oralidade, do contraditório e da publicidade, princípios que aqui se encontram particularmente implicados. Vejamos:

A. Os princípios da imediação e da oralidade pressupõem que a decisão jurisdicional, deve ser proferida por quem tenha assistido à produção das provas e à discussão da causa pela acusação e pela defesa (imediação), através de um debate oral (oralidade).

Como ensina FIGUEIREDO DIAS, «só estes princípios (...) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso» (Direito Processual Penal, 1.ª ed. (reimpressão), Coimbra Editora, 2004, pág. 233 e 234).

Para o autor que se acompanha, o princípio da imediação significa «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo a que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão».

Por sua vez, o princípio da oralidade, enquanto princípio geral do processo penal, «supõe uma atividade processual exercida na presença dos participantes processuais e, portanto, oralmente». Isto é, o princípio da oralidade, significa não mais do que «a forma oral de atingir a decisão» (ob. cit. pp. 229-232)

As declarações para memória futura, de acordo com o disposto nos artigos 271.º, n.º 1, e 294.º, ambos do CPP, são prestadas perante o juiz de instrução, com a presença, pelo menos, do defensor do arguido e do Ministério Público.

Numa primeira fase, aquando do ato de tomada de declarações para memória futura, observa-se um contacto direto com a fonte da prova e um debate oral com intervenção do Ministério Público e do defensor do arguido, perante um juiz. E nessa fase ocorre a recolha em registo áudio ou audiovisual do depoimento do declarante, assim permitindo o acesso direto, pelo menos, à sua voz, com a possibilidade de audição/reprodução desse registo as vezes que forem necessárias.

Sem dúvida que inexiste um contacto direto (imediação) entre o declarante (fonte da prova) e o juiz do julgamento, na medida em que a tomada de declarações (para memória futura) ocorre perante o juiz de instrução e não perante aquele (juiz de julgamento). No entanto, não se pode ignorar a existência de um contacto direto entre o tribunal e as declarações para memória futura (prova), na medida em que o julgador, para formar a sua convicção, quanto a esta prova, tem de recorrer à audição/reprodução das declarações para memória futura.

Como observa MARIA JOÃO ANTUNES, a forma oral e imediata de atingir a decisão judicial sofre limitações. «Permite-se, por exemplo, o julgamento na ausência do arguido e é permitida a reprodução ou leitura de certos autos e declarações, bem como de declarações do arguido, nos termos do disposto nos artigos 355.º, n.º 2, 356.º e 357.º do CPP. Sem prejuízo de devermos distinguir no artigo 356.º os casos em que ocorreu, verdadeiramente, uma produção antecipada de prova (alínea a), do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 356.º)» (Direito Processual Penal, 2016, Almedina, pp. 180-181).

O Tribunal para formar a convicção sobre a matéria de facto, tem que proceder ao exame crítico de todos os elementos de prova que possui, incluindo o exame das declarações para memória futura, procedendo à audição/reprodução dessas declarações prestadas anteriormente e, em conexão com a demais prova existente, valora-as. Nesta medida, estamos perante uma imediação, traduzida no contacto direto do juiz de julgamento com todos os elementos de prova processualmente admissíveis.

Neste sentido, lê-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-11-2007, já indicado, que «[n]o caso das declarações para memória futura, o princípio da imediação mostra-se respeitado sempre que a prova é apreciada pelo conjunto e não elemento a elemento, pressupondo a conjugação sistémica com todos os elementos de prova processualmente admissíveis e produzidos nas condições da lei».

Assim, o regime da prova pessoal antecipada, justificado materialmente pelo receio objetivo da sua perda, por ausência ou morte, ou por circunstâncias específicas de vulnerabilidade do declarante, integra uma exceção à imediação com a fonte de prova. Porém, pode aceitar-se que o núcleo essencial do princípio da imediação mantém-se enquanto forma de obter a decisão.

Por outro lado, cumprirá lembrar que a leitura/audição das declarações, em audiência de julgamento, não implica nem determina uma relação direta e próxima com a fonte da prova, ou seja, com quem prestou antecipadamente as declarações na medida em que essa leitura/audição é efetuada na audiência de julgamento, mas na ausência de quem prestou as declarações.

Nesta perspetiva, a leitura, em audiência de julgamento, das declarações para memória futura em nada reforça o princípio da imediação, na medida em que apenas permite ao juiz de julgamento o contacto direto com as declarações (prova) e não com quem as prestou (fonte da prova).

No pressuposto de que a pessoa que prestou as declarações não será ser ouvida em audiência de julgamento (cfr. artigo 271.º, n.º 8, do CPP), o contacto do juiz de julgamento com esta prova, ocorrerá sempre e apenas através da leitura/audição das declarações. Ora, este contacto não apresenta contornos diversos por a leitura ocorrer na audiência de julgamento.

Ou seja, este contacto/exame ocorrerá sempre, independentemente da leitura das mesmas em audiência de julgamento, porque inequívoco se torna que o juiz de julgamento para poder decidir quanto à relevância daquela prova para a convicção do Tribunal, terá que ter conhecimento efetivo da mesma (através da leitura ou audição/reprodução das mesmas). A única diferença é se o faz na presença dos demais intervenientes processuais e do público em geral (em caso de não exclusão de publicidade) ou procede à leitura/audição/reprodução no recato do seu gabinete.

Sem que se pretenda minimizar a sua relevância, reafirmamos que os princípios da imediação e da oralidade, não obstante a leitura das declarações para memória futura, em audiência de julgamento, apresentam-se limitados na medida em que apenas se reproduz o que ali foi declarado (contacto com a prova).

Deve, por seu turno, frisar-se que, na preparação do julgamento os intervenientes processuais e o Tribunal necessariamente tomam conhecimento da prova indicada na acusação e/ou no despacho de pronúncia (documental, autos e outros atos processuais onde constam indicadas como meio de prova as declarações para memória futura). Assim, por regra, a leitura das declarações na audiência configurará uma repetição de uma realidade já conhecida pelos intervenientes processuais e pelo Tribunal.

