I - O digno magistrado do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa veio interpor o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência do Acórdão de 23 de Junho de 2005, proferido no recurso n.º 7094/2005, por aquele Tribunal.
Alegou, em síntese, que, perante a emissão e entrega de um cheque sem provisão para pagamento de dívidas fiscais ao Estado, decidiu-se, no acórdão recorrido, faltar o elemento essencial do prejuízo patrimonial para o preenchimento do crime previsto e punido pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 454/91, por este não se identificar com o prejuízo derivado do não recebimento da quantia titulada, correspondendo antes ao trair da «confiança na emissão do cheque, no uso como meio de pagamento imediato». Mas no Acórdão proferido em 28 de Maio de 2003, no recurso n.º 2225/2003, o Tribunal da Relação do Porto determinou o recebimento de acusação relativa também a emissão e entrega de cheque para pagamento de dívida fiscal, considerando que tinha lugar o mencionado elemento do «prejuízo patrimonial», já que não ocorrera, por falta de provisão, o recebimento da quantia titulada.
Ambos os acórdãos transitaram em julgado.
Não houve resposta.
II - Já neste Tribunal, foi julgado que o recurso era admissível e que havia oposição de julgados.
III - Ordenado o cumprimento do disposto no artigo 442.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, alegou apenas o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, pronunciando-se pela revogação do acórdão recorrido e propondo a fixação de jurisprudência nos seguintes termos:
«Entregue um cheque para pagamento de uma obrigação juridicamente válida e preexistente à data da sua emissão, não sendo este pago quando tempestivamente apresentado a pagamento, existe prejuízo patrimonial penalmente relevante para efeitos da integração do crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Dezembro.» IV - O acórdão recorrido limita-se a confirmar, também quanto aos fundamentos, a sentença da 1.ª instância.
Nesta foi considerado provado o seguinte:
1) No dia 17 de Novembro de 2003, o arguido preencheu, assinou e entregou à sua contabilista, para pagamento de uma dívida fiscal de imposto sobre o valor acrescentado, na quantia de (euro) 770,64, o cheque n.º 0623949205, sobre a conta 45248831019, do Banco Atlântico - BCP, do qual ele é titular;
2) Nesse mesmo dia 17 de Novembro de 2003, o cheque foi entregue nos correios de Queluz para depósito e pagamento da quantia acima referida, a pagar à Repartição de Finanças de Sintra 4, Queluz.
3) Apresentado a pagamento, foi o mesmo devolvido, com a menção «Falta/insuficiência de provisão»;
4) O arguido preencheu, assinou e entregou o referido cheque, para pagamento de dívida fiscal no valor de (euro) 770,64;
5) O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que não teria no banco sacado fundos suficientes no dia 7 de Novembro de 2003.
Entendendo-se em tal decisão e na subsequente da Relação de Lisboa que a devolução por falta/insuficiência de provisão não integrava o elemento essencial do crime de emissão de cheque sem provisão traduzido pela expressão «causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro», da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro.
Este cifrava-se antes no trair da «confiança na emissão do cheque, no uso como meio de pagamento imediato» e «consequente empobrecimento do tomador ou de terceiro».
Absolvendo, em consequência, o arguido.
No acórdão fundamento consideraram-se estes factos:
Com a data de 28 de Março de 2002, o arguido preencheu, assinou e entregou no balcão dos CTT de Pousada de Saramagos, neste concelho, o cheque n.º 0274049996, no montante de (euro) 498,80, sacado sobre o Banco Comercial Português - Nova Rede e relativo à conta 45201311980, de que é titular DITI - Indústrias de Confecções, Sociedade Unipessoal, Lda., da qual o arguido é sócio gerente;
Tal quantia destinava-se a pagar o imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) da responsabilidade de DITI - Indústrias de Confecções, Sociedade Unipessoal, Lda., na mesma data;
Apresentado tal cheque a pagamento na agência de Vila Nova de Famalicão do Banco Português de Investimentos, o mesmo foi devolvido, por falta de provisão, verificada em 3 de Abril de 2002, tendo causado um prejuízo patrimonial correspondente ao valor do cheque;
Ao proceder da forma supradescrita, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que não dispunha, na instituição de crédito sacada, de fundos suficientes que garantissem o seu pagamento integral e que desse modo causava um prejuízo patrimonial ao Estado;
O arguido sabia igualmente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Constando do texto do mesmo aresto:
«No caso, destinando-se o cheque ao pagamento de uma obrigação subjacente, resultante de uma dívida de impostos, obrigação essa que estava vencida, torna-se evidente que a sua devolução por falta de provisão causou prejuízo patrimonial ao Estado.» Tendo-se, em conformidade, revogado a decisão da 1.ª instância, que, por entender não se verificar o elemento essencial do prejuízo patrimonial ao tomador ou a terceiro, rejeitara a acusação.
