Processo 256/06 - 3.ª Secção
Acordam no plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:I - Diamantino Gonçalves Maia, identificado no processo, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação do Porto (processo 1599/2005, 4.ª Secção), proferido em 8 de Junho de 2005, que, confirmando a decisão recorrida, decidiu, além do mais, que a suspensão do procedimento penal, por motivo de impugnação fiscal, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 50.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, resulta directamente da lei, não dependendo, pois, de despacho judicial a declará-la.
O recorrente alegou, em síntese, que quanto àquela declarada natureza ope legis da suspensão do procedimento penal fiscal, no domínio da mesma legislação, o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Janeiro de 2001, publicado em Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, t. I, de p. 56 a p. 58, sufragou entendimento oposto: a suspensão da prescrição por efeito de existência de processo de impugnação fiscal só ocorre se no processo penal fiscal houver despacho judicial que declare tal suspensão.
Nestes termos, o recorrente entendeu que deve ser fixada jurisprudência no sentido de que, «para haver suspensão do processo crime, há necessidade de despacho que [...] a declare».
Remetido o processo a este Supremo Tribunal, a Secção, em conferência, pronunciou-se no sentido da existência de oposição de julgados, determinando o prosseguimento do recurso.
Ordenado o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal, foram notificados o Ministério Público e o recorrente para apresentarem as respectivas alegações.
O Ministério Público considerou que o acórdão recorrido deve ser mantido, propondo que a jurisprudência seja fixada nos seguintes termos:
«A suspensão da prescrição do procedimento criminal por crime fiscal, prevista no artigo 50.º, n.º 1, do RJIFNA, opera ope legis, não tendo assim de ser declarada no processo criminal fiscal para ter eficácia.» O recorrente, por sua vez, terminou as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
«a) Sobre a questão em causa, decidida pelos acórdãos recorrido e fundamento, verifica-se oposição de julgados;
b) Assim sendo, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem fundamento;
c) Esta jurisprudência deve ser fixada no sentido de que 'a suspensão do procedimento criminal por crime fiscal, prevista no n.º 4 do artigo 43.º e no n.º 1 do artigo 50.º do RJIFNA por efeito de oposição ou impugnação pelo arguido do acto tributário que definiu o montante do imposto que com o crime fiscal o arguido deixou de pagar, só ocorre se, no processo crime fiscal, tiver sido proferido despacho judicial que, reconhecendo a existência de fundamento legal para a suspensão do processo, a declare'.» Colhidos os vistos, nos termos determinados pelo artigo 442.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
II - Tal como a Secção decidiu, os dois acórdãos em conflito, o acórdão recorrido e o indicado acórdão da Relação de Coimbra - acórdão fundamento -, ambos transitados em julgado, pronunciaram-se em sentido contrário relativamente a uma mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação e no que respeita a factos idênticos: quanto à suspensão do prazo de prescrição do procedimento penal fiscal, em virtude de impugnação judicial fiscal, o acórdão recorrido concluiu no sentido de que essa suspensão decorre ope legis, ao passo que o acórdão fundamento entendeu que tal suspensão só opera se houver despacho judicial a determiná-la.
Verifica-se, pois, a existência da oposição de julgados a que se refere o artigo 437.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal.
III - Atento o pedido deduzido e os respectivos fundamentos, o objecto do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência consiste em saber se a impugnação judicial fiscal suspende por si só o prazo prescricional do procedimento penal fiscal ou antes impõe que a suspensão seja declarada por despacho judicial.
Atento o teor dos acórdãos recorrido e fundamento, embora neles haja referências ao processo fiscal gracioso e à oposição de executado, tais referências são meramente circunstanciais, decorrentes da alusão a normas legais sem qualquer conexão com a matéria factual em causa em tais acórdãos; por isso, no caso, a oposição de julgados que importa apreciar circunscreve-se aos efeitos da impugnação judicial fiscal na suspensão do procedimento criminal.
IV - 1 - O presente recurso respeita ao direito penal fiscal.
Relaciona-se, pois, com o chamado direito penal secundário, entendido este como o campo essencialmente conexo com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos sociais e à organização económica, em que o escopo predominante é a protecção da esfera de actuação social do homem (cf., neste sentido, Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, 1971, pp. 28 e segs.; Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. I, pp. 106 e 107; Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, t. I, Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2004, pp. 115 e segs.).