Neste sentido, como, justamente, é salientado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/2015, «[n]ão seria seguramente a mera exibição ou leitura ritualística das declarações para memória futura que acrescentaria, no presente caso, o que quer que seja às oportunidades de defesa dos arguidos. Como o Tribunal sempre tem dito, em jurisprudência firme (v. por exemplo, os Acórdãos n.os 434/87, 172/92, 372/2000, 279/2001 e 339/2005), "o conteúdo essencial do princípio do contraditório está, de uma forma mais geral, em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar". Ora, não restam dúvidas de que, no caso, foram dadas aos arguidos todas as amplas e efetivas possibilidades de discutir, contestar e valorar as declarações prestadas pelos seus concidadãos ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 271.º do CPP, uma vez que em cumprimento do disposto nos n.os 3 e 5 do referido preceito, não só os defensores dos arguidos estiveram presente durante as inquirições (tendo nelas podido formular perguntas adicionais, conforme o previsto pelo n.º 5 do artigo 271.º), como, além disso, as declarações prestadas foram - como manda o artigo n.º 1 do artigo 364.º - documentadas através de registo áudio ou audiovisual, encontrando-se aliás transcritas nos autos».

Quanto ao debate oral da discussão da causa, a mesma ocorrerá sempre e da mesma forma, com leitura ou sem leitura das declarações na audiência de julgamento, dado que a leitura mais não é que uma mera audição-reprodução do que já foi dito e ouvido pelos intervenientes processuais, sendo certo que não se pode ignorar que, em regra, na audiência de julgamento, quem prestou as declarações para memória futura está ausente, pelo que há assumidamente a supressão do interrogatório direto em cross examination, relativamente a tal declarante, inexistindo, portanto, o contributo dialético de pergunta - resposta entre os vários intervenientes processuais, na presença e com a intervenção do Juiz de julgamento.

O debate oral (direto) sobre aquelas declarações ocorreu quando a pessoa prestou as declarações na fase de inquérito ou de instrução e surgirá novamente, em audiência de julgamento, de forma indireta, através do depoimento de outras testemunhas, mas não com a pessoa que prestou as declarações, porque não estará presente na audiência de julgamento e, de seguida, em alegações até à leitura da sentença.

Não vemos em que medida a leitura/reprodução áudio daquelas declarações em audiência de julgamento reforça a discussão e o debate oral daquela prova já que nesta situação não é possível, perante o juiz de julgamento, o interrogatório com dialética de pergunta e resposta com o declarante ausente. O interrogatório direto em cross examination só ocorrerá, na sua plenitude, em audiência de julgamento se o declarante aí for ouvido, conforme é possível nos termos do artigo 271.º, n.º 8, do CPP.

Pelo exposto, não vislumbramos qualquer reforço destes princípios da imediação e oralidade com a leitura das declarações para memória futura em audiência de julgamento.

Os intervenientes processuais têm conhecimento que as mesmas existem, sendo que foram convocados para estarem presentes no ato em que tais declarações foram recolhidas, aí tendo ocorrido um debate oral, em ambiente idêntico ao julgamento, tendo ficado documentadas no processo com gravação áudio ou audiovisual, suporte esse disponível para qualquer interveniente. Trata-se, ademais, de um meio de prova indicado na acusação e/ou no despacho de pronúncia, meio de prova esse cristalizado (sem possibilidade de interrogatório direto em cross examination), podendo, sempre, ser discutido, contestado e ponderado pelos intervenientes processuais, em audiência de julgamento, perante o juiz de julgamento, sucedendo que este irá sempre ter um contacto com a prova através da audição/visualização das declarações.

Como se considera no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 367/2014, «a previsão de prestação de declarações para memória futura - obrigatória, no caso dos crimes contra a autodeterminação sexual de menor - constitui, per se, uma compressão dos princípios da imediação e da oralidade, limitação essa que, apesar de constitucionalmente justificada (...), não é mitigada pela obrigatoriedade de leitura daquelas declarações em audiência de julgamento.

Na verdade, requerendo a oralidade que a atividade processual seja exercida na presença dos sujeitos processuais, por oposição a um "processo escrito", é no mínimo estéril argumentar que a leitura - necessariamente "oral" - dos autos de onde constam as declarações ainda é reclamada por aquele princípio. Com efeito, os benefícios impulsionados pela oralidade, uma vez subtraídos ao "usufruto" do juiz do julgamento, estão, à partida, perdidos, e só poderão ser recuperados caso este entenda ser necessário para a descoberta da verdade material, possível e não atentatório da saúde física e psíquica da vítima menor a prestação de novo depoimento em sede de julgamento (cfr. os artigos 271.º, n.º 8, e 340.º, do CPP)».

Perante o exposto, não consideramos que a obrigatoriedade de leitura das declarações para memória futura na audiência de julgamento se configure como essencial para que se assegurem os princípios da imediação ou da oralidade.

B. Conforme acima se fez constar, afirma-se que a não leitura das declarações para memória futura colide com o princípio da publicidade, na medida em que as provas têm que ser lidas publicamente na audiência de julgamento, para que os intervenientes processuais e o público em geral possam assistir e ouvir em audiência essa prova anteriormente produzida. Que só mediante leitura efetiva poderá ser conhecido (de forma pública) o conteúdo das declarações.

O artigo 371.º do CPP consagra o preceito constitucional, acolhido no artigo 206.º da Constituição da República, segundo o qual «As audiências dos tribunais são públicas, salvo quando o próprio tribunal decidir o contrário, em despacho fundamentado, para salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública ou para garantir o seu normal funcionamento».

Segundo FIGUEIREDO DIAS, [a]s audiências dos tribunais são públicas, devendo para tal entender-se não apenas que qualquer cidadão tem direito a assistir ao (e a ouvir o) desenrolar da audiência de julgamento mas também que são admissíveis os relatos públicos daquela audiência» (ob. cit., p. 221).

O princípio da publicidade da audiência e do julgamento visa o controlo público da aplicação da justiça, isto é, a possibilidade de acompanhamento por parte do público da ação da justiça.

Por regra, a audiência de julgamento é pública, isto é, a prova é produzida na presença dos intervenientes processuais e do Tribunal e perante os olhares de quem quiser assistir à mesma. Contudo o princípio da publicidade não é pleno, podendo sofrer compressões por outros valores se elevarem, como o interesse de proteção da vítima.