Deste enunciado claramente se vê que é de acolher a decisão interlocutória sobre a existência de oposição de julgados.
De um lado, entendeu-se que o não recebimento da quantia a que se reportava o cheque não integrava o mencionado elemento essencial do prejuízo patrimonial ao tomador ou a terceiro, situando-se este no trair da «confiança na emissão do cheque, no uso como meio de pagamento imediato».
Do outro, entendeu-se que tal elemento correspondia ao não recebimento da quantia titulada pelo cheque.
Ambas as dívidas tinham a natureza de fiscais, sendo credor o Estado. Mas não é nessa natureza que se situa a questão, já que ela não interfere com qualquer construção possível sobre o referido elemento essencial.
A questão situa-se, pois, em saber se, preenchido e entregue um cheque para pagamento de uma dívida, o não pagamento da quantia que ele titula preenche o conceito de «prejuízo patrimonial» para efeitos do mencionado artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro.
VI - O primeiro elemento interpretativo resulta da redacção da disposição legal, que é a seguinte:
«Artigo 11.º
1 - Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:a) Emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a (euro) 62,35 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b) ............................................................................
c) ............................................................................
2 - ...........................................................................
3 - ...........................................................................
4 - ...........................................................................
5 - A responsabilidade criminal extingue-se pela regularização da situação, nos termos e prazo previstos no artigo 1.º-A;
6 - Se o montante do cheque for pago, com reparação do dano causado, já depois de decorrido o prazo referido no n.º 5, mas até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena pode ser especialmente atenuada.» Interessando ainda as seguintes disposições do mesmo decreto-lei:
«Artigo 11.º-A
1 - ...........................................................................2 - A queixa deve conter a indicação dos factos constitutivos da obrigação subjacente à emissão, da data da entrega do cheque ao tomador e dos respectivos elementos de prova.»
«Artigo 1.º-A
1 - Verificada a falta de pagamento do cheque apresentado para esse efeito, nos termos e prazos a que se refere a Lei Uniforme Relativa ao Cheque, a instituição de crédito notifica o sacador para, no prazo de 30 dias, proceder à regularização da situação.2 - ...........................................................................
3 - A regularização prevista no n.º 1 faz-se mediante depósito na instituição de crédito sacada, à ordem do portador do cheque, ou pagamento directamente a este, comprovado perante a instituição de crédito sacada, do valor do cheque e dos juros moratórios calculados à taxa legal, fixada nos termos do Código Civil, acrescida de 10 pontos percentuais.» Estes textos legais resultam de toda uma evolução legislativa bem intensa, cujos contornos, para o nosso caso, já pouco importam. Caminharam a doutrina e a jurisprudência nem sempre paredes-meias quanto ao entendimento sobre qual o interesse fundamentalmente tutelado pelo crime de emissão de cheque sem provisão.
Todavia, veio já o legislador tomar posição explícita no preâmbulo do Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, ao afirmar que «a tutela penal do cheque, ainda que com âmbito limitado agora estabelecido, visa sobretudo a protecção do respectivo tomador, conformando-se o respectivo crime, qualquer que seja a modalidade de acção típica, como de natureza patrimonial, desde logo pela exigência do prejuízo patrimonial como seu elemento constitutivo».
VIII - Não correspondeu este entendimento ao deste Tribunal, mas, de qualquer modo, sempre aqui se ligou a ideia de prejuízo neste crime ao não pagamento da quantia a que o cheque se reportava (cf. o texto do Assento 6/93, de 27 de Janeiro, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Abril de 1993, e, bem assim, exemplificativamente, os Acórdãos de 4 de Junho de 2003, processo 1528/2003, e de 12 de Maio de 2005, processo 894/2005).