Com relevo ético-social crescente, os bens jurídicos tutelados pelo direito penal secundário encontram-se hoje num estado aproximado da relevância ética ao direito penal clássico, sendo expressão de tal aproximação a identidade, o nível acrescido de exigência, a identidade no respectivo tratamento dogmático e a gravidade das reacções penais previstas no direito penal secundário e no direito penal clássico [cf., v.
g., entre outros, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, «O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português (considerações sobre a factualidade típica e o concurso de infracções)», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6, I (Janeiro-Março de 1966), pp. 71 e segs.; Jorge dos Reis Bravo, «Prescrição e suspensão do processo penal fiscal», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9 (Outubro-Dezembro de 1999), pp. 627 e segs.; Cunha Rodrigues, Lugares do Direito, 1999, pp. 101 e segs.].
2 - Em causa neste recurso extraordinário para fixação de jurisprudência está a aplicação do chamado Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (adiante designado simplesmente por RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro). Mais concretamente, em discussão está o regime de suspensão do procedimento penal por crime fiscal em virtude de impugnação judicial fiscal.
No RJIFNA, aquela matéria era regulada nos respectivos artigos 15.º e 50.º Segundo aquele primeiro preceito legal:
«1 - O procedimento criminal por crime fiscal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do mesmo sejam decorridos cinco anos.
2 - O prazo de prescrição do procedimento por crime fiscal suspende-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos do n.º 4 do artigo 43.º e do artigo 50.º» De acordo com o artigo 50.º, na redacção do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, aplicável in casu, por vigente à data dos factos imputados:
«1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição de execução, nos termos do Código de Processo Tributário, o processo penal fiscal suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.
2 - Se o processo penal fiscal for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie.» Actualmente, o Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, regula a matéria no seu artigo 21.º («Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal»). Segundo o n.º 4 deste preceito legal, «[o] prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º», sendo que, segundo o n.º 1 desta disposição, «se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças» e, pelo n.º 2, «se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie».
3 - Relativamente à matéria em causa, e fundado nos indicados preceitos legais, do acórdão fundamento consta que:
«[...] Temos assim que a suspensão da prescrição se verifica por força - é um efeito - da suspensão do processo penal fiscal e esta última é determinada pela existência de processo de impugnação judicial ou de oposição de executado onde se discuta o acto tributário que definiu o montante do imposto que com o crime fiscal o arguido deixou de pagar.
Isto quer dizer que não basta a pendência de impugnação judicial ou de oposição de executado para que possa ter-se como verificada a suspensão da prescrição; esta só ocorrerá se o processo penal fiscal for declarado suspenso por virtude daquelas impugnação ou oposição. Na verdade, a causa determinante da suspensão da prescrição é a suspensão do processo criminal fiscal e esta só ocorre se existir despacho judicial que, reconhecendo a existência de fundamento legal para o efeito, a declare.» Por sua vez, discorre o acórdão recorrido:
«[...] É nosso entendimento que a suspensão do processo criminal é obrigatória, resultando da própria lei, sem necessidade de despacho a declará-la.
Se a suspensão do processo penal é imposta pela lei e se essa suspensão implica a suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, parece-nos evidente a desnecessidade de qualquer despacho a declarar a suspensão do prazo da prescrição.
A letra da lei não permite interpretação diferente. Ela impõe a obrigatoriedade da suspensão do processo penal e do prazo da prescrição, sem necessidade de qualquer despacho.
Nos casos de suspensão do prazo de prescrição referidos no artigo 120.º do CP/95, como no artigo 119.º do CP/82, não é necessário qualquer despacho a declarar tal suspensão. Ela resulta, como no caso em apreço: da própria lei, sem necessidade de qualquer decisão.» (Cf., em situações similares, a posição do acórdão recorrido foi subscrita nos Acórdãos da Relação do Porto de 9 de Fevereiro de 2005, Colectânea de Jurisprudência, I, pp. 212 e segs., e de 30 de Junho de 2005, Colectânea de Jurisprudência, III, pp. 140 e segs., e nos Acórdãos deste Supremo Tribunal de 17 de Janeiro de 2002, processo 4118/2001, 5.ª Secção, de 6 de Novembro de 2002, processo 2096/2002, e de 22 de Janeiro de 2003, processo 972/2002 - 3.ª Secção.) 4 - A delimitação do sentido e alcance de uma norma jurídica decorre sempre da sua interpretação: a interpretação constitui uma tarefa permanente na actividade jurisdicional, e a aplicação da norma pressupõe a determinação do seu sentido e alcance.