Conforme resulta dos artigos 321.º e 87.º, ambos do CPP, pode ocorrer exclusão de publicidade da audiência de julgamento. Por regra, os atos processuais relativos aos processos por crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, decorrem com exclusão da publicidade (artigo 87.º, n.os 3 e 4 do CPP).

Assim, existem processos em que o legislador decidiu, devido ao interesse da vítima, sacrificar o princípio da publicidade da audiência de julgamento e não é por esse motivo que a audiência de julgamento não é válida, nem eficaz a prova aí produzida.

Na questão aqui subjacente, relativamente aos sujeitos processuais, a publicidade das declarações foi «oferecida» a partir do momento em que foram convocados para o ato de tomada de declarações para memória futura, com presença obrigatória do Ministério Público e do defensor do arguido, e na medida em que ficaram documentadas no processo.

Assim, não se justificará proceder obrigatoriamente a uma leitura pública das declarações para memória futura na audiência de julgamento, dirigida aos intervenientes processuais, dado que têm conhecimento das mesmas pois foram convocados para estarem presentes no momento em que foram prestadas, constam documentadas no processo e indicadas como meio de prova na acusação ou no despacho de pronúncia.

Sendo de sublinhar que na audiência de julgamento os intervenientes processuais podem sempre requerer a leitura/audição/reprodução das declarações para memória futura.

A supressão de publicidade para o público, por força da inexistência de leitura das declarações para memória futura, em audiência de julgamento, também se afigura uma falsa questão.

Continuando a acompanhar FIGUEIREDO DIAS, o princípio da publicidade tem como objetivo principal «dissipar quaisquer desconfianças que se possam suscitar sobre a independência e a imparcialidade com que é exercida a justiça penal e são tomadas as decisões» (ob. cit., pp. 222-223).

Estas eventuais desconfianças são dissipadas com o debate oral, na audiência de julgamento, suscitado com e pelas testemunhas arroladas para contraditar ou corroborar as declarações para memória futura prestadas; com as alegações, onde são escalpelizadas todas as provas do processo, e com a leitura da sentença, onde o Tribunal enumera os factos provados e não provados, e faz uma exposição dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Não se exigindo que o público se reveja na sentença proferida, o que importa é que o público consiga entender/percecionar os motivos que levaram o Tribunal a decidir daquela forma. O princípio da publicidade impõe que o cidadão tenha o direito de assistir (e ouvir o) desenrolar da audiência de julgamento e entendemos que não é devido ao facto de não ocorrer a leitura das declarações para memória futura, em audiência de julgamento, que se frusta o controlo público da aplicação da justiça.

Convocando, de novo, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 367/2014:

«(...), alçam-se vários obstáculos à argumentação de que a leitura obrigatória das declarações decorre do princípio da publicidade da audiência, enquanto "trave-mestra" de um processo acusatório. Desde logo porque, nos crimes contra a autodeterminação sexual, a concordância prática dos interesses em presença já impõe, por si mesma, evidentes compressões ao princípio da publicidade, as quais encontram consagração, no direito infraconstitucional, nos artigos 87.º, n.º 3 e 88.º, n.º 2, alínea c), do CPP.

Acresce que a leitura das declarações em audiência não tem arrimo na teleologia normativa inerente ao princípio da publicidade, que é a de "dissipar quaisquer desconfianças que se possam suscitar sobre a independência e a imparcialidade com que é exercida a justiça penal" (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 222). Aquela, por ressonância da jurisprudência do TEDH, reclama não só uma justiça efetiva, como também uma "aparência de justiça", pois, como se enfatizou no acórdão 279/01 (já mencionado), "a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao administrarem a justiça atuem de facto em nome do povo".

Contudo, o princípio (fundamental) da publicidade basta-se, neste capítulo, com a leitura da sentença (cfr. artigo 87.º, n.º 5, do CPP) e com a "disponibilidade pública das razões da decisão" (José António Mouraz Lopes, A fundamentação da sentença no sistema penal português - Legitimar, diferenciar e simplificar, Almedina, Coimbra, 2011, p. 101), algo que só de per se já permite ao público a fiscalização da decisão e possibilita à comunidade o conhecimento daqueles elementos tidos por fundamentais e decisivos para a formação da convicção do julgador (cfr. o acórdão 27/2007, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).»

Com o entendimento que se perfilha, não se pretende sustentar não ser possível a leitura das declarações para memória futura, em audiência de julgamento. O que se defende é que, caso não seja requerida a sua leitura, ou caso tenha sido requerida, tenha sido indeferida, e o tribunal não considere necessário a ela proceder, o princípio da publicidade da audiência não exige que, obrigatoriamente, se proceda à leitura das declarações para memória futura para que elas possam ser valoradas pelo julgador.

Em suma, não vislumbramos uma necessidade, reclamada pelo princípio da publicidade da audiência, de obrigatoriedade de leitura das declarações para memória futura, na audiência de julgamento.

C. O princípio do contraditório conforme é entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, reconduz-se ao facto de nenhuma prova dever ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão dever ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar.

Segundo FIGUEIREDO DIAS, o princípio do contraditório apresenta-se como a «oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo» (ob. cit., p. 153).

Nas palavras de MARIA JOÃO ANTUNES, «[d]e acordo com o princípio do contraditório, toda a prossecução processual deve cumprir-se de forma a fazer ressaltar as razões da acusação e da defesa», decorrendo também deste princípio «o dever de ouvir qualquer sujeito do processo penal ou mero participante processual quando deve tomar-se qualquer decisão que pessoalmente o afete». E, «quando perspetivado da parte do arguido - acrescenta a mesma autora - este princípio é uma das garantias de defesa que o processo criminal lhe deve assegurar (artigo 32.º, n.º 1, da CRP)», integrando o se (do arguido) estatuto processual, «ao qual são reconhecidos, em qualquer fase do processo, os direitos processuais de estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito, de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete e de intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo diligências que se lhe afigurem necessárias» (ob. cit., pp. 74-75).

O princípio do contraditório, consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da CRP, consiste, pois, para além do direito à defesa, no direito de o arguido - mas também dos demais intervenientes processuais - de contradizer ou de se pronunciar sobre as alegações, as iniciativas, os atos ou quaisquer atitudes processuais da autoria dos outros sujeitos processuais. Sendo que a decisão do juiz só pode ser proferida após ouvir todo o participante nos autos relativamente ao qual tome decisão que processualmente o afete.