Naquele Acórdão de 4 de Junho de 2003, pode mesmo ler-se o seguinte:
«[...] o aumento patrimonial efectivo do tomador não se verifica antes do pagamento pelo Banco da quantia inscrita no cheque, e a diminuição (rectius, alteração) patrimonial efectiva do sacador também não ocorre enquanto a sua provisão no Banco sacado não for descontada em consequência do pagamento do cheque.» E no de 12 de Maio de 2005:
«Simultaneamente, o cheque, representando um valor económico, passou a integrar o património do recorrente, património que foi diminuído nesse mesmo valor com o não pagamento pela respectiva instituição bancária.
Houve, assim, um prejuízo patrimonial causado ao recorrente pela falta de provisão do aludido cheque, em montante igual ao do saque.» Esta posição é, também, sufragada pela maioria da doutrina, como abaixo se vai precisar a propósito da frustração do pagamento da obrigação subjacente.
E integra-se bem no entendimento - que, na esteira de Figueiredo Dias (Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, t. III, p. 68), vem sendo seguido pelo comum dos autores - de que o prejuízo, para estes efeitos, tem natureza económico-jurídica.
Integrando-se ainda bem no teor do artigo 1.º-A, supratranscrito.
IX - Não tem, assim, pertinência a tese do acórdão recorrido.
Mas, aqui chegados, importa ainda distinguir entre:
Prejuízo derivado do não pagamento da obrigação cartular que o cheque consubstancia;
Prejuízo derivado do não pagamento da obrigação subjacente à emissão do cheque.
X - Se se entendesse que estava em causa apenas o não pagamento da obrigação cartular, ficaria por compreender a necessidade de referência ao prejuízo patrimonial no corpo do artigo, já que a alínea a) daquele n.º 1 alude a «cheque que não seja integralmente pago», a alínea b) ao impedimento do «pagamento do cheque» e a alínea c) ao endosso do cheque não pago.
Seria redundante a exigência se o prejuízo patrimonial coincidisse com o que é referido em tais alíneas.
Haveria uma repetição incompreensível e, assim concluindo, estaríamos a violar as regras interpretativas, mormente a do n.º 3, segunda parte, do artigo 9.º do Código Civil.
Por outro lado, este afastar da relação cambiária para estes efeitos encontra eco no teor do n.º 2 do artigo 11.º-A do mesmo decreto-lei, que estatui que a queixa deve conter a indicação dos factos constitutivos da obrigação subjacente. Tal, efectivamente, não pode deixar de ser interpretado como exigência de que o cheque relevante para efeitos do crime que vimos abordando é aquele que foi emitido tendo subjacentemente uma obrigação.
Assumiu, aliás, esta interpretação o próprio legislador ao escrever no preâmbulo referido «que o cheque não pago há-de ter sido emitido e entregue para cumprimento de uma obrigação».
Nos trabalhos preparatórios que estiveram na base deste decreto-lei, chegou mesmo a sugerir-se que se alterasse a epígrafe do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, porquanto «do que verdadeiramente se trata é de defraudação através da utilização de cheque» - Germano Marques da Silva, Regime Jurídico-Penal dos Cheques sem Provisão, p. 42.
Tendo este mesmo autor reiterado esta ideia ao afirmar (agora em O Novo Regime Penal do Cheque sem Provisão, p. 74) que «é necessária a existência de uma relação jurídica subjacente à emissão do cheque, sem o que não se configurará o prejuízo patrimonial que constitui elemento essencial do crime de emissão de cheque sem provisão. Com esta exigência lá se foi, para efeitos penais, a característica da abstracção do título!» O cheque tem, agora, afinal, uma função de protecção do tomador quanto ao ressarcimento de obrigação subjacente. Como diz Grumecindo Bairradas, O Cheque sem Provisão, p. 150, «a razão de ser da incriminação, o seu fundamento de legitimidade, está na protecção ao direito do tomador a receber o valor do crédito para cujo pagamento o cheque foi emitido».