Interpretar uma norma não é mais do que fixar o sentido com que há-de valer, determinando o alcance decisivo da respectiva estatuição.
A letra ou texto da norma é, naturalmente, o ponto de partida de toda a interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar tudo quanto não tenha apoio ou correspondência no texto da norma.
Nos limites permitidos pelo texto pode haver, então, que proceder a uma interpretação declarativa, extensiva ou restritiva, ou até correctiva se o texto não tiver sido suficientemente esclarecedor ou permitir mais de uma leitura; a letra é o ponto de partida, mas também é um elemento irremovível da interpretação na procura do sentido com que a norma deve valer, de acordo com critérios de apreensão sistemáticos, históricos, racionais e teleológicos.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma a interpretar, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam questões semelhantes (lugares paralelos);
compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento geral, assim como a sua concordância com o espírito ou a unidade intrínseca do sistema. (Cf., v. g., Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, 1999, pp. 235 e segs., e José de Oliveira Ascenção, O Direito - Introdução e Teoria Geral, 1991, pp. 363 e segs.) Cumpre apelar, em primeira linha, ao elemento literal.
Deste ponto de vista, verifica-se que nos referidos artigos 15.º, n.º 2, e 50.º, n.º 1, do RJIFNA, o legislador consignou que «o prazo de prescrição do procedimento por crime fiscal suspende-se» no caso de suspensão do processo penal fiscal, «se estiver a correr processo de impugnação judicial [...] nos termos do Código de Processo Tributário», sendo que tal suspensão perdura «até que transitem em julgado as respectivas sentenças».
Ou seja, na leitura das palavras, o legislador aponta a pendência do processo de impugnação judicial tributário como uma causa de suspensão do processo penal por crime fiscal e, consequentemente, por referência expressa, do procedimento criminal.
Indica, pois, uma causa própria de suspensão, pura e simples e directa, do processo penal por crime fiscal, isto é, sem a fazer depender de qualquer condição.
Nomeadamente não estipula a necessidade de um despacho judicial a determinar no contexto indicado a suspensão do processo por crime fiscal.
Na imediata expressão verbal, a suspensão do processo penal por crime fiscal decorre, pois, automática e exclusivamente da pendência do processo de impugnação judicial tributário; e a suspensão do processo do processo penal determina ex vi legis suspensão do procedimento criminal.
A suspensão de processo penal fiscal em virtude da pendência de processo de impugnação judicial ou oposição à execução afigura-se obrigatória e não apenas facultativa como no processo penal comum.
A obrigatoriedade da suspensão do processo penal fiscal é fundamental, pois que o montante do imposto discutido na impugnação judicial ou a oposição à execução fiscal é decisivo quer para a definição da existência de fraude fiscal [alínea a) do n.º 3 do artigo 23.º] quer para a determinação da multa aplicável em alternativa à prisão (n.os 4 e 5 do artigo 23.º e 1, 4 e 5 do artigo 24.º).
A suspensão do processo penal fiscal nos termos desta norma prolonga-se até ao trânsito em julgado das decisões da impugnação judicial ou oposição à execução.
Durante a suspensão fica suspenso o prazo da prescrição do procedimento criminal artigo 15.º, n.º 2. (Cf., Alfredo José de Sousa, Infracções Fiscais, em anotação ao artigo 50.º do RJIFN.) Depois, importa ter presente o elemento sistemático.
Neste contexto, há que considerar o sistema jurídico no seu todo, nomeadamente o sistema jurídico-penal em sentido amplo, num claro e necessário propósito de conjugação, naquilo em que seja possível, entre o RJIFNA e o regime penal e processual-penal comum, por um lado, e entre tais regimes e o processo de impugnação tributária, por outro lado.