Na situação de onde emerge a questão de que nos ocupamos, entendemos que o princípio do contraditório está patente nos dois momentos:

- num primeiro momento - aquando do ato de tomada das declarações para memória futura;

- num segundo momento - no decurso da audiência de julgamento, mesmo sem obrigatoriedade de leitura dessas declarações.

O princípio do contraditório é exercitado num primeiro momento, quando são tomadas as declarações para memória futura, dada a possibilidade de intervenção neste ato de todos os intervenientes processuais e obrigatoriamente com a presença do defensor do arguido e do Ministério Público (artigo 271.º, n.º 3, do CPP), e ainda devido à possibilidade de formulação de perguntas diretamente à pessoa que presta as declarações (artigo 271.º, n.º 5), com a regra da documentação das declarações prestadas, através de registo áudio ou audiovisual.

Conforme defende RUI DO CARMO ("Declarações para memória futura: crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual", Revista do Ministério Público, n.º 134, Ano 34 - Abril-Jun 2013, p. 127), «o direito do arguido contrariar a prova decorrente das declarações para memória futura pode abranger tanto o conteúdo do depoimento como os fatores que possam afetar a credibilidade da testemunha, e também as circunstâncias e o modo da sua prestação. As condições para o exercício deste direito foram, de resto, reforçadas na mais recente revisão do CPP (Lei 20/2013, de 21-02), ao consagrar a regra da documentação das declarações através de registo áudio ou audiovisual».

O princípio do contraditório - lê-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-04-2014 (Proc. n.º 68/08.1GABNV.L1.S1 - 3.ª Secção) - «impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões, antes de ser tomada qualquer decisão que o afete. Os elementos de prova devem, por princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, mas as exceções a esta regra, como as declarações para memória futura previstas no art. 271.º do CPP, não podem afetar os direitos de defesa. O direito de o arguido contrariar a prova decorrente das declarações para memória futura pode abranger o conteúdo do depoimento e os fatores que possam afetar a credibilidade da testemunha, como também as circunstâncias e o modo da sua prestação. Este direito deve ser exercido no ciclo processual próprio, ou seja, quando as declarações são prestadas e para as quais o defensor do arguido é convocado. Não ocorre violação do princípio do contraditório se o advogado de defesa foi notificado e compareceu ao ato processual de prestação de declarações para memória futura, onde teve a possibilidade de se pronunciar e de contribuir para a sua conformação».

Recorde-se que a alteração introduzida ao artigo 271.º do CPP pela Lei 48/2007 visou, como expressamente se consigna na exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X, garantir o contraditório «na sua plenitude» em todos os casos de declarações para memória futura, «uma vez que está em causa uma antecipação parcial da audiência de julgamento».

Daí que, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29-10-2008, já citado, se distingam justamente os casos de as declarações para memória futura terem sido prestadas antes ou após as alterações conferidas ao artigo 271.º do CPP pela referida Lei 48/2007. Relativamente à questão de saber «se a não leitura das declarações [para memória futura] em julgamento configura nulidade que importa a anulação do julgamento», afirma-se aí que «[s]e as declarações tivessem sido tomadas após a entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29 de agosto, que deu nova redação ao artigo 271.º, a resposta seria negativa», o mesmo não sucedendo quando tais declarações tivessem sido tomadas antes de tais alterações, como sucedia na situação aí apreciada.

Mais uma vez se invoca o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 367/2014, no qual nos revemos, quando afirma que:

«Estando em causa declarações do ofendido - rectius, provas constituendas, ainda que documentadas em auto - o contraditório deve realizar-se aquando da respetiva aquisição, isto é, durante o interrogatório previsto nos n.os 3 e 5 do artigo 271.º, do CPP. Apesar de este interrogatório não seguir os ditames do artigo 348.º, do CPP (cross-examination), certo é que é nesse momento que se revela mais importante conferir ao arguido, em cumprimento dos imperativos constitucionais, a possibilidade efetiva de contribuir para as bases da decisão. Obviamente que, integrando os autos (de declaração) os meios de prova elencados pela acusação, nada impede o arguido de, já na fase de audiência de discussão e julgamento, exercer o seu direito subjetivo público de audiência, requerendo a leitura das declarações e a sua reapreciação individualizada, e atacando a sua eficácia persuasiva. O uso efetivo deste direito, como é bom de ver, é algo que já não interessa ao princípio do contraditório nem ao seu recorte constitucional.»

Num segundo momento - em audiência de julgamento - o princípio do contraditório manifesta-se e é exercitado porque todos os intervenientes processuais podem trazer à audiência de julgamento as testemunhas que entenderem por conveniente para contraditar o depoimento prestado em fase anterior, numa dialética de contrarresposta.

É certo que aquando da tomada de declarações para memória futura em fase de inquérito, o Ministério Público poderá ter um conhecimento mais aprofundado do processo - na medida em que conhece a totalidade dos atos de inquérito, eventualmente em segredo de justiça - do que os restantes sujeitos processuais, conforme refere CRUZ BUCHO (estudo citado).

Não obstante, não vemos em que medida a leitura das declarações para memória futura em audiência de julgamento, mitigue ou diminua tal situação.

Na verdade, independentemente da leitura das declarações em audiência de julgamento, o percurso seguido é sempre o mesmo: no ato da tomada de declarações (para memória futura) os sujeitos processuais (com presença obrigatória do Ministério Público e do defensor do arguido) são livres de colocar as questões que entenderem por conveniente e na fase posterior (em audiência de julgamento) podem arrolar as testemunhas que julgarem adequadas para contrariar a versão apresentada (pelo declarante), sendo que neste momento têm um conhecimento integral do processo.

Temos consciência de que uma realidade é a produção antecipada de prova (v.g. em inquérito), com observância do contraditório, e outra é o exame dessa prova na audiência de julgamento. Contudo, entendemos que essas declarações, em audiência de julgamento, também podem ser contraditadas, no exercício do contraditório, na medida em que podem ser discutidas e contestadas, através de outra prova arrolada.

Assim, consideramos que a leitura/audição das declarações para memória futura, em audiência de julgamento, não aporta um reforço do princípio do contraditório, porque apenas se ouve/reproduz o que já está documentado no processo.