XI - Se assim é, como é, o prejuízo patrimonial há-de situar-se na não satisfação da obrigação subjacente.
É este o entendimento de Germano Marques da Silva, O Regime Jurídico-Penal dos Cheques sem Provisão, já supracitado, pp. 52 e segs., de Taipa de Carvalho, Crime de Emissão de Cheque sem Provisão, p. 49, e de Fernando Lobo, Legislação sobre o Cheque, p. 37. E mesmo Grumecindo Bairradas, que, por razões de constitucionalidade, defende uma interpretação restritiva do conceito de prejuízo, não deixa de afirmar que «o processo legislativo que deu origem ao Decreto-Lei 316/97 decorreu com ampla transparência e não há agora nenhuma dúvida de que a intenção do legislador foi a de atribuir ao conceito de prejuízo patrimonial» não apenas a «frustração do direito a receber o valor do cheque», mas ainda que esta seja «acompanhada da frustração do pagamento da dívida derivada da relação jurídica causal» (ob. cit., pp. 154 e 157).
É, pois, na não satisfação da obrigação subjacente que se há-de situar a conceptualização do «prejuízo patrimonial» constante do texto legal.
XII - Assim colocada a questão, podem considerar-se emergentes dúvidas de constitucionalidade. Ponderar-se-ia, então, se afinal não estamos a tutelar penalmente o não pagamento de dívidas, com possibilidade de invasão do campo, excluído constitucionalmente, da prisão por dívidas.
Este Tribunal já decidiu pela inconstitucionalidade (Acórdão de 20 de Janeiro de 1999, processo 1301/97) e, na doutrina, vozes têm vindo a lume que a defendem. Já referimos, nomeadamente, Grumecindo Bairradas e a sua posição restritiva, por razões constitucionais, do conceito de prejuízo patrimonial para estes efeitos.
Representou, todavia, um marco incontornável o Acórdão 663/98, de 25 de Novembro, do plenário do Tribunal Constitucional, que, a nosso ver, afastou a inconstitucionalidade em entendimento - que subscrevemos - de que «um dos princípios constitucionais que fundamentam a proibição de prisão por dívidas é o princípio da culpa». Por isso, o crime de emissão de cheque sem provisão, ao encerrar um comportamento doloso, não tem mácula de inconstitucionalidade. No sentido da não inconstitucionalidade pronunciaram-se também Taipa de Carvalho (ob.
cit., p. 22) e Germano Marques da Silva (Novo Regime do Cheque sem Provisão, já citado, p. 75).
XIII - Decerto que - agora em questão diferente - o prejuízo patrimonial derivado do não pagamento da obrigação subjacente só poderá ter lugar se esta era válida e exigível.
Entendemos, todavia, não dever incluir isso no texto da fixação jurisprudencial, porquanto, por um lado, a prova da validade é, na prática, impossível, por tantos serem os casos em que uma obrigação pode estar ferida nesse domínio, e, por outro, a subscrição do cheque poder representar um acordo entre tomador e sacador quanto ao vencimento imediato de obrigação ainda não vencida.
Tudo deve, a nosso ver, ser deixado para as regras próprias do ónus de prova do direito civil, como, aliás, refere Germano Marques da Silva, na citada obra, O Regime Jurídico-Penal dos Cheques sem Provisão, p. 103.
XIV - Face ao exposto:
Concede-se provimento ao recurso, determinando-se a substituição da decisão recorrida por outra conforme à jurisprudência ora fixada;
Fixa-se jurisprudência nos seguintes termos:
«Integra o conceito de 'prejuízo patrimonial' a que se reporta o n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento.» Sem custas.
Lisboa, 30 de Novembro de 2006. - João Luís Marques Bernardo (relator) - Florindo Pires Salpico - Alfredo Rui Francisco do Carmo Gonçalves Pereira - Luís Flores Ribeiro - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar - Políbio Rosa da Silva Flor - António Artur Rodrigues da Costa - João Manuel de Sousa Fonte - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes. (Tem voto de conformidade do Exmo. Conselheiro Armindo dos Santos, que não assina por não estar presente. - João Luís Marques Bernardo.)