Naquela primeira vertente, consigna-se que o RJIFNA constitui indubitavelmente um regime penal e processual especial.
Além do mais, tal especificidade justifica que às infracções fiscais sejam primeiramente aplicáveis as normas constantes do RJIFNA e subsidiariamente as normas do regime penal e processual-penal comum.
Quer isso significar que estas últimas normas apenas serão aplicáveis às infracções fiscais sempre que o RJIFNA seja omisso na matéria e desde que tal aplicação não contrarie as normas e os princípios daquele regime.
Ora, dada a omissão do RJIFNA de qualquer expressão sobre a necessidade de despacho judicial declarativo da suspensão do processo penal fiscal e uma vez que no procedimento penal comum a eficácia da suspensão não depende da prévia existência de despacho judicial a declará-la, a aplicação subsidiária do indicado regime comum determinará que a suspensão do processo penal fiscal há-de decorrer da simples verificação da pendência do processo de impugnação tributário, sem necessidade de despacho judicial.
Dito de outro modo, a apontada omissão do RJIFNA justifica que se aplique a este o regime penal comum em matéria de suspensão do prazo de prescrição do procedimento penal fiscal e no que respeite à natureza do despacho judicial que eventualmente for proferido: a suspensão decorre da lei, sem necessidade de despacho judicial, o qual terá, pois, se for ou tiver sido proferido, natureza meramente declarativa ou de accertamento, e não constitutiva.
A aplicação do regime penal comum mais se justifica até por nesse regime se prever uma situação similar àquela que ora está em causa e também aí a suspensão não depender de despacho judicial que a declare: conforme decorre do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, no procedimento penal comum a suspensão do prazo prescricional ocorre, além do mais, durante o tempo em que o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a um juízo não penal, sendo que nesse caso a suspensão não está dependente de despacho judicial a declará-la.
Se o legislador entendesse que a suspensão do processo penal fiscal, em virtude de impugnação judicial tributária, dependia de um tal despacho, que, assim, assumiria natureza constitutiva, seguramente que o teria consignado para ser diverso do regime penal comum.
Tanto mais quanto é certo que expressamente afastou tal regime no que diz respeito ao prazo de prescrição do procedimento criminal por crime fiscal: contrariando o estipulado no artigo 118.º, n.º 1, do Código Penal, onde o prazo prescricional é determinado em função do limite máximo da pena fixada na moldura penal abstracta, o indicado artigo 15.º, n.º 1, do RJIFNA declara um prazo único de prescrição de cinco anos, sem levar em conta a moldura penal abstracta respectiva.
Por outro lado, a especificidade do direito fiscal, enquanto ramo de direito, justifica o afastamento do chamado princípio da suficiência do processo penal no domínio do direito penal fiscal em termos tais que a impugnação judicial tributária deve ser necessária e exclusivamente apreciada no processo e nas instâncias próprias; por isso, a pendência aí de tal impugnação constitui causa ope legis de suspensão do processo penal por crime fiscal e, em consequência, por directa imposição da lei, de suspensão do respectivo prazo prescricional, sem necessidade, pois, de despacho judicial que o declare.
É manifesto que o direito fiscal constitui um ramo de direito público, imbuído de princípios e normas próprios, do ponto de vista quer substantivo quer adjectivo.
Uma tal peculiaridade do direito fiscal justificou a criação de uma ordem jurisdicional própria - os tribunais administrativos e fiscais.
Dadas as apontadas especialidades do direito fiscal, a impugnação judicial tributária constitui objecto próprio de apreciação e decisão na competência da jurisdição administrativa e fiscal.
Mais constitui matéria da competência exclusiva de tal jurisdição, assim se afastando, neste limite, o princípio da suficiência do processo penal.
Nestes termos, se o conhecimento de matéria penal fiscal depender da prévia apreciação de impugnação judicial tributária, esta constitui uma questão prejudicial ope legis ao conhecimento penal e, por isso, suspende o processo penal fiscal até que transite em julgado a decisão proferida em sede fiscal quanto à respectiva impugnação, sem necessidade, pois, de despacho judicial nesse sentido.