Conforme bem se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-06-2012, (Proc. n.º 258/01.8JELSB.C1.S1 - 3.ª Secção), «Nada impede que sejam considerados provados factos a que ninguém se referiu em audiência pois que esta não configura o único e exclusivo lugar de evanescência da mesma prova. A questão é de que a prova que fundamenta a convicção do juiz, seja qual for o momento em que se produziu, tenha sido sujeita ao exercício do contraditório e do direito de defesa».

Não vislumbramos em que medida a leitura das declarações para memória futura em audiência de julgamento permite alterar o exercício do contraditório.

O respeito pelo princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório direto em cross-examination. Não é pelo facto de serem lidas/ouvidas em audiência de julgamento as declarações para memória futura, que se torna mais efetivo o direito a contraditar as declarações ali prestadas. Nesta situação, na audiência de julgamento observa-se uma dialética em contraditar o que ali foi declarado e não uma dialética de pergunta-resposta (interrogatório direto em cross-examination), dado que a leitura/audição ocorrerá na ausência da pessoa que prestou as declarações.

Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-03-2009, já citado, quando afirma que «o arguido teve oportunidade de contraditar a credibilidade e os depoimentos daquelas testemunhas quer na instrução (onde esteve presente e representado por advogado) quer em sede de audiência de julgamento, apresentando os meios de prova que entendesse necessários (designadamente testemunhas) - cf., neste sentido, Ac. do STJ de 16-06-2004, in www.dgsi.pt, sendo certo que o contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório direto em cross examination».

As declarações para memória futura estão «cristalizadas» no processo, sendo a sua leitura/audição insuscetível de as alterar. Em audiência de julgamento apenas se permite que tais declarações sejam contraditadas por outras provas, e esse exercício de contraditar é imutável, não variando consoante elas sejam lidas/ouvidas, ou não, em audiência de julgamento.

Numa síntese conclusiva quanto à dimensão e salvaguarda do princípio do contraditório no âmbito das declarações para memória futura, referenciando-se jurisprudência relevante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), pode ler-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-11-2007, já citado:

«As declarações para memória futura, verificados os pressupostos em que a produção é processualmente admitida (art. 271.º, n.º 1, do CPP), constituem um modo de produção de prova pessoal, submetido a regras específicas para acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo, nomeadamente o respeito pelo princípio do contraditório. O princípio do contraditório - com assento constitucional no art. 32.º, n.º 5, da CRP - impõe que seja dada oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afete, designadamente que seja dada ao acusado a efetiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação. A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório leva a que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (cf. idem, pág. 153). A densificação do princípio deve, igualmente, relevante contributo à jurisprudência do TEDH, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no art. 6.º, § 1.º da CEDH. Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação. No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as exceções a esta regra não poderão, no entanto, afetar os direitos de defesa, exigindo o art. 6.º, § 3.º, al. b), da Convenção que seja dada ao acusado uma efetiva possibilidade de confrontar e questionar diretamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cf., v.g., entre muitas referências, o acórdão Vissier c. Países Baixos, de 14-02-2002). Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio, comportando exceções, aceita-as sob reserva da proteção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento; nesta perspetiva, os direitos da defesa mostram-se limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar ou fazer interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência. São estes os princípios elaborados pela jurisprudência do TEDH a respeito do art. 6.º, §§ 1 e 2, al. d), da CEDH (cf., v.g., acórdãos Craxi c. Itália, de 05-12-2002, e S. N. c. Suécia, de 02-07-2002). Em certas circunstâncias pode ser necessário que as autoridades judiciárias recorram a declarações prestadas na fase do inquérito ou da instrução, nomeadamente quando a impossibilidade de reiterar as declarações é devida a factos objetivos, como sejam a ausência ou a morte, ou a circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa (crimes sexuais); se o arguido tiver oportunidade, adequada e suficiente, de contraditar tais declarações posteriormente, a sua utilização não afeta, apenas por si mesma, o contraditório, cujo respeito não exige, em termos absolutos, o interrogatório direto em cross-examination. O princípio do contraditório tem, assim, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspetiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afete o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que os outros sujeitos processuais (a "parte" adversa). O modo de prestação de declarações para memória futura respeita os elementos essenciais do contraditório, dadas as garantias que o n.º 2 do art. 271.º do CPP estabelece: o arguido pode estar presente na produção, e assegura-se a possibilidade de confrontação em medida substancialmente adequada ao exercício do contraditório (art. 271.º, n.º s 2 e 3, do CPP). Para salvaguarda do exercício do contraditório também não é necessária a leitura das declarações em audiência, nem dela depende a validade da prova para memória futura.»

Reafirmando considerações já tecidas, em audiência de julgamento, o princípio do contraditório, manifesta-se com o direito de, perante o juiz que vai decidir a causa, haver a possibilidade de contrariar toda a prova existente, constituída ou constituenda, (testemunhal, pericial, documental, etc), apresentando outros elementos probatórios, descredibilizando o declarante que depôs para memória futura, em fase de inquérito ou instrução com outros depoimentos ou com outros elementos de prova.

Desta feita, os depoimentos para memória futura, não são excluídos do contraditório, em audiência de julgamento, na medida em que podem ser apresentadas testemunhas ou outras provas para contradizer o que ali foi declarado.

Em face do exposto, consideramos que a tomada de declarações para memória futura, nos termos dos artigos 271.º e 294.º, ambos do CPP, configura-se como uma antecipação parcial da audiência, sabendo os intervenientes processuais de que aquele meio de prova poderá ser utilizado pelo Tribunal para formar a sua convicção, não se revela obrigatória a leitura, em audiência de julgamento, dessas declarações.

Não o impõem os termos conjugados do artigo 355.º, n.os 1 e 2 e do artigo 356.º, n.º 2, alínea a), do CPP, nem os princípios que enformam o processo penal português, sendo que o entendimento que se perfilha não ofende qualquer norma ou princípio constitucional.

2.10. Em nota final, cumpre dizer que este entendimento não obsta à possibilidade de leitura das declarações para memória futura em audiência de julgamento, a qual pode ser requerida por qualquer interveniente processual, se o entender adequado, ou ser determinada oficiosamente pelo Tribunal, por decisão fundamentada, seja no sentido de deferir ou determinar a leitura das declarações, seja no sentido de indeferir a leitura das mesmas, decisão que poderá ser sindicada em sede de recurso.

