Acordam, em pleno, no Supremo Tribunal de Justiça:
O digno representante do Ministério Público recorreu para o tribunal pleno do Acórdão da Relação de Évora de 28 de Fevereiro de 1979, por o considerar oposto ao da Relação de Lisboa de 28 de Janeiro de 1977, no tocante a saber se a suspensão da pena por infracção da disciplina da caça abrange a interdição do direito de caçar que ao tipo também caiba.
A secção criminal, afora reconhecer a inadmissibilidade do recurso ordinário, aceitou a oposição referida e ordenou, por isso, o prosseguimento dos autos.
Ouvido o Sr. Procurador-Geral-Adjunto e corridos os vistos, cumpre decidir.
E, como é de lei (n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil, por remissão do § único do artigo 669.º do de Processo Penal), teremos de começar pela dita questão preliminar.
Só haverá um conflito de jurisprudência, nos termos e para os efeitos do corpo do citado artigo 669.º e do n.º 1 do artigo 763.º do Código de Processo Civil, quando os arestos em confronto tenham resolvido em sentido contrário a mesma questão jurídica fundamental (Alberto dos Reis, Código Anotado, vol. 6.º, p. 260).
Portanto, desde logo se exige que teoricamente o problema seja o mesmo e haja obtido soluções diversas.
Desta identidade doutrinal não pode, no nosso caso, duvidar-se. Enquanto o acórdão da Relação de Lisboa estendeu a suspensão da pena à interdição de caçar, o de Évora entendeu que esta não era abrangida por aquela - duas dimensões para um só instituto.
É, porém, manifesto que um conflito de doutrinas não envolve necessariamente oposição de julgados, na medida em que estes se traduzem na aplicação das fontes a casos concretos (artigos 206.º da Constituição, 2.º da Lei 82/77, 3.º da Lei 85/77, 1.º do Código Civil e 2.º do Código de Processo Civil).
Deste modo se explica que o citado n.º 1 do artigo 763.º exija que ambas as decisões hajam sido proferidas no domínio da mesma legislação. Só nesse pressuposto se poderá falar de interpretações ou integrações diferentes.
É claro que logo o n.º 2 nos põe de sobreaviso quanto ao exacto conceito de identidade de direito positivo - não interfere com ela a modificação que não postule, directa ou indirectamente, outro desfecho para a causa.
Assim, parece-nos perfeitamente irrelevante que se houvesse integrado a conduta do Manuel Amaro Barata Neves e do Afonso Pinheiro (acórdão da Relação de Lisboa) nos artigos 210.º, n.º 1, do Decreto-Lei 47847, de 14 de Agosto de 1967, e 30.º e 31.º do Decreto-Lei 354-A/74, de 14 de Agosto, e a do Rafael Monteiro (acórdão da Relação de Évora) na alínea a) do n.º 1 do artigo 218.º daquele primeiro diploma e artigos 2.º e 5.º do Decreto-Lei 407-C/75, de 30 de Julho.
Trata-se, em ambos os casos, fundamentalmente de infracção ao Regulamento da Caça (as leis de 1974 e 1975 são apenas um desenvolvimento deste), punido com pena correccional (prisão e multa no primeiro e só multa no segundo) e à qual acresce a interdição do direito de caçar.
Esta última providência oferece o mesmo cariz em todos os diplomas (os Decretos-Leis n.os 354-A/74 e 407-C/75 nada adiantam sobre a sua natureza) e o artigo 88.º do Código Penal contempla tanto a multa como a prisão e multa.
Por sua vez, no nosso problema, nenhuma influência tem tratar-se, num caso, de caçar no defeso e com emprego de meios proibidos e, no outro, em local a isso vedado. Não são os tipos que estão em jogo, mas o seu sancionamento, e este é parecido nos dois.
Portanto, os acórdãos estão efectivamente em oposição sobre a mesma matéria de direito.
Quanto a esta, parece-nos fundamental descobrir a verdadeira natureza da interdição do direito de caçar.