Apreciado assim o complexo normativo em causa numa perspectiva sistemática, conclui-se que suspensão do procedimento penal por crime fiscal em virtude de impugnação fiscal constitui um imperativo legal, não assumindo, consequentemente, qualquer relevância processual a necessidade de fazer depender aquela suspensão de despacho judicial expresso.
Entender o contrário, como o acórdão fundamento e o recorrente, seria admitir ou que o processo penal fiscal pudesse ter um desfecho apesar da impugnação tributária e sem conhecimento desta, o que poderia constituir um acto inútil, caso tal impugnação fosse parcial ou integralmente deferida, ou que no processo penal fiscal se conhecesse da impugnação fiscal, com o risco de uma contradição de julgados e numa perspectiva assistemática contrária à especificidade dos planos pretendida pelo legislador.
Nestes termos, a coerência sistemática supõe que a impugnação fiscal determine a suspensão do processo por crime fiscal até ao desfecho da impugnação e, por tal suspensão, a suspensão do procedimento criminal sem necessidade de despacho que o declare.
Finalmente, o elemento teleológico.
A prescrição do procedimento penal funda-se em razões quer de natureza processual quer de natureza substantiva.
Quanto àquelas, dir-se-á que o decurso do tempo torna mais penosa a investigação, aumentando o risco de erros judiciários.
Substancialmente, a prescrição do procedimento penal radica no enfraquecimento e mesmo na cessação de necessidades de prevenção do ilícito penal, necessidades essas quer gerais quer especiais: decorrido um certo tempo da prática do tipo de ilícito penal sem que o respectivo procedimento seja instaurado ou sem que o mesmo tenha o seu teminus, justifica-se a correspondente extinção por estar atenuado, ou mesmo desaparecer, o juízo de censura comunitário e a apreensão deste por parte do agente (cf., v. g., Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 699 e segs.).
Ora, havendo impugnação judicial tributária, a pendência desta confere persistência ao conflito que o procedimento penal fiscal constitui, pelo que inexiste enfraquecimento, e muito menos cessação, das necessidades de prevenção do crime durante a pendência daquela impugnação judicial.
Persistindo em discussão matéria conexa e prévia à apreciação do ilícito penal fiscal, nem se mostra apaziguado por qualquer forma o juízo comunitário de censura, nem o agente pode alegar um tal desfasamento relativamente ao facto que justifique a impertinência da reacção penal.
Nestes termos, a simples pendência do processo de impugnação tributária justificará por si só a suspensão do processo penal fiscal.
Naquelas circunstâncias, fazer depender de despacho judicial a suspensão do processo penal fiscal seria esquecer a situação de conflitualidade que a pendência da impugnação tributária encerra e a prejudicialidade ope legis da questão que constitui seu objecto.
E o prazo de prescrição do procedimento criminal por crime fiscal suspende-se, nos termos dos artigos 15.º, n.º 2, e 50.º do RJIFNA (Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, aplicável no caso) por «efeito da suspensão do processo», se estiver a correr processo de impugnação judicial.
5 - Em suma, com recurso a critérios de interpretação, fundados nos elementos literal, sistemático e teleológico de interpretação (artigo 9.º do Código Civil), a norma do artigo 50.º, n.º 1, do RJIFNA deve ser interpretada no sentido de que a suspensão da prescrição do procedimento penal fiscal decorre ope legis da suspensão do processo em virtude de impugnação judicial tributária, não dependendo, pois, de prévio despacho judicial que a declare.
V - Pelo exposto, confirma-se o acórdão recorrido, fixando-se a seguinte jurisprudência:
«Na vigência do artigo 50.º, n.º 1, do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, a impugnação judicial tributária determinava, independentemente de despacho, a suspensão do processo penal fiscal e, enquanto esta suspensão se mantivesse, a suspensão da prescrição do procedimento penal por crime fiscal.» Dê-se observância ao disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Outubro de 2006. - Luís António Noronha Nascimento - António Silva Henriques Gaspar (relator) - Florindo Pires Salpico - Políbio Rosa da Silva Flor - António Artur Rodrigues da Costa - José Vítor Soreto de Barros - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - Alfredo Rui Francisco do Carmo Gonçalves Pereira - Luís Flores Ribeiro - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Joaquim da Costa Mortágua.