Acresce que a tomada de declarações para memória futura, em fase de inquérito ou em fase de instrução, não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, mediante determinados condicionalismos (cfr. artigo 271.º, n.º 8, do CPP). Essa decisão de deferir ou indeferir o requerimento de audição do declarante em audiência de julgamento ou de determinar oficiosamente a audição do declarante, também tem que ser devidamente fundamentada.

Como se salienta nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 399/2015 e n.º 367/2014, «Obviamente que, integrando os autos (de declaração) os meios de prova elencados pela acusação, nada impede o arguido de, já na fase de audiência de discussão e julgamento, exercer o seu direito subjetivo público de audiência, requerendo a leitura das declarações e a sua reapreciação individualizada, e atacando a sua eficácia

Aderimos, pois, ao entendimento presente no acórdão recorrido, sendo que, reafirma-se, ele não impede o direito de serem lidas/ouvidas em audiência de julgamento as declarações para memória futura, nem afasta a possibilidade da prestação de depoimento em audiência de julgamento do declarante, apenas se considera que o legislador não impõe a obrigatoriedade da sua leitura ao Tribunal.

III - DECISÃO

Do exposto, acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Julgar improcedente o presente recurso extraordinário, confirmando-se o acórdão recorrido;

b) Fixar a seguinte jurisprudência:

«As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código.»

c) Condenar o recorrente em custas, com 4 UC de taxa de justiça.

Cumpra-se oportunamente o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de outubro de 2017. - Manuel Pereira Augusto de Matos (Relator) - Vinício Augusto Pereira Ribeiro - José António Henriques dos Santos Cabral - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos - Gabriel Martim dos Anjos Catarino - Nuno de Melo Gomes da Silva - Francisco Manuel Caetano - Carlos Manuel Rodrigues de Almeida (Votei vencido pelos fundamentos da declaração que junto) - José Luís Lopes da Mota (Votei vencido conforme e pelos fundamentos da declaração que junto) - José Vaz dos Santos Carvalho (Votei vencido, pois tal é o sentido do «parcialmente vencido», que se encontra na declaração que anexo) - José Adriano Machado Souto de Moura (Vencido pelas razões que no essencial constam da declaração que junto) - Manuel Joaquim Braz (Vencido, pelas razões constantes das declarações de voto dos Conselheiros Carlos Almeida e Souto de Moura) - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira (Voto vencida pelas razões constantes dos votos de vencido dos Conselheiros Souto de Moura, Carlos Almeida e Lopes da Mota) - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).

Processo 895/14.0PGLSB.L1-A.S1 - FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

Voto vencido pelas razões que, em síntese, passo a enunciar:

1. A redacção original do Código de Processo Penal estabelecia, no n.º 1 do seu artigo 271.º, que, «[e]m caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impe[disse] de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pod[ia] proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento [pudesse], se necessário, ser tomado em conta no julgamento».

Esta faculdade era alargada, pelo n.º 4 desse mesmo preceito legal, «a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações», sendo este regime aplicável também na fase de instrução - artigo 294.º do Código.

Estas disposições procuravam preservar a prova que, pelas mencionadas vicissitudes, se poderia vir a perder, procurando que ela fosse produzida, até onde isso fosse possível na fase em que o processo se encontrava (em que vigorava então o segredo de justiça e não estava ainda definido o objecto do processo), em condições que garantissem o exercício do contraditório, mesmo que não fosse na sua plenitude.

Embora a alínea a) do n.º 2 do artigo 356.º admitisse a leitura das declarações prestadas para memória futura, essa leitura só teria lugar, como afirmava a parte final do n.º 1 do artigo 271.º, se tal fosse necessário.

Por princípio, toda a prova devia ser produzida ou examinada na audiência - artigo 355.º, n.º 1 -, constituindo a leitura de declarações uma excepção. A prova pessoal devia ser produzida na audiência, a prova real, nomeadamente os objectos e os documentos apreendidos, devia ser aí examinada, só sendo admitidas as leituras a título excepcional(1).

Impunha ainda o Código que «[a] permissão de uma leitura e a sua justificação legal [ficassem] a constar da acta, sob pena de nulidade» - artigo 356.º, n.º 8.

2. O artigo 271.º do Código de Processo Penal viu o seu âmbito alargado pelas revisões operadas pelas Leis 59/98, de 25 de Agosto e 48/2007, de 29 de Agosto. A primeira passou a permitir a prestação de declarações para memória futura às vítimas de crimes sexuais, mesmo que não existisse motivo que levasse a temer que elas não pudessem ser ouvidas em julgamento. A lei de 2007 aditou aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, designação que passou a adoptar, o crime de tráfico de pessoas, tendo tornado obrigatória, quanto aos primeiros, a tomada de declarações para memória futura desde que a vítima ainda fosse menor.

Por sua vez, a Lei 112/2009, de 16 de Setembro, passou a regular de uma forma particular a prestação de declarações para memória futura no caso de violência doméstica, estabelecendo as condições em que a vítima podia depor na audiência de julgamento - artigo 33.º, n.º 7.

Todos estes diplomas mantiveram, contudo, a parte final do n.º 1 daqueles preceitos, do qual continuou a constar o inciso «a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento», não obstante a diversidade de finalidades agora visadas por essas disposições, que não se cingiam à preservação da prova, mas pretendiam também contribuir para pôr termo ao processo de vitimização secundária, pelo menos nos casos de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual e de violência doméstica.

3. O princípio consagrado no n.º 1 do artigo 355.º do Código de Processo Penal, segundo o qual «[n]ão valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência», continua vigente no nosso sistema processual penal, não obstante o alargamento das permissões de leitura operado pelas sucessivas leis que procederam à revisão daquele diploma. Aí se consagra com largueza o respeito pelos princípios da imediação, da oralidade, do contraditório e, indirectamente, da publicidade.

Acrescentou-se mesmo a exigência que da acta constasse «a indicação de todas as provas produzidas ou examinadas em audiência» - artigo 362.º, n.º 1, alínea d) -, exigência que passou a acrescer à que já constava do agora no n.º 9 do artigo 356.º e no n.º 3 do artigo 357.º, de que «[a] permissão de uma leitura e a sua justificação legal fica[ssem] a constar da acta, sob pena de nulidade».