Na base VI da Lei 2132, de 26 de Maio de 1967, a que corresponde o artigo 8.º do Decreto-Lei 47847, ela aparece-nos como um efeito penal da condenação por furto, roubo, fogo posto, dano e associação de malfeitores, quadrilha ou bando organizado.
Esse é o único significado a emprestar às palavras que aí se lêem («não podem exercer a caça quem tenha sido condenado ...»), aliás corroborado pelo facto de a proibição cessar com a reabilitação judicial e até mesmo em razão do cumprimento ou extinção da pena.
Na base XLVI, que é a que agora nos interessa, aparece a interdição como uma autêntica pena. Outro não pode ser o sentido de aí se afirmar que as infracções à disciplina da caça são puníveis com as seguintes sanções, isolada ou cumulativamente:
a) Pena de prisão até seis meses;
b) Pena de multa até 10000$00;
c) Interdição do direito de caçar.
Do seu carácter penal nos fala ainda muito elucidativamente a base XLVIII, a que corresponde o já citado artigo 210.º do Decreto-Lei 47847:
[...] a caça em época de defeso ou com o emprego de meios proibidos é punível com prisão de um a seis meses e multa de 500$00 a 10000$00 e acarreta sempre a interdição do direito de caçar ...
É o facto, e não o perigo, que provoca a incapacidade.
Esta ideia ressalta mesmo do n.º 2 da base XLIX e do correspondente n.º 2 do artigo 218.º do Regulamento, quando prevêem a possibilidade de o tribunal decretar a interdição de caçar, «de harmonia com a gravidade da infracção».
Foi, aliás, por considerar grave a caça dentro das zonas de ordenamento cinegético (caso do Rafael Monteiro) que o artigo 5.º do Decreto-Lei 407-C/75 tornou obrigatória a referida inabilitação.
O carácter sancionatório desta foi, por igual, muito focado no parecer da Câmara Corporativa (n.º 4) IX, no suplemento n.º 42 do Diário das Sessões, de 26 de Novembro de 1966.
A propósito da interdição temporária (de um a cinco anos), prevê que seja fixada «em atenção certamente ao facto praticado e à personalidade do infractor» e justifica que se não estabeleçam restrições ao critério do julgador, «a fim de que lhe seja possível individualizar adequadamente a sanção».
No tocante à definitiva, qualifica-a de medida extrema e acha que «só deverá ter lugar em casos graves, em casos de plurirreincidência por delitos de acentuada gravidade».
É que - anota ainda - «sanções muito rigorosas, além do mais, podem ter o efeito de estimular o julgador a absolver» (sic).
Em afinação de conceitos, vemos finalmente dos textos citados e de todos os outros que à interdição se referem que ela não aparece isolada, aplicável com autonomia a qualquer delito. Pelo contrário, a lei sempre a faz surgir com um acréscimo da «prisão e multa» (artigos 210.º,. 212.º, 213.º, 214.º e 216.º do Regulamento) ou só da «multa» (artigos 211.º, 218.º e 227.º).
Portanto, é tecnicamente uma pena acessória daquelas (cf. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, vol. 2.º, pp. 181 e 182).
Como tal, e por definição, tem de seguir o destino da principal (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. 2.º, p. 413).
Deste modo se lavra o seguinte assento:
A suspensão da pena principal, por infracção à disciplina da caça, acarreta sempre a interdição do direito de caçar que acessoriamente também haja sido decretada».
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 11 de Junho de 1980. - Manuel Alves Peixoto - António de Melo Bandeira - Augusto de Azevedo Ferreira - Oliveira Carvalho - Francisco Bruto da Costa - Rodrigues Bastos - Sebastião de Barros e Sá Gomes - Angélico Sequeira Carvalho - Daniel Ferreira - Abel de Campos - Manuel Arêlo Ferreira Manso - Manuel dos Santos Victor - Avelino da Costa Ferreira Júnior - Artur Moreira da Fonseca - Hernâni de Lencastre - Aníbal Aquilino Ribeiro - Alberto Alves Pinto - António Furtado dos Santos - Octávio Dias Garcia - Henrique Justino da Rocha Ferreira.
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Junho de 1980. - O Secretário, Manuel Fernandes Júnior.