4. Será, portanto, todo este quadro normativo que deve ser convocado para a resolução da questão que o acórdão de fixação de jurisprudência procura resolver.

Não se trata de saber, a meu ver, se a solução que esse acórdão propugna viola algum dos princípios constitucionais invocados, mas qual é o regime previsto na nossa legislação processual penal, que valerá se a conclusão a que chegarmos não afrontar a lei fundamental.

5. A meu ver, para que um procedimento de estrutura acusatória seja leal e justo torna-se necessário, para além do mais, que a delimitação das provas que irão ser valoradas pelo tribunal no momento em que deliberar sobre a matéria de facto seja perfeitamente clara para os sujeitos processuais envolvidos.

Ora, dispondo o n.º 9 do artigo 356.º do Código que a permissão de leitura e a sua justificação legal deve ficar a constar da acta, sob pena de nulidade, estando a valoração das declarações para memória futura dependente do juízo que o tribunal vier a fazer sobre a necessidade dessa prova (juízo que tem necessariamente em consideração a restante prova produzida) e não se encontrando sequer expressamente prevista a existência de qualquer despacho sobre a admissibilidade da prova indicada pelo Ministério Público na acusação (nem a prática consagrando um tal despacho), não se pode deixar de concluir que, para poderem ser valoradas em julgamento, as declarações para memória futura devem ser indicadas como prova na acusação (e no despacho de pronúncia, se existir), devendo o tribunal, em audiência, pronunciar-se sobre a necessidade da sua valoração e determinando, consequentemente, a sua leitura, ficando tudo isto a constar da acta.

6. Se bem que a leitura de um auto e a reprodução da gravação das declarações prestadas não assegurem a oralidade no seu pleno significado, porque quem ouve ou vê não pode tomar parte no diálogo, e com este procedimento se encontre comprometido, em grande medida, o respeito do princípio da imediação, a leitura poderá dar satisfação ao princípio da publicidade, pelo menos quando não for determinada a sua exclusão, nos termos do artigo 321.º do Código de Processo Penal, e constituirá, na generalidade dos casos, a melhor forma de propiciar o cumprimento do contraditório. Não será, por certo, um contraditório na formação da prova, o qual já teve lugar, em maior ou menor medida, quando as declarações foram prestadas, mas um contraditório sobre a prova, que não deixa de ser muito relevante.

A leitura permitirá que os membros do tribunal e os demais sujeitos processuais tomem perfeita consciência do conteúdo das declarações para memória futura, que o arguido e as testemunhas sejam, se necessário, confrontados com o seu teor e, nos casos em que a audiência não deva decorrer com exclusão de publicidade, que a comunidade em geral possa conhecer os fundamentos em que virá a assentar a decisão que o tribunal vier a proferir.

Tal não significa que essa leitura tenha que ser sempre efectiva. Não vejo impedimento a que, quando haja acordo de todos os sujeitos processuais interessados e nada do que se disse anteriormente imponha a leitura, se considere esta realizada sem tal formalismo. Foi precisamente isso que se tinha passado no caso apreciado pelo acórdão fundamento e que foi injustificadamente, no meu modo de ver, desconsiderado pelo Tribunal da Relação.

Tal como se estabelece no n.º 5 do artigo 511.º do «Codice di Procedura Penale» italiano, «[e]m vez da leitura, o juiz, mesmo oficiosamente, pode indicar especificamente os actos utilizáveis para a formação da decisão. A indicação dos actos equivale à sua leitura. Contudo, o juiz determina a leitura, integral ou parcial, quando se tratar de autos de declarações e uma parte o requeira. Se se tratar de outros actos, o juiz só está obrigado a deferir o pedido de leitura se existir um sério desacordo sobre o seu conteúdo», disposição que está em linha com o regime previsto no §249 II do StPO alemão.

7. Resta fazer uma breve referência às consequências que, a meu ver, na linha do que penso ser o pensamento de Figueiredo Dias (RLJ 4000 p. 3 a 16), advêm, por um lado, da violação do n.º 1 do artigo 355.º e, por outro, do não acatamento do n.º 9 do artigo 356.º do Código de Processo Penal.

A valoração da prova que não tenha sido produzida ou examinada na audiência ou que nela não pudesse ser lida, visualizada ou ouvida consubstancia uma autêntica proibição de prova.

O desrespeito da regra probatória estabelecida no n.º 9 do artigo 356.º do Código constitui uma nulidade processual sujeita ao regime estabelecido no artigo 120.º, n.º 1 e n.º 3, alínea a), daquele diploma.

8. Pelas razões antes indicadas, fixaria a jurisprudência nos seguintes termos:

«Para poderem ser valoradas na audiência, as declarações para memória futura prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal que tenham sido indicadas como prova devem ser aí lidas, visualizadas ou ouvidas».

(1) Quer elas constituíssem prova que pudesse fundamentar positivamente a decisão, quer servissem apenas para o avivamento da memória ou para o confronto da testemunha com anteriores declarações prestadas, tendo a leitura neste caso um papel meramente negativo, contribuindo apenas para a valoração das declarações prestadas perante o tribunal.

Carlos Rodrigues de Almeida

DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencido, com os seguintes fundamentos:

Do meu ponto de vista, o texto da conclusão do acórdão deveria, pelo menos, fazer referência expressa ao n.º 9 (e não apenas à al. a) do n.º 2) do artigo 356.º do CPP, segundo o qual "a permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade". O artigo 355.º, n.º 2 (com a expressão "nos termos dos artigos seguintes"), remete também para este n.º 9, que estabelece um pressuposto de que depende a leitura e a possibilidade de valoração da prova.

O n.º 9 não é uma disposição sobre a documentação da audiência (o que é regulado no artigo 362.º), mas sobre a admissibilidade e eficácia da prova resultante de depoimento que consta de declaração para memória futura (artigo 271.º e 356.º, n.º 2, al. a), do CPP).

O que é decisivo - e é obrigatório - é que haja uma decisão (de "permissão") fundamentada (com indicação da "justificação legal") que permita que, em vez de ser ouvida a testemunha (355.º, n.º 1), seja lido o que ela disse quando foi ouvida nos termos do artigo 271.º.

Com efeito, a presença da testemunha em julgamento é obrigatória, de acordo com as regras gerais, salvo se a presença for dispensada, para sua protecção. Neste caso, pode ser lido o depoimento prestado na declaração para memória futura, com fundamento no artigo 271.º, n.º 8, do CPP ou no artigo 24.º da Lei 130/2015, de 4 de Setembro, que deve ser verificado caso a caso.

A produção desta prova é ordenada pelo tribunal (artigo 340.1 CPP).

Nos termos do artigo 323.º, n.º 3, do CPP, "para disciplina e direcção dos trabalhos cabe ao presidente, sem prejuízo de outros poderes e deveres que por lei lhe forem atribuídos: c) ordenar a leitura de documentos, ou de autos de inquérito ou de instrução, nos casos em que aquela leitura seja legalmente admissível". Este poderá ser um argumento forte no sentido de que a leitura é sempre obrigatória.

Não parece que seja exactamente assim.

O tribunal apenas tem que ordenar a produção de prova mediante leitura do depoimento que consta das declarações, mas a lei não diz que deva ser o tribunal a ler ou a mandar ler e a quem. Permitir a leitura também pode significar "dar a ler".

O que a lei visa assegurar é que aos sujeitos processuais seja permitida a leitura, em respeito pelos princípios, assegurando-se o contraditório em audiência sobre este meio de prova. Compete ao juiz (tribunal) assegurar que todos os intervenientes têm pleno conhecimento do conteúdo do depoimento, de forma a poderem pronunciar-se sobre ele.

Na produção da prova segue-se o artigo 341.º do CPP: apresentação dos meios de prova indicados pelos sujeitos processuais, segundo a ordem aí estabelecida. O depoimento da testemunha constante da declaração para memória futura é um deles.

Em síntese, o auto de declarações, contendo um meio de prova, deve ser apresentado em audiência e a produção da prova nele contida, mediante leitura do depoimento, só pode ter lugar se for permitida por decisão do tribunal nos termos do artigo 356.º, n.º 9.

Nada obsta a que, assegurado tudo isto, o juiz (tribunal, presidente) em vez de ordenar a leitura, possa facultar a leitura aos sujeitos processuais e substituir a leitura pela indicação de que tal meio de prova será utilizado para a decisão. À semelhança do que estabelece o artigo 511.º do CPP italiano, onde se lê: "5.In luogo della lettura, il giudice, anche di ufficio, può indicare specificamente gli atti utilizzabili ai fini della decisione. L'indicazione degli atti equivale alla loro lettura".

Neste quadro, não poderá afirmar-se "tout court" nem que é obrigatória nem que não é obrigatória a leitura.

E só neste quadro poderá, na minha interpretação, ser lida a conclusão a que chega o acórdão.

JL Lopes da Mota

Votei "parcialmente vencido", pois, considerando que o processo criminal deve assegurar todos os direitos de defesa ao arguido, nos termos do art.º 32.º, n.º 1, da CRP, considerando ainda que o arguido tem o direito de estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito e a ser informado dos factos que lhe são imputados, nos termos do art.º 61.º, n.º 1, al.s a) e c), do CPP, entendi que as declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, embora apenas quando o arguido não tiver estado presente durante o decurso de tais declarações, designadamente nos termos do n.º 6 do referido artigo 271.º e do art.º 352.º do Código de Processo Penal

a) Santos Carvalho

DECLARAÇÃO

1) O art. 355º do CPP refere que não valem em julgamento, nomeadamente para formação de convicção do tribunal, provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, querendo, fundamentalmente, com as primeiras aludir à prova pessoal e com as segundas à prova real.

Assim se pretendeu salvaguardar, em sede de audiência, a concretização de princípios como o da oralidade, da imediação, do contraditório ou da publicidade,

2) No nº 2 do preceito excepcionam-se dessa exigência provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição sejam permitidas. A lei não diz que para além de serem permitidas, essa leitura, visualização ou audição tenham que ser expressamente requeridas ou ordenadas, podendo não o ser.

É que, a nosso ver, a excepção à regra da obrigatoriedade da produção e exame de provas em audiência só é estabelecida, porque razões ponderosas determinaram a antecipação da produção de tal prova, e a compressão dos princípios acima apontados, pelo menos é atenuada, exactamente pela leitura, visualização ou audição das provas.

Seria porém de todo descabido que o legislador tivesse admitido que pudessem servir para formar a convicção do julgador em matéria de facto provas que não foram produzidas, examinadas, lidas ouvidas ou vistas em audiência. Ou seja, tenham passado absolutamente ao lado da audiência.

Só se explica a possibilidade de quebrar a regra do nº 1 do art. 355º, nos casos em que é possível a leitura, visualização ou audição das provas, no pressuposto de que tem lugar essa leitura, visualização ou audição. Trata-se de uma possibilidade que não tem que ver com o poder discricionário de requerer ou ordenar a leitura, visualização ou audição das provas, e alude sim ao preenchimento dos pressupostos de que dependem. Na prossecução dos interesses de proteção de menores, intimidade ou apuramento da verdade material. No fundo, tratar-se de um dos casos em que a lei considerou conveniente a antecipação de prova.

3) Só faz sentido que o art. 356º do CPP, no seu nº 9, obrigue a consignar em ata a permissão de leitura, visualização ou audição das provas, e sua justificação legal, sob pena de nulidade, porque se se não tratar de um dos casos em que tal é permitido, a prova teria que ser produzida em audiência.

Seria absurdo ter que fazer-se essa consignação em ata, se, afinal, por exemplo as declarações para memória futura, não só não fossem prova produzida em audiência (muito menos examinada), mas também não tivessem que ser lidas vistas ou ouvidas em audiência.

José Souto de Moura

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/3157632.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 1999-07-14 - Lei 93/99 - Assembleia da República

    Regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 2009-09-16 - Lei 112/2009 - Assembleia da República

    Estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas.

  • Tem documento Em vigor 2013-02-21 - Lei 20/2013 - Assembleia da República

    Altera (20ª alteração) ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de fevereiro.

  • Tem documento Em vigor 2015-09-04 - Lei 130/2015 - Assembleia da República

    Procede à vigésima terceira alteração ao Código de Processo Penal e aprova o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